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fernando pinto do amaral

Ler é o melhor remédio Em arranque de ano C, onde as palavras «crise» e «cultura» prometem andar de mãos dadas, o Comissário do Plano Nacional de Leitura fala da importância dos livros e da redescoberta da nossa identidade

Por Pedro Guilherme Lopes Fotografia João Cupertino

Num final de tarde frio, dirigimo-nos ao edifício onde está o «quartel general» do Plano Nacional de Leitura (PNL). Aqui, entre salas onde os livros são reis e senhores e um pátio onde esquecemos estar no coração de Lisboa, Fernando Pinto do Amaral, Comissário do PNL, recebe-nos com um sorriso franco, antecipando o tom de uma conversa onde, como num bom romance, as páginas se viram e, quase sem darmos por isso, damos connosco a analisar a conjuntura à luz de um projecto que deseja que os portugueses leiam cada vez mais. O epílogo, esse, segue dentro de momentos. Cx: Há dias ouviu uma conversa entre uma rapariga e um rapaz, em que ela lhe perguntava se já tinha lido um determinado livro, ao que ele respondeu «achas que eu tenho dinheiro para andar a comprar livros?». Que espaço estará destinado à leitura, neste cenário de crise? Fernando Pinto do Amaral: Julgo que, num contexto de crise, os livros podem ter um papel ainda mais relevante do que têm num contexto dito normal. Em termos económicos, os livros mantêm o IVA reduzido de 6%, ou seja, comparativamente aos preços de outros bens culturais, como bilhetes de concertos, para espectáculos e para o cinema, os livros acabam por ser muitas vezes mais baratos. Por outro lado, ao adquirirmos um livro, estamos a adquirir algo que podemos guardar, que perdura no tempo e não apenas na memória, que é o que acontece a outro tipo de espectáculos. E, algo que me parece importantíssimo, numa altura de dificuldades, os livros podem ser aquele confidente, o amigo… Cx: Uma espécie de antidepressivo? FPA: Exactamente! Até quase como uma terapia, e atenção que não estou aqui a defender os chamados livros de auto-ajuda que, regra geral, têm pouca qualidade. Estou a falar de uma boa obra literária, cx

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entrevista de um livro que nos faça pensar, que nos faça sentir, que nos mergulhe nas personagens. É uma forma de crescermos e, muitas vezes, de consolarmos os nossos sentimentos, portanto, de um ponto de vista individual, até afectivo, um livro pode ser uma resposta para a crise. E é incontornável não sublinhar outra questão, a da existência das bibliotecas. São espaços gratuitos onde cada um de nós pode entrar e ler um livro ou requisitá-lo e lê-lo em casa, ou seja, aqui não se coloca a possível falta de dinheiro como entrave à leitura. Cx: Foi esse lado quase mágico dos livros, capaz de ficcionar a realidade e, muitas vezes, de nos fazer sonhar, que o «roubaram» ao curso de medicina?

FPA: (risos) Foi um bocadinho… Sabe, a medicina tem aspectos muito interessantes e existiam disciplinas que, realmente, me cativavam, como foi o caso da farmacologia, mas, no conjunto, senti que a medicina não me cativava assim tanto. Nessa altura, como o meu pai era médico, quando faleceu, senti quase que uma obrigação de continuar a estudar nessa área. Não me arrependo minimamente, até porque, desses quase quatro anos, ficaram muitos ensinamentos que, hoje, me permitem ter uma leitura do mundo e dos seres humanos que, com toda a certeza, não teria se não tivesse passado pela medicina. Acontece que, nos meus tempos livres, comecei a perceber que aquilo que eu realmente gostava de fazer era de ler, de escrever, ir ao teatro, ao cinema… era tudo relacionado com letras e artes. Até acho que não teria dado um mau médico, mas seria um médico regular sempre com tendência a fugir para outras áreas, nomeadamente para a escrita. O meu pai faleceu quando eu tinha apenas 17 anos, mas lembro-me perfeitamente que ele, mesmo nos tempos livres, ainda lia mais livros de medicina. Tinha aquela paixão que eu considero ser própria de quem é médico por vocação e eu devo confessar que essa paixão tenho-a muito mais pela escrita, pela literatura e pelas artes. Cx: Essa paixão pela escrita e pela leitura vem desde muito cedo? FPA: Vem, vem… Eu sempre gostei muito das palavras, achava muita graça, quando era miúdo, a fazer a decomposição das palavras, dividi-las em várias partes, perceber de onde vinham e como se tinham formado… Aliás, um dos primeiros presentes que me lembro de receber, tinha 8 ou 9 anos, foi uma máquina de escrever. Cx: Ainda se recorda dos primeiros textos que escreveu nessa máquina? FPA: Lembro-me que eram textos de ficção, pequenas aventuras com protagonistas inventados com base noutras figuras que já existiam, como, por exemplo, o Pinóquio ou o Astérix. Já não tenho esses textos comigo, mas provavelmente a minha mãe guardou alguns e ainda deve tê-los. Cx: E como é que aparece a poesia? FPA: A poesia apareceu mais tarde, por volta dos 14 ou 15 anos, altura em que começo a sentir vontade de escrever poemas, nomeadamente, para desabafar. Como é próprio dessas idades, eram poemas que tinham a ver com primeiros amores, com amar sem ser correspondido.

