A Sirene - Ed. 16 (Julho)

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição 16 - Julho de 2017


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A SIRENE

Julho de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

Nesta seção, o jornal A SIRENE destaca os principais temas relatados por atingidos durante a audiência do último dia 20, evento no qual o Ministério Público recolheu problemas relacionados à atuação da Fundação Renova na cidade de Mariana.

EU SEI O VALOR DA MINHA CONQUISTA Aquilo que eu construí com meu marido está lá, é meu. Eu não estou trocando com a Samarco, nem com a Vale, nem com a BHP e muito menos com a Fundação Renova. E eu não reconheço a Fundação Renova, pois o documento que ela me apresenta, ela diz que assina, mas é a Samarco ali. Quem garante que eu vou receber alguma coisa através da Fundação Renova? Eu lutei para ter o que eu tenho, e hoje eu tenho que ficar mendigando alimentação para os meus animais. Eles vêm com burocracia, dizendo que o meu animal vale “X”. Eu que sou a proprietária, eu é quem tenho que dizer quanto é que vale o meu animal, o meu imóvel. Não é eles que devem vir colocar um valor no que é meu, no que eu lutei trabalhando. Janaína Paschoal, de Bento ATINGIRAM O NOSSO BEM-ESTAR Eu procurei um psiquiatra em Águas Claras e ele me receitou, na primeira consulta, dois antidepressivos. E hoje, em Mariana, não tem psiquiatra para atender a gente, os que tem são poucos. O meu problema é por conta do rompimento da barragem, porque eu tive o desligamento de pessoas que eu amo. Eu vivi diante do meu sogro 20 e tantos anos, meus filhos foram criados lá e hoje a gente está separado. E eu espero que a Renova assuma o compromisso de tratar a doença que ela causou nas pessoas. Marino Dangelo Junior, de Paracatu QUEREM NOS DESESTRUTURAR O nosso povo está se perdendo, a nossa história está ficando para trás. E não acredito que nós iremos para a nossa comunidade em 2019. Nós somos objetos de troca, enquanto a gente estiver no meio do caminho, muita gente vai ser beneficiada. Se não querem que a gente incomode, levem a gente de volta para casa. Luzia Queiroz, de Paracatu

Expediente

FALA E FALA, MAS AINDA NÃO FEZ O problema da Fundação Renova é a morosidade. Já faz quase dois anos que aconteceu o incidente e até hoje a gente está sendo tratado como se fosse de caráter emergencial. Não tem nada de concreto para a gente. Nós estávamos na expectativa de sermos reassentados em 2019, de acordo com o cronograma da própria Renova, mas nós vemos que isso não vai ser possível. Até este momento, a Fundação não concretizou a compra dos imóveis. A situação dos atingidos é como se nós tivéssemos dado um pause nas nossas vidas e não conseguíssemos mais dar o play. Rosária Ferreira Duarte Frade, de Paracatu

PREFEITURA, OLHE POR SEUS CIDADÃOS A nossa Comissão está sentindo falta da presença do prefeito e dos vereadores para acompanhar nossas discussões. O prefeito prometeu uma pessoa para acompanhar de perto os nossos problemas e levar para a Prefeitura, mas essa pessoa foi em nossa reunião somente uma vez e depois sumiu. E a gente ficou sem assistência nenhuma. Charlie Batista, de Paracatu

COMO NÃO DESCONFIAR DE TUDO? A Fundação Renova foi criada e nada mudou, pois, na sua maioria, os funcionários da empresa são remanescentes da própria Samarco. Como confiar naquele que fez vítimas e hoje está querendo cuidar dessas vítimas? Eu pergunto aos senhores: vocês entregariam um membro de suas famílias que foi estuprado aos cuidados do estuprador? As ações da Fundação Renova não estão sendo suficientes para reparar aquilo que nos foi arrancado de forma tão cruel. Mauro Marcos da Silva, de Bento

Erramos - Na última edição, na reportagem “Princípio, meio e fim”, página 8, o local citado se refere a Santana do Deserto, e não Santana do Paraíso. - Em “Nossa memória, nosso patrimônio”, página 12, a legenda sobre a Fazenda a beira do Gualaxo do Norte não incluiu a palavra “leito”. - A reportagem “Um passeio em Camargos” não registrou o nome dos irmãos de D. Efigênia: Gervásio e Jorge.

ATENÇÃO! Não assine nada Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista.

Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Ana Elisa Novais, Cristiano José Sales, Fernanda Tropia, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Silvany Diniz, Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Gestora de redes: Aline Monteiro | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Daniela Felix, Flávio Ribeiro, Genival Pascoal, Larissa Helena, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana)| Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Larissa Helena | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministerio Publico de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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“Que a Renova corrija as falhas constatadas”

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Fotos: Larissa Helena

Nesta edição da coluna “Direito de entender”, o dr. Guilherme Meneghin fala da importância da realização de audiências públicas, assinala as principais questões discutidas na reunião que foi realizada em Mariana, no dia 20 de junho, e alerta para a necessidade de cobrar da Fundação Renova a efetivação dos compromissos feitos durante a audiência. Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça - 2ª Promotoria de Justiça de Mariana

