O real como metáfora do mundo

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SEGUNDA-FEIRA

PÁGINAS AZUIS

FORTALEZA - CEARÁ - 22 DE JANEIRO DE 2018

JOÃO MOREIRA SALLES

O REAL COMO METÁFORA DO MUNDO ÉMERSON MARANHÃO

JÁDER SANTANA

AURÉLIO ALVES

EDITOR DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL

EDITOR-ASSISTENTE DE CULTURA

FOTÓGRAFO

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O cineasta João Moreira Salles tem trajetória e obra atípicas. Documentarista apaixonado pelas narrativas não ficcionais, há 30 anos fundou, junto com o irmão, o também cineasta Walter Salles, a produtora Videofilmes, uma das mais atuantes e premiadas empresas brasileiras de audiovisual . Em 1999, lançou Notícias de uma guerra particular, considerado um divisor de águas na maneira como o cotidiano dos traficantes e moradores de favelas no Rio de Janeiro é retratado por nosso cinema.Seus dois fimes mais recentes, Santiago (2006) e No intenso agora (2017) partem de memórias estritamente pessoais para transbordar em discussões sociais e políticas de larga abrangência e alcance.Nesta entrevista exclusiva ao O POVO, ele sinaliza possibilidades para traduzir-se em seus filmes e debate a importância do documentário hoje (e sempre). O POVO - Seus dois últimos filmes partem de vivências muito pessoais em direção à abordagem de questões macro. O que uma situação precisa ter para você visualizar a possibilidade de um filme nela?

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João Moreira Salles - Eu não sei se tem uma coisa só. No caso do Santiago foi isso, uma crise pessoal e certa intuição de que deveria voltar ao material que lidava com a casa onde cresci, com meu pai que já não era mais vivo, e com minha juventude. Eu já tinha passados dos 40. Filmei com 32, mas voltei a editar com 40 e tantos. Um período em que a mortalidade se apresenta. Você entende que ainda é relativamente jovem, mas já tem a perspectiva de que o que tem para frente no máximo é do mesmo tamanho do que já ficou para trás. Então foi uma questão muito pessoal. Eu podia ter entrado num consultório para fazer psicanálise, mas achei melhor fazer um filme. No caso de No intenso agora, acho que foi minha mãe, na verdade. Eu tinha uma relação muito difícil com ela, que foi se tornando progressivamente di-

fícil. Eu era muito próximo dela quando adolescente e a partir dos 18 anos começou a ficar muito difícil. No fim da vida ela era muito difícil. Quando encontrei o material da China, no final da edição do Santiago, aquilo me tocou de alguma maneira, porque são imagens de alguém genuinamente interessado nas coisas. No caso específico da minha mãe, interessada numa coisa que é o oposto dela. Porque minha mãe era conservadora, muito católica, de uma família tradicional mineira, e a Revolução Cultural Chinesa é o oposto. Ideologicamente é o contrário absoluto. E no entanto ela não se horrorizou. Chegou a identificar virtudes, belezas, ganhos, na revolução. Achei isso bacana. E generoso. Isso ficou na minha cabeça por uns quatro ou cinco anos, até que eu tomei a decisão de fazer o filme, para lidar com a memória dela e pensar nessa coisa abstrata sobre a qual eu penso bastante, que é o risco de você perder essa capacidade que ela demonstrava, na China, de se interessar, de comover, de aceitar o mundo. Ela perdeu, as pessoas perdem isso. Uma gente perdeu depois de 1968. É uma coisa que eu penso muito: será que eu vou perder? Será que em algum momento vou me desinteressar e vou entristecer? É o caso da minha mãe. Ela foi entristecendo, entristecendo, entristecendo… E no final da vida se tornou insuportável de tão triste, de tão dolorosamente triste. É uma coisa sobre a qual penso bastante e fiz o filme para lidar com isso. Talvez o denominador comum dessas duas experiências é que não havia necessariamente um tema, mas sim um incômodo, uma preocupação, uma vontade de lidar com questões que eram muito pessoais. E na hora que eu entro na ilha de edição é isso que deflagra o processo. Na ilha de edição o que mais me interessa é pensar no filme como forma, não como tema.

OP - No intenso agora registrou recepções e leituras diferentes pelos países onde


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