A Sirene Ed. 36 (Março/2019)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 4 - Edição nº 36 - Março de 2019 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Março de 2019 Mariana - MG

Repasses AUXÍLIO FINANCEIRO EMERGENCIAL

ESCOLA DE CAMPINAS

A desembargadora Daniele Maranhão derrubou uma decisão liminar da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, emitida em dezembro de 2018, que permitia que a Fundação Renova descontasse, nas indenizações por lucro cessante a serem pagas pelo Programa de Indenização Mediada, os valores desembolsados para o Auxílio Financeiro Emergencial. A justificativa do juiz que concedeu a liminar à Samarco era de que o auxílio emergencial tem a mesma natureza da reparação por lucro cessante, que é a perda ou interrupção de renda dos(as) atingidos(as) e, por isso, já possui caráter indenizatório. Porém, o entendimento dos(as) atingidos(as) e das defensorias públicas de Minas Gerais, do Espírito Santo e da União é de que os programas são distintos. Enquanto o auxílio emergencial impede as famílias de serem privadas de seu sustento, a indenização se refere ao ressarcimento de danos morais e patrimoniais sofridos por causa do rompimento da Barragem de Fundão. A desembargadora alegou que a decisão feria os termos do TTAC e que poderia fragilizar a confiança das partes para a construção de soluções consensuais e trazer insegurança jurídica aos(às) atingidos(as). Por meio de nota, a Fundação Renova informou que vai acatar a decisão da desembargadora e se comprometeu a retomar o pagamento da indenização por lucro cessante sem descontos.

No início deste ano letivo, a comunidade de Campinas, pertencente à zona rural de Mariana, foi surpreendida pela transferência dos alunos do Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano) da escola local para outra instituição de ensino público, localizada em Águas Claras, distrito vizinho da comunidade. A justificativa da Secretaria de Educação é de que não seria possível garantir qualidade pedagógica para turmas com pouco número de alunos, já que, em alguns casos, haveria apenas dois estudantes por série/ano. Dos 30 alunos que a escola atendia regularmente, restam 19 após a decisão. Eles são estudantes do Fundamental I, que não sofreu alterações. Insatisfeita, a comunidade tentou reverter a medida e questionou a ação arbitrária da prefeitura, visto que os pais renovaram a matrícula na escola da comunidade sem serem informados de que as crianças seriam transferidas. Além disso, os moradores temem que a instituição de ensino seja fechada futuramente e que a comunidade, já atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão, fique ainda mais fragilizada. Com o apoio da assessoria técnica Cáritas, os(as) atingidos(as) se reuniram com a Secretaria de Educação para chegar a alguma solução viável. Membros do grupo de pesquisa GiraCampo, da UFOP, sugeriram que fosse estudada a possibilidade de implementar, já neste ano, o modelo de “educação do campo” na escola da comu-

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene

nidade, de modo que a metodologia pedagógica se adequasse ao número de alunos e evitasse a transferência. A comunidade debateu a proposta, mas não se chegou a um consenso com a prefeitura, que considera mais viável que o modelo apresentado seja estudado ao longo deste ano e implementado em 2020. Obrigado(a), dona Geralda! A Barragem de Fundão, de propriedade da Samarco e das controladoras Vale e BHP Billiton, segue vitimando os atingidos e as atingidas da Bacia do Rio Doce. Desta vez, dona Maria Geralda Bento, 80 anos, matriarca da família Silva e atingida de Barra Longa, recebeu das empresas o golpe fatal. Dona Maria Geralda não resistiu a tantas dores e partiu ao encontro do seu filho, Reginaldo Arlindo, 43 anos, que faleceu há três meses. Reginaldo também era atingido pelo rompimento da Barragem de Fundão e não resistiu ao golpe de mudar drasticamente sua vida nem à distância de sua mãe, que a Samarco lhe impôs. Guerreira, dona Geralda venceu, ao longo de sua guerra, muitas batalhas contra a Samarco: a primeira em 1976, com a implantação do primeiro mineroduto para escoar minério para o Porto de Tubarão, no Espírito Santo. Posteriormente, mais duas: em 2006 e em 2011, minerodutos da mesma empresa cortaram suas terras juntamente com seu coração. E, há 39 meses, a mesma Samarco cobriu de rejeito suas terras, destruindo sua casa e sua vida, que já sangrava pelo corte causado pela implantação dos minerodutos. Dona Geralda parte desta vida, mas deixa, como legado, para os atingidos e as atingidas da Bacia do Rio Doce, um caminho que todos devemos seguir. Obrigado, dona Maria Geralda! Receba o nosso respeito, em nome da família do Jornal A SIRENE. Que Deus a receba de braços abertos. À toda família e aos amigos, a nossa manifestação de pêsames. Águas para vida, não para morte. Sérgio Papagaio e Simone Silva

EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Pe. Geraldo Martins | Editor Multimídia: Rafael Pereira Francisco | Editora de Texto: Francielle de Souza | Editora Audiovisual: Larissa Pinto | Editora Visual: Daniela Ebner | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Matheus Effgen, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Tainara Torres | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Projeto Diálogos Comunitários | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Tainara Torres | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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O que a mídia não diz sobre Brumadinho…

Na edição número 18 do Jornal A SIRENE, publicada em 2017, reescrevemos manchetes de grandes veículos de comunicação sobre o crime da Samarco/Vale/BHP porque percebemos que a imprensa não noticiava os fatos de acordo com a nossa realidade e, por consequência, não nos identificávamos com as reportagens produzidas por ela. Agora, com o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, a história se repete: muitas manchetes amenizam a real situação enfrentada após o rompimento. Por isso, decidimos reescrever novamente alguns títulos publicados a respeito de mais um crime, a partir da nossa percepção e do nosso histórico de luta. Por Gilmar Silva Com o apoio de Francielle de Souza

fala em dinheiro quando querem respostas sobre o crime Depois de deputados terem barrado leis que pudessem evitar novos crimes,

omite

por negligência da empresa

defende empresa causadora de mais um desastre premeditado

...nós dizemos

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Foto: Matheus Effgen

Papo de Cumadres: aconteceu de novo! Opinião:

Consebida e Clemilda estão apavoradas com as barragens de rejeito que estão estouradas e com tantas que ainda podem estourar. Por Sérgio Papagaio