Com base nas constantes reclamações sobre a atuação da Fundação Renova na cidade de Mariana, foi realizada uma audiência pública – convocada pelo Ministério Público – para discutir a atuação da entidade. Para garantir que o debate fosse o mais amplo e democrático possível, foram chamados representantes dos trabalhadores, dos empresários, dos atingidos, do poder público, da sociedade civil em geral e da própria Fundação Renova. Audiência pública é uma reunião realizada por órgãos públicos com o objetivo de coletar dados, ouvir depoimentos, reunir informações e incentivar debates sobre um tema de interesse geral. No âmbito do Ministério Público, é o principal instrumento de participação popular na execução das atividades dos promotores de Justiça. De suas discussões podem surgir acordos e ações de cooperação na execução das atividades estatais. Durante a audiência em Mariana, várias questões foram levantadas. Os representantes dos empresários relataram o calote que sofreram da empresa Gonçalves e Costa, contratada pela Fundação Renova para realização de obras de recuperação ambiental na região. A Gonçalves e Costa contratou 28 fornecedores em Mariana, mas não pagou pelos serviços

e produtos adquiridos. Segundo os empresários, a dívida atingiu R$ 1.780.000,00. Ao final da audiência, um representante da Fundação Renova assegurou que a entidade pagaria esse prejuízo, mas até o momento ainda não há comprovação de que isso tenha sido feito. Representantes dos atingidos relataram vários problemas gerados pela Renova – principalmente atrasos nos procedimentos para compra e registro dos terrenos necessários aos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu, o que vem atrasando o início das obras. O representante da Renova afirmou que a terraplanagem dos terrenos pode começar em agosto de 2017 – o que aparentemente se mostra inviável afirmar com esse grau de certeza. Os problemas foram reforçados pelo representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que relatou situação semelhante em Barra Longa. Foi constatado ainda que a equipe de atendimento psicossocial contratada pela Fundação Renova para atender aos atingidos de Mariana vem sofrendo desgastes desnecessários. As psicólogas descreveram situações de redução de salários, ameaças de dispensa e contratos de apenas dois meses – o que gera insegurança entre os trabalhadores e ameaça

de suspensão dos serviços aos atingidos. A Fundação Renova, apesar dos compromissos assumidos, nada fez para resolver o problema até o momento. Na audiência pública também foi verificado que a Fundação Renova continua relutando na contratação de prestadores de serviços locais, sejam trabalhadores, empresas ou entidades sem fins lucrativos. Exemplo disso foi o relato do professor Fábio Faversani, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (ICHS/ UFOP), que afirmou que a Fundação Renova contratou uma universidade gaúcha (Unisinos) para a execução de pesquisas, sendo que o ICHS/UFOP possui um setor que poderia executar a mesma pesquisa, com custos menores, profissionais locais e reconhecidos pela qualidade de seus trabalhos. Estas e outras informações obtidas na audiência pública possuem valor jurídico para subsidiar a atuação do Ministério Público, que poderá tomar as medidas necessárias, diretamente ou com encaminhamento aos órgãos e entidades competentes, para resolução das irregularidades identificadas. Esperamos que a audiência, por si só, possa colaborar para que a Fundação faça um ajuste de suas atividades e corrija as falhas constatadas.


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Diagramação: Carlos Paranhos

Direitos rompidos Por Genival Pascoal, Flávio Ribeiro Marquinhos Muniz, Maria Quintão, Marino D'Ângelo Júnior Com o apoio de Letícia Aleixo, Miriã Bonifácio e Wandeir Campos

O direito de propriedade é o direito das pessoas controlarem o acesso aos bens de que são donas. O proprietário tem o direito de usar, possuir e dispor da terra, além do direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua. Esse direito deve ser exercido em acordo com os objetivos econômicos e sociais daquela terra, de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a mata, os bichos, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, e também evitada a poluição do ar e das águas. Usar e possuir a terra consiste na possibilidade de extrair dela todos os benefícios ou vantagens oferecidos, fazendo-a produzir, sem alterar-lhe a matéria. É como se fosse um fruto que a gente colhe da árvore, mas que, mesmo extraído, pode renascer. O direito de disposição consiste em consumir a terra, com responsabilidade, transferindo ou não a outros.

Foto: Marquinhos Muniz

Fotografia da casa que Marquinhos morava em Bento Rodrigues.

No Brasil, a propriedade só se transmite por registro. Não basta o contrato de compra e venda. Isso é importante porque fica entendido que não basta a empresa comprar os terrenos para o nosso reassentamento, ela tem que registrar em cartório. Ao mesmo tempo, o fato dela comprar e registrar outros terrenos, construir outras casas para nós, não lhe dá o direito de tomar as propriedades que são nossas, de onde ela nos fez sair. Uma nova propriedade não é uma permuta. Não se pode comprar casa com lama.

DUPLA MORADIA Eu tinha uma chácara bem desenvolvida em Bento Rodrigues e, além de me alimentar com aquilo que eu produzia lá, também vendia uma boa parte dessa produção em Bento e na cidade. Sou conhecido em Mariana por ter trabalhado quase 30 anos na Samarco e por ser aquele que sempre andava com um caderninho de anotações no bolso para não esquecer das encomendas e dos débitos dos fregueses. Além da propriedade, também tinha minhas criações e, para cuidar de tudo isso, eu ficava no Bento muito mais do que apenas nos finais de semana. Mas a empresa, com toda sua capacidade técnica, conseguiu construir um argumento a seu favor que retira os meus direitos e os de outros atingidos, ao criar uma categoria chamada “morador de final de semana” ou “dupla moradia”. Essa é uma classificação inexistente na realidade das comunidades atingidas, como muitas outras que ela criou. Nós fomos colocados assim, mas não nos reconhecemos dessa forma. Estamos lutando para reaver o que é nosso de direito. O fato de ter outra residência não diminui a minha tristeza por ter perdido o meu lugar em Bento Rodrigues. Eu tinha me aposentado e desligado da Samarco há um ano e planejava passar o resto da minha vida ali. Marquinhos Muniz - morador de Bento Rodrigues e representante do grupo de atingidos classificados com dupla moradia. Foto: Lucas de Godoy

VIDAS PROVISÓRIAS Eu vivia numa região tranquila, onde eu tinha planos, sonhos. Vivia a 300 metros do meu sogro e da minha sogra. Meus filhos eram criados junto com eles e com a gente, praticamente criados a meia, e a vida da gente foi toda modificada. Isso trouxe discórdia na família. Então, a gente não perdeu só parede e tijolo, entendeu? Isso já passou quase dois anos e a gente tá vivendo em casa que não é casa da gente. A gente mora num aluguel pago pela empresa, num lugar onde você não pode planejar, onde não pode sonhar. A gente perdeu os vínculos. Paracatu de Cima e Paracatu de Baixo usufruíam dos mesmos equipamentos públicos, mesma igreja, mesmo cemitério, e a Samarco conseguiu que uma comunidade se Moradia provisória de Dona Doca, 83 anos, atingida de afastasse da outra. Isso dói muito. Bento Rodrigues. Marino D´Ângelo Júnior, morador de Paracatu de Cima


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Foto: Daniela Felix

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Grupo “Loucos pelo Bento”, durante realização do ato da Semana Santa, em Bento Rodrigues.

