Jornal A Sirene - Ed. 12 (março)

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 1- Edição 12 - Março de 2017

“O Paracatu que queremos!” leia mais página 8


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PARA NÃO ESQUECER

Editorial Estamos cansados! Um ano e quatro meses de luta, uma série de reuniões, poucas resoluções. Ao adotar estratégias para frear os processos de reparação e compensação dos danos que sofremos, a empresa tenta nos fazer desistir daquilo que é nosso por direito. A edição anterior deste jornal foi marcada pela celebração do nosso primeiro ano de publicação e pelas recordações trazidas por esse momento. Já nesta nova edição, falamos sobre as dificuldades e desafios que agora enfrentamos. Dentre eles, o complexo e delicado processo de reconstrução, momento que pede a participação de todos os atingidos para que as expectativas das comunidades sejam atendidas dentro das possibilidades dos terrenos e da legislação urbanística, respeitando as relações de vizinhança. Lucila, o terreno do novo Paracatu, escolhido no dia 3 de setembