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Atração fatal
from CDM 56 - Digital
Hibristofilia é o nome dado à velada e pouco conhecida admiração por criminosos. Quem são as mulheres apaixonadas pelos homens que a sociedade julga abomináveis?
Maria Cecília Zarpelon, Marina Prata e Sofia Magaganin
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Nas fotos, Charles Manson, Richard Ramirez, Thiago Henrique, Ted Bundy e Jeffrey Dahmer.
Foto montagem: Maria Cecília Zarpelon/Reprodução “N o momento em que alguém tira uma vida é um poder maior que o de Deus, enmãe. Mas a repressão dos parentes não foi suficiente para conter seu interesse pelo mundo do crime. A forma que encontrou de atuar na área foi iniciar um voluntariado em um pretende? É como se aquela pessoa fosse sídio. Todos os dias, a jovem viaja à cium tipo de divindade e você, ao estar dade vizinha para vivenciar a realidade com alguém assim, se eleva ao mesmo carcerária. Beatriz ainda mantém status.” adormecido o desejo de passar em um concurso público para trabalhar com Beatriz* passou a infância inteira crimes graves e famosos. ouvindo histórias do pai, delegado, sobre homens que transgridem a lei. Apenas ouvir sobre os assassinos que
O fato de muitos deles nunca serem protagonizavam as histórias do pai pegos ou acabarem soltos novamente não era suficiente. Desde muito nova, comprova, para ela, uma inteligência Beatriz lia livros e assistia filmes acima da média. O fascínio por men- sobre o tema, principalmente aqueles tes criminosas veio aos poucos e, logo, que tratam os criminosos como seres se transformou em atração. humanos comuns. Hannibal, o protagonista de O Silêncio dos Inocentes,
Via de regra, a sociedade estabelece fez com que a garota percebesse que que homens que cometeram atroci- era atraída pelo poder, e aquele era dades e foram condenados por crimes seu tipo de homem: “Inteligente, sem hediondos devem ser alvo de rejeição medo, com ambições e que pudesse e abominação. Mas, inesperadamen- proporcionar um futuro seguro.” te, não é sempre assim que acontece.
Muitos deles recebem juras de amor, O perigo de ter um relacionamento cartas de admiradoras, e alguns até com alguém que já matou pessoas não se casam na prisão. Mas, afinal, quem assusta Beatriz. Ela não vê problema são as mulheres que se apaixonam em se envolver com um assassino, por esses criminosos e o que as leva a desde que se sinta atraída por ele. sentir essa afeição tão incomum? “Todo mundo já fez algo de errado. Numa relação assim você sabe o que
A criminologia define a atração afetiva esperar, está tudo às claras. Mulher ou sexual por infratores como um de político não é mal vista, por que comportamento atípico, conhecido mulher de bandido deveria ser? Procomo hibristofilia. Essa realidade, ma- fissão é profissão, cada um tem seu joritária entre mulheres, é cercada de caminho”, afirma. tabus e, por mais que seja recorrente, carece de estudos científicos conclusi- Beatriz tem dificuldade de se relaciovos e permanece pouco conhecida. nar com os “cidadãos limitados” que a sua cidade produz. Em busca de en-
Nascida no interior do Paraná, Beatriz, contrar um homem que a satisfizesse de 24 anos, sonhava em ser uma pro- e acompanhasse intelectualmente, a fissional da lei, mas foi proibida pelo jovem tentou entrar em contato com pai. Para ele, o Direito simplesmente Charles Manson. O criminoso amerinão foi feito para mulheres. Sucessora cano era seu grande ídolo, e a esposa do negócio da família, a jovem optou dele, alvo de sua profunda inveja. Fopor cursar Farmácia para ajudar a ram 72 cartas sem resposta. Beatriz
Beatriz*, 24 anos
Maria Cecília Zarpelon
mantém um registro de todas as vezes que enviou suas declarações, com a data exata. A morte do notório criminoso a deixou inconsolável. “Foi como perder alguém muito próximo.”
Após tentativas frustradas de ter seu amor correspondido, Beatriz começou um relacionamento de fachada para disfarçar seus reais interesses. O rapaz, que conheceu durante uma viagem a outro país, é, para ela, apenas um “status de Facebook”. Hoje, os únicos criminosos que fazem parte de sua vida são os amigos que fez no presídio onde é voluntária.
