A Despedida da Esfinge

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FORTALEZA - CE, QUARTA-FEIRA - 17 DE AGOSTO DE 2016

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GUILLERMO GIANSANTI/DIVULGAÇÃO

ADEUS. ELKE MARAVILHA

terça-feira, 16, quando estava em coma induzido após cirurgia para tratar de uma úlcera. Seu irmão contou que em nenhum momento ela perdeu o bom humor. A artista vinha viajando pelo País com a turnê de seu elogiado espetáculo Elke Canta e Conta, no qual, acompanhada pelo músico e ator Adriano Salhab, visitava canções e narrativas que marcaram sua trajetória. Grande contadora de histórias, convidava pessoas do público para o palco, montado como se fosse sua casa. Queria dividir sua intimidade com quem a assistia. Queria celebrar suas sete décadas. Há alguns anos, questionada sobre seu estilo transgressor, respondeu que aquilo correspondia a sua realidade interior. “Com o tempo venho me descobrindo muito mais por dentro e colocando o que descubro pra fora. Costumo dizer que sempre fui assim, só que com o tempo estou piorando!”, explicou a artista, que ainda adolescente começou a rasgar as roupas, desgrenhar os cabelos e exagerar na maquiagem. “Levei até cuspida na cara”, contou. Na mesma ocasião, colocou pra fora o espírito pueril que a acompanhou até o fim. “O que eu quero é brincar, me mostrar, me comunicar”, afirmou a mulher que nasceu charada e morreu esfinge.

A despedida da

esfinge Morreu ontem, aos 71 anos, a artista Elke Maravilha. Russa naturalizada brasileira, ela chocou e encantou em medidas iguais o País que a recebeu Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

E

lke Maravilha abriu - “escancarou” seria mais justo - as portas e janelas das possibilidades estéticas e comportamentais. Exótica, inovadora, mística, ousada, transitou entre personagens - na TV, no cinema, no teatro e na moda - que ajudaram a mergulhar sua figura em uma aura de mistério. Todos conheciam Elke, mas ninguém a decifrava. Russa de nascimento, foi criança em Leningrado, atual São Petersburgo, e veio para o Brasil aos seis anos para morar em um sítio de Minas Gerais, com os pais fugindo do stalinismo soviético. Aos 24, começou a trabalhar como modelo e manequim, e não demorou a ser chamada para a Discoteca do Chacrinha, sua estreia na televisão. A partir daí, fez novelas, cinema e teatro. Mulher em eterna ebulição, foi presa por desacato durante o regime militar, quando apoiou a estilista Zuzu Angel, para quem desfilava, na busca de seu filho desaparecido. Casou, descasou e casou outra vez. Outras vezes. Assumiu abortos - “sempre soube que não tinha talento para isso” -, experimentou substâncias ilícitas e rei-

nou na associação de prostitutas do Rio. “Atualmente não assusto mais, mas tem gente que acha que sou travesti”, disse em entrevista à época do lançamento do filme Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, no qual interpreta uma cantora de cabaré. No cinema, ainda integrou o elenco de outras 28 produções, como Gente que Transa, de Sílvio de Abreu, Xica da Silva, de Cacá Diegues, e Pixote, a Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco. Seu último papel foi em Carrossel 2, lançado em julho deste ano. Elke se despediu do Brasil na cidade que amou como se fosse sua. Aos 71 anos, estava internada desde o dia 20 de junho na Casa de Saúde Pinheiro Machado, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Morreu no início da madrugada desta

O POVO online Leia entrevista de Elke nas Páginas Azuis em http://goo.gl/1zMoId Elke Maravilha estreou na televisão brasileira na Discoteca do Chacrinha, na década de 1960. A partir daí fez novelas, teatro e cinema

Veja matéria sobre Elke em http://goo.gl/Nruut0

REPERCUSSÃ0

EM TERRAS CEARENSES

De cigana medieval a visitante ilustre DIVULGAÇÃO

“Elke foi, além de uma mulher de grande história e de extrema exuberância, um ser humano que aprendeu a não perder a maior virtude que se recebe na vida, o de ter o espírito da criança sempre presente no seu dia a dia. Elke é, pois nunca deixará de ser, uma artista de grande generosidade, que sempre esteve disposta a acolher e aconselhar. Essa é uma virtude que não morre com o corpo, ela se espalha pelo universo em busca de se propagar.”

SILVERO PEREIRA,

ator, em entrevista ao O POVO

No cearense A lenda do gato Preto, Elke vive a bruxa Angelina Foi em um filme cearense que Elke Maravilha fez uma de suas últimas aparições no cinema. Em A Lenda do Gato Preto, longa de estreia do cineasta Clébio Viriato, a atriz interpreta Angelina, bruxa medieval envolvida em uma trama de realismo fantástico. As filmagens, ocorridas nos últimos meses de 2014 e no início de 2015, ficaram marcadas pelo bom humor contagiante de Elke. “Depois das cenas tensas, ela vinha com alegria e dava uma gaitada maravilhosa. Isso, só quem tem são os grandes”, relembra o diretor. “A gente perde um talento indescritível que vai levar gerações pra se repetir”, lamentou Clébio. No mesmo período, Elke Maravilha visitou a redação

do O POVO para participar dos Debates Grandes Nomes, programa de entrevista coletiva comandado pelo jornalista Plínio Bortolotti. Seu espírito divertido conquistou os repórteres e sua gargalhada podia ser ouvida além dos limites do estúdio. ”Ela distribuiu selinhos com todo mundo”, relembra aos risos o repórter Rômulo Costa, um dos agraciados. Elke já havia sido entrevistada pelo O POVO em 2007, quando contou sua história nas Páginas Azuis (veja link no quadro). Na ocasião, conversou com a jornalista Eleuda de Carvalho sobre sua trajetória e refletiu sobre diversidade e relacionamentos. (Jáder Santana)

“Elke foi tantas maravilhas que a língua dá nó para cravar definições e o coração aperta diante da profusão de razões para justificar a saudade que ela deixa. Particularmente, penso nela como uma espécie de Carmem ou de Clarice, que, sem ser brasileiras, foram brasileiríssimas e, cada uma a seu modo, ajudaram, as três, a mudar e formar o Brasil. Elke, sobretudo, foi um misto de força e alegria. Seu sorriso será eterno. Corajosa, foi, pensou, disse e fez o que quis uma vida toda, provocando uma legião a fazer o mesmo.”

MAGELA LIMA, Secretário da Cultura de Fortaleza, em entrevista ao O POVO “Ela andava na rua e todos se jogavam aos pés, apaixonados. No pedestal ela não fica, porque o chão que a gente pisa é ancestral e ela é ancestralidade nativa, cativa, punk, travesti e absoluta.”

KARINA BURH, cantora, em seu Facebook “Elke Maravilha, grande mulher, grande exemplo e apátrida, que honra tive em representá-la... Descanse em paz.”

LUANA PIOVANI, atriz que viveu Elke no filme Zuzu Angel, em seu Twitter “Descanse em paz, minha querida amiga. Tenha certeza de que o Brasil e o mundo perderam uma grande artista e eu perco uma grande amiga.”

ROGÉRIA, atriz, em seu Instagram “Que pena a morte da Elke Maravilha. Era uma turbina de alegria!”

LEONI, cantor, em seu Facebook


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