-Cumadre Clemilda faz pocu mais de trêis ano e otra barage já foi istoranu. -E desta vez com mais danu, pois o mais preciosu é a vida du ser humanu, -Cumadre, oia u que eu tô ti contanu, esta barrage da vale que foi istoranu, levô du povu de lá sonhu e isperança iguar du povu de cá, é tanta semelhança du crime da samarcu com u crime da vale, que até u disrespeitu tem u mesmu valor, e lá também a sirene num tocô. -Num intendi u valô. -Preste atenção pru que eu vô te falá, pagaru por uma vida lá u mesnu que pagaru cá. -Ah tá, treis ano tepois e vida pra vale, u mesmu tantu 100.000 reá é u que vale. -Cumadre eu me pus a pensá pras pessoa que perdeu parenti nem todu dinheiru da vale, vale a vida daquele Vale. -Na hora que cheguei lá e vi tanta tristeza junta, naquele Vale, onde a morte foi levada pela vale, eu comecei a lembrá das morte du nossu Vale, com tanta agunia, sem nada podê fazê praquele Vale naquela dia, eu oiei pra traz e a cumade chegô e me abraçô, foi ai que eu discubri u que a vida vale, neste momentu desejei que seus braçu fosse grande u bastanti e pudesse abraçá todu Vale, pra que todus sintice nu coração u que realmenti Vale. *A pedido do autor, este texto não passou por revisão ou edição.


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Mais uma vez, a espera

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A demora no processo de reassentamento familiar, modalidade em que as famílias indicam uma casa a ser comprada pela Fundação Renova/empresas, tem causado angústia nos(as) atingidos(as). Dos 68 núcleos familiares que esperam o reassentamento, a maioria aguarda há meses o “caderno”, documento que reúne as informações sobre as vistorias feitas pela Fundação no imóvel e que permite a compra do local escolhido. Mesmo entre aqueles(as) que já receberam os papéis, a espera persiste: até o fechamento desta edição, nenhum contrato de compra e venda havia sido assinado e concluído. Foto: Arquivo Pessoal Jadir Arantes

Por Ângela Aparecida Linode Santana, Jadir José Arantes (Nonô) e José Carlos Izabel Com o apoio de Francielle de Souza

Jadir Arantes recebeu o caderno em outubro de 2018, mas ainda não sabe quando a compra da casa será efetivada.

As mineradoras Samarco, Vale e BHP cometeram um grande crime. Mandaram muito rejeito e lama no nosso sítio [Água Boa] e acabaram com as opções de ganhar dinheiro, as farturas de produtos naturais e o lazer da família. São muitas destruições em uma área de 90 mil metros quadrados cheia de rejeito. A minha família tomou a decisão de fazer a compra de uma casa em Mariana, isto é, a reposição da casa destruída, com medida aproximada de 200 metros quadrados. Hoje, a Renova, que é a representante das empresas, está cometendo um novo crime ao atrasar o que tem de ser feito. Os funcionários da Fundação entregaram o caderno avisando que está tudo certo com o imóvel escolhido. Eles falam que já estão negociando com o proprietário, mas, na verdade, está parado. Essa situação está trazendo desgaste para toda família, ocasionando doenças, inclusive em minha mãe, que está com 95 anos de idade. Estamos com urgência. A terra perdeu o poder futuro. Perto de Antônio Pereira tem represas da Vale, no Germano tem represas da Samarco. As empresas são culpadas por nossas terras estarem em área de risco. Peço a vocês, da Samarco, Vale e BHP, para falarem com os representantes da Renova e resolverem esse problema. Jadir José Arantes (Nonô), morador de Ponte do Gama Ângela Santana já havia escolhido o imóvel e recebido o “caderno”, porém, por causa da demora do processo, o proprietário do imóvel resolveu vendê-lo. Por conta disso, a família precisará recomeçar tudo, desde a escolha de uma nova casa até a realização das vistorias. Agora, o medo é de que os proprietários de outros imóveis também resolvam vender as casas escolhidas pelos(as) atingidos(as). Não bastasse isso, a Renova demonstra pouca sensibilidade em lidar com as consequências do atraso que ela mesma causou.

Estava sentada na porta de casa, em um dia à tarde, com a Camila, minha filha, e o dono da casa passou, cumprimentou e falou assim: “Ô, Cida. Eu tive que vender a casa, porque a Renova fica te enrolando. Eu precisava vender, achei um comprador e vendi”. Eu fiquei muito triste, muito angustiada. No outro dia, liguei para a Renova e, depois de uns três dias, eles me disseram que o dono tinha vendido mesmo. Eu disse que queria ter ficado sabendo pela Fundação, porque eles vieram na minha casa várias vezes. Eu tive que contar a minha vida todinha, a gente fala até o que não queria falar. É muito humilhante ter de falar da vida todinha e, depois, saber uma coisa dessas pelo dono do imóvel. Depois desse dia, eu fiquei muito pior. A Camila tinha gostado muito da casa por causa do espaço. Ela também ficou chateada. A Fundação Renova faz a gente de gato e sapato. Ela comete o crime e, todo dia, continua renovando esse crime. Ângela Aparecida Lino de Santana, moradora de Ponte do Gama Tem quase um ano que entrei nesse processo, mas ainda não recebi o caderno. E eu também tenho medo da casa que eu escolhi ser vendida. A dona do imóvel já está preocupada, porque ela também está esperando há bastante tempo. A Fundação Renova fala que o processo está em andamento. Só isso. Isso gera uma angústia grande na gente. Fica muito difícil esperar. A gente sente que estão nos enrolando. Há uns dias, eles ligaram para a proprietária e falaram que o contrato estava sendo elaborado de novo, a pedido do Ministério Público, e que, por isso, precisava aguardar. Depois, disseram que tinham aprovado os papéis e já tinham retomado, mas ainda não tem nenhuma garantia de compra. Está todo mundo com esperança de comprar a casa, mas nada resolve. Eu espero que vejam isso logo para acabar com essa angústia dos atingidos. José Carlos de Almeida Izabel, morador de Paracatu de Cima Esclarecimento O Projeto Diálogos Comunitários, apoio técnico do Ministério Público do Estado de Minas Gerais em Mariana/MG, esclarece que em dezembro de 2018 foi requisitado à Fundação Renova que suspendesse a aplicação do contrato de promessa de compra e venda de imóveis, aplicado no âmbito do reassentamento familiar, tendo em vista que o documento estava em desacordo com as garantias conquistadas em favor dos(as) atingidos(as) na Ação Civil Pública n. 0400.15.004335-6. Em 05/02/2019, após reuniões com a presença da Fundação Renova e da Cáritas, o contrato foi reformulado e validado pelo MPMG. Cumpre ressaltar que a intervenção do Ministério Público, em prol dos(as) atingidos (as) de Mariana, não prejudicou o cronograma do reassentamento familiar, uma vez que em janeiro deste ano apenas quatro das 68 famílias aguardavam para assinar a promessa de compra e venda dos imóveis escolhidos, enquanto a maioria dos núcleos ainda espera a conclusão das vistorias e entrega dos cadernos imobiliários, conforme dados fornecidos pela própria Fundação Renova no 14º GT Interdisciplinar/Moradia, realizado em 15/01.