RESSIGNIFICANDO BENTO Sempre que possível, vamos pra lá [Bento] tentando resgatar não as coisas materiais, mas as nossas vidas. Combinamos as nossas ações e sempre nos reunimos nos finais de semana. Das casas que a lama desarrumou, já arrumamos duas. Colocamos portas e janelas naquilo que se tornou o nosso refúgio. A festa de São Bento, de Nossa Senhora das Mercês, o Réveillon, o Carnaval, a Semana Santa, a nossa festa junina, são atos que conseguimos realizar e que nos fizeram nos sentir em casa. Lá, extravasamos o sentimento que fica guardado dentro de nós. Temos, desde o início, o intuito de lutar pela manutenção de nossas tradições e pela recuperação de nossas memórias, que, mesmo soterradas pela lama, são nossas. E também queremos mostrar para o mundo o quanto amamos aquele lugar, onde nascemos e passamos a maior parte das nossas vidas, e que não estamos dispostos a abrir mão dele. Estamos apenas resistindo porque essa luta nos fortalece. Juntos, o nosso grupo “Loucos pelo Bento” pretende vencer com a ajuda de Deus, pois a nossa fé é o que nos dá força. Maria Quintão, moradora de Bento Rodrigues e ativista no grupo Loucos pelo Bento.

RECONSTRUIR O reassentamento parecia fluir bem até março deste ano, quando começamos a desconfiar dos documentos que, de fato, aprovariam o projeto. Aí demos o grito e a Samarco começou a ficar no jogo do empurra. Falava que já tinha mandado os documentos e que só dependia do prefeito. O prefeito dizia que nada tinha chegado na mesa dele. Nós, atingidos, ficamos arrasados com o desgaste físico e mental entre reuniões e audiências. E aí o projeto não pode ser aprovado por falta de documentos. O que mais deixa a gente triste é que a empresa saiu pisando nas nossas cabeças, chegou lá em cima para dizer para o governador que precisava só do visto dele para cobrir com um dique o crime que ela cometeu. E o governador meteu a caneta como se a nossa opinião não contasse. Moral da história: para construir o dique, nada barrou; agora, para o nosso reassentamento, ela encontra barreiras. Já estamos há quase dois anos sem moradia própria e acreditando que, em 2019, vamos voltar pra uma casa onde iremos ter liberdade. A empresa só consegue nos dar explicações que não nos ajuda em nada, como, por exemplo: “estamos fazendo”, “já está mais ou menos encaminhado”, “na próxima reunião já trago resposta”... Mas, infelizmente, nada sai.

Foto: Silmara Filgueiras

Placa do projeto de reassentamento de Bento Rodrigues, localizada no terreno de Lavoura.

Genival Pascoal, morador de Bento Rodrigues

Foto: Daniela Felix

Dona Geralda, 66 anos.

A LAMA DENTRO DE CASA Desde que Dona Geralda se entende por gente, Barra Longa sempre foi o seu lugar. Há alguns anos, ela até se entranhou em Belo Horizonte, mas só para trabalhar. Depois voltou. Voltou como alguém que já sabia de seu lugar. Mas, agora, depois de tantos anos preparando o terreno para as galinhas, as cabras e o cavalo, lhe disseram que é melhor partir dali. Bem agora, que a lama passou, o pó subiu e o sossego acabou. Dentro de casa, que, para Dona Geralda, ainda é o lar, pipocam rachaduras para todos os lados. São os efeitos do trânsito intenso de caminhões da Samarco, que não cessam em tirar a lama. A lama que escorre por tantos cantos, e se arrasta no encontro dos rios na cidade. Passam alguns minutos, passam alguns caminhões, e o cheiro da lama sobe. Sobe até a janela da Dona Geralda. Com tudo isso, o rastro de luz se fecha na janela do quarto. É melhor estar às escuras do que respirar o pó da lama. Uma das únicas certezas que Dona Geralda tem, ao menos por agora, é que ela quer voltar para casa. Nem foi. Mas quer voltar. Afinal, aquela casa em frente ao rio é o seu lugar. Onde mais seria? Trecho escrito pelo repórter Flávio Ribeiro (Jornal A SIRENE) depois de visitar a casa de Dona Geralda - moradora de Barra Longa que está entre as 9 famílias que vivem na área do Parque de Exposição, tiveram o quintal invadido pela lama que a empresa trouxe meses depois do rompimento e agora serão removidos do local.


