Youtube Novas práticas dos utilizadores numa nova cultura digital

Page 1

YOUTUBE: NOVAS PRÁTICAS DOS USUÁRIOS EM UMA NOVA CULTURA DIGITAL Tânia Ferrarin Olivatti1 RESUMO Este ensaio busca refletir qual é a cultura digital que circunda o site YouTube, bem como o atual papel requerido pelo usuário da Internet neste contexto. Para tanto, tem como instrumental as novas aquisições da semiótica francesa, em autores como Fontanille, além de confrontar estudos de Wolton, Lévy, Vilches, Castells, entre outros, para fundamentação teórica. Compreende que, se por um lado o YouTube configura um espaço democrático, uma espécie de televisão sem censura em que o cidadão comum tem liberdade de expressão, por outro anuncia o fortalecimento de uma mídia sem filtros, em que a informação é apresentada não mais por crivos jornalísticos. Constituinte dos processos sociais contemporâneas, a Internet, seus novos formatos e as relações que inaugura com seus usuários (cultura digital) necessitam de observação crítica, o que pode desacelerar saudações exageradas ou repúdios precipitados a seus novos formatos. Palavras-chave: YouTube. Usuário/produtor. Cultura digital

Introdução O YouTube é o maior site de compartilhamento de vídeos do mundo. Em especial a partir de 2006, a página passou a se tornar uma espécie de mania, representando não só um excelente empreendimento comercial, mas também uma revolução no meio. A democratização da informação parece ter começado com a Internet, mas o YouTube deu-lhe uma dimensão jamais vista na história da humanidade. Segundo Alberto Dines (2007), graças ao YouTube criou-se a noção do cidadão-jornalista e cidadão-comunicador. Ao mesmo tempo, criou-se a “fofocagem de massas” representada pelo vídeo protagonizado pela modelo Daniela Cicarelli. Para Dines, “ao tentar proibi-lo, a modelo apenas reforçou uma certeza: o YouTube é incontrolável, para desgosto das tiranias e regimes despóticos em todos os quadrantes” (DINES, 2007). Muito além das fofocas on-line, o site tem hospedado vídeos produzidos por traficantes e extremistas islâmicos, e substituído a mídia convencional em campanhas eleitorais dos Estados Unidos (no Brasil, as últimas eleições presidenciais também apontaram este caminho). Qualquer um 1

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – Universidade Estadual Paulista. E-mail: taniaolivatti@yahoo.com.br Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

256


pode enviar ou assistir aos vídeos, inaugurando a “era da notícia em estado bruto”, de acordo com Castilho (2007). Indo além das análises maniqueístas sobre o meio, observa-se aí a formação de um espaço praticamente inédito àqueles que sempre formavam o chamado “público” dos meios de comunicação. Nem nas inúmeras tentativas de interatividade, em geral tímidas e frustradas, que os veículos de televisão exerceram e exercem ainda hoje (programas como “Você Decide” e “Big Brother” da rede Globo ou, mais recentemente, o “Jornal do SBT”, com sua pesquisa de opinião diária2), o público teve tanta chance de interagir e principalmente produzir como a Internet vem permitindo. Essa relação “íntima” entre TV e Internet possibilitou o inusitado: nunca antes receptores tiveram a oportunidade se transformarem em produtores de imagens que pudessem ser transmitidas em tal escala e velocidade, como ocorre no site YouTube. Vasculhando o site em questão, pode-se notar que, entre milhares de vídeos sobre “qualquer coisa”, esses novos produtores estão usando o YouTube (portanto, uma mídia), para falar da chamada mídia tradicional, como no caso do vídeo “Midiatrix”. Isso deve ser analisado considerando que a Internet possibilita ler, ouvir, assistir e relacionar de forma mais abrangente que os meios tradicionais, já que seu conteúdo é muito vasto. Sem esquecer dos aspectos negativos que podem envolver o meio3, a rede é amplamente explorável e capaz de potencializar um