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Em defesa das nossas águas Os rios, as cachoeiras, os lagos e os poços de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo eram usados de muitas maneiras por seus(suas) moradores(as). A água que banhava essas comunidades era determinante para o cultivo das plantas, para o cuidado dos animais e para o bem-estar de homens, mulheres, crianças e dos adolescentes. Embora o significado do elemento água seja específico para cada atingido(a) pelo rompimento da Barragem de Fundão, percebe-se o que muitos carregam em comum: o sentimento da perda. Os rios, as cachoeiras, os lagos e os poços naturais morreram no dia 5 de novembro de 2015, efeito da negligência daqueles que colocam o lucro acima da vida humana e da natureza. As consequências do crime, como a morte dos rios Gualaxo e Doce e de lagos que banhavam as comunidades atingidas, são, porém, contínuas. A preservação dos bens naturais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo era essencial para manter e construir novas relações afetivas, especialmente entre os(as) adolescentes. Danos como esses, além de serem irreparáveis, se materializam no cotidiano de cada atingido(a), alterando os modos de vida e o convívio dos(as) moradores(as), agora marcados pela distância. Bento e Paracatu vão ser, em algum momento, reassentados. As duas comunidades serão as mesmas, todavia, apenas nas palavras. Por Evellyn Gonçalves da Silva, Laisa Gonçalves Marcelino, Lucielly Aparecida l. Marcelino, Lígia C. Silva, Lídice da Silva, Lívia Vitória Silveira Silva, Paloma Stefany da Silva, Rosária Duarte e Silvano Pascoal Com o apoio de Rafael Francisco

A gente ia muito em cachoeiras. Era muito comum fazer isso e era uma diversão muito grande. Chegar no rio e ver aquele tanto de gente... dava vontade de se divertir também. Tem gente que já voltou lá depois do crime, mas eu não tenho coragem de ir, porque não sei o que pode ter na água. Tá cheio de minério lá. Agora, não saio muito. Aqui, em Mariana, prefiro ficar dentro de casa. Lá na roça tinha como sair sempre e conviver com todo mundo. Minha vida mudou muito e aqui não converso com quase ninguém. Fico mais no celular. Aquilo tudo [as cachoeiras, os rios, os poços] era um bem pra todo mundo, pra todos se divertirem. E isso o crime afetou muito. O que mais me abalou

foi a perda do rio e da convivência.

Evellyn Gonçalves da Silva, 12 anos, moradora de Paracatu de Baixo

Sempre depois que terminava a escola, juntava eu e as meninas de Bento e jogava bola na rua até tarde. Isso era muito comum. De vez em quando, a gente ia pras cachoeiras. Enquanto meu pai lavava moto, eu nadava. Quando voltei lá, tudo estava irreconhecível, não dá pra nadar mais. Antes, meu lazer era a liberdade. Eu sempre passava na casa da minha avó. Com essa tragédia, eu não visito tanto minha avó. Mudou totalmente minha vida. E eu sou muito apegada a ela. Os responsáveis podiam construir Bento o mais rápido possível. Tem muita gente querendo ir, principalmente, os idosos. Se a empresa não fizer rápido, bem e do jeito que a gente quer, os idosos não vão ter o prazer de viver de novo a nossa comunidade. Lígia C. Silva, 14 anos, moradora de Bento Rodrigues

Lá, em Paracatu de Baixo, tinha uma cachoeira. A gente usava pra tomar banho, pra brincar. Tinha rios, córregos. Nos dias de semana, a cachoeira que a gente ia ficava muito movimentada, a comunidade toda praticamente ia pra lá. Tomávamos banho no rio. Agora, ele tá muito sujo. A lama destruiu a cachoeira toda. Eu sinto falta de conversar com meus amigos. Antes, a gente se via todos os dias. Agora, a gente só se vê na escola ou quando um vai na casa do outro. Mas todo mundo mora longe e não tem como fazer isso sempre. E lá a gente morava do lado um do outro. Hoje, no meu dia a dia, eu fico dentro de casa, na cama e mexendo no telefone. A gente fica presa, de casa pra escola e da escola pra casa. Eu gostaria que eles [das empresas] tomassem mais cuidado. Agora, estourou aquela barragem lá em Brumadinho e matou um monte de gente. Vai prejudicar os rios, os peixes e a natureza. Laisa Gonçalves Marcelino, 14 anos, moradora de Paracatu de Baixo A gente sempre juntava uma turma e ia pra algum rio. A gente nadava, fazia piquenique e, às vezes, ia pra cachoeira. A gente fazia isso bastante depois que a aula acabava. Eu nem consigo descrever a cachoeira. Ela era “a cachoeira”. Agora, ela tá muito diferente do que estava antes. Ela tá muito rasa, as pedras já não estão lá e a água está muito poluída. Lucielly Aparecida l. Marcelino, 14 anos, moradora de Paracatu de Baixo

Algumas bicas naturais ainda sobrevivem em meio a destruição causada pelo rompimento da Barragem de Fundão.


