FORTALEZA - CE, SEGUNDA-FEIRA - 31 DE OUTUBRO DE 2016
3 FERNANDA FIAMONCINI/DIVULGAÇÃO
MATÉRIA DE CAPA.
A democracia entre o marechal e a cozinheira Em seu novo romance, O Marechal de Costas, José Luiz Passos cruza nossa trajetória como república, de Floriano Peixoto a Dilma Rousseff
Radicado há 22 anos nos Estados Unidos, onde é professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, o escritor pernambucano José Luiz Passos volta ao Brasil nesta semana
Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br
escritor pernambucano José Luiz Passos parte da opulência política de Floriano Peixoto, nosso segundo presidente, para as reflexões de insubmissão de uma cozinheira da era Dilma. Vai da solidão do marechal, casado com uma meia-irmã, aos ensinamentos de um empregador liberal sobre trabalho e classe. Salta das últimas décadas do século XIX para as primeiras do XXI. Cruza a trajetória de nossa república e identifica um traço agregador entre passado e presente: a marca da traição cravejada em nossa política. “Floriano é praticamente nosso primeiro ditador, porque quando Marechal Deodoro abdicou, ele assumiu, mesmo com a constituição ordenando novas eleições”, explicou o escritor em entrevista a O POVO. Primeiro nordestino a dirigir o País, Floriano Peixoto, natural de Alagoas, tinha papel de vice quando Deodoro da Fonseca proclamou nossa república. Tomou o poder para si em 1891, fortalecendo o exército e suprimindo revoltas. Mas em O Marechal de Costas, lançado agora pela Alfaguara, o que interessa a José Luiz é a vida privada do personagem. “Ele voltou herói da Guerra do Paraguai (1864-1870) para começar uma carreira política que não havia planejado. Casou com a própria meiairmã de criação, 18 anos mais jovem, com 14 anos de idade.
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São elementos particulares e privados que estão no pano de fundo de uma carreira política excepcional”, cita o autor, que ainda atribui a Floriano o que chama de “grande solidão”. A traição perpetrada na primeira fase de nossa república reaparece nesta segunda década do novo século. Agora, uma cozinheira, suposta bisneta do marechal, ouve emocionada os discursos de uma presidenta obrigada a abandonar sua função. “A gente vive hoje uma atmosfera semelhante, como um desacordo ou uma guerra entre os três poderes. Sem falar na suposta traição literal com a presidente. Floriano, como um elemento chave, instaura essa traição”, reflete o autor. Alagoana radicada no Rio, a cozinheira trabalha para um advogado que a representou em uma causa trabalhista e que insiste em deixar claro que ela é parte da família - embora não hesite em explorá-la. Na casa do patrão, tem a oportunidade de conviver com “a classe média que toma vinho e discute política”, estabelecendo contato com um professor de opiniões políticas definidas e progressistas. “A cozinheira traz o tema da dignidade no trabalho, a relação do trabalhador com a classe média e com a política. A personagem tá no final da vida, da carreira, e se choca um pouco com essas opiniões e eventos políticos. Funciona como observadora dessa transição”, diz o autor, lembrando ainda que foi no governo Dilma que o trabalho doméstico ganhou regulamentação definitiva.
“O sujeito no presente é uma função da relação que ele mantém com seu passado, muito mais que com a noção imaterial do futuro”, diz o autor
A figura da cozinheira de O Marechal de Costas lembra o protagonista de O Sonâmbulo Amador, romance de José Luiz publicado em 2012 e grande vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura no ano seguinte. Na história, Jurandir é o funcionário de uma indústria têxtil prestes a se aposentar. Em viagem ao Recife para resolver um processo trabalhista, perde o controle de suas ações e, sem motivos aparentes, incendeia o carro da empresa. Como resultado, é internado em uma clínica psiquiátrica. Estimulado por um médico a escrever seus sonhos e memórias, Jurandir encontra em Ramires, enfermeiro da casa, um interlocutor que leva realidade aos diálogos. É Ramires que retira o protagonista de seu alheamento político e social. “A cozinheira é uma mistura do Jurandir com o Ramires. Enquanto ele vive confundindo o patrão com o amigo,
a amiga com a amante, o filho com o amigo de infância, ela ainda exerce uma política, embora não seja uma política formal, porque não é militante”, compara o autor. A personagem de O Marechal de Costas se emociona com os discursos de Dilma que ouve no rádio: “Ela tem uma consciência política relativa, se percebe num contexto de dominação, tem vontade de escapar disso, da submissão às vontades da classe patronal, mas não articula isso politicamente”. Antes do lançamento desse novo romance, José Luiz apareceu nas notícias no início de setembro, quando o público ficou sabendo que ele havia incluído trechos do último discurso de Dilma Rousseff em seu livro. “O romance já tava pronto, diagramado, na segunda revisão, e a Dilma fez o discurso no senado. Assisti e fiquei muito tocado. Consegui a transcrição, liguei pro meu editor e pedi pra incluir um trecho, porque seria um bom fechamento”, conta. O adendo foi feito na última parte do texto, e a ação do romance termina no dia exato em que foi realizado o pronunciamento. É a última coisa que a cozinheira escuta e comenta com o professor. Mas não são apenas de Dilma as falas que aparecem nas páginas de O Marechal de Costas. O romance também traz trechos de discursos de Floriano Peixoto, Joaquim Nabuco e Napoleão Bonaparte - por quem o marechal tinha grande admiração. Além disso, outros pronunciamentos da ex-presidente também foram in-
cluídos. “Como eu já havia colocado outros discursos antes, era natural que eu também explorasse o fechamento dessa era que entra em crise”, avalia. Não é de hoje a relação que o autor mantém com a história do Brasil. Em sua produção como ficcionista e ensaísta, José Luiz demonstra um olhar constante para o passado. Além do já citado O Sonâmbulo Amador, ele é também autor dos volumes de ensaios Romance Com Pessoas, que promove um encontro entre a produção de Shakespeare e Machado de Assis, e Ruínas de Linhas Puras, que parte de um posicionamento de Macunaíma na construção do discurso sobre a identidade nacional. “O sujeito no presente é uma função da relação que ele mantém com seu passado, muito mais que a noção abstrata e imaterial do futuro”, justifica.
BIBLIOGRAFIA
Nosso Grão Mais Fino (2009)
O Sonâmbulo Amador (2012)
Romance com Pessoas (2014) O Marechal de Costas, de José Luiz Passos 200 páginas Preço: R$44 Alfaguara
O POVO online Leia a entrevista com o autor em: http://bit.ly/JoseLuizPassos