2

Esse telejornal realiza todos os dias, por telefone, uma “pesquisa” sobre determinado tema, ouvindo opiniões de dez telespectadores por programa, que se manifestam a favor ou contra. 3 Muitos críticos da Internet apresentam a exclusão digital como fator negativo do meio. Da mesma forma, cita-se a dependência, as relações sem presença física, e os problemas referentes a conteúdo, como sites de pedofilia. Em relação à exclusão, é evidente que a Internet não é um meio acessível a todos. No entanto, trata-se de um processo gradual, e que deve ser comparado com o surgimento de outros meios, como a televisão, que demorou décadas para chegar às camadas mais pobres. Por isso, longe de desconsiderar que a exclusão digital é fato, prefere-se relativizar a questão, e prosseguir no estudo do meio. Quanto à dependência, vários estudos psicológicos foram realizados e comprovam esta situação, mas numa parcela restrita de usuários, visto que muitas pessoas ainda utilizam a Internet como complemento das relações físicas (LÉVY, 1999, p. 128). No que se refere ao conteúdo, realmente, como espaço democrático, informações das mais variadas são veiculadas na rede. Os provedores, quando encontram sites que incitem preconceito, pedofilia etc. costumam retirá-los do ar, mas admitem sua fragilidade de controle. Vale lembrar que qualquer meio pode ser usado na difusão de assuntos considerados negativos pela “moral” vigente, não esquecendo que Hitler utilizou o rádio para fazer propaganda Nazista. Por isso esta pesquisa pretende levantar tais questões, mas elas não serão fator de desqualificação do objeto escolhido. Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

257


desenvolvimento produtivo da formação intelectual através do que difunde, caracterizando um possível papel democrático4. Ao observar vídeos sobre mídia no site YouTube, pode-se entender que o “ex-público” está tomando corpo de produtor, e ao atacar a mídia, pretende chamar a atenção para uma situação vertical de comunicação com a qual não concorda. Depois de conquistar os processos de troca de textos, chats, comunidades e outras formas de comunicação “todos para todos” oferecidos pela Internet, o lançamento do site YouTube, com seu crescimento exponencial, abriu as portas também para a democracia da imagem. Assim, pode-se pensar também que os usuários estão tentando fazer parte do processo de produção de imagens, sendo que uma parcela deles é consciente de que está inserida nesse processo em que a comunicação parece ser um pouco mais democrática do que na televisão5. Neste sentido, o fenômeno do YouTube provoca ainda dois tipos de reflexão: uma sobre o papel do jornalista nesta nova era em que perde espaço e se torna cada vez mais impotente para moldar a apresentação dos fatos levados ao conhecimento do público (visto que o site é oferecido para qualquer usuário, sem necessitar da figura do mediador na veiculação de vídeos); outra sobre a forma como as pessoas vão lidar com esta informação em estado bruto, capaz de induzir a equívocos e destruir aspectos positivos que envolvem o meio. Este breve texto faz parte de uma pesquisa de pós-gradução (mestrado em Comunicação Midiática) que analisa cinco vídeos do YouTube, ainda em desenvolvimento, portanto a seguir será apresentada uma sucinta pesquisa bibliográfica e algumas inferências que não foram devidamente comprovadas por enquanto. Ao término desta, espera-se que o conteúdo tratado neste texto seja ratificado e, principalmente, ampliado.

Objetivos

4

O termo democrático não se refere à democracia de acesso, mas no sentido de espaço livre, a priori (e com ressalvas!), para quaisquer conteúdos, respeitando opiniões das minorias e suas diferenças, princípio democrático. 5 Apesar da televisão ter mais alcance (dando a impressão de democracia de acesso), não possibilita grandes interações do público, característica diferente da observada no YouTube, chamado aqui de “possível meio democrático” por possibilitar a produção de conteúdo por qualquer indivíduo que disponha dos recursos necessários. Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

258


Objetiva-se refletir sobre o vídeo Midiatrix, veiculado no YouTube, que apresenta como tema a mídia, a fim de verificar qual a produção de sentido operada e o atual papel requerido pelo usuário da Internet, a fim de compreender essa forma de manifestação da cultura digital. Metodologia A pesquisa que gerou este ensaio busca na semiótica francesa (em autores como Greimas, Zilberberg, Fontanille, Diniz, entre outros) a metodologia de análise de vídeos. No entanto, como afirmado acima, trata-se de uma pesquisa ainda em construção. Portanto, no presente texto serão adotados aportes teóricos relacionados à abrangência dos aspectos comunicacionais, nos estudos de autores como Lévy, Perruzzo, Vilches, Wolton, Casttels e Lemos.