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Eu ia muito na Água Santa, tipo um lago lá em Bento Rodrigues. Íamos sempre depois da aula. O crime tirou minha casa e a minha vida que era boa lá. Hoje não tenho nem o respeito das pessoas. De tudo que eu fazia antes, hoje não faço nada. Só fico em casa agora. Não tem ninguém morando perto de mim. O que eu gostaria é que eles devolvessem minha vida de volta. Lídice da Silva, 13 anos, moradora de Bento Rodrigues

Todo domingo a gente ia pra cachoeira. Eu ia com

minha prima ou com minha família. A gente gostava de ir em uma chamada Ouro Fino. Agora, só tem lama. A gente ia também na de Água Santa, que parecia um poço. E esse lugar foi um dos primeiros a serem atingidos. Hoje, o lugar que tem pra gente ir é em clube aqui em Mariana. Mas a gente faz isso só de vez em quando. Eu sinto muita falta de cachoeira, ainda mais com esse calor. Eu queria minha casa de volta. O que aconteceu foi um crime e eles têm que pagar pelo que fizeram. Lívia Vitória Silveira Silva, 13 anos, moradora de Bento Rodrigues A gente nadava muito em um lago, chamado Água Santa, que tinha em Bento Rodrigues, todo sábado. Hoje não faço isso. Esse lago foi um dos primeiros lugares atingidos. Não tem mais nada lá. E hoje não tem nada pra fazer aqui. Fico no celular, coisa que eu não fazia em Bento. Eu acho que as empresas já sabem a responsabilidade que elas têm. Elas precisam agora cumprir o que prometeram, porque a vida que eu tinha antes eu nunca

mais vou ter.

Paloma Stefany da Silva, moradora de Bento Rodrigues

Lá em Paracatu, eu morava às margens do Rio Gualaxo. Era ele que umidificava o ar e prevenia doenças respiratórias, por exemplo. Isso, para mim, era o mais importante. Além disso, eu utilizava a água do rio para dar de beber às criações. Não era necessário nem irrigar minhas plantações. Por estar próximo da margem, o terreno era suficientemente úmido. Eu consegui plantar duas safras de milho sem ter que irrigá-las. Pra nós, atingidos(as), a perda do rio não tem como ser paga, por maior que seja a indenização. O que foi perdido não se recupera mais. A água é vida pra todos e, junto de outros elementos da natureza, é o que dá vida pra gente. As comunidades atingidas, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, não vão ficar mais às margens do rio. E ainda que ficassem, o ar e a água não são os mesmos. O Rio Gualaxo está contaminado pelo rejeito, que é morte, desastre. Não é lama, é rejeito! Eu volto pouco em Paracatu, porque é muito triste como está hoje. Não tem nada, só deserto. Paracatu é um sonho desfeito, Fotos: Pedro Viera e Rafael Francisco

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uma realidade morta. Algumas pessoas acham que só perderam a casa, mas a dimensão da perda é muito maior. A perda do rio não se repara. Colocar você numa casa nova não é te devolver a vida. Se fosse assim, as pessoas estariam bem aqui em Mariana. Não estão por quê? Porque não foram restituídos os modos de vida das pessoas. E os modos de vida que tínhamos em Paracatu jamais vão ser iguais daqui em diante. Rosária Duarte,moradora de Paracatu de Baixo NOTA A Comissão de Atingidos(as) pela Barragem de Fundão (CABF), de Mariana, assina, nesta edição, nota de repúdio contra a negligência das indústrias de mineração e do agronegócio em relação à água e à natureza. O texto, em defesa da água, alerta para o uso excessivo de um bem que é universal e direito de todos(as). Quando morre um rio, se acaba junto com ele um mundo de formas de vida: morre peixe, planta, bicho, morre o bicho gente. Nós, humanos, costumamos nos achar diferentes dos demais seres, mas somos parte da natureza. Sem água não existimos nesse mundo! Esta nota é um apelo em defesa das águas, um apelo em defesa da vida! No dia 22 deste mês, celebramos o Dia da Água. Precisamos nos lembrar que o Brasil é a nação mais rica em água doce no mundo e que Minas Gerais está entre os 15 Estados mais ricos em água do país. Isso significa que temos uma responsabilidade imensa no cuidado com o bem mais precioso do planeta. Temos, sim, que economizar água em nossos lares, mas devemos, principalmente, cobrar a responsabilidade das empresas e das grandes corporações, que, juntas, consomem 90% de toda a água da Terra. Das 7,5 bilhões de pessoas que existem no mundo, pelo menos, um bilhão não têm acesso ao abastecimento de água suficiente. É como se todas as pessoas da China, país mais populoso do mundo, estivessem fadadas a morrer de sede. Enquanto isso, as monoculturas* do agronegócio consomem 70% de toda a água doce usada pelos seres humanos. A indústria consome 20% do total de água doce do mundo. O que resta, 10%, é de uso doméstico e pessoal da humanidade. O grande problema é: o agronegócio e a indústria raramente fazem o tratamento e/ou a reutilização adequada da água que escoa. São eles, os poderosos, quem mais poluem nossas águas! A mineração usa a água tanto na produção quanto no transporte do minério, por meio de mineroduto. Em Minas Gerais, rios inteiros foram mortos pela irresponsabilidade criminosa de empresas da mineração, uma delas reincidente. A Vale foi coautora do crime que matou o Rio Gualaxo do Norte e o Rio Doce, e é autora do crime que matou o Rio Paraopeba. O risco agora é que o rejeito tóxico chegue ao Rio São Francisco. Assim como o Rio Doce, “o Rio São Francisco vai bater no mei do mar”. *Monocultura é a produção ou cultura agrícola de apenas um único tipo de produto (é o exemplo da soja, associada a latifúndios). A substituição da cobertura vegetal original, geralmente com várias espécies de plantas, por uma única cultura, é uma prática danosa ao solo. Referências: ONU. Em Dia Mundial da Água, ONU defende soluções para problemas hídricos baseadas na natureza. 26 fev. 2018. Disponível em: https://goo. gl/GuLBLZ. (Acesso em: 12 fev. 2019.)

Locais onde corriam os rios, em Bento Rodrigues, estão alagados pelo Dique S4.

DANTAS, Zé; GONZAGA, Luiz. Riacho do Navio. In: GONZAGÃO. O melhor de Luiz Gonzaga. Gravadora: Sony BMG Music Entertainment, 1996. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KJXdvf7x6bo. (Acesso em: 12 fev. 2019.)


