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Uma ficção para jovens leitores
B. Kucinski classifica Júlia como uma novela. Para o mercado editorial, essa palavra é usada para identificar narrativas ficcionais curtas, com tamanho entre o conto e o romance. Para os especialistas em literatura, há definições menos objetivas. Uma das maneiras de definir esse gênero é afirmar que a novela apresentaria uma maior economia de recursos narrativos que o romance e um maior desenvolvimento do enredo e das personagens do que o conto. Há, assim, uma pluralidade dramática, com alguns enredos diferentes (o de Júlia e o de Durval, por exemplo) estabelecendo conexões entre si. Também é uma característica da novela o desenvolvimento sequencial, com deslocamentos no tempo e no espaço das personagens, formando um fio narrativo em que novas personagens vão surgindo para dar sentido às tramas principais. Essas características fizeram da novela um gênero facilmente adaptável para a televisão e para o rádio: por isso falamos em telenovela, e não em tele-romance. Massaud Moisés, em A criação literária, por exemplo, define livros longos como Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, e O
tempo e o vento, de Érico Veríssimo, como exemplos de novelas: o primeiro, “um longo relato dum caso amoroso que daria apenas um conto”; o segundo, como uma síntese da história do Rio Grande do Sul em que “se manifesta às claras a técnica de composição e de angulação da realidade própria da novela”. Ou seja, seria a estrutura, e não a extensão, que separaria a novela do romance.
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Essas definições, no entanto, não são nem precisam ser estanques. Pode ser que um crítico ou um leitor prefira chamar Júlia, nos campos conflagrados do Senhor de romance, uma vez que novela e romance não são gêneros completamente diferenciados: muitos romances apresentam essas características das novelas, enquanto muitos dos textos que podem ser chamados de novela, principalmente por conta da extensão mais curta, acabam apresentando mais complexidade que grandes romances. Para a confusão, contribui o nome que damos a romance e a novela em diferentes línguas: romance em inglês é novel, em espanhol, novella; para as novelas, usam-se, respectivamente, os termos novella ou short novel e novella corta.
Júlia é, e nisso não há dúvida, uma ficção em prosa. Uma ficção que não foi concebida especificamente para o público juvenil, mas que, desde o momento que levou o texto para a editora, B. Kuciski tinha claro como uma narrativa especialmente interessante para
os alunos do ensino médio, por conta de algumas de suas características e personagens.
Isso porque tanto o entrecho, ou seja, a trama principal da história, quanto a personagem Júlia, que dá nome à obra, apresentam características envolventes para essa idade, em que estamos com um olho no futuro profissional que se avizinha e, ao mesmo tempo, tentando elaborar um passado que necessariamente precisa ganhar contornos de experiência para a entrada na vida adulta.
Quem é Júlia? A personagem principal desta ficção é uma jovem bióloga que, durante o processo de partilha da herança familiar, descobre não ser filha da mesma mãe de seus irmãos. Um acaso a faz encontrar um documento, escondido no apartamento da família que quase foi à venda, e ela começa então um trabalho meticuloso e difícil de tentar descobrir suas origens. Ocorre que essa busca pelo passado pessoal revela também fatos sobre o Brasil que ela desconhecia e, aos poucos, ela vai entendendo não só o que ocorreu na sua trajetória, mas como sua vida pessoal não estava tão dissociada da vida política do país. Júlia vive então um duplo aprendizado, sobre o que a fazia diferente dos irmãos e também sobre como seus familiares, agentes do Estado e variados setores da igreja católica atuaram durante um período dramático da história do país.
Quantos segredos as vidas familiares encobrem, seja por necessidade, seja pela própria dinâmica temporal que acaba por apagar algumas memórias e dar relevo a outras? Quem nunca tentou mergulhar no passado de parentes e conhecidos para tentar entender melhor o presente? Em determinado momento da trama, Júlia descobre que sua mãe adotiva não podia mais ter filhos quando ela nasceu e que seu pai fizera Beto, seu irmão mais velho, prometer que jamais revelaria que ela fora adotada. O diálogo é o seguinte: — Por que você nunca me disse nada? — Porque papai me fez jurar que eu nunca contaria a ninguém (...). — Papai explicou o porquê da jura? — Disse que era para a segurança de todos nós, e que fora a mãe, só a tia Hortência sabia, e também não contaria para ninguém; ele estava um pouco assustado por causa da demissão.
Esse trecho coloca uma tensão sobre as relações familiares envolvidas: o segredo imposto pelo pai é um motor de sentimentos ambíguos, o de ter sido enganada e ao mesmo tempo protegida pela família. Essa situação mostra que, em tempos de forte repressão, a verdade nem sempre pode ser dita. Não apenas pelos jornais que sofriam a censura, mas pelas pessoas mais próximas, que acabam constrangidas seja pelo medo, seja pela necessidade, a guardar segredos que
são, apenas aparentemente, inofensivos do ponto de vista político.
É interessante notar que, embora não tenha sido torturado pelo regime, Durval, o pai de Júlia, também é punido: perde o emprego como professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA, ao tentar ajudar alunos presos e seus parentes. Isso mostra como a ditadura militar adotava diferentes métodos para calar os opositores, mesmo aqueles que não recorressem nem defendessem a luta armada ou fizessem parte de um grupo ou partido de oposição, legalizado ou não.
Júlia, assim, apresenta sutilezas e crueldades do regime militar que nem sempre aparecem no debate público. Muitas dessas histórias foram recuperadas por diferentes comissões estabelecidas pelos governos brasileiros após a Constituição de 1988, das quais as principais foram a Comissão de Anistia e a Comissão Nacional da Verdade. Documentos fundamentais e relatos sobre episódios de perseguição física, psicológica e econômica a opositores podem hoje podem ser, graças a esse enorme trabalho, encontrados na Internet.
A ficção de B. Kucinski acaba por ser, assim, um excelente caminho para abrir afetivamente as portas para as descobertas dos próprios alunos sobre esse regime, num aprendizado transdisciplinar, envolvendo questões centrais para disciplinas como história e geografia, como a organização política e econômica
do regime militar, sobretudo na região do Vale do Paraíba, em cidades como Taubaté e São José dos Campos, onde boa parte da trama se desenvolve.