"Sou uma Profissional, Não uma Babá" - Entrevista com Marina Colasanti

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PÁGINA 14 FORTALEZA - CE, SEGUNDA-FEIRA - 9 DE NOVEMBRO DE 2015

MARINA COLASANTI

FOTOS EDIMAR SOARES, EM 12/9/2015

“SOU UMA PROFISSIONAL, NÃO UMA BABÁ” Vencedora do Prêmio Jabuti em 2014, Marina Colasanti fala sobre seu modo de fazer literatura infanto-juvenil, as inspirações e o sentimento de que ainda tem muito trabalho pela frente

Marina Colasanti sobre suas inspirações: “A vida oferece muito mais inspiração que qualquer artista possa captar em seu trabalho. Ela está em toda parte, é só olhar”

O

ato de escrever, para Marina Colasanti, não tem nada Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br de romântico. A autora de contos de fadas e histórias maravilhosas não gosta que associem sua maternidade à produção infantil - “tenho horror a isso!” - e diz que não escreve para ninguém, a não ser pra ela própria. Com 58 obras publicadas e sete prêmios Jabuti, Marina tem convicção de que ainda tem muito trabalho pela frente e assume, ao contrário da maioria de seus colegas escritores, que gosta de reler seus textos.

Em visita recente a Fortaleza para participar de uma festa literária, ela conversou com O POVO algumas horas antes do evento. Contou sobre seu passado - as caminhadas pelo mundo e a chegada ao Brasil - e sobre os primeiros anos de profissão. Revelou a inconstância de seus hábitos de escrita e a origem de sua inspiração “está em toda parte, é só olhar”. Falou ainda sobre aqueles que lhe são mais caros: o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, seu marido e copidesque, e a amiga Clarice Lispector, personagem de uma saga real em busca de uma cartomante que mais tarde apareceria no livro A Hora da Estrela.

O POVO – Seus pais são italianos, mas a senhora nasceu na África. O que eles estavam fazendo lá? Marina Colasanti – Meu pai tinha participado como voluntário das Guerras de Conquista, as Guerras Coloniais, por espírito juvenil e patriota. Ele se encantou com a África, talvez tenha sentido alguma semelhança com o Brasil, que ele gostava muito, e decidiu viver lá, pediu transferência. Eu nasci em Asmara, capital da Eritreia, que fazia parte da Etiópia e conseguiu independência depois de 40 anos de luta. Fui etíope um tempo, agora não sou mais. Depois, fui morar em Trípoli, na Líbia, que também era colônia italiana. OP – A senhora teve a oportunidade de visitar a Eritreia depois de adulta? Marina – Não, não conse-

gui. Fiz um livro de memórias chamado Minha Guerra Alheia e tentei ir até lá para verificar a coisa, mas não foi possível porque a Eritreia não tem representação diplomática no Brasil. Vai ver que sou a única pessoa da Eritreia vivendo aqui! Eu tentei ir a Trípoli, mas era o período Kadafi e só era possível viajar em grupos turísticos organizados, pra ver aquilo que eles queriam que a gente visse. E eu não faço nada organizado, sobretudo com ditadores. Então fui à Tunísia, ao Marrocos, circundei a África mediterrânea, mas não consegui ir aos meus dois países. OP – E como vocês vieram parar no Brasil? Marina – A tia do meu pai, irmã do meu avô paterno, era uma grandíssima cantora lírica e casou com um brasileiro, de uma família tradicional

PERFIL

Nascida na colônia italiana da Eritreia, na África, a escritora Marina Colasanti, 78, veio para o Brasil aos dez anos, quando o pai decidiu escapar de sua Itália natal, destruída pela Segunda Guerra Mundial. Oriunda de uma família com raízes artísticas, estudou Jornalismo e Belas Artes e trabalhou como redatora, colunista e ilustradora no Jornal do Brasil. É autora de 58 livros e vencedora de sete prêmios Jabuti, a mais importante premiação literária do País, incluindo dois troféus de Livro do Ano. É casada com o também escritor Affonso Romano de Sant’Anna.