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“Ser mulher é uma luta” No dia 8 de março comemoramos o Dia Internacional da Mulher, uma data que representa a luta das mulheres em busca de seus direitos. A partir disso, conversamos com aquelas que participam intensamente na luta pela reparação e pelo reconhecimento de direitos: as mulheres atingidas pelo crime das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. Ao ouvir suas histórias, pudemos entender o que as motiva a estar na luta e como elas enfrentam a batalha de ser mulher nesse processo que se estende há mais de três anos.

Por Carolina Rodrigues, Leonina de Oliveira, Maria do Carmo D’Ângelo, Mirella Lino, Terezinha Severino e Vera Lúcia Aleixo Com o apoio de Larissa Pinto e Tainara Torres

Luta Nós não temos a opção de não estar na luta. É isso ou é isso. Eu faço o máximo para que a minha fala seja para todos. Não represento só os meus direitos, mas os meus, do meu irmão menor, do meu pai, que está doente, da minha mãe, que tem que se virar em mil pra dar conta de tudo, de mais atingidos e atingidas que estão na mesma condição que eu. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama

Para nós, é um sonho ver todo mundo bem. A gente não fica mais sem estar sempre em busca de alguma coisa pra melhorar o mundo, para ajudar as pessoas. Maria do Carmo D’Ângelo

A nossa luta é como se fosse uma casa. Se a gente sai, ela para. Se a gente desistir dessa luta, tudo para. Mas, se a gente continua, a gente vai crescendo, vai conseguindo nosso objetivo, ajudando o outro, a família, a comunidade. Vera Lúcia Aleixo, moradora de Gesteira É importante ir nas reuniões. Nós vamos todas juntas: Deja, Terezinha, Martinha e eu. Eu tô com 82 anos e não paro, graças a Deus. Não gosto de ver as pessoas sofrendo. Se eu preciso, o outro também precisa. Leonina de Oliveira, moradora de Rio Doce A gente vai para a luta procurar o direito da gente. Eu não tenho medo não, eu vou. Sou muito curiosa, gosto de ir. Se precisar de falar alguma coisa, a gente fala. É importante participar para ver o que eles vão falar e passar para as pessoas. O povo das empresas tem obrigação de fazer as coisas, porque não foi Deus que acabou com o rio, né?! Terezinha Severino, moradora de Rio Doce Protagonismo A voz da mulher está evoluindo. Acho a mulher muito sábia. Nas reuniões, você vê mais mulheres. Elas estão compondo mesa, tendo a palavra e são poucos os homens. Não desmerecendo, mas, na assessoria, no grupo de Comissão, nas assembleias, a maioria é mulher. E isso é desde sempre. A mulher une mais, tem força, tem mansidão para resolver o problema. E eu tô aí, no meio dessas mulheres, dessa luta, nessa vontade de aprender, de doar. Vera Lúcia Aleixo, moradora de Gesteira O protagonismo das mulheres no processo de reparação está presente não só entre as atingidas, mas também nas equipes de apoio. A Cáritas, Assessoria Técnica dos Atingidos

Eu trabalhei demais, desde cedo. Eu acostumei a trabalhar desde pequena. Vou ficar à toa dentro de casa? Leonina de Oliveira


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de Mariana, conta com uma equipe fixa formada por 30 profissionais e, dentro desse grupo, mais da metade são mulheres. Para a reformulação e a aplicação do Cadastro, foram contratadas 266 pessoas e a maioria era composta por mulheres (196). Hoje, mesmo com uma equipe reduzida, o Cadastro ainda é fortemente integrado por elas: das 123 pessoas, 97 são mulheres. Na AEDAS, assessoria de Barra Longa, há uma equipe fixa de mobilizadores e técnicos que conta com 13 pessoas, sendo 10 dessas vagas ocupadas por elas. Na Assessoria Técnica Rosa Fortini, em Rio Doce, o quadro se repete: dos 34 profissionais que atuam pela entidade na região, 19 são mulheres. A mulher está ocupando esse espaço de Comissão. Estamos sempre unidas. Toda reunião, ninguém falta, porque é lá que nós brigamos e conquistamos nossos direitos. Para mim, esse trabalho de orientar as pessoas sobre direitos é muito importante. Tem muita gente que ainda não foi reconhecida. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima Hoje, eu vejo que as mulheres estão tendo mais visibilidade, porque é um tabu mulher ser pescadora. O “normal” é homem pescar, mas mulher pesca sim. Pesca não tem gênero, porque é um lazer e é uma forma de sustento também. Carolina Rodrigues, moradora de Barra Longa

A Mirella de hoje é diferente da Mirella do dia 5 de novembro de 2015. Hoje, sou mais confiante, entendo muita coisa que não entendia antes e me posiciono. Mirella Lino

Eu vejo que as mulheres são muito participativas, mesmo com todas as outras jornadas que elas têm: família, filhos, marido, algumas trabalham fora. Eu, por exemplo, estudo. A gente se organiza de várias formas para dar conta de tudo. Tem uma frase que diz que o homem pode matar um leão, mas a mulher mata, tempera, cozinha, serve, lava a louça, ainda arruma a casa e vai cuidar do filho depois. Vejo a participação das mulheres e fico muito feliz com isso. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama Eu acho muito bonita e gratificante essa união. Fico orgulhosa de ver as mulheres à frente. Eu falo: “Vamos lá, vamos caminhar juntas”. Não podemos permitir que as pessoas diminuam a gente e que a gente se sinta diminuída. Seja homem ou mulher, isso não pode acontecer. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima Motivação Eu já nem sei mais o que me dá força, sei que ela tá aqui. Acho que é a sede por justiça. É toda a injustiça que acontece há três anos aqui, em Mariana, e que provavelmente vai acontecer em Brumadinho agora. Não sei expressar o que me dá força, mas sei que ela tá aqui. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama O que me faz estar na luta, muitas vezes, é o “não” que a gente recebe. Nós temos mais força para conseguir um “sim” sendo um grupo maior. O objetivo da minha luta é este: enxergar a necessidade do outro. Eu luto pela comunidade, por Barra Longa, porque Gesteira sem Barra Longa não é Gesteira e vice e versa. Vera Lúcia Aleixo, moradora de Gesteira


