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23. A HISTÓRIA DE PAULA ROCHA

Magno está chocado com o desleixo ostensivo e a má aparência da jornalista que vira outrora jovem e airosa. O apartamento, no terceiro andar de um prédio decrépito e sem elevador, está atulhado de livros, revistas e jornais velhos. Pombos ciscam no parapeito da janela escancarada. Cacas, em parte já petrificadas, cobrem o soalho.

Magno chegara ao conjunto habitacional, perdido na periferia de São José, por uma conta de luz em nome de Lucília Rocha. Estranhara, porque já tinha descoberto que Lucília Rocha falecera havia anos. Podia ser um contrato antigo, talvez as irmãs tivessem compartilhado o apartamento e o contrato de luz permaneceu como estava. Mas constava débito automático numa conta bancária também pertencente a Lucília Rocha. Não pode ser, raciocinara. Banco nenhum mantém conta de falecidos.

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Seguiu a pista da conta. Já intuía o que tinha acontecido. E viu sua intuição confirmada quando foi atendido na porta por Paula Rocha, embora de início mal a tenha reconhecido. Estava envelhecida, gorda e de

cabelos encanecidos. Ela, porém, o reconheceu assim que lhe abriu a porta. — Eu não fiz poupança, Magno, diz, ao perceber seu constrangimento.

Por outros jornalistas, Magno já sabia que Paula Rocha havia anos se desencantara da profissão e sumira do mapa. Nunca mais a viram nos botecos frequentados pelos colegas, nem no sindicato ou outros pontos de encontro de São José.

Paula Rocha vai à cozinha preparar um café. Sentado na beira de um sofá encardido, Magno observa que ela arrasta os pés e suspeita de diabetes. Passados alguns minutos a jornalista retorna com uma bandeja e duas xícaras de café.

Magno não sabe como começar a conversa. Então diz: — Tenho uma boa notícia, encontrei as reportagens censuradas sobre o orfanato, belas reportagens. — Não diga! Onde estavam? — No arquivo do governo do Estado, numa pasta da Policia Federal. — Belos tempos, ou melhor, os tempos eram ruins, mas naquela época eu ainda acreditava no jornalismo, acreditava em muitas coisas, hoje eu não acredito em nada. — Quando você deixou de acreditar?

— Quando me demitiram por causa das reportagens. A demissão demorou porque não queriam dar bandeira, mas foi por causa das reportagens do orfanato, tenho certeza, por ter mexido em vespeiro, mexido com a igreja. — Você não foi para outro jornal? — Fui pro escanteio, isso sim... Fiquei marcada, não arranjei mais emprego que prestasse em jornal nenhum, entrei na lista negra, você sabia dessas listas, Magno? — Claro que sabia, não era só nos jornais, tinha lista negra na indústria, nos bancos, nas estatais, a pessoa não conseguia emprego e não sabia por quê. — Mas no jornalismo foi pior, Magno, muito pior, afastaram os jornalistas mais antigos, os que sabiam das atrocidades da ditadura, os que tinham tido muitas matérias censuradas, como era o meu caso, apagaram o passado, o estrago ficou pra sempre... — Pensei que só tinham expurgado os arquivos, expurgaram também as redações... — Se aproveitaram da nossa greve, não sei se você se lembra, a greve de maio de 1979, durou uns vinte dias, foi muito louca e quando acabou vieram as demissões. — Mas a tua demissão por causa das reportagens do orfanato foi em 1969, dez anos antes. Você sumiu muito antes dessa greve, eu sei porque durante algum tempo ainda procurei teu nome assinando reportagens.

— É que depois do desaparecimento da Maria do Rosário eu entrei em pânico. A Rosário tinha ficado no meu apartamento até dar à luz, me deu até diarreia de tanto medo. — Não sabia que ela estava grávida. — Grávida do Durval. — Do Durval... Magno murmura, sem esconder seu espanto. Depois, diz: — Agora eu entendo o desespero do Durval quando ela desapareceu... — E o meu desespero! A próxima a ser pega seria eu, Magno. Eles estavam sumindo com todo mundo. Primeiro, me escondi no apartamento da Lucília, mas meu medo era tão grande que decidi desaparecer, sumir do mapa, encarreguei a Lucília de vender o apartamento e me mandei pra Bahia. Fiquei numa pousada, numa praia perdida, dando uma de bicho grilo, fiquei lá quase um ano. Só voltei porque a Lucília adoeceu, era coisa grave, um câncer. Além disso, a situação tinha melhorado e a poeira do caso da Rosário já tinha baixado. Quando a Lucília morreu, três meses depois, tive a idéia de assumir a identidade dela. Eram só dois anos de diferença de idade e tínhamos quase a mesma cara; queimei meus documentos e fiquei com os dela.

Trocaram reminiscências por mais meia hora. Magno revela a Paula Rocha o motivo de sua visita.

Preparar o terreno para um encontro com a filha adotiva do Durval. Fora adotada no mesmo orfanato objeto das reportagens e queria saber tudo sobre o orfanato, queria chegar aos arquivos do orfanato para descobrir sua mãe biológica. — Bem, agora você está sabendo, a mãe dela é a Maria do Rosário. — Mas eu vi os papéis de adoção do orfanato... — Adoção coisa nenhuma, ela nasceu no meu apartamento e quem cortou o cordão umbilical fui eu. Traga a moça aqui que eu explico tudo.

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