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Gualaxo do Norte - Memória

Kleverson criou o grupo “Gualaxo norte Patrimônio”

Andreia (Bento)

Andreia (Bento)

Memória em rede Pelos participantes do grupo de WhatsApp “Gualaxo do Norte - Memória” Com o apoio de Rafael Drumond

A comunicação via WhatsApp é cada vez mais utilizada no mundo atual. Para os atingidos pela Barragem de Fundão, ela não só organiza rotinas de trabalho, como também permite momentos de encontro, interação e lazer que lhes foram tirados pela lama. A distância colocada pela vida na sede de Mariana fica menor quando o papo começa nesses espaços. Enquanto a conversa na calçada não volta, é na janela do “zap-zap” que muitos atingidos revivem o sentido de suas comunidades de origem. Entre tantas referências perdidas, ali ainda vivem as imagens de um passado que jamais será esquecido. Nesta edição, destacamos a prosa do “Gualaxo do Norte Memória”. O grupo foi criado pela empresa Pólen Consultoria para ser um espaço de interação entre os atingidos de Mariana e os pesquisadores que estão produzindo um Diagnóstico preliminar de Bens Culturais da região do Gualaxo do Norte. O trabalho é uma solicitação da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão em conjunto à sua Assessoria Técnica. Nele, achados documentais misturam-se às lembranças e às saudades deixadas pela lama, o que faz do grupo um lugar de rememoração do território cortado pelo Rio Gualaxo do Norte; um espaço de descobertas e compartilhamento de histórias de uma gente ligada à sua terra, a seus vínculos e às suas tradições. Uma bonita rede de memórias tecida por palavras e imagens de um território repleto de história e de futuro. Fotos: Arquivo pessoal Andreia Sales

Kleverson Lima

Angélica (Paracatu)

Casa da família Sales em Bento Rodrigues. Na foto, D. Jandira e D. Efigênia

Kleverson Lima

Angélica (Paracatu)

Time de Futebol São Bento na década de 1980


Julho de 2017 Mariana - MG Arte/Diagramação: Carlos Paranhos

H istórias da gente Por gerações de paracatuenses, Angélica Peixoto e Seu Zezinho Com apoio de Kleverson Lima, Larissa Helena e Rafael Drumond

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uma segunda-feira do mês passado, a professora Angélica Peixoto, moradora de Paracatu, jantou arroz queimado. Tudo porque, naquela noite, a comunidade havia sido tema do grupo “Gualaxo do Norte - Memórias”. A conversa de horas fez Angélica esquecer o tempo presente no fogão e acender alguns dos muitos passados da sua Paracatu. Uma expectativa foi lançada ainda no começo da tarde: “Estou analisando uma documentação que vai mexer com duas coisas sobre a comunidade. Mais tarde publico aqui essas informações”, postou Kleverson Lima, coordenador do grupo e do Diagnóstico de Bens Culturais da região do Gualaxo do Norte. À noite, antes de anunciar os achados, o pesquisador pediu ao grupo que relatasse a história conhecida de Paracatu. Angélica passou adiante os saberes de sua sogra: segundo ela, a comunidade começou em Paracatu de Cima - terreno que, no passado, teria pertencido a João Paracatu, devoto de Santo Antônio. Outros elementos dessa história foram citados pela professora, como a produção de cana-de-açúcar e rapadura, os engenhos, as senzalas e a lenda de que os escravos escondiam ouro nas fendas do muro de pedra. Kleverson explicou a importância desses relatos para a construção da história e da identidade da comunidade. E contou que, ao contrário do que se especulava, há, sim, documentos históricos sobre Paracatu. São textos encontrados em arquivos públicos, como registros de terras e livros de impostos, informações sobre pessoas que viveram em Paracatu séculos atrás. Segundo o historiador, até o momento, o dado mais antigo relativo à comunidade data de 1745: “No mínimo, ele prova que o processo de ocupação de Paracatu começou no século XVIII. Talvez os pioneiros tenham chegado ali na primeira metade daquele século, quando Minas ainda era uma criança”. Da comparação entre diferentes documentações, o pesquisador trouxe a “cereja do bolo”: “O espaço que vocês conhecem como Paracatu de Cima e Paracatu de Baixo, até por volta de 1840 e 1850, chamava-se Teixeira. Ainda não se sabe o motivo pelo qual o nome foi oficialmente mudado para Paracatu. Essa informação traz outra novidade: a capela principal da comunidade, aquela onde os rituais eram celebrados, como o batismo e o casamento, era dedicada a São Francisco Xavier e não a Santo Antônio”, revela. Na conversa, Kleverson mostrou imagens dos documentos encontrados e traçou, junto com o grupo, linhas do passado que corre nas veias de Paracatu. *** A História, feita de muitas histórias, corre nas veias, na pele e nos traços dos paracatuenses. Podemos (ainda) não saber quem foi João Paracatu - inclusive se ele, de fato, existiu. Mas sabemos, por exemplo, quem é Seu Zezinho, raiz forte da comunidade, capa desta edição. Nascido e vivido no distrito, Seu Zezinho coleciona 87 anos. Segundo ele, são 24 os filhos, e 70 os netos. Trabalhou muito para criar uma família tão grande. Dos próprios braços, veio a casa onde vivia, levada pela lama. Sente falta das mais de 50 galinhas que perdeu e lembra da fartura que nascia no solo de Paracatu: quiabo, abóbora, milho, feijão, pepino, melancia, cebolinha, tomate, jiló, cebola, pimentão, pimenta... “Tudo tinha lá.” É o homem da Folia de Reis Paracatuense, bandeira que carrega desde os 25 anos. Inclusive, o estandarte foi um dos objetos que Seu Zezinho salvou da lama. Preocupa-se com o futuro da tradição - “Quando eu for embora, não tem quem assumir a Folia...” - e faz o presente da Festa do Menino Jesus - “Esse ano vai ter festa lá em Paracatu!”. Reclama da vida na cidade, das horas que, longe da roça, não passam. “Aqui, fico o dia inteiro dormindo. Eu não nasci pra isso. Antes era uma beleza, lá a gente vivia tudo juntinho. A minha vontade era ficar lá.” Seu Zezinho vai “direto” a Paracatu, para a casa de um dos filhos, Nié. Ele e Elias, outro filho, ainda vivem na comunidade atingida. Eles são alguns dos moradores que, em Paracatu, ficaram.