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A minha motivação é que sou ativista, eu luto por direitos. Não tem forma melhor de lutar do que em grupo. Lutando sozinha fica mais difícil alcançar o seu objetivo. Agora, nós somos um grupo grande de pescadores e garimpeiros e, mesmo assim, a Renova enrola. Carolina Rodrigues, moradora de Barra Longa A vontade de vencer, de ver as pessoas bem, de evitar o sofrimento é o que me motiva porque chega. É muito tempo de sofrimento. Não gosto de injustiça, não gosto de ver as pessoas sendo passadas para trás e, se estiver ao meu alcance, não deixo a pessoa ser prejudicada por outra. Quando vejo alguém enrolando uma pessoa humilde, dou o grito mesmo. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima Jornadas Estar na luta é uma situação muito difícil. Ela atropela as minhas atividades como filha. Hoje, tenho um pai que está com depressão, uma mãe que está na linha de frente e que precisa de apoio. Tenho minha vida como estudante, que também está sendo atropelada por esse processo. Tenho amigos, mas não sobra muito tempo pra me dedicar a eles. É bem difícil ser uma mulher - no meu caso, uma jovem mulher, uma mulher recente - e estar no meio desse processo todo, aprendendo muito, às vezes quebrando a cara, mas sempre forte. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama A gente tem que dar atenção pra família e ainda tirar tempo pra lutar. De manhã, eu levanto, faço tudo correndo dentro de casa. Faço o almoço, arrumo casa, lavo roupa. Quando fomos reelaborar o Cadastro, fiquei seis meses cuidando dos meus afazeres à noite pra, de manhã, vir pra Mariana. Era muito sofrido. Quando discutimos o uso do tempo, a Renova falou que era facultativo participar, que fizemos aquilo porque queríamos. A revolta foi tanta. Se eles tivessem feito um Cadastro decente, não precisava fazer de novo. Aí eu falei: “Tá, e quanto que vocês ganharam pra vir aqui tirar direito de nós?”. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima Quando preciso sair, meu marido tá presente pra ficar com a minha neta, Ana Júlia, porque somos eu e ele aqui em casa. Tenho que fazer o meu movimento. Preciso conciliar tudo. Vou pras reuniões feliz porque, quando a gente vê o povo mobilizado, a gente fica feliz porque o povo tá entendendo. Vera Lúcia Aleixo, moradora de Gesteira Preconceito No primeiro momento, as pessoas das empresas não acreditam muito que eu possa ser alguma coisa, porque sou pequena, tenho cara de nova. Algumas pessoas não me dão muito crédito... até eu abrir a boca. Eles só me notaram quando comecei a falar, a brigar, a me colocar. Agora, vejo que não posso desistir porque ou é isso ou é nada. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama

Março de 2019 Mariana - MG

Eles têm descaso tanto com garimpeiros quanto com pescadores, ainda mais se tratando de uma mulher. Eles não reconhecem as pescadoras, mesmo quando temos provas de que pescávamos. Fui dada como dependente do meu pai sendo que eu também pescava e fui atingida. Se um menino pescasse com o pai desde novo, ele teria mais chances de ser reconhecido do que eu, porque é um ambiente machista. Estou buscando reconhecimento, porque sou uma pessoa completamente diferente do meu pai e não vou mais aceitar ser dada como dependente dele. Carolina Rodrigues, moradora de Barra Longa Nós quebramos o preconceito que existe na sociedade machista, de não dar crédito ao que as mulheres falam, de colocar as mulheres lá embaixo. É um processo de empoderamento mesmo. A luta, por si só, é um processo de empoderamento. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama Recado para as atingidas Eu gosto muito da história do dia 8 de março. Muita gente pensa que é romantização - “Olha, nós criamos um dia para homenagear a existência das mulheres” -, mas não. O dia 8 de março é pra lembrar o sacrifício que toda mulher tem que fazer para existir e pra chegar em algum lugar. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama Eu posso dizer que, como mulher, sei que não é fácil. Mas se acontecer de, às vezes, elas pensarem em desistir, que elas se lembrem de como era antes e quanta coisa boa, juntas, conseguiram trazer para o próximo, porque estamos sempre buscando ver as pessoas felizes. Quando acontece um tropeço no caminho, a gente tem que passar por ele e seguir em frente. Não é fácil, mas a gente consegue. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima Espero que todas nós consigamos conquistar nossos objetivos e que isso mostre que lugar de mulher é onde ela quiser. As mulheres indo pra luta estão mostrando que não aceitamos mais ser submissas. A questão dessa luta é conseguirmos nosso reconhecimento. Carolina Rodrigues, moradora de Barra Longa Na sociedade machista em que vivemos, na qual a mulher é vista como um ser menor, vejo muitas mulheres provando que nós somos iguais. Então, parabéns a todas as mulheres que lutam. Só o fato de ser mulher é uma luta, uma luta constante para existir. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama O que tenho a dizer é que admiro a mulher que luta. Nunca percam essa força, porque é lutando que vamos vencer e conquistar nossos objetivos. Para todas as mulheres atingidas: permaneçam fortes e firmes. Vera Lúcia Aleixo, moradora de Gesteira


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Março de 2019 Mariana - MG

Eu acompanhava meu pai na pesca desde os seis anos, eu cresci no rio. Era o nosso lazer. Carolina Rodrigues

Fotos: Larissa Pinto e Tainara Torres

Quando eu quero uma coisa, eu insisto até conseguir. Busco solução, resposta. Para quem quer lutar, nada é difícil. Vera Lúcia Aleixo