Desenvolvimento No âmbito da cultura digital, Vilches traz à tona um conceito fundamental para compreender o contexto em que YouTube está inserido: a dimensão que a “imagem” alcançou na sociedade atual e sua relação com o novo meio de comunicação que a Internet instaurou. Fala-se, portanto, de uma verdadeira revolução no campo da imagem, no sentido em que, mudando de maneira radical nossa relação com o visível, modificam-se a forma e o conteúdo dos objetos que produzimos ou recebemos. Conseqüentemente, as novas imagens modificam tanto o objeto representado quanto os modos de produzi-lo. Não há dúvida de que a informática alterou os conceitos tradicionais de representação visual. Por essa razão, é imprescindível refletir sobre o novo status dos objetos compostos de elementos estritamente icônicos (VILCHES, 2003, p.252).

Além disso, é importante lembra que “na forma da expressão – recursos visuais – reside o conteúdo ideológico subjacente, servindo como grande manipulador, pois o que está em jogo é a transformação da competência modal do enunciatário-sujeito” (DINIZ, 2002). Assim, fica evidente que não se pode ignorar as transformações pelas quais a vida em sociedade está passando, vinculadas à sua forte relação com a imagem. A análise desses novos componentes sociais exige uma forma de compreensão e interpretação, desafio instigante e irrecusável quem pretende mergulhar no saber comunicacional e entender suas interfaces, considerando que “as diversões eletrônicas, digitais e virtuais, além de gerar conhecimento, são manifestações de uma cultura de um outro tempo” (PEREIRA, 2003, p.3), de tempos contemporâneos! A Internet é cada vez mais Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

259


integrante desta contemporaneidade e pode modificar o modo como as pessoas se relacionam entre si e com o mundo natural. Por isso, é imprescindível conhecer a abrangência dos novos meios, refletir sobre seu peso e alcance e ampliar o tipo de conhecimento disponibilizado. Mantendo uma visão crítica sobre os processos comunicacionais atuais e sua relação com a sociedade, Wolton concorda com a necessidade emergente de ponderação. Estas situações de interatividade, apresentadas como um “progresso” da sociedade da informação, nos obrigam a reexaminar a questão do receptor... Porque, de fato, há duas figuras contraditórias: aquela do cidadão hiperativo, que passa sua vida na frente desses terminais interativos, realizando trabalhos antes feitos por muitas pessoas; e aquela complementar, do cidadão-consumidor (WONTON, 2006, p. 34).

Neste sentido, ainda que apenas 21% da população brasileira tenha acesso à Internet6, não se pode fechar os olhos para a revolução que o ciberespaço tem provocado nos conceitos até então conhecidos sobre os fenômenos comunicacionais, “transformando nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (CASTELLS, 1999, p. 67). Investigar a construção do sentido de novos formatos, como em vídeos do YouTube, possibilita identificar processos, efeitos de sentido, valores e universos socioculturais ali contidos, ou em outra palavras, demonstra os traços de uma das formas assumidas pela cultura digital. A dimensão destes fenômenos é claramente demonstrada por Vilches: Meio século depois da criação da televisão, primeira tentativa de fazer a imagem do mundo ascender aos céus, veio a Internet, o primeiro projeto humano em forma de rede que trata de reunir todas as expressões humanas, numa única arquitetura comunicativa. A globalização do mercado e da sociedade da informação, a concentração econômica e a conseqüente indistinção dos meios, por um lado, e, por outro, o sincretismo de programas, gêneros e formatos fazem da televisão e de sua associação com a Internet uma nova Babel (VILCHES, 2003, p. 96).

Um dos motivos para a formação desta “nova Babel” está no fato da rede possibilitar a circulação de mensagens “independente de territórios geográficos, de tempo, das diferenças culturais e de interesses, sejam eles econômicos, culturais ou políticos, globais, nacionais ou locais” 6

Dados levantados pelo IBGE em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI). Disponível em: www.nic.br/imprensa/clipping/2007/midia54html. Acesso em: junho de 2007. Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