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Paracatu que FICA - Nós continuamos a viver em Paracatu de Baixo. - O nosso lar não é mais a mesma coisa, mas permanecemos aqui. - Convivemos diariamente com o que a lama deixou. - O valor das nossas casas não pode ser medido em dinheiro. - A verdade é que não queremos sair daqui, porque nossas histórias de vidas e as memórias também não saíram. Por Dona Benigna, Elias Gonçalves João Banana, Nié e Roberto Carlos com o apoio de Larissa Helena e Wandeir Campos

Elias, 44 anos

Dona Beniga, 68 anos

- Sou irmão de Nié, também nasci em Paracatu. - Desde o dia da barragem me mudei para minha irmã, a casa dela não foi “destruída”, a minha foi. Fico aqui direto, nunca fui para Mariana. - Depois da lama o estilo de como a gente vivia mudou. A gente fica aqui para não ir pra lá, mas as condições não são boas.

- Moro desde sempre em Paracatu. - Fico lá em Mariana e cá, porque tenho medo deles pegarem as minhas coisas. - Prefiro aqui, porque sempre tem alguma visita aqui na minha casa. Voltei pra não ficar sozinha.

Fotos: Larissa Helena e Wandeir Campos


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Nié, 52 anos

João Banana, 64 anos

Roberto Carlos, 60 anos

- Eu vou cair e morrer aqui e ficar por aqui mesmo, não quero Mariana. - Aqui trato dos porco, das galinha, tiro leite, cuido dos boi, das vaca. - Tínhamos cachoeira, era a cachoeira. Hoje, acabou tudo! Virou um ‘córrego’.

- Nasci e cresci aqui. - Acredito que quando a pessoa nasce no lugar é igual um ramo de uma árvore que se fixa ali, e a barragem fez essa separação, arrancou os ramo da terra. - Eu quero continuar aqui, mesmo quando “Paracatu Novo” sair, quero ficar aqui. Nós éramos tudo junto e agora estamos que nem folha no vento, fica voando pelo campo afora.

- Já faz tempo que vim para a comunidade atrás de trabalho. Estava construindo uma casinha na praça antes da lama, agora vou ficar em definitivo aqui no fundo da casa do meu irmão. - Aqui é tranquilo, só fica eu e Deus. Acordo, faço caminhada, escuto meu rádio e depois volto para cuidar das minhas criações.

“É junto dos bão que a gente fica mió.” Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”

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Lá na Campina

Por nós, atingidos de Campinas Com o apoio de Daniela Felix e Genival Paschoal

Se você sair da sede de Mariana, passar por Monsenhor Horta e seguir a estrada no sentido de Águas Claras, vai chegar em Campinas - ou, como dizem seus moradores, Campina. O subdistrito marianense fica a cerca de 50 quilômetros do centro da cidade. Tem trecho de terra e o GPS não funciona muito bem a partir de certa distância. Mas não tem erro, é só ir perguntando pras pessoas que encontrar pelo caminho e prestar atenção para não se perder enquanto admira a paisagem da região.

Você saberá que chegou “na Campina” quando, provavelmente, topar com Lelego: - Ei! Qual o seu nome? De que empresa você é? É que o menino fica curioso com os carros que, desde o rompimento da barragem, não param de passar por aqui. É cada Hilux, Duster…

Foto: Genival Pascoal

Foto: Daniela Felix Foto: Daniela Felix

Você pode ir proseando com a Maria ladeira abaixo, até chegar na casa de seus pais, Dona Naná e Seu João. Lá não falta café, nem biscoito. O Seu João conta que o Deco, que vive do outro lado da ponte, é o único atingido dali, já que só ele teve a casa invadida pelo rejeito. Mas se você olhar pela janela da cozinha, verá o poço que o próprio Seu João construiu depois que a lama levou os peixes do Rio Gualaxo. - Ali tem lambari, tilápia e umas carpas coloridas que comprei em Belo Horizonte. Agora que o rio acabou e não dá mais pra pescar, tive que fazer esse pocinho. Não dá pra ficar comprando peixe. É caro demais.

Foto: Genival Pascoal

Se despedindo da família da Maria, você pode seguir rua abaixo em direção ao rio. Talvez, enquanto caminha, o Jair passe à procura da sua mula fujona. O Jair, você já deve ter imaginado, tem muito carinho pelos animais. Quando avisado que a barragem tinha rompido, só pegou os documentos que tinha e tocou sua criação pro alto. - Parecia que aquela lama vinha arrastando o mundo. Um vendaval, cheiro ruim. Dois bezerros meus ingeriram água da lama suja. A barriga deles inchou demais, não conseguiam urinar. Dei remédio, mas não adiantou nada. Ficaram duas semanas agonizando até morrer. Apesar da lama não ter chegado na casa de Seu Jair, a Defesa Civil também tentou tirá-lo de lá, mas ele não quis se separar de seus animais. Para onde eles iriam?

Quando você estiver lá em Campina, pode ser que encontre Maria da Consolação, seus filhos Erlaine, Gabriela e Edivaldo - e o cachorro Sultão. Antes do rompimento, eles cuidavam de um sítio em Guerra, próximo dali. A lama não invadiu a casa onde viviam, mas a Defesa Civil tirou a família de lá dizendo que a poeira era perigosa para as crianças. Depois disso, Maria e o marido se separaram, e agora ela tem medo de ficar sem lugar para morar. - Tava construindo uma casa, junto com meu ex-marido, em Pedras, mas a lama levou ela toda. Ainda não recebi indenização nenhuma. Não sei em que situação vou ficar, porque se fizerem uma casa só pra ele, onde vou morar com meus minino? A gente sozinha é uma coisa, com filho é diferente, né? Foto: Daniela Felix

Campina tá no finzinho de Mariana. Descendo o morro em direção ao rio, tem uma hora que a estrada de terra vira ponte. Ao cruzá-la, você chega em Barretos, que é distrito de Barra Longa. Dois cantos bonitos de mundo manchados pela lama que ainda escorre, onde se pode refletir sobre as muitas formas de ser atingido.