às páginas tantas Escritor, poeta, professor na Faculdade de Letras, tradutor e, claro, Comissário do Plano Nacional de Leitura. Os livros são parte incontornável na vida de Fernando Pinto do Amaral, que defende que quem lê mais lê melhor

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Cx: É também por essa altura, ou já vem de trás, o seu contacto com a literatura estrangeira, que depois aprofundou enquanto tradutor? FPA: Esse contacto ia sendo tido de acordo com a biblioteca dos meus pais. A minha mãe mais virada para a poesia, para uma maior sensibilidade e para as artes, pois ela era atriz de cinema [Maria Eugénia, sobre quem foi recentemente editado o livro A Menina da Rádio]; o meu pai mais virado para os clássicos, para o Júlio Dinis, o Eça de Queirós, o Camilo Castelo Branco, tinha muita coisa de Fernando Pessoa. No que toca à literatura estrangeira, existiam vários livros de autores franceses, mas sempre no universo dos clássicos, como Balzac, Stendhal… Com o passar do tempo, fui construindo a


minha própria colecção de literatura estrangeira, obviamente, com autores mais vanguardistas. Cx: Essa predominância do francês é algo que, hoje em dia, se alterou completamente… FPA: Sem dúvida. A língua francesa está em efectivo declínio, substituída pela inglesa, que se tornou fundamental nos mais diversos mundos: no dos negócios e da economia, no mundo da informática e das novas tecnologias, no do entretenimento. Os termos utilizados são sempre em inglês, por isso, penso que o inglês deve ser considerado o latim da época contemporânea. No entanto, aproveito para dizer que, em termos de educação, os jovens deviam ter, para além do português e do inglês, a aprendizagem de uma terceira língua. Cx: A propósito de novas tecnologias, não sente que muito do tempo que, há uns anos, era ocupado a ler livros é, hoje, preenchido a navegar na Internet, a frequentar redes sociais, a aproveitar as potencialidades dos novos dispositivos? FPA: Existem estudos que demonstram que o efeito da Internet nos jovens tem de ser visto sem colocar num mesmo saco toda a Internet. Eu costumo dizer que temos de funcionar com a Internet um pouco á semelhança da forma como funcionamos com o colesterol: existe um colesterol bom e um colesterol mau. Existe,

também, uma Internet boa e uma Internet má. A má é aquela que é utilizada em mais de 90 por cento do tempo de uma forma passiva, em jogos mecânicos e repetitivos, em que não se aprende e em que não se investiga. Por outro lado, existem jovens cujo tempo passado na Internet é ocupado, em 80 por cento, em investigação e ou tentativas de comunicar de uma forma que estimula a aprendizagem. Aliás, basta pensar que, hoje, podemos chegar à Internet e ler os grandes clássicos da literatura universal em versão PDF, para confirmar que o bom e o mau depende da utilização que lhe damos. Cx: Ao olhar para o seu percurso, temos, por um lado, um escritor, poeta, tradutor e crítico e, por outro, um leitor, professor e empenhadíssimo «promotor de leitura». Para além de deixar as suas escritas e as suas leituras em herança à sociedade, sente essa necessidade de deixar as de outros autores, cultivando a semente das letras junto do público em geral e dos mais pequenos em particular? FPA: Sem dúvida que eu adoro escrever. Seja poesia, sejam contos, sejam romances, sejam fados, onde até tenho alguns projectos em carteira com a Mariana Bobone e com o Pedro Caldeira Cabral. É um lado criativo que representa uma faceta da minha vida. Mas, depois, há a noção de que aquilo que faço enquanto autor é apenas uma gota de água num oceano composto pelos restantes trabalhos de outras pessoas. Penso que este projecto do Plano Nacional de Leitura é

