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Uma vida em perigo

Jornalistas investigativos revelam os bastidores da profissão

Heloísa Bianchi Isabela Lemos Matheus Zilio

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Em 2000, enquanto investigava o sequestros de crianças na fronteira do Paraguai, o repórter investigativo Mauri König foi agredido e, deixado à beira da morte, precisou fingir de morto para sobreviver a situação. “Depois conclui que se os caras quisessem realmente me matar, eles teriam feito, e jogado o corpo no rio Paraná. O que eles queriam na verdade era dar um susto, um aviso a imprensa brasileira para não mexer mais nas questões do Paraguai.”

König acredita que existem outros tipos de agressão ou de violência que têm caráter permanente ao repórter: “Eles não deixam marcas físicas, mas deixas marcas psicológicas muito fortes”. Durante os duros anos na profissão, muitas reportagens causaram diversas ameaças ou retaliações contra König, mas ele acredita que a todo momento estamos sujeitos à consequências inerentes da profissão.

Quando König trabalhava para o jornal Folha de Londrina, ele foi ameaçado por grupos políticos que “pediram sua cabeça” para o dono do veículo, pelo fato de discordarem das denúncias que estavam sendo feitas. Em 2003, o repórter escreveu uma reportagem que denunciava abertamente o envolvimento de policiais civis de Foz do Iguaçu com o receptadores de carros roubados no Paraguai. A transparência na reportagem culminou com a mudança compulsória de König para Curitiba. “Fiquei distante dos meus filhos e isso já implica um custo muito grande. A preocupação de vê-los na mesma região que você denunciou os policiais, mas ainda bem não aconteceu nada.”

Em 2012, novamente ameaças da polícia civil, por causa da série “Polícia fora da Lei”, culminaram com o exílio de König para fora do país, no Peru. Haviam sido feitas ligações para a Gazeta do Povo, alertando a imprensa que um grupo de policiais tinham sido contratados para matar König. “Você sempre fica com aquela sensação de que está sendo vigiado, eles sabem quem é você, porque eu assinei a reportagem, eu coordenei a equipe, mas eu não sei quem são eles.” Novamente, foi necessário que o repórter deixasse sua família em consequência de seu ofício. Mauri König em entrevista numa das cavas do Rio Iguaçu, em Fazenda Rio Grande.

Jonathan Campos

König recorda que o último episódio grave de ameaças contra ele consequentes de seu trabalho foi em 2016, quando publicou uma reportagem para a Folha de São Paulo, informando sobre uma guerra que acontece nas fronteiras do Brasil e do Paraguai pela disputa do tráfico. Durante suas investigações, König descobriu quem havia mandado matar um grande traficante da região, outro traficante. Meses depois o filho do traficante o encontra e exige que König parasse de fazer reportagem sobre seu pai. Ele decidiu parar com as reportagens a partir do momento que sua famí-

lia, que reside na fronteira de Foz do Iguaçu com o Paraguai, foi ameaçada. “Meus filhos não precisam pagar pelas minhas escolhas. Quanto a mim tudo bem, eu arco com as consequências das escolhas que eu faço na minha profissão.”

Apesar de todas as consequências que a vida como jornalista investigativo trouxeram a Mauri König, ele não se arrepende de nada. “Se eu tivesse desistido de publicar a reportagem quando fui agredido, os agressores teriam ganhado. Quando sou eu que decido, então, publicar a reportagem, estou passando uma mensagem para eles, estou dizendo olha não adianta, por mais que vocês me ameacem, por mais que tentem me matar, vocês não vão me calar.”

“Se eu tivesse desistido de publicar a reportagem quando fui agredido, os agressores teriam ganhado.”

Mauri König, jornalista

PRAXE NA ESSÊNCIA

“Eu não deixo uma grande herança material para os meus filhos, mas deixo um legado moral muito importante para eles, e eles se espelham nisso. Acho que esse é o grande ganho que o jornalismo investigativo me deu, que se eu ficasse cobrindo as coisas factuais do dia, eu não seria quem sou hoje como jornalista e como ser humano.” Com 27 anos de carreira, König expressa sua gratidão ao ofício e conta como o jornalismo forjou a pessoa que ele é, “uma simbiose”.

König explica que não conseguiria ficar tranquilo, em paz com a sua consciência se soubesse de algo que está causando alguma injustiça social, e que isso poderia mudar com o seu trabalho. Porque, de acordo com ele, o jornalista sempre está agindo, esperando que o seu trabalho produza alguma coisa, algum efeito, que no jornalismo deve, sim, esperar que o trabalho transforme alguma realidade, produza alguma mudança. E, para ele, essa mudança não precisa ser completa e palpável, pode ser intangível que ocorra na mente das pessoas, quando elas perceberem que aquela informação fez com que ela entendesse melhor determinado fenômeno, ou que a levasse a mudar de opinião.

A jornalista investigativa da Gazeta do Povo Katia Brembatti conta que o jornalismo investigativo mostra uma realidade que muitas vezes não quer ser revelada, por isso ele é essencial, porque as pessoas podem fingir não ver as coisas, talvez por ser mais prático viver na bolha, mas o jornalismo tem a função de olhar para as coisas com a profundidade que elas têm. “Quanto mais a imprensa e a democracia estiverem em crise, mais o jornalismo investigativo é um pilar importante”.

Professora e doutora em Jornalismo, Criselli Montipó explica que o jornalismo convencional se debruça sobre aquilo que está acontecendo no cotidiano, e por questões técnicas, nem sempre tem tempo para ir atrás das raízes de acontecimentos de um fenômeno social. A professora diz que é nesse ponto que o jornalismo investigativo se diferencia, já que busca entender os fatos de uma pauta a partir de uma pesquisa aprofundada, e por isso essa vertente é chamada assim, porque ela busca respostas mais complexas para fenômenos que afetam a sociedade.

“O que me move no jornalismo é a indignação, porque eu não consigo me conformar com determinadas situações então eu procuro ir além daquela leitura que a gente faz a primeira vista.” König aponta que para um jornalista ser efetivamente investigativo, ele tem que olhar para além da aparência dos fatos, e é nisso que o jornalismo investigativo começa a se diferenciar do jornalismo cotidiano. Porque a investigação vai exatamente além das aparências dos fatos, e para ir além da aparência dos fatos você precisa explorar o assunto de uma maneira que você consiga levar a pública todas as nuances possíveis, ou as máximas nuances possíveis de um acontecimento.

Criselli diz que na história do jornalismo investigativo se fala muito do caso de Watergate, que para alguns seria o embrião para a investigação, porém há quem conteste isso. Até porque existem vários livros que agrupam vários casos que foram tratados na imprensa, inclusive sobre a ditadura. A jornalista aponta, também, uma reportagem investigativa, bem emblemática sobre jornalismo de dados, produzida no Paraná e liderada pela Katia Brembatti, os “Diários Secretos”, publicada pela Gazeta do Povo e pela emissora RPC, afiliada da Rede Globo no Paraná, em 2010.

A professora se refere à série de reportagens que revelaram irregularidades praticadas na Assembleia Legislativa do Paraná. As reportagens promoveram mudanças na gestão do Legislativo estadual e também uma avalanche de investigações, conduzidas pelo Ministério Público. “Eu nunca tinha feito nada nessas dimensões, nem antes e nem depois. Eu fiz várias reportagens investigativas depois, mas nada com esse tamanho, e com essa envergadura.” Katia conta que às vezes ficava de 12 a 13 horas fechada em uma sala digitando e isso gerava um cansaço físico e mental muito grande. Além de que, como morava em Ponta Grossa na época, ela chegou a ficar 21 dias sem voltar para casa, sem ver sua família, seus filhos que eram pequenos.

Katia explica que, por mais que muita gente glamourize, o jornalismo investigativo, ela não faz isso, porque ele é difícil, exige boa vontade, é preciso abrir mão de um monte de coisa, não é a mesma coisa de fazer a matéria do dia a dia. É outro tipo de matéria. E também, alerta para a responsabilidade que o jornalista tem em suas mãos. Porque o todo o processo foi decidido pelo repórter, e a apuração á dele, portanto ele se compromete com aquilo. Todo o processo é responsabilidade dele, logo todo peso da responsabilidade é muito forte em cima do jornalista.

Para König o primeiro impeditivo do jornalismo investigativo hoje é o alto custo que implica uma investigação, e o fato das empresas não estarem muito dispostas a arcar isso. Além dos riscos de retaliação, que podem ser ameaça, agressão, censura, ainda no período de produção da reportagem, ou até na pós publicação do material. Ele explica que a censura que mais se impõe ao jornalismo é via o judiciário, e que isso deixa o jornalista muito vulnerável a essas suscetibilidades do poder judiciário. Mas se o jornalista fez o trabalho bem feito, conseguiu documentar tudo que fez, não tem o que temer.

Com a série de reportagens Diários Secretos, Katia Brembatti conquistou o mais importante prêmio do jornalismo brasileiro em 2010, o Prêmio Esso do Jornalismo.

Heloísa Bianchi

Um dos podcasts mais ouvidos do Brasil nasceu de um processo de jornalismo investigativo: o Anticast, que, em uma das suas temporadas, desmembra a história do Caso Evandro em 26 episódios. O trabalho é produzido pelo professor de podcast e jornalista Ivan Mizanzuk que se interessou pelo caso desde jovem e acabou trazendo-o à tona por perceber falhas de cobertura acontecidas durante a época que se deu o caso, em 1992. Com seu podcast, ele espera que a população possa entender melhor como funcionam casos criminais - um exemplo que ele dá é que muitas pessoas não sabem a diferença entre polícia militar e civil.

Algo que não se vê no jornalismo policial, segundo ele, é um aprofundamento nos casos. São apenas apontamentos de que tal lado falou isso e outro aquilo e, então, a reportagem está pronta. Para Mizanzuk, a notícia vai muito além disso. “Caso tivessem ido além naquela época, muitos problemas que existem hoje, 30 anos depois, não existiriam. Se tivesse alguém lá com a mesma preocupação que eu, de ouvir as fitas em 1992 e falar ‘pelo amor de Deus, tem coisa estranha nessa fita’, talvez, hoje eu não teria que estar fazendo um podcast para explicar tudo o que aconteceu”, afirma.

O maior desafio do caso Evandro, segundo o jornalista, é que, muitas vezes, ele se vê num beco sem saída. Isso porque ele acha que vai tentar solucionar o caso e acaba percebendo que, como todo caso criminal, há dúvidas. Então, se dá conta de que não há elementos suficientes para tirar certas dúvidas. Ele conta que, uma vez, foi produzir uma parte do podcast que durava 10 segundos. Mas, para dizer aquela frase, precisava olhar uma parte do processo e, para achá-la, demorou três dias. “Eu não cheguei a ler todo o processo, você relê muita coisa, vê as gravações, tem que ser muito organizado e não se perder”, revela.

Para Mizanzuk, o jornalismo factual hard news é muito importante, principalmente pela informação rápida, porém, faz crítica à forma como a rotina de produção dessas reportagens acaba tornando os jornalistas passivos às informações. Para ele, quem faz o noticiário diário, devido ao volume de demanda, recebe a notícia e apenas a reproduz. Muitas vezes, não há uma verificação ou não conta com a presença de voz contraditória – e, quando tem, é superficial: “na minha opinião, casos criminais complexos precisam de um aprofundamento maior.”

Evandro Ramos Caetano, o garoto vítima de ritual.

Podcasts no Brasil: “Caso Evandro”, por Ivan Mizanzuk.

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