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Encontro de almas

A possibilidade da adoção faz com que o conceito de família se reconfigure na contemporaneidade

Brandow Bispo, Carolina Bosa, Gabriela Fontana e Julianne Trevisani Onúmero de casais com filhos, no Brasil, é quase três vezes maior do que o dos que não têm nenhum, segundo dados estatísticos do censo de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A vontade de dar continuidade à família é, ainda, a vontade de muitos, mesmo que de forma diferente do que na geração de nossos avós.

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Assim como as flores esperam a primavera para florescer, e como os pássaros aguardam o inverno para migrar, também vários casais expectam por seus filhos. Filhos que, por vezes, são gerados por meio de um encontro de almas. Então, por que não falar da história destes encontros?

Só que, antes, é necessário lembrar das muitas crianças que estão nas filas de adoção pelo país.

Segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) - ferramenta digital lançada pela Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) que auxilia os juízes das Varas da Infância e da Juventude -, existem pouco mais de 46 mil pretendentes à adoção no Brasil para 9.310 crianças/ adolescentes cadastradas.

Segundo Hália Pauliv de Souza, dona do blog Adoção Segura e voluntária no Grupo de Apoio Adoção, há uma séria

preocupação com relação à “etapa de preparação” dos pretendentes à adoção. Ela acredita que o processo é falho devido à má preparação dos técnicos jurídicos para entender as questões emocionais envolvidas no processo, que diferem da teoria. Além disso, há um desinteresse e uma falta de motivação por parte dos pretendentes, que entendem que já dispõem de conhecimentos sobre as questões discutidas no Grupo de Apoio.

Com o objetivo de amenizar ainda mais esse problema, o TJPR oferece cursos de adoção on-line para suprir esta dificuldade. Conforme aponta o Conselho Tutelar de Curitiba, as medidas durante essa etapa, que dura cerca de nove meses, não são tão rigorosas e os encontros são pouco profundos. Essa superficialidade no processo causa problemas de adaptação após a adoção.

“Um processo adotivo não pode e nem deve ser apressado. A criança precisa de um tempo na Instituição para se desligar da família de origem e os pretendentes amadurecerem para evitar arrependimento”, explica Hália.

“Um processo adotivo não pode e nem deve ser apressado.”

Hália Pauliv de Souza, dona do blog “Adoção Segura”

A IMPORTÂNCIA DO AUXÍLIO

Para que o processo de adoção possa trazer não somente auxílio, mas aprendizados e inspirações, foram criados programas que facilitam o encontro da criança e do adolescente com os pretendentes habilitados no CNA. Esse é o exemplo do A.DOT, do estado do Paraná. O programa foi criado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, por meio da Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná e do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e da Juventude (CONSIJ-PR), do Grupo de Apoio Adoção Consciente (GAACO) e da Agência Blablu.ag.

Outra iniciativa nesse sentido é o Projeto Encontro (http://projetoencontro.org.br/), que também conta com o apoio do TJPR, MP e das Varas da Infância e Adolescência das comarcas do Paraná. Além desses programas, existem muitas ONGs espalhadas pelo

Idade, cor da pele e problemas de saúde diminuem as chances de adoção de crianças e adolescentes que estão em entidades de acolhimento (Fonte: Ministério Público do Paraná - 2019).

Julianne Trevisani

país que dão apoio às famílias que estão no processo de adoção, ou que já passaram por ele.

“Nosso trabalho consiste desde os pretendentes até as crianças. Com as crianças fazemos um acompanhamento psicossocial e promovemos a elas atividades junto com os pretendentes já habilitados pela justiça. Como essas crianças geralmente passam por um processo grandioso dentro da vara da infância, e geralmente sigilosos, elas não podem ficar expostas a qualquer situação”, segundo Marcelo dos Santos, presidente da instituição Reencontro - Adoção Consciente, localizada na cidade de Araucária, na região metropolitana de Curitiba, sobre o trabalho das instituições de apoio para as famílias.

A questão psicológica, tanto da criança quanto da família que se prepara para adotá-la, é muito importante a ser discutida. Muitas dos meninos meninas que estão cadastradas vieram marcadas principalmente pelo abandono dos pais e da família de origem, como explica Santos, “Elas (crianças) não foram retiradas da família por pouca coisa. Os direitos dessas crianças, os direitos delas foram violados grandemente. A questão psicológica da criança ou do adolescente que vai ser preparado para a adoção se inicia desde o momento em que o judiciário compreende que a destituição familiar, do poder familiar, vai acontecer”.

Quanto a preparação psicológica da família que vai adotar, não tem uma regra. “Depende muito do que o grupo

“Você precisa falar ao seu coração, a adoção é gerar pelo coração.”

Marcelo dos Santos, presidente do “Instituto Reencontro”

de apoio vai identificar e do que, principalmente, quase que exclusivamente, do que o judiciário vai entender de acordo com o estudo psicossocial daquela família. Então ele não tem uma via de regra mas tem algumas coisas básicas. Entender que aquela família ou aquele pretendente tem condições psicológicas e financeiras, que não precisa ser rico, mas que vai ter condições de receber aquela criança”, pontua Santos.

O presidente destaca que a ajuda das ONGs e instituições de apoio possuem um trabalho fundamental para esse auxílio às famílias junto às varas da criança e do adolescente. E, ainda, que toda a “preparação” não está somente destinada a preparar as pessoas a serem bons pais ou mães, mas que este sentimento é um dom que cada um tem internamente, “você precisa falar ao seu coração, eu costumo dizer que a adoção ela é gerar pelo coração”, conclui.