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entrevista muito transversal, que abrange as bibliotecas públicas e as escolares e os professores na sala de aula, e é um projecto descentralizado. Nós aqui delineamos o trajecto a seguir, mas o verdadeiro trabalho de campo é feito pelos professores nas salas de aula, e isto é fundamental. Apenas faz sentido se existir essa autonomia dos professores e das escolas no que toca ao trabalho a desenvolver com os alunos. Os professores, muitas vezes criticados e desvalorizados, são peças fundamentais em todo este processo. O papel de um bom professor junto de um aluno pode mudar tudo. Cx: É um pouco como pegar no título do seu poema Tenta Ler outra Vez? FPA: É muito importante não desistir e continuar a tentar instalar o hábito da leitura, mas é tão ou mais importante dar aos jovens as ferramentas que lhe permitam ter acesso aos livros. É importante que eles sintam que, se quiserem ler um livro, ele está na sua biblioteca escolar, não os deixando reféns de discrepâncias económicas, sociais ou culturais, no fundo, das desigualdades que, infelizmente, continuam a fazer-se sentir em termos de ensino e aprendizagem. Cx: Foi essa consciência e esse conhecimento de causa que o motivaram a associar-se ao Plano Nacional de Leitura desde o início? FPA: Também contribuiu, sem dúvida, e á medida que o tempo tem passado, nomeadamente nos últimos três anos em que tenho desempenhado o papel de Comissário, tenho sentido que esta é uma actividade muito gratificante e que acabamos por conhecer o País de forma completamente diferente. Ao desempenhar esta função, posso falar da realidade das escolas, dos professores e da educação de uma forma totalmente diferente. Cx: Conhecedor dessa realidade, que balanço faz destes primeiros cinco anos de Plano Nacional de Leitura? FPA: Os números apontam para que, no geral, os índices de leitura andem à volta dos 50 por cento, ou seja, uma em cada duas pessoas ainda não é leitor de livros. Mas tem-se feito muito no sentido de chamar a atenção para a leitura. Hoje, os jovens têm uma percepção da leitura e da importância da leitura muito superior à que tinham e o próximo passo é conseguir diminuir a quebra que existe entre o terceiro ciclo e o ensino secundário. É este o caminho que pretendemos seguir nesta segunda fase do projecto, muito provavelmente, apostando mais na qualidade da leitura do que na quantidade da mesma, até pela situação do País. Vamos ter orçamentos menores, mas acredito que vão ser dignos e vão permitir fazer coisas interessantes, como acções de leitura e de formação de professores, projectos-piloto, clubes de leitura... Cx: Essa aposta na qualidade em detrimento da quantidade não coloca em causa a ideia de que «quem lê mais lê melhor»? FPA: Não creio que a coloque em risco, e acredito muito nessa frase, que acaba por ser o nosso lema. Esta aposta na qualidade resulta, também, da noção de que muito material, sejam computadores, sejam livros para as bibliotecas, já existe nas escolas e dá, hoje, condições totalmente diferentes aos alunos. Agora, obviamente que continuamos a acreditar que quem lê mais lê melhor, não só porque

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quem lê mais acaba por ter um critério de selecção mais apertado, mas, principalmente, pelo incremento da capacidade de leitura. Eu costumo dar o exemplo da condução: um condutor que conduz regularmente tem, à partida, todas as condições para conduzir melhor do que uma pessoa que pega no carro uma vez por mês. E existem hábitos que devem ser adquiridos desde pequeno. Por exemplo, é muito importante que os pais se sentem com os filhos e lhes leiam uma história, de forma a criar rotinas. Cx: É para transmitir essa vontade de pegar no livro que são importantes os vários encontros em que tem participado? FPA: Os encontros das nossas equipas estão muito baseados numa rede que existe no terreno, que tem a ver com os professores bibliotecários, ou seja, nas escolas com determinada dimensão, existe uma professora ou um professor que está encarregue da biblioteca, dinamizando actividades de leitura com os alunos. Nós, quando vamos às escolas, encontramo-nos com os alunos, mas, muitas vezes, encontramo-nos com os professores para podermos trocar impressões. É fundamental não perder essa ligação às escolas, dando-lhes apoio sem limitar a sua autonomia. Cx: Também fundamentais na estratégia do Plano Nacional de Leitura são os clubes de leitura…