260


(PERUZZO, 2005, p. 268). Para Lemos, essa possibilidade ocorre pela nova dinâmica técnicosocial da Cibercultura, que instaura uma estrutura midiática ímpar na história da humanidade, visto que pela primeira vez qualquer indivíduo pode, a princípio, emitir e receber informações (sejam elas escritas, imagéticas ou sonoras) em tempo real, para qualquer lugar do planeta (LEMOS, 2003, p.14). Além disso, são características fundamentais do ciberespaço a abolição da fronteira entre autor e leitor (ou espectador, usuário etc.), bem como o descentramento das escrituras lingüística ou audiovisual (VILCHES, 2003, p.152). Assim, torna-se possível alterar o sistema convencional dos processos de informação, até então concentrados nos profissionais das empresas de comunicação. Como afirma Peruzzo, a Internet viabiliza a “produção de conteúdos endógenos e sua transmissão, sem fronteiras, pelos próprios agentes sociais” (PERUZZO, 2005, p. 268). Para ela, uma das principais diferenças da convergência da mídia é a desestruturação das emissões por um só pólo, que agora passam a ser feitas por muitos emissores. Essa tese é reforçada por Castells: O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. Conseqüentemente, a difusão da tecnologia amplia seu poder de forma infinita, à medida que os usuários apropriam-se dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos (1999, p.69).

A descentralização das emissões pode ser notada na Internet pelos mais diversos conteúdos. Além de veículos “oficiais” encontrados na rede (“os grandes meios de massa – jornais ou televisões – criam seus portais para cultivar uma clientela de usuários de serviços ampliados” (VILCHES, 2003, p.185)), pode-se localizar também comunidades virtuais, blogs, sites pessoais, banco de dados infindáveis disponíveis a qualquer um, etc. Lançado em fevereiro de 2005, o YouTube é outro exemplo de espaço on-line onde não há controle das emissões. O site se tornou em pouco tempo o maior serviço de compartilhamento de vídeos na rede. Verificando o sucesso da página, o Google tentou superar o fenômeno, e lançou em janeiro de 2006 um serviço similar. Sem conseguir vencer o rival, comprou o YouTube em outubro do mesmo ano por US$ 1,65 bilhão. A transação comercial demonstra não somente que o YouTube Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

261


foi um bom negócio para seus criadores, mas também o impacto que a imagem causa na sociedade atual. A migração digital supõe também um desenvolvimento das tecnologias do conhecimento. Entre essas, as tecnologias da imagem desempenham uma função essencial para a formação da percepção e da compreensão da realidade. O desenvolvimento das tecnologias digitais da imagem permitirá uma percepção diferente das relações com os objetos, o tempo e o espaço. As tecnologias não lineares e os hipertextos permitirão o desenvolvimento da narrativa digital, facilitando uma maior progressão da atividade cognitiva enquanto se acompanham os argumentos da ficção e das histórias. Mesmo assim, a interatividade nos formatos narrativos digitais poderia permitir um aumento da criatividade na construção de histórias e na capacidade para desconstruir textos fechados de ficções tradicionais. Para isso será necessário acesso às bases de imagens (VILCHES, 2003, p. 172).

Publicado em 2003, “Migração digital”, de Lorenzo Vilches, já anunciava a formação do que ocorreria pouco tempo depois com a criação do YouTube. Além da produção exponencial de vídeos para o site, os usuários já podem acessar imagens alheias (o que rendeu inclusive algumas batalhas na justiça por direitos autorais), divulgando-as em seu estado original ou mesclando-as para formar conteúdos próprios, como é o caso de um dos vídeos que fazem parte da dissertação que origina este ensaio. Em “Midiatrix”, seu autor utilizou cenas do filme “Matrix”, modificou diálogos e inseriu imagens do símbolo da rede Globo. Isso tudo para criticar uma suposta manipulação da mídia em geral sobre a população brasileira, citando também a revista Veja. Neste caso, é possível observar claramente a interação entre a imagem e a escrita para a produção de sentido do vídeo, mostrando como a imagem é capaz de ancorar o discurso. Indo além, a imagem busca concretizar valores da oralidade e escrita – provenientes do produtor – no espírito do receptor (DINIZ, 2002). No entanto, esse novo produtor do ciberespaço, que até pouco tempo recebia informação audiovisual principalmente pela televisão, passa agora disponibilizar imagens e recebê-las sem o crivo de uma empresa de comunicação. É evidente que os veículos de mídia podem emitir informações ou imagens duvidosas. Contudo, sua assinatura os responsabiliza por tudo o que for divulgado, minimizando pelo menos um pouco a veiculação de fatos mentirosos ou fora dos padrões éticos concebidos. Com a expansão de emissores, ganha-se na pluralidade de vozes, e Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

