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22. NA SUCURSAL DO INFERNO

Alguém despertara na madrugada ao som de pés arrastados e despachara o aviso pelas paredes. Mais uma queda. O cortejo macabro some nos fundos do pavilhão. Os presos já não dormem. Querem saber quem caiu. Precisam saber quem caiu. Agarram-se às grades, ansiosos. Quem será? O fundão é a sucursal do inferno. O próprio diretor diz isso. A superposição de murmúrios e batidas nas grades vai formando uma cacofonia contínua e de intensidade crescente, até se tornar ensurdecedora.

O agente penitenciário Maciel, que todos chamam de Juruna, sabe que fazem estardalhaço para impedir que o preso seja morto. Nem sabem que é mulher. Mas sabem que da sucursal do inferno poucos saem vivos. Ela a viu de relance e se impressionou com o olhar intenso que, mesmo cambaleante, ela lhe dirigiu. As pupilas negras envoltas em sangue e o rosto e os braços cobertos de hematomas. A blusa rasgada deixava à mostra os seios. Adivinha, transtornado, o que estão fazendo com a moça no fundão, e sente-se mal.

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Maciel é espírita, acredita na reencarnação e migração das almas. Não suporta maus-tratos, nem em gatos e cachorros, muito menos em gente. Podem estar torturando seu pai ou seus avós, reencarnados. Em vinte anos de agente penitenciário, nunca viu tanta maldade. Nem contra os criminosos mais bestiais, os assassinos, os estupradores. Quando não tinha preso político, não tinha nada disso. Apanhavam na delegacia, mas depois que entravam na cadeia, acabava a tortura. Era cumprir a pena e só. Não entende o motivo do martírio dos presos políticos. Não tem fim. E não tem capa preta com alvará de soltura, não tem remissão de pena, não tem habeas corpus, nada. Maciel sente outra vez aquela vontade danada de largar tudo. Vem tendo pesadelos com presos políticos.

Eles é que o apelidaram de Juruna, por causa da sua pele cor de terra e os olhos meio repuxados. Seu cabelo é negro e liso, igual mesmo de índio, mas ele não tem nada de índio, a mãe era maranhense e o pai alagoano. Nenhum dos dois descendentes de índio. Mas inventaram o apelido e pegou. Ali ninguém fica sem apelido. Até os outros carcereiros passaram a chamar ele de Juruna.

Quem trouxe a moça foi aquele delegado nojento de São José. A lembrança do delegado fez o Juruna se decidir. Sou espírita, acredito em Jesus e na re-

encarnação. Não sou um animal. Na primeira cela, Juruna faz um sinal discreto ao preso e sussurra: é mulher de uns vinte a vinte e poucos anos, bonita, café com leite, cabelo encaracolado e uma pinta na bochecha; nome não sei, quem trouxe foi aquele delegado de São José que mata de encomenda. Apanhou demais.

A informação é repassada por bilhetinhos e murmúrios de cela em cela até o fim da ala direita e retorna pela ala esquerda até a entrada do pavilhão. Aos poucos vão rareando as pancadas nas grades e finalmente o barulho cessa por completo. Os presos agora forçam suas memórias tentando lembrar uma moça morena que tem uma pinta na bochecha. Foi trazida do Vale do Paraíba, provavelmente de São José, mas a qual organização ela pertence? Isso, o Juruna não disse.

O pavilhão está mergulhado em desespero coletivo. Faz-se um silêncio de morte. Assim transcorrem cinco, dez minutos. Juruna antecipa a explosão e foge para seu quartinho. Súbito, o grito de dor vindo do fundão. Um grito único, longo e cortante. E o pavilhão explode.

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