Top 10 O Comissário do Plano Nacional de Leitura revela quais os dez livros que mais o marcaram. Lírica, de Camões Contos, de Eça de Queirós Ana Karenina, de Leo Tolstoi Poesia de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa A Montanha Mágica, de Thomas Mann As ondas, de Virginia Woolf Ficções, de Jorge Luis Borges 1984, de George Orwell Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís Para Sempre, de Vergílio Ferreira


FPA: Sem dúvida, até porque se dirigem àquela faixa etária em que se nota uma quebra nos hábitos de leitura. São clubes dirigidos a jovens a partir dos 15/16 anos, sempre numa base voluntária, ou seja, eles sabem que vão falar de livros com os seus colegas e que ninguém está ali para ter melhor nota. Estão ali porque gostam de livros, de ler e de conversar uns com os outros. Acaba por ser um modelo não muito distante daquele que é apresentado no famoso filme Clube dos Poetas Mortos. E, lá está, volto a sublinhar a importância dos professores, pois estes clubes só são possíveis se existir voluntariado da parte dos professores. Tal como é incontornável a sua presença e o seu trabalho junto dos mais pequenos, para instituir hábitos de leitura. Devem ter, diariamente, pelo menos, uma hora de leitura orientada.

está de alma e coração com o Plano Nacional de Leitura e com a rede de bibliotecas escolares. Felizmente, trabalhamos com uma equipa que entende que a educação é um projecto nacional, é um desígnio nacional que não tem carácter partidário.

Cx: As mudanças governamentais, de alguma forma, dificultaram o seu trabalho? FPA: De forma alguma. Devo dizer que, com esta equipa do Ministério da Educação, existe uma relação excelente, quer com o professor Nuno Crato, que foi sempre uma pessoa muito aberta às questões da aprendizagem da leitura e do português, quer com o secretário de Estado, João Casanova, quer com a secretária de Estado, Isabel Leite, relativamente à qual existe a feliz coincidência da sua actividade estar bastante ligada à leitura e de sentirmos que

Cx: Este é um ano em que a palavra «cultura» se associa, obrigatoriamente, a Portugal, devido à Guimarães 2012. Qual a importância de, num cenário de crise, termos os holofotes apontados a nós? FPA: Pode ser muito positivo, sobretudo, para se perceber que, em Portugal, existe uma cultura rica, variada, muito antiga, enraizada nas pessoas, ultrapassando os motivos que, ultimamente, têm feito notícia de Portugal. É muito importante perceber e fazer perceber o que é que nós somos para além destas crises conjunturais.

Cx: A presença de Francisco José Viegas, como secretário de Estado da Cultura, pode ser preciosa no objetivo de abrir o Plano Nacional de Leitura à área da cultura? FPA: Penso que pode ser importante, sim, pois trata-se de uma pessoa com ligação aos livros e à leitura. Tal como será importante, nesta segunda fase do Plano, abri-lo à cultura aproveitando equipamentos já existentes, como museus, bibliotecas públicas ou cineteatros.

Cx: Quase parece que voltamos ao início da entrevista, mas esse perceber o que é que nós somos pode ter como aliados perfeitos os livros… FPA: Não só a leitura, os livros, os nossos grandes autores que perduram no tempo, mas a própria língua portuguesa. Nós temos uma relação muito forte com um país que tem uma população de quase 200 milhões de pessoas, o Brasil, e que apresenta um enorme crescimento económico. Temos a ligação a África… No fundo, a nossa língua tem uma relevância no mundo muito superior à que tem na Europa, por isso, penso que seja importante percebermos que a nossa identidade tem outras valências para lá da questão europeia. Cx: Nessa perspectiva de criar laços, não o choca o novo acordo ortográfico? FPA: Isso seria uma longa conversa (risos). Como escritor, não o tenho estado a aplicar e considero que deveria ter existido uma maior ponderação sobre as consequências do acordo, que ainda me choca bastante. Mas também devo dizer que não devemos dramatizar em demasia a questão, até porque toda a nossa literatura até ao século XX funcionou sem ortografia e não foi por isso que deixaram de existir grandes escritores. Este acordo apresenta várias palavras com dupla grafia o que, em meu entender, poderá levar a uma certa desvalorização da ortografia, mas ai de nós se as pessoas pensarem que o valor literário de um texto está dependente da ortografia. Cx: E, também como escritor, que título daria a 2012? FPA: Essa é boa… Olhe, a Odisseia, de Homero, que é um clássico grego. Porque o ano 2012 promete ser uma odisseia e porque acho que, este ano, ainda vamos ouvir falar muito da Grécia... cx

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