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O Cancioneiro

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Fotos: Flávio Ribeiro

da Barra

Por Fafá da Barra Com Apoio de Rafael Drumond e Sérgio Papagaio

A conversa é na varanda de casa, em Barra Longa. O ruído dos carros e caminhões que transitam pela cidade, ainda em obras, incomoda: “O barulho fica aqui a semana toda, sábado, domingo, feriado”. A fala é suspendida até a tranquilidade voltar à casa do cancioneiro, lugar de memórias de onde tenta resgatar músicas ainda presentes. Junho lembra São João, que o faz recordar, em forma de canto, que na sua “terra é festa, lá tem canjica, fogueira, quentão, céu estrelado cheio de balão...”. Novo silêncio, agora, também da rua. “Não lembro da letra, eu tenho esse problema seríssimo de memória...”, confessa. A memória esquece a canção, mas não o passado: “Vou lá atrás buscar as coisas. Vou lá em mãe. Volto em situações da infância, no Padre José, no folclore de Barra Longa, no caboclo d’água que vive ou vivia no rio”. A lembrança vira lamento quando o músico pensa em tudo que a lama de Fundão levou, principalmente dos atingidos que perderam casas e vidas: “Todo mundo tem uma história. A partir do momento que você perde essa história, essa referência, você perde tudo”. A infância foi em Barra Longa, cidade que muito gosta, mesmo quando pensa nas dificuldades trazidas pela tragédia: “As pessoas estão mais nervosas aqui, mais impacientes, sabe? Barra Longa não teve vidas ceifadas no dia que a lama passou. Mas depois muito da nossa vida foi se perdendo”. Ainda na adolescência, em Belo Horizonte, começou a compor sua música, desde sempre, autoral. Do pai e do irmão, veio o gosto por música clássica. “Diria que minha música é uma MPB misturada com rock rural. E tem blues, muito blues. Eu nasci com música.” Para o artista, a composição

surge em momentos de desaviso: “Eu componho assim... Quando dá vontade de tocar, pego no violão – geralmente, para tocar uma música que já fiz – e, quando vejo, outra música começa a surgir”. O primeiro CD – Trilha do Sol – foi gravado em 1983, com o apoio de uma amiga de adolescência. Para a infância da filha Débora, gravou a música “Era uma vez”, cantiga-título de seu segundo álbum. Décadas mais tarde, dedicou “Sonhos de algodão” ao neto, Vitor. Após o rompimento de Fundão, compôs a canção “Desumano”, faixa ainda não gravada. A letra da música indaga: “Quem poderia imaginar que morava bem ali, no nosso quintal, o nosso algoz. Atacou sem piedade, na calada da madrugada, sem deixar aviso”. As palavras do músico fazem coro: “Ninguém fazia ideia do que estava por vir. Eles falaram que era uma enxurrada de água. Agora, água levanta e desce. O que veio foi lama, lama que subiu e ficou”. A situação chama a revolta: “Os anos passam. Enquanto os cães ladram, a caravana passa. Então passou... a caravana passou. Nós, brasileiros, temos o dom do esquecimento, penso eu. Falam que está resolvido. Não tem nada resolvido. Tem muita gente que foi atingida e não recebeu cartão, que está com a lama no quintal. Tem gente que não pode plantar nada desde o rompimento da barragem”. Sobre a idade, revela, de forma despreocupada, o montante de anos. “Esse negócio de idade tá na cabeça da gente. Cada um tem a sua.” Sobre seu nome, diz que, desde moleque, é conhecido como Fafá, e que, depois que começou a cantar em Mariana, Ouro Preto, Viçosa e Ponte Nova, veio o complemento: - “Fafá, que Fafá?”. - “O Fafá. Fafá da Barra.”

Foto: Daniela Felix Discografia: 1983 - Trilha do Sol 1986 – Era uma vez 2010 – Pelo blues 2015 – Além das estrelas


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PARA NÃO ESQUECER

Papo de cumadres: angústia Por Sérgio Papagaio

- Cumadre, quê cê fez pru armoço? - Num fui eu que fiz cumida, foi minha fia Margarida. Fez um tar de supicão e o mais isquisitu dus macarrão. Num fez arroz, nem feijão. E ocê, cumade? - Ispia só que confusão, eu fiz arroz e feijão, mas verdura num tinha não. Mixi até angu e lembrei lá da roça, dus meus pé de caruru, as abubrinha e us chuchu. - Cumade, será que nós aguenta esse tanto di tristeza, que vai até pra cumida em riba da nossa mesa? - Issu é muita marvadeza! Óia que dia nove eu fiz oitenta anos com uma grande tristeza, era minha intenção fazer um forrozão e muita comida pro povão. - Por que num fez então? - Aqui neste lugar apeutado num cabe nem meus netu, coitadus. Essa cidade deixa nós tudu arrochadu, lá na roça onde a Samarcu fez u pecadu, tinha ispaçu adoidadu. - Ocê fez oitenta este ano, eu fiz nu ano passadu, se ocê num fala eu num tinha nem alembradu, esse lugar imprestadu mata o futuru da gente e come u passadu. - Cumadre, onti eu tava a pensá: será que nós vê reassentá e nossas pranta nós vortamos a prantá? E cumadre Marinha, será que vai pará de chorá? E sô Pedru, cumadre, vorta a andá? - Issu eu num possu te falá, faz tantu tempu que nós saiu de lá. - As bizêrra que Piquitita vendeu uns dia antes da lama passá, pru fiu de cumpade Benisu, meu afiadu Eder, eu vô te contá, já começaru até a criá, mas leite num que dá, também num tem nem onde andá. - Eu vi lá coitadas, tudu presa nu currá sem lugá até de pastá, a Samarcu traz num sacu a cumida, isso lá pra vaca é vida? - Cumadre, tá iguar a nós presa nestas casa apertada, cê viu a casa de tia Geralda? Tem até que subi escada. - É um turmentu, as vacas querenu terra, nós querenu reacentamentu. - As vacas querenu u capim delas pra pastá e ser sôrta du currá. Nós querenu nossas verdura, pexe fritu na gurdura e pra nossa terra podê vortá.


