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21. AS REPORTAGENS CENSURADAS

Marginalizado por não compactuar com a repressão, Magno passou anos encostado no setor de Arquivo e Pesquisa. Aproveitou para se dedicar à criminalística, sua paixão e o motivo de entrar na polícia. Estudou numerosos crimes de elucidação complexa. Assim familiarizou-se com os meandros do Arquivo Oficial do Estado, para onde seriam levados, terminada a ditadura, os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social, o temível DOPS.

Para lá se dirige nessa terça de manhã, logo em seguida à visita de Júlia. Sabe que muita coisa foi expurgada antes da transferência e que o que restou é mantido deliberadamente em desordem, para dificultar consultas. Além disso, havia meses o prédio do arquivo estava em obras, fechado ao público, com apenas um funcionário, para atender o judiciário e a polícia.

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Melhor assim, pensa Magno, pode pegar as pastas sem passar por atendentes xeretas. Ainda se recorda de quando buscou informações sobre Maria do Rosário, busca que nunca abandonou de todo. Descobrira, então, que agentes da repressão haviam criado uma rede

secreta para dificultar o acesso aos registros dos anos de chumbo. Agora a busca era pelas reportagens censuradas e o pelo paradeiro de Paula Rocha. Magno só esteve com a jornalista uma vez, ele agora se lembra. Falavam-se muito pelo telefone. O primeiro contato foi sobre os estudantes expulsos do ITA que estavam sendo processados na Justiça Militar. Ela pedira ao Magno os autos dos interrogatórios feitos pelo DOPS, para ajudá-los a se safarem na auditoria militar. Magno conseguiu. No começo, isso ainda era possível. Tempos depois, Paula o procurou de novo pedindo informações sobre o orfanato de Jacareí e o tal delegado Felipe Mesquita para a reportagem sobre tráfico de crianças, que acabou censurada e provocou sua prisão. Preocupado com a integridade da moça, Durval pediu que ele descobrisse para onde a tinham levado. Magno chegara a pensar que Durval tinha um caso com a jornalista. Só depois de tudo o que aconteceu, ele conclui que o caso do engenheiro era com a Maria do Rosário, não com a jornalista. Paula foi logo solta. Talvez por causa do telefonema que ele deu ao DOPS, perguntando por ela sob um pretexto qualquer, ou quem sabe, por pressão dos donos do jornal. Depois de solta, não mais se falaram. E nunca mais viu seu nome assinando reportagens.

Se Paula Rocha foi presa, mesmo por poucos dias, tem ficha do DOPS. Talvez até uma pasta com as reportagens censuradas. Magno começa pelo fichário de nomes, de consulta simples. Encontra muitos

Rocha: Rocha, Arnaldo Cardoso ALN, morto em 1973; Rocha, João Leonardo da Silva, desaparecido em 1975. Cada ficha traz uma relação de informes e os números das pastas onde se encontram. Enfim, Rocha, Paula, jornalista. A ficha tem os dados civis da Paula, a data da prisão, uma lista de informes e os números de duas pastas que os contém. A localização das pastas revela-se trabalhosa, tal o caos em que está o material oriundo do DOPS. Finalmente, Magno encontra uma delas. Contém um histórico de empregos e três relatórios sobre a jornalista de um informante que se assina Felipe Gonçalo Mesquita Neto. Um dos relatórios resume uma fala da Paula numa assembleia do sindicato dos jornalistas do Vale, em Taubaté. Os outros dois relatam encontros da Paula com um padre de nome Josias na paróquia de Guará em dias seguidos, 2 e 3 de janeiro de 1969. O informante não conseguiu apurar motivo dos encontros, só o nome do padre, Josias de Freitas.