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Março de 2019 Mariana - MG

Luta por reconhecimento

Mais de três anos após o crime da Samarco/Vale/BHP, garimpeiros(as) e pescadores(as) que trabalhavam nos rios Carmo e Gualaxo ainda sofrem com a demora no processo de reparação dos danos. Como estão impedidas de trabalhar por causa da contaminação dos rios e em função da falta de respostas da Fundação Renova/empresas, muitas dessas pessoas têm enfrentado dificuldades financeiras. Para os(as) atingidos(as) que fizeram a solicitação de cadastro no Programa de Indenização Mediada (PIM), a fundação ainda aguarda um estudo que identificará garimpeiros(as) e/ou pescadores(as) que pertencem às comunidades tradicionais atingidas diretamente e que exerciam essas atividades de acordo com seus costumes. Esse trabalho está sendo realizado pelo grupo de extensão e pesquisa Programa de mapeamento de povos e comunidades tradicionais: visibilização e inclusão sociopolítica, ligado à UFMG. O resultado, que só será divulgado em novembro de 2019, ajudará a reafirmar o direito à indenização. Até o momento, somente as pessoas que negociaram diretamente com a empresa receberam os valores. No entanto, nenhum(a) garimpeiro(a) foi contemplado(a), já que o critério inicial para o pagamento da indenização só considerava aqueles(as) que tiveram perdas materiais. Além disso, a estratégia de negociar individualmente, feita anteriormente pela Renova, não garante todos os direitos reivindicados pelos(as) trabalhadores(as). Os(as) atingidos(as), agora, se organizam em uma ação coletiva para que garimpeiros(as) e pescadores(as) sejam, enfim, devidamente reparados. Por Elaine Neto, Herminio Amaro do Nascimento, Eva Raimundo (Vivinha), Gilson Felipe de Resende e Orlando de Lima (Dico) Com o apoio de Daniela Ebner, Matheus Effgen e Sérgio Papagaio Fotos Sérgio Papagaio e Tainara Torres

Estou arriscando minha vida no rio Gualaxo, pois não tem emprego em Barra Longa. A única forma de afastar a fome é trabalhar no rio. O que fazer? A gente precisa trabalhar. Pior do que a contaminação é a fome e as contas que vão chegando. Se eu não trabalhar no rio, posso ficar sem água, sem luz, sem comida. Eu tento não pensar na contaminação e vou tocando a vida. Pior do que estar contaminado é estar com as contas vencendo e os cobradores batendo na porta da casa, porque a desonra é muito mais triste do que a contaminação, e tenho um filho estudando fora que depende de mim. Gilson Felipe de Resende, garimpeiro de Barra Longa Quando a gente está em outro serviço e o salário não é bom, a gente trabalha durante final de semana e feriado garimpando pra poder ajudar na renda familiar. Agora, com a perda do garimpo, tá ficando muito difícil. Depois do rompimento da barragem, a arrecadação do município ficou ruim. A maioria dos remédios que a gente precisa não acha nos postos de saúde. A gente tem que comprar coisas que, antes, não precisava comprar. Fica muito difícil porque, como não tem mais o dinheiro do garimpo, a gente passa muita necessidade. Elaine Neto, garimpeira de Mariana

Apesar dos riscos, o garimpo ainda é a fonte de renda para algumas famílias.

Sem trabalhar, Herminio se preocupa com as dificuldades financeiras.

Eu trabalhava na roça, era muito pobre. A gente plantava só pra comer. O garimpo trouxe esperança de uma vida melhor. Não fiquei rico, mas consegui algumas coisas que não conseguiria plantando roça. Depois do rompimento, as áreas boas, como o Engenho Podre, em que nós montamos uma cooperativa de garimpeiros e tirávamos muito ouro, estão impossibilitadas de trabalhar por causa da lama, que cobriu as várzeas, e pela contaminação do rio. Eu tenho medo de passar fome. Herminio Amaro do Nascimento, garimpeiro de Acaiaca


Março de 2019 Mariana - MG

Depois da lama, ninguém tem sossego mais. Eu sou pescadora desde os sete anos e, desde 2015, não tem como pescar mais. Na última entrevista que eu tive com a Renova, em janeiro de 2018, eles falaram que iriam me ligar ou vir até minha casa para fazer a negociação e, até hoje, nada. Eva Raimundo (Vivinha), pescadora de Barra Longa

Durante os dois dias em que o grupo protestou, a Renova manteve as atividades paralisadas.

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Eu sou pescador e, há três anos, eu não pesco mais, porque não tem jeito. Era o lazer que eu tinha, todo dia saía cedo. Hoje, eu fico dentro de casa e me dá tristeza ver essas coisas [o material de pesca] aqui paradas. Eu não vendia o peixe, mas a pesca ajudava muito nas despesas da casa. Além do prazer de pescar, a gente também tinha o prazer de comer. Agora não comemos mais peixe. Eu recebi a indenização, mas, da pesca, eu não conheço mais ninguém de Barra Longa que recebeu. Eu peguei o dinheiro, mas prefiro ficar sem ele e pescar. Orlando de Lima (Dico), pescador de Barra Longa

União como alternativa Um grupo formado por garimpeiros(as) e pescadores(as) de Mariana, Acaiaca e Barra Longa se reuniu em frente ao escritório da Fundação Renova/empresas, em Barra Longa, para cobrar agilidade no processo de reconhecimento dos(as) atingidos(as) e do pagamento das indenizações. A manifestação, que aconteceu entre os dias 5 e 7 de fevereiro de 2019, foi motivada pela demora e pela falta de informações por parte da empresa. A Fundação manteve seu escritório fechado durante o período e voltou a informar que continua realizando o estudo para a identificação dos(as) atingidos(as) que poderão receber a reparação financeira. Diante da falta de respostas, o grupo se organiza para encontrar maneiras de contornar a situação e dar apoio às famílias que estão enfrentando dificuldades financeiras. Nos últimos meses, por exemplo, os(as) próprios(as) atingidos(as) se mobilizaram para entregar cestas básicas para essas famílias enquanto esperam soluções por parte da Fundação Renova.