Na área dos estudos comportamentais, a atração sexual preferencial ou exclusiva por uma pessoa ou objeto não-convencional é definida como uma parafilia. Porém, não há um consenso sobre a classificação da hibristofilia dentro dessa denominação. Segundo a psicóloga mestre e doutora em sexualidade humana pela Universidade de São Paulo (USP) Bárbara de Lucena, são definidas como práticas sexuais convencionais aquelas realizadas de forma consensual com seres humanos, vivos e adultos.
Como a hibristofilia atende a todos os critérios de uma relação sexual convencional e abrange tanto a atração sexual quanto afetiva, é difícil dizer se trata-se, de fato, de uma parafilia ou não. Tal discordância dificulta o estudo do tema e, consequentemente, sua compreensão. Até o momento, a hibristofilia não é entendida como um transtorno ou doença diagnosticável. “Diferentemente dos distúrbios psíquicos, nenhum comportamento pode ser categorizado, temos que ver o que está por trás dele”, explica Bárbara.
De acordo com a psicóloga especialista em análise comportamental Soraya Aragão, os relacionamentos amorosos refletem partes circunstanciais da infância de cada indivíduo. Diante dos casos estudados até hoje, foram constatadas algumas semelhanças entre as mulheres que se apaixonam por criminosos: muitas são vulneráveis, têm baixa autoestima e têm demandas emocionais que não foram supridas, tais como uma infância difícil ou uma família desestruturada. “Geralmente são mulheres imaturas que têm uma percepção equivocada daquele homem, uma distorção da realidade”, esclarece. De modo geral, o comportamento hibristofílico costuma se manifestar entre os 13 e 25 anos.
“Todos os nossos comportamentos têm uma função, a gente faz o que faz por um motivo”, reflete Soraya. Mulheres com o agravante de terem sofrido abuso sexual ou psicológico
no passado podem se envolver com um criminoso para repetir a cena de agressão, ou ainda buscar a segurança e proteção que seu parceiro pode oferecer. Além da fragilidade emocional, a procura por adrenalina, poder, fama ou autoafirmação pode motivar essas mulheres, principalmente se o alvo de suaadmiração é um infrator que ganhou atenção da mídia. Algumas, inclusive, acreditam que po-
dem salvar esses homens, trazendo a eles uma espécie de “redenção”. Na visão da psicóloga, é “uma espécie de suicídio indireto ou inconsciente se envolver com uma pessoa que pode potencialmente te matar”.
Amanda*, de 21 anos, cresceu com todo o suporte que o dinheiro poderia proporcionar; ia às melhores festas, tinha as melhores roupas, estudava na melhor escola. Porém, mesmo com todo o conforto de uma família de classe média alta, teve uma vida bastante conturbada desde que consegue se lembrar. A filha única de pais divorciados tinha problemas, principalmente, com a mãe, narcisista perversa. “Eu sofria abusos psicológicos constantes, desde muito pequena eu tenho recordações da minha genitora falando que me odiava, que tentou me abortar”, relata.
Devido aos abusos sofridos em casa, Amanda foi criada pela avó. Aos 10 anos, a pessoa que era sua principal referência faleceu. Nessa época, a jovem entrou em um estado de depressão profunda e começou a se automutilar. “Propositalmente, comecei a me envolver com as amizades erradas.
Tudo que era ruim me atraía. Parando para pensar, acho que eu sempre tive um interesse por aquilo que a sociedade considera errado.”
O comportamento dos bad boys sempre chamou sua atenção, despertando fascínio e admiração. Na escola, falava abertamente sobre temáticas criminais com suas amigas, que também demonstravam interesse no assunto. Mas, foi no Tumblr que Amanda realmente se conectou com pessoas que pensavam como ela: encantadas por serial killers. “Para mim, com a minha mente de adolescente, era algo admirável eu ser diferente e ter interesses diferentes. Era um prazer estranho ser esquisita.”
Aos 12 anos, Amanda enviou sua primeira carta para o presídio San Quentin, onde o assassino em série e estuprador norte-americano Richard Ramirez estava preso. “A minha obsessão com o Ramirez foi muito particular. Eu adorava ler a respeito do Charles Manson, do Ted Bundy, mas o Richard Ramirez foi uma coisa que, na época, eu entendia como uma atração espiritual. Era física, intelectual, mental… Eu assistia a todas as entrevistas. Tentei buscar parentes, familiares dele no Facebook. Eu tentava me aproximar o máximo possível, foi bem intenso”, relembra.
Maria Cecília Zarpelon
Até os 15 anos, a jovem não havia beijado ninguém porque não conseguia se imaginar tendo um relacionamento com um “rapaz normal”. “Algumas pessoas falam que quem tem esse interesse é tão sociopata quanto os próprios serial killers. Isso enfatiza ainda mais a ideia da hibristofilia ser um tabu.”