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PARA NÃO ESQUECER

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Envelhecer Muitas são as dificuldades enfrentadas pelos idosos para superar a tragédia e seguir com a vida. Se a perda das referências é difícil para todos, imagine àqueles que possuem raízes de muitos anos nas comunidades atingidas. Nesse cenário, atenção e cuidado são fundamentais às políticas públicas voltadas para essa população. Por idosos atingidos, Conceição dos Santos, Dona Doca, Efigênia dos Santos, José Felipe dos Santos, João Roberto Oliveira. Com o apoio de Carlos Paranhos, Estela Saléh, Miriã Bonifácio e Rafael Drumond

Dona Conceição tem 71 anos. Seu José Filipe, 77. Casados há 52 anos, eles tinham o costume de plantar verduras e cuidar dos animais na casa onde viviam em Bento Rodrigues. Lá, mantinham um contato de anos e de todos os dias com a terra - um plantio para uso e venda feito com “muito cuidado e paciência”, como lembra Dona Conceição. - “Foi muito triste pra mim ver a lama levando tudo. Sinto falta daquele tempo”, lamenta José Filipe. - “Nós compramos o sítio onde morávamos com o nosso suor. Foram 32 anos de vida naquele espaço”, diz Conceição. José Felipe tenta amenizar a saudade da terra participando do “Espaço da Horta” - intervenção criada e coordenada pelo Grupo Conviver, da equipe de Saúde Mental da Prefeitura de Mariana. João Roberto, atingido de Bento Rodrigues, 61 anos, relata pontos positivos na atividade: “Eles [o Conviver] me chamaram para ir lá mexer na horta, eu aceitei. Eu tenho alguns colegas que também parecem estar animados, vamos ver no que vai dar.” Ações de socialização para idosos atingidos são importantes e precisam ser bem elaboradas para garantir um vínculo terapêutico efetivo, afinal, muitos são os problemas enfrentados por essa população. Hoje, é difícil para eles manterem o contato com os antigos vizinhos. Muitas vezes, falta disposição para sair de casa, principalmente quando se considera quadros depressivos. E, mesmo para os mais dispostos, há uma dificuldade de acessibilidade, sobretudo quando se considera o planejamento urbano precário de Mariana. As ruas da cidade são um perigo para Dona Efigênia (foto), de 90 anos, que, em Paracatu, “conseguia ir a qualquer lugar

andando”. Longe da zona rural, esse deslocamento é difícil. Dona Doca, 83 anos - capa da nossa 13ª edição - também sente o problema: “Não tenho forças nem para abrir o portão que sai para a rua. Aqui tem muito trânsito, muita gente estranha.” Outro ponto a ser considerado é a natureza das intervenções realizadas. Muitas propostas surgem desconectadas da experiência de vida dessas pessoas. Por isso, a importância de se conciliar a memória do passado às perspectivas do futuro. Estela Saléh da Cunha, professora do Curso de Serviço Social na UFOP, lembra que essa socialização não deve considerar o idoso de forma isolada, mas colocá-lo em relação a outros grupos, como, por exemplo, os jovens: “sociabilidade deve ser compreendida como ‘fazer parte’ do tempo presente e isto exige contatos “intergeracionais”, trocas efetivas entre jovens e idosos”. Essa troca é que faz a conversa acontecer. O bate papo na calçada ou na cozinha de casa fazem falta, mas, havendo encontro e interação, o passado aparece vivo nas condições do presente. Dona Conceição, por exemplo, diz ter saudades de quando as reuniões juntavam atingidos idosos de Bento e Paracatu. “A gente costumava fazer uma reunião toda semana com exercícios físicos e fisioterapia aqui em Mariana mesmo. O ruim é que está meio parado. O pessoal disse que vai voltar, mas ainda não disseram nada.” Esses desafios devem ser pensados e trabalhados para que os idosos atingidos possam viver da melhor forma possível, apesar das dificuldades. Os idosos, como todos os atingidos, já perderam bastante. O que deve ser valorizado, agora, é o que eles trazem em suas memórias e os futuros que lhes são possíveis. Isso vale para o grupo, vale para todos os atingidos da Barragem de Fundão.

Foto: Larissa Helena


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- FUTEBOL CLUBE -

O time feminino de futebol de Bento Rodrigues ainda busca registrar sua história. São muitas as gerações de mulheres que se reúnem para jogar e se divertir com o esporte. Além de ser um momento de reencontro para elas, que agora moram longe umas das outras, a convivência tem ajudado a atravessar o período de trauma e monotonia vivido depois do rompimento da barragem. Avisaram que não seria fácil. É, realmente não está sendo. Mas o que ninguém vê é que nós, mulheres, somos atingidas também de outras maneiras, não só pela lama. O nosso time de futebol voltou a treinar faz pouco tempo e, além de lidar com a distância entre nossas casas e a quadra, ainda temos que conviver com o preconceito. Nosso time não tem nome oficial, mas a gente chama ele de “São Bento”. Nós temos uma história e um legado: costumávamos treinar quase todos os dias e também participávamos dos campeonatos que aconteciam aos domingos. Era bom demais! Juntávamos todas as famílias para assistir e depois os reunimos para almoçar ou fazer um churrascão. Era festa, era bom, era a gente sendo a gente. O que não sabem é que somos fortes e não vamos abaixar a cabeça, estamos lutando. Uma batalha já ganhamos: voltamos a jogar.