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Março de 2019 Mariana - MG

A vida ficou mais cara Os(As) moradores(as) de Rio Doce observaram os preços do comércio local subirem após o crime da Samarco/Vale/ BHP, em 2015. A população acredita que esse aumento esteja ligado à chegada das empresas contratadas pela Fundação Renova, que trabalham nas obras de limpeza do rio Doce. Por um lado, os funcionários das terceirizadas movimentam a economia da cidade e trazem mais lucros aos comerciantes da região. Por outro, o aumento no número de habitantes faz com que o aluguel de casas e a venda de alimentos fiquem mais caros. Diante dessa mudança e impedidos(as) de pescar pela contaminação do rio, os moradores agora precisam pagar pelo peixe que antes pescavam e, ainda, enfrentar as dificuldades para encontrar casas mais baratas. Por João Victor do Carmo, José Ermenegildo Gomides Filho, José Sebastião Modesto, Maria Aparecida Lopes e Ronei Alexandre do Carmo Com o apoio de Airton Mol de Almeida, Daniela Ebner e Matheus Effgen

Nasci aqui em Rio Doce e moro de aluguel desde 2015, antes do acontecimento. Hoje, está difícil encontrar casa de acordo com o meu salário e da minha esposa, porque todo mundo pede um valor muito alto para o tamanho da cidade, que é pequena. Quando os donos das casas pedem um valor mais alto, a firma tem condições de pagar e a gente não tem, porque nós somos assalariados. Os proprietários praticamente não fazem contrato de aluguel mais porque, se uma firma chegar e procurar casa oferecendo um valor mais alto, eles despejam a gente. Eu sou funcionário público. Moramos eu, minha esposa, meu enteado e mais um filho que estamos esperando. Acho que eles dão um tempo para gente sair. Mas e depois? Vamos morar onde? Ronei Alexandre do Carmo, morador de Rio Doce A casa que eu alugo é da minha família, mas é para o pessoal da cidade. Nunca aluguei para empresa pelas histórias que escuto. Às vezes, a firma faz o contrato, vai embora e não cumpre. Eu dou preferência para quem é de Rio Doce porque, pelo menos, nós conhecemos e temos mais chances de nos comunicar com a pessoa. É preferível alugar por um preço mais barato e saber que tem alguém cuidando. As empresas vêm e vão embora. Às vezes, você põe o preço lá em cima e, depois, não consegue alugar mais. Maria Aparecida Lopes, moradora de Rio Doce

A casa de Maria Aparecida, atualmente, está alugada para moradores de Rio Doce.


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Março de 2019

Mariana - MG

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Fotos: Matheus Effgen

Vai fazer três anos que eu moro nessa casa com minha esposa e dois filhos. A casa é antiga e, quando chove, eu fico com medo de desabar, mas não tem como eu me mudar, porque as outras casas estão todas caras. O aluguel aqui subiu muito. O contrato vence em setembro, mas a dona já até pediu a casa com medo dela “cair”. José Sebastião Modesto, morador de Rio Doce O aluguel aumentou muito depois que a empresa veio pra consertar o estrago que fez. Meu filho não achou casa pra morar e teve que ir morar comigo, lá em casa. Ele guardou as coisas dele no porão e foi morar lá em casa. Antes, morava eu e minha esposa e, agora, são cinco. Ele juntou duas camas de solteiro num quarto e tá dormindo lá com a esposa e o filho. Agora, não tem nem previsão dele mudar, não acha casa fácil, só com aluguel caro. José Ermenegildo Gomides Filho, morador de Rio Doce Alimentação também preocupa Hoje, se alguém quiser comprar peixe, tem que comprar mais caro, porque os peixes do rio estão contaminados. E, para ir pescar em outros lugares, também é preciso gastar gasolina. E, além disso, os preços das coisas só vão aumentando. Vai vindo esse pessoal de fora para trabalhar e os comerciantes querem fazer mais lucro. João Victor do Carmo, morador de Rio Doce O comércio aqui também está aproveitando e subiu o preço de tudo. A gente tem ido em Ponte Nova para fazer compra porque não tem jeito de comprar nada aqui na cidade. José Ermenegildo Gomides Filho, morador de Rio Doce Antes, eu comia peixe de graça, porque meu sogro pescava e me dava. Agora, eu tenho que comprar, então, fica mais caro ainda. José Sebastião Modesto, morador de Rio Doce

José Modesto e a proprietária temem o desabamento da casa. Foto: Daniela Ebner


EDITORIAL Após o dia 5 de novembro de 2015, sabíamos que o sentimento de luto nos acompanharia para sempre. Luto pelas vidas que perdemos no desastre, pelos costumes que foram alterados, pela perda da convivência em comunidade, pela água que foi contaminada, pelo trabalho suspenso no rio, pelos bens materiais que se foram com a passagem do rejeito de minério. Muitos são os motivos que, com razão, poderiam nos deixar imóveis diante de tantas perdas e nos impedir de recomeçar a vida. Ao invés disso, escolhemos a luta. Não que as perdas não doam mais. Elas ainda machucam, mas transformá-las em razões para buscar nossos direitos foi o modo que encontramos de não deixar que o crime nos vencesse. Gostaríamos que a trajetória pudesse ser mais fácil. Todo o processo que vivenciamos há três anos poderia ser menos doloroso, quem sabe, se as empresas estivessem dispostas a ouvir nossas angústias e entender por que enumeramos tantos danos a serem reparados. Mas não. Temos brigado todos os dias para que nossa voz seja considerada — não como vítimas, mas como protagonistas dos rumos que nossas vidas tomarão daqui pra frente. A insistência das grandes mídias, quase sempre distantes da nossa realidade, em nos mostrar como “heróis da superação” esconde nosso potencial de transformar dor em ação. Aconteceu conosco e temos visto se repetir em Brumadinho. Na maioria das vezes, os atingidos e as atingidas são procurados(as) apenas para relatarem insistentemente seus traumas, mas nossa experiência nos mostrou que somos também capazes de formar lideranças e ativistas sociais. Neste mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, dia de relembrar a luta das mulheres por direitos iguais aos dos homens, as atingidas fazem jus ao substantivo feminino. Ao contar suas motivações para participarem dos espaços de decisões, elas reforçam a necessidade de pensar e de agir coletivamente, de reivindicar direitos para todos(as) e de promover o bem-estar da comunidade. Não escondem, entretanto, o preconceito que enfrentam. Ser mulher significa brigar constantemente para que todas sejam reconhecidas e possam ter a chance de opinar, de construir e de avaliar cada etapa do processo de reparação. O sentimento de luto já era esperado após o crime. O de luta, aprendemos na prática como cultivá-lo. Dentro de nós, esses dois sentimentos convivem e até se confrontam em alguns momentos. Mas o fato é que eles nos impulsionam. O desejo por reconhecimento, justiça e reparação faz com que não fiquemos parados, ainda que a saudade e a dor sejam imensas. A nossa ansiedade, agora, é por retomarmos nossos modos de vida e garantirmos uma vida parecida com a que tínhamos antes para, enfim, podermos dizer que, do luto à luta, o caminho valeu a pena.


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