O PRESENTE DE FINAL DE ANO

Foi no final de Novembro de 2018, que Ana Paula Fagundes e Vitor Henrique Fagundes, receberam uma ligação

Arquivo pessoal da Família Fagundes

que mudaria suas vidas. Após cinco anos de espera, o casal foi contactado pelos assistentes sociais do Fórum da Comarca de Joinville, com a notícia de que eles haviam encontrado uma criança que se encaixava no perfil da família. O casal conta que a partir desse momento ocorreram várias mudanças em suas vidas.

Mirela Fagundes, que tinha apenas 4 anos na época, se adaptou muito bem à família e em menos de uma semana após o primeiro encontro, se mudou para casa de Ana Paula e Vitor.

“Se fosse me usar como exemplo, eu diria para as pessoas: Adotem!”. Porque é um processo louco, insano, incrível. É sensacional você olhar para uma criança que há pouco tempo não existia na sua vida e em fração de dias, meses, parece que ela esteve ali desde o princípio”, diz Ana Paula.

Segundo Ana Paula, o casal começou a se planejar para esse momento há muitos anos. No ano de 2003, eles passaram a participar de ações sociais realizadas em sua empresa. Eles conheceram a situação de crianças que estão em risco ou em situação de vulnerabilidade social ou para adoção. Naquele momento eles se encantaram com algumas crianças em específico e resolveram que iriam adotar. Decidiram que, após seu casamento, dariam entrada no processo de adoção.

O casal conta que todas as etapas foram fundamentais no processo, desde a preparação com assistentes sociais, o acompanhamento com psicólogos, até as reuniões dos grupos de apoio com outros casais na mesma situação. Ainda acrescentam que é de suma importância tirar um tempo para adaptar sua rotina e criar um vínculo maior com a criança.

A SURPRESA DA NOITE

“As melhores memórias que eu tenho com os meus pais é do dia que eles me adotaram. Eu estava dormindo no orfanato, a moça do orfanato me acordou no meio da noite e falou: ‘Ruan, arruma suas coisas e desce’. Eu não sabia o que estava acontecendo e, quando eu cheguei lá, eles estavam lá embaixo. Eu achei que eu ia passar mais um fim de semana na casa deles, só que era no meio da semana então eu não entendi. Eles me falaram: ‘Essa é a sua nova família, a partir de hoje, você é filho deles, você foi adotado’. Eu travei né?!. Fiquei ‘o que ta acontecendo?’. Eu fui, entrei no carro e quando chegamos, a casa estava toda a minha família me esperando para me dar parabéns e tudo mais. Então, essa é a minha lembran

Arquivo pessoal da Família Buckeridge

ça mais marcante com eles”, relata Ruan Buckeridge, jovem que tem hoje 18 anos, mas conhece seus pais desde os 2 anos.

Walter Buckeridge e sua esposa, Rochele, sempre tiveram o desejo de ter filhos. Tanto desejavam que têm três. Théo, o mais velho; Lívia, a caçula; e Ruan, que conheceram por meio de um projeto da escola do qual Rochele era responsável.

“Ela tem uma pré-escola e dava bolsa para algumas crianças carentes do Lar Moisés, onde Ruan estava abrigado. Ele estudava lá na escola da minha esposa desde pequenininho”, explica Walter, relembrando desta época. O casal foi padrinho do garoto durante o tempo em que ele estudava na escolinha, então sempre inseriram Ruan nas rotinas de fim de semana.

“Chegou um momento que, como ele (Ruan) tinha mais dois irmãos que moravam com ele no mesmo lar, estava ficando muito difícil a adoção, [...] as crianças que vão ficando mais velhas e a probabilidade de serem adotadas é menor. E acontece que o juiz, em conversa com o pessoal do lar, deu uma possibilidade de uma adoção conjunta, se as três crianças fossem adotadas pelos três padrinhos e mantivessem contato, conseguiria liberar essa adoção, e foi o que acabou acontecendo”, continua Walter.

O casal adotou Ruan aos 7 anos, que já é um jovem de 18, e para eles, a adoção não foi uma decisão do tipo: “Nós vamos adotar, corre atrás do processo”, mas que tudo foi acontecendo naturalmente.

“A gente sempre acha que a criança vem pra sua casa e que ela tem aquele histórico de não ter carinho e, enfim, o estereótipo da criança que vive no lar. A gente pelo menos tinha uma ilusão de ‘ah não, ele fica aqui em casa alguns meses e a gente dando carinho e dando educação isso já se resolve’. E, na verdade, não é assim. A educação tardia, a educação de uma criança não é um processo de 3; 4 meses; 1 ano, é a vida, e até hoje a gente tem as coisas para educar, para mostrar para o Ruan. Então, no princípio você se sente um pouco frustrado por não conseguir fazer isso, mas com o passar dos dias você vai entendendo, aprendendo, e é um processo como de qualquer outro filho.”, conta Walter.

“Nós temos três filhos, cada um tem uma personalidade, cada um necessita de uma habilidade diferente do pai ou da mãe, para se criar, para ter um bom dia a dia. Talvez as pessoas adotam crianças mais novas para

“A gente sempre acha que a criança vem pra sua casa com aquele histórico de não ter carinho.”

Walter Buckeridge

minimizar esse impacto, não sei falar se consegue minimizar, porque eu tenho o exemplo do Ruan, que a gente foi, entre tapas e beijos, criando ele. Então, não sei falar se por adotar um nenê, se isso muda ou não muda. Enfim, eu só sei que eu sou um pai diferente para Ruan, um pai diferente para a Lívia e um pai diferente para o Théo, no sentido de que a gente se adapta aos filhos como a gente se adapta às pessoas”, conclui sobre os desafios de ser pai.

Arquivo pessoal da Família Buckeridge

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