As peças começam a se encaixar, raciocina Magno. Esse informante Felipe é o mesmo delegado Felipão que Magno investigara na época do escândalo do orfanato a pedido da Paula e do Durval. Esse padre Josias de Freitas deve ser o da lista encontrada por Júlia. Encontros dele com a Paula nessas datas só podiam ter como motivo o orfanato. Decerto no primeiro combinaram algo e no segundo finalizaram o que haviam combinado.

A pasta não contém as reportagens censuradas da Paula. Magno deduz que devem estar em outra prateleira, pois a censura era feita pela Polícia Federal, não pelo DOPS. Após mais uma hora de busca localiza uma série de pastas com nomes de jornais, e entre elas a que precisava com as reportagens da Paula. São três reportagens, duas das quais jamais chegaram aos leitores do jornal. A primeira é exatamente a que Júlia lhe havia mostrado. Lê atentamente as outras duas, interrompendo apenas para tomar notas.

O tráfico de bebês em Jacareí

Como são forjados os documentos. Segunda reportagem de uma séria exclusiva, de nossa correspondente em no Vale, Paula Rocha

Jacareí, 13 de janeiro de 1969

Conforme relatamos na nossa primeira reportagem, dezenas de bebês entregues aos cuidados do Orfanato São Vicente de Paula, de Jacareí, foram enviados ao exterior para adoção mediante documentos falsos. Nesta segunda reportagem revelamos com exclusividade como é forjada a documentação.

Os nascimentos são inscritos no cartório de registro civil de Jacareí, mediante declarações de duas testemunhas compradas, como se o parto tivesse se dado em casa de família e tendo como progenitores

o casal que os vai adotar. De posse de uma certidão desse registro é pedida ao consulado do país de origem do casal, a maioria deles italianos, a averbação de um aditivo nos passaportes, permitindo assim que a criança embarque como filho legítimo e biológico do casal que a adotou. Segundo fontes seguras as autoridades policiais do Vale e o tabelionato de registro civil de Jacareí têm ciência da prática de falsidade ideológica nas declarações das testemunhas e fazem vista grossa.

Na próxima reportagem: como se dá o conluio entre autoridades policiais, o clero e os cartórios. A terceira reportagem:

O tráfico de bebês em Jacareí

O conluio entre clero, polícia e cartório. Terceira reportagem de uma séria exclusiva, de nossa correspondente no Vale, Paula Rocha Jacareí, 14 de janeiro de 1969 Conforme relatamos nas duas reportagens anteriores, dezenas de bebês de mães brasileiras foram enviados para adoção no exterior pelo Orfanato

São Vicente de Paula, de Jacareí, mediante documentação forjada. Nesta terceira reportagem revelamos com exclusividade como opera a rede de tráfico de bebês do Vale do Paraíba. Tudo começa nas paróquias dos bairros e vilas mais pobres, que proliferam no vale. Mulheres jo-

vens, algumas ainda adolescentes que procuram os padres confessores para se aconselharem, são encaminhadas ao Orfanato São Vicente de Paula, que também possuiu uma Casa Maternal. Muitas dessas jovens mães desesperadas por não terem como criar seus bebês os deixam para adoção. O próximo passo é o aviso da chegada do bebê à família do exterior inscrita no esquema. O casal logo que desembarca visita o orfanato para examinar a criança e instala-se num hotel de São José, ou em Taubaté ou mesmo em São Paulo, aguardando a confecção dos documentos. Esta reportagem constatou que muitos casais aqui ficaram hospedados antecipadamente, dois e até três meses, à espera da chegada de um bebê. Seguindo-se então o mesmo processo já descrito na reportagem anterior. Fontes da mais absoluta confiabilidade asseguraram a esta reportagem que os registros são sempre feitos no Cartório de Registro Civil de Jacareí porque já há uma combinação entre as partes. Para esse fim, os casais adotivos deixam ao orfanato uma contribuição generosa.

Belo trabalho, Magno sentencia. Conhecia alguns fatos, mas não a história toda. Agora iria descobrir se a Paula ainda era viva e onde morava.

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