Por Time Feminino São Bento Com apoio de Larissa Helena e Miriã Bonifácio Arte: Silmara Filgueiras Fotos: Carlos Paranhos e Wandeir Campos

Rosane Jocassia 23 anos Goleira

Valéria Aparecida 22 anos Goleira/Pivô

Edna Euzebio 36 anos Zagueira

Janaina Aparecida Inácio 31 anos Zagueira

Luana Fernanda Santiago 22 anos Zagueira

Fernanda Sena Silva 16 anos Atacante

Michele Coelho 20 anos Atacante

Luiza Fernanda 23 anos Atacante

Silaine Felipe 18 anos Atacante

Priscila Dias 21 anos Atacante

Maria Eliza 11 anos Reserva

Ana Luíza 11 anos Reserva

Lucinelia Euzebio 37 anos Gosto de jogar na frente

Em março de 2016, nós, da Equipe Conviver, recebemos em um dos grupos de acolhimento da Saúde Mental, a demanda de duas mulheres para providenciar uma quadra de futebol. O time de Bento Rodrigues gostaria de continuar jogando aqui em Mariana. A partir de então, a equipe iniciou o acompanhamento do grupo com o objetivo de fortalecer os encontros dessas mulheres e facilitar o resgate de uma atividade importante para a comunidade. Percebemos que esse espaço é muito potente para elas, que muito além de jogar bola, consideram o futsal uma forma de cuidado com o corpo e com a mente. Reunidas, puderam retomar algo que amam, estabelecer reencontros, bater papo e interagir de novo. Erica Candian e Maíra Almeida


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Julho de 2017

PARA NÃO ESQUECER

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Festa junina de Bento Rodrigues

Festa julina de Paracatu

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Imagem peregrina de Nossa Senhora Aparecida visita Lavoura.

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Mariana - MG

1º Arraiá dos Loucos pelo Bento

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ena Festa de Santo Antônio em Paracatu

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Reunião de Discussão do Cadastro - somente atingidos e assessoria Horário: 9h às 17h Local: Novo Escritório da Comissão

Inauguração da Feira Noturna Horário: 16h Local: Praça dos Ferroviários

Curso para os representantes dos Grupos de Base de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo - Aula 2. Horário: 8h às 17h Local: Centro de Pastoral

Reunião de Discussão do Cadastro- Somente Atingidos e Assessoria Horário: 9h às 17h Local: Centro de Pastoral

Reunião de Discussão do Cadastro- Somente Atingidos e Assessoria Horário: 9h às 17h Local: Centro de Pastoral

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AGENDA DE JULHO TODA SEGUNDA Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião de Discussão do Cadastro- Somente Atingidos e Assessoria Horário: 9h às 17h Local: Centro de Pastoral

Curso para os representantes dos Grupos de Base de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo (Vagas limitadas - inscrição nos grupos de Base) - Aula 1 Horário: 8h às 17h Local: Centro de Pastoral

Reunião de Discussão do Cadastro - somente atingidos e assessoria Horário: 9h às 17h Local: Novo Escritório da Comissão

Reunião de Discussão do Cadastro - somente atingidos e assessoria Horário: 9h às 17h Local: Novo Escritório da Comissão

Curso para os representantes dos Grupos de Base das Comunidade de Pedras, Borba, Campinas, Paracatu de Cima, Ponte do Gama ( Vagas limitadas - inscrição nos grupos de base) - Aula 1 Horário: 8h às 17h Local: Salão Paroquial de Águas Claras


Editorial “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual e coletiva.” Jacques Le Goff Em todos os lugares, as pessoas sempre recorrem à memória para contar histórias. E como não poderia deixar de ser, assim também foi em Paracatu. Nossos pais buscaram, no passado, as experiências, as relações construídas socialmente, para nos deliciar com suas memórias. Tivemos o privilégio de ouvir histórias sobre como se deu o processo de formação de Paracatu, com as narrativas de Porfíria Mól, professora moradora local, hoje falecida, e que era uma contadora especial e deu nome a muitos personagens que estão em nosso imaginário. Seus relatos eram ricos em detalhes que nos permitiram inferir como era o cotidiano, as festas, os costumes de nossos antepassados. Nesse percurso, nossa história foi sendo construída, compartilhada e enriquecida com as memórias de tantos outros. Entretanto, questionamentos nunca nos faltaram. Quais segredos estão guardados no tempo? Era impossível andar pelas ruas de Paracatu sem se perguntar. Quem percorreu esse mesmo caminho antes de nós? Diante das indagações, nos diziam que, antigamente, era um Paracatu só, não havia a divisão Paracatu de Cima e de Baixo, que o primeiro morador foi um padre, que havia fazendas e escravos nos engenhos. Como ter certeza? Tantas histórias perdidas no tempo. Mas o tempo sempre encontra uma maneira de trazer o passado para o presente. E assim, por meio do grupo de WhatsApp “Memórias do Gualaxo Norte”, descobrimos que o passado deixou suas marcas e evidências também em documentos históricos. Uma história incrível começa a ser desvelada, ganhando o colorido de datas, nomes e lugares. Essas descobertas nos dão a percepção e a convicção de que Paracatu está inserido em um processo histórico. Indicam possibilidades para o entendimento de quais foram as bases de construção do nosso presente e nos permitirá compreender melhor quem somos e por que somos. Nossa identidade é carregada de vínculos com as gerações anteriores e nos proporciona um sentimento de pertencimento muito forte. Recusamos deixar Paracatu perecer. Tanto é que, ainda hoje, alguns moradores, mesmo em meio a toda destruição, continuam morando na Rua Furquim e Gualaxo, locais onde a lama não chegou. Difícil romper com as tradições. Nesse processo de afastamento forçado, os idosos, principalmente, estão encontrando muita dificuldade para a aceitar a nova condição de vida. O desafio é ser feliz longe de casa, dos amigos, dos vizinhos. A familiaridade, a segurança e a convivência de todos os dias faz muita falta. Angélica Peixoto, moradora de Paracatu, editorialista convidada.


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