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Realismo e realidade

A ação de Júlia se passa em dois tempos: num, ela é protagonista, nos anos 1990. No outro, o personagem principal é Durval. Essa é uma questão bastante interessante: a estratégia narrativa sofisticada de B. Kucinski compõe em dois tempos a narrativa. Há um presente (que não é o do leitor, mas o de Júlia, que vai encaixando as peças do passado) e há um passado, em que Durval tem, ele próprio, de entender a dinâmica do regime militar imposto em 1964 para ajudar as pessoas perseguidas.

A edição do livro, por sugestão do autor, adotou diferentes tipografias, marcando claramente o que é “passado” e o que é “presente” na obra. Esses tempos dialogam na trama por meio de documentos, criados por B. Kucinski, como uma carta deixada pela tia Hortência, ou depoimentos de pessoas que conviveram com Durval, como uma jornalista, também perseguida pela ditadura.

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Kucinski, nessa obra, adota uma narrativa de tradição realista, ou seja, os fatos são expostos de modo a serem verossímeis, ou seja, parecerem reais. Essa tradi-

ção literária, que têm nas escolas realista e naturalista do século 19 um momento fundante, com os romances de Honoré de Balzac e Émile Zola, na França, Aluísio Azevedo, no Brasil, e Fiódor Dostoiévski, na Rússia, é muito frequentada por autores que procuram discutir, de forma ficcional, problemas da realidade. Ainda que essa tradição seja periodicamente revista e reconstruída – como aconteceu com o Romance de Trinta, no Brasil, por meio de escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado –, ela permanece como um poderoso instrumento de denúncia de injustiças políticas e sociais. Tânia Pellegrini, em Realismo e realidade - uma forma de ver o Brasil, aponta nessa permanência do método realista (mais do que da escola em si) “uma ânsia de representar o real” e “uma forma de expressar o desejo humano de se apropriar da concretude das coisas, com incidência, intensidade e características diversas ao longo da história”.

Nesse estudo sobre o realismo, de suas origens aos dias de hoje, Pellegrini passa por diversos teóricos. Um deles, Philippe Hamon, explica que, no realismo, dá-se um “pacto de leitura entre o autor e o leitor, de acordo com um conjunto de regras, do qual as principais são: a dignidade do real compreendido como objeto de conhecimento; sua reprodutibilidade pela linguagem e a adesão do leitor à verdade da informação proposta pela ficção”. A literatura que

adota a forma realista busca, portanto, não apenas entreter o leitor, mas também informá-lo sobre um tema específico. Em autores com sólida formação política e histórica, como é o caso de Kucinski, essa forma procura, também, revelar segredos ocultos pela força da ideologia. Assim, sobre K., o crítico italiano Ettore Finazzi, professor da Universidade de Roma “La Sapienza”, afirmou que as personagens que visitam Bernardo Kucinski são “os emblemas de uma reconstrução impossível ou, pelo menos, sempre subjetiva e parcial daquilo que aconteceu”. A abertura deste ensaio, publicado na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea da UnB, deixa claro o engajamento da obra do escritor: “Hoje, com medo e nojo, devemos mais uma vez mexer na água pútrida da repressão e da privação violenta da liberdade de opinião. Hoje, mais uma vez, é mister afundar as mãos na acqua toffana que envenenou e continua envenenando a vida de um povo, na sua maioria, sem culpa, de um país desprivado dos seus direitos”.

Nesse exercício engajado de dar uma representação ficcional para a ditadura, B. Kucinski acaba sugerindo uma ferramenta para os estudantes dominarem diversas técnicas narrativas, seja a escrita da própria trajetória ou de conhecidos numa chave de testemunho ou memória, seja a própria ficção sobre fatos do cotidiano. Há caminhos também para discussão de diferentes te-

mas transversais, como a relação entre religião e política, questões étnico-raciais, as relações entre sociedade e indivíduo, tão centrais em disciplinas como história, geografia e sociologia.

É preciso, no entanto, fazer uma distinção muito importante entre realidade e expressão da realidade. Entre uma coisa e outra, no caso da ficção, coloca-se sempre um autor que busca criar um ambiente ficcional que não se confunde com uma simples reprodução do real. É o que alguns críticos chamam de “o efeito do real”, ou “o efeito de realidade”. Discutindo as complexas relações entre a literatura e a sociedade, Antonio Candido indica que há um caráter arbitrário na composição de uma ficção que autoriza o autor a transformar ou recriar a realidade, mesmo quando filia-se à tradição realista. Dando o exemplo de Aluísio Azevedo, que ignorou informações médicas sobre um envenenamento para, na composição de O homem, dar mais rapidez e dramaticidade a uma cena, Candido explica que a liberdade do escritor, “mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a essa traição metódica”.

Assim, ainda que trate de um passado de dores e procure denunciar suas violências, Júlia é, antes de tudo, uma obra de ficção. Talvez por isso seja tão verdadeira.

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