262


perde-se na conferência de credibilidade. Na tragédia ocorrida em 2006 com um avião da empresa aérea Gol, na qual mais de 190 pessoas morreram, foram disseminadas por via online fotos de corpos mutilados. Entretanto, as imagens eram de outros acidentes, mas muitos acreditaram que tais fotografias eram referentes ao acidente. É nesta perspectiva que Vilches alerta: A velocidade de processamento da informação impulsionada pela Internet e pelas tecnologias da imagem oferece um sistema muito avançado de acesso de saber, para indivíduos que consigam usá-lo de modo inteligente e monitorado. Por essa razão, a grande quantidade de informação que impulsionará a demanda tornará mais necessárias do que são hoje as figuras do mediador, do jornalista, do jornalismo especializado, do professor orientador, do tutor personalizado (VILVHES, 2003, p. 173).

Apesar das dificuldades, Castilho também discute a necessidade de se fortalecer o papel do jornalista neste processo. Ele relembra a ocasião da divulgação no YouTube do enforcamento de Saddam Hussein, o que chama de “notícia transmitida em estado bruto, sem nenhuma edição, contextualização ou avaliação por parte de jornalistas” (CASTILHO, 2007). O papel intermediador do jornalismo na divulgação de notícias tem diminuído constantemente e de forma paralela à multiplicação de ferramentas para captação e distribuição de imagens. Assim, para Castilho: Ao perder o papel de intermediário entre o fato e o público, o jornalista começa a ter que rever o seu papel no processo da informação (...). O público pode agora ir direto aos fatos, sem a intermediação dos jornalistas, mas perde os referenciais de credibilidade. O acesso à notícia em estado bruto facilita o voyeurismo e a morbidez (...). A multiplicação de notícias em estado bruto veiculadas através da internet vai gerar uma grande confusão no público consumidor de informações (2007).

É por isso que Soares defende a figura do jornalista neste processo. Para o autor, sendo o uso de novas tecnologias freqüente, elas não só participam do processo de aquisição de informação, bem como modificam o ato educativo. “O jornalista aparece neste contexto não mais como único produtor, mas sim como um ‘gestor de processos comunicativos’” (SOARES, 2001, p. 96). Nesta perspectiva, os vídeos mostram-se como campo analítico da eliminação do “mediador profissional”, e podem vir a mostrar a real necessidade deste mediador no processo de transmissão informacional, Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

263


ou excluí-la de vez. As marcas contidas no objeto desta pesquisa deve manifestar se o novo formato causará a “perda de referenciais” tratada acima por Castilho, bem como se o jornalista como “gestor comunicacional”, segundo Soares, é mesmo imprescindível nos processos de significação. E apesar dos entraves de acesso, da “informação em estado bruto”, e da dificuldade pela qual passa o jornalismo na função de mediador, não se pode negar o papel potencialmente democrático da Internet nos processos de comunicação. Peruzzo afirma: As modificações introduzidas pela inclusão da Internet, principalmente os mecanismos de interatividade e as alterações nos processos de produção, difusão e consumo de informações, possibilitam a inclusão dos cidadãos como sujeitos e não como simples consumidores de mensagens (2005, p.279).

Neste sentido, Dines atribui ao YouTube a criação da noção do “cidadão-jornalista e cidadão-comunicador” (2007). Para ele, é preciso agora que seus usuários associem o site ao interesse público e às causas humanitárias. Compartilhando desta perspectiva, Peruzzo considera que este processo já está formando um “novo jornalismo”, em que cidadãos e organizações independentes “se dedicam a uma comunicação voltada para interesses específicos com finalidade pública, a uma comunicação alternativa e crítica à mídia tradicional” (PERUZZO, 2005, p. 282), como este estudo pretende verificar nos vídeos a serem analisados.

Considerações finais O fenômeno do YouTube demonstra um pouco da necessidade de produção, de “participação imagética” que se instaura no etos ou nas formas de vida (FONTANILLE 2008) do atual usuário dos meios de comunicação, necessidade esta apenas suprida com a evolução da Internet e criação do site em questão. Estas formas de vida são determinantes e determinadas pela cultura dos grupos que aderem à página e aos seus recursos. Até pouco tempo excluído do processo de produção midiática este usuário enunciador escolhe, dessa forma, uma mídia (Internet) para critica à mídia como um todo.

Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

264


Ainda que não seja semioticista, Wolton (2003) discorre a respeito do que as novas práticas semióticas on-line significam na instância das formas de vida. Para o autor as novas tecnologias adquiriram uma dimensão social pois representam uma espécie de “nova chance” ao antigo grande público. “As novas tecnologias são, como uma figura de emancipação individual, ‘uma nova fronteira’. Não é somente a abundância, a liberdade e a ausência de controle que seduzem, como também essa idéia de uma autopromoção possível, de uma escola sem mestre, nem controle” (WOLTON, 2003, p.85 e 86). Transportando o pensamento de Wolton para a teoria semiótica, o objeto/suporte da Internet passa a ser determinante nas cenas predicativas (práticas) dos novos usuários, promovendo o que ele chamou de “emancipação individual”. Estas práticas, por sua vez, são determinadas pelo comportamento do sujeito, a forma de vida imagética7 que agora acompanha sua vida. A Internet tem progressivamente deixado de ser um meio elitista, e hoje faz parte do cotidiano de uma parcela considerável da população. Da mesma forma, os recursos de captação de imagens e som são cada vez mais acessíveis e simples de se operar. Este progresso técnico provavelmente é fruto da também crescente necessidade do homem viver em comunhão com a imagem, seja por impulsos narcisísticos, emancipatórios, ou mesmo integrativos. Nesta perspectiva, será que as práticas tratadas aqui não representam um etos ávido pelos elos perdidos? Se a rede criou “solidões interativas” (ou foram elas que criaram a Internet?), estaria este etos em busca de um religare? A prática contemporânea marcada por enunciados áudio-visuais criou a necessidade de seu objeto-suporte; da mesma forma, este objeto tem moldado as práticas semióticas desta sociedade. Sem intenção de divagar sobre a primogenitura entre o “ovo ou a galinha”, espera-se que estes pontos sejam incorporados nas análises futuras sobre o novo usuário/produtor da Internet, que sem dúvida podem buscar no instrumental da semiótica francesa outras perspectivas para problemas semelhantes.

7

Este fato também pode ser verificado através do sucesso que os reality-shows alcançam no Brasil. Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

265


Referências CALTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, vol. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999. CASTILHO, Carlos. A era da notícia em estado bruto. Disponível http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.aps?id=2&id=%7BC581C6EC-2AAC493C=9DAC-52DE095CA608%7D. Acesso em: abril de 2006.

em:

DINES, Aberto. You Tube revoluciona acesso à informação. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=420ENO001. Acesso em: abril de 2006. DINIZ, Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz. Oralidade e escrita na TV: relação camuflada. In: Estudo Lingüísticos XXXI, revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo, em CRROM, FFLCH/USP, 2002. FONTANILLE, Jacques. Significação e Visualidade: exercícios práticos. Porto Alegre: Sulina, 2005. ______. Eficiência e otimização: as formas sintagmáticas das práticas. Trad. Maria Lúcia V. P. Diniz. In: Comunicação Midiática, Revista do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, Bauru, 2008 (no prelo). GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1979. LEMOS, André. Cibercultura. Alguns pontos para compreender nossa época. In: LEMOS, A. CUNHA, P. (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Porto Alegre: Sulinas, 2003. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. PERUZZO, Cecília M. K. Internet e Democracia Comunicacional: entre os entraves, utopias e o direito à comunicação. In: MELO, J. M, de. STHLER, L. (orgs.) Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. São Bernardo do Campo: Umesp, 2005. SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: uma teoria para a virtual community (a experiência norte-americana). Disponível em: http://www.comunica.unisinos.br/tics/ textos/2001/2001_ios.pdf Acesso em 06/ 2006. VILCHES, Lorenzo. A migração digital. São Paulo: Loyola, 2003.

Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

266


WOLTON, Dominique. É preciso salvar a Comunicação. São Paulo: Paulus, 2006. ZILBERBERG, Claude e FONTANILLE, Jacques. Tensão e Significação. São Paulo: Discurso Editorial Humanista/FFLCH/USP, 2001.

Anais do I Simpósio de Comunicação e Tecnologias Interativas Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/simposio/anais.html

267


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.