de armadores. Meu pai veio com o pai dele, que era o padrinho desse casamento. Isso foi em 1925. Depois, meu pai como jovem passou um ano aqui, aprontou todas e o tio mandou ele voltar pra Itália. Então, ele já conhecia o país, já tinha achado o Rio uma delícia, tinha família aqui. Quando a guerra acabou e a Itália estava destruída, ele pegou o primeiro navio e veio. Dois anos depois, nós viemos. OP - Como foi sua adaptação? Marina - Tranquila. Não tive que fazer esforços com a língua, porque na casa onde fui morar, onde morava parte da minha família, todos falavam italiano e português. Foi uma mudança muito suave, e criança se adapta em qualquer lugar. E eu já tinha me adaptado várias vezes, mudando de país e de cidades. Durante a guerra, a gente mudava sempre. OP - Seu pai e seu irmão tornaram-se atores no Brasil e trabalharam em novelas e filmes. A senhora nunca teve interesse em trabalhar como atriz? Marina - Não. Eu até fiz um curso de teatro com o Celi (o ator e diretor de cinema italiano Adolfo Celi), que era casado, naquele momento, com a Tônia Carrero, mas conclui que não era o tipo de vida que eu queria. Naquele momento, também não era uma carreira muito tentadora. Eu não queria viver na noite. E era uma carreira só de teatro, né? Com condições muito precárias. E então fui trabalhar com jornal. OP - A senhora foi estudar jornalismo e também belas artes. Sua família tinha uma posição economicamente confortável aqui? Marina - Minha tia era dona do Parque Lage. Nós viemos

Sou a única escritora da área infantojuvenil do Brasil que não é lobatiana. Eu só vim ler Lobato depois de jornalista, por dever do ofício

pra morar lá, e era muito confortável. Meu pai trabalhava nas empresas dela. Não éramos ricos, mas também nunca fomos pobres. Quando ela voltou pra Itália, ele começou a ter uma fazenda, virou ator e pronto. Mas temos essa ligação com a arte desde a Itália. Meu avô paterno era professor de história da arte e autor de muitos livros. Foi o equivalente a um Ministro da Cultura no Brasil, o Diretor Geral das Belas Artes. Veio ao Brasil fazer palestras, tinha uma cátedra em Buenos Aires. A irmã menor dele era uma grandíssima cantora. Seu irmão era arquiteto, cenógrafo, figurinista, trabalhou com Gina Lollobrigida, com Sophia Loren, fez muito cinema e teatro. Então, era de uma família onde dificilmente seria cientista nuclear. OP- E a aproximação com a literatura? A senhora sempre leu, desde criança, ou foi uma aproximação mais tardia? Marina- Eu leio desde criança, tudo, sempre. Literatura infantil, menos. Os contos

de fadas me eram contados quando eu ainda nem lia. Até os seis anos eu frequentei os contos de fada. Dali pra frente, o que eu li mesmo foram obras literárias adaptadas para jovens, da literatura universal. Muitos livros de aventura, Stevenson (Robert Louis Stevenson), Salgari (Emilio Salgari). Muita coisa. Nunca pensei em fazer literatura infantil. OP - Quando chegou ao Brasil, leu Monteiro Lobato? Marina - Não. Sou a única escritora da área infanto-juvenil do Brasil que não é lobatiana. Não recebi Lobato quando cheguei. Meu pai, de presente de chegada, nos deu a coleção inteira do Júlio Verne, uns livrinhos vermelhos, de capa dura, muito bem editados. Também nos deus O Tesouro da Juventude e a História do Brasil de Rocha Pombo, em cinco volumes. Eu só vim ler Lobato depois de jornalista, por dever de ofício. OP - A maternidade interferiu na sua produção? Marina - Não tem nada a ver. Eu tenho horror a essa conversa de “eu conto histórias maravilhosas pros meus netinhos, então agora vou fazer um livrinho”. Tenho horror. Isso é uma profissão. OP - Então isso não trouxe nenhuma alteração no seu modo de fazer literatura infantil? Marina - Eu sou uma profissional, não sou uma babá. Não se trata de livrinhos ou historinhas, isso é literatura. Então, não tem nada a ver eu ter tido filhos. Quando elas nasceram, eu já era escritora, e esse era o diferencial. Eu era escritora e já tinha livros editados, e também era jornalista e cronista. Eu já era uma profissional.


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