As incontáveis cartas de Amanda para o criminoso traziam “confissões de uma menina apaixonada se declarando para seu amante”. Ela traduzia poesias da literatura brasileira, contava a respeito do seu dia a dia e de seus planos de ir à Califórnia visitá-lo. Ramirez chegou a escrever de volta para sua admiradora três vezes. As respostas do assassino, embora padronizadas, significavam muito para ela. “Ele contava a respeito dos programas que podia assistir, dos filmes que via…”, recorda.
No último contato de Amanda com Ramirez, ela pediu que o assassino a enviasse uma mecha de cabelo, mas não obteve resposta. O criminoso morreu logo em seguida, forçando o rompimento do contato. Foi então que Amanda entendeu que não haveria possibilidade de que ela e seu amado ficassem juntos e, aos poucos, a paixão foi desaparecendo.
A jovem casou-se aos 16 anos e hoje é mãe de uma menina. É formada em Artes Cênicas e, atualmente, estuda Direito. Ao olhar para trás, Amanda entende que os comportamentos que teve na adolescência foram uma forma de externalizar toda sua carência emocional. “Enquanto mãe e esposa, analiso tudo isso como uma forma desesperada de me sentir especial, uma tentativa de chamar a atenção de meus pais. Foi um pedido de socorro”, finaliza a jovem. A incapacidade que pessoas com transtornos psicóticos têm de sentir empatia, assim como a característica nata de manipulação de assassinos em série, impossibilita que esses criminosos correspondam o amor de suas admiradoras. “A relação só existe na cabeça daquela mulher”, argumenta a advogada criminal Lívia Arcângelo, que conduz pesquisas sobre o perfil criminológico de feminicidas, estudando o caso de um assassino em série de Goiânia.
Sobre a mente criminosa, Lívia constatou em seus estudos que os assassinos não agem sempre como assassinos, eles se apresentam para a sociedade de maneiras diferentes e assumem uma persona conforme a conveniência. “Ele age como se fosse superior e não fizesse parte deste plano. Serial-killer acha que está em uma missão.” É dessa forma que homens psicopatas conseguem conven-
cer e cativar suas admiradoras, ainda mais quando se tratam de criminosos midiáticos colocados em uma posição de heroísmo. “Grandes bandidos, que chamam a atenção pela fama, atraem o imaginário de várias mulheres que vão tentar contato a todo custo.”
Em casos famosos na mídia, a atenção costuma ficar sempre em cima do criminoso, enquanto suas admiradoras, por outro lado, permanecem anônimas por conta do tabu que envolve esse interesse. “O fascínio fica tanto em volta do assassino que elas se tornam meras coadjuvantes”, afirma.
A hibristofilia não escolhe sexo. Um homem pode se apaixonar por uma mulher criminosa, mas, na maioria dos casos, ocorre o contrário. É fato que, no Brasil, 95% da população carcerária é composta por homens, segundo o Conselho Nacional de Justi-
Lívia Arcângelo, advogada criminal
Maria Cecília Zarpelon
ça (CNJ). Mas não é só isso que explica a hibristofilia ser predominantemente feminina.
Uma das teorias para justificar esse fenômeno está baseada na psicologia evolucionista. De acordo com a abordagem teórica, a mulher teria uma tendência a se atrair sexualmente por homens “macho-alfa”, que a psicóloga Bárbara de Lucena define como “alguém com características agressivas, de bom lutador e que ganharia dos adversários”. Para ela, esses criminosos seriam “um extremo do interesse das mulheres por aspectos mais viris”.
A psicóloga Soraya Aragão acrescenta que, de acordo com essa teoria, a preferência se deve a um gene herdado pelas mulheres por meio da construção filogenética, já que, ao longo da evolução da raça humana e da sociedade, as mulheres se relacionam historicamente com homens mais agressivos e opressores. É possível enxergar a hibristofilia como um dos diversos efeitos colaterais da cultura da superioridade masculina, em que a mulher é colocada como uma figura submissa aos comportamentos violentos de seus parceiros. Comportamentos esses, como a psicopatia, que são estudados exaustivamente pelas áreas da psicologia e psiquiatria, além de excessivamente explorados pela mídia e pelo entretenimento, enquanto a hibristofilia permanece velada como um simples fetiche feminino fora do padrão.
*Pseudônimo utilizado para preservação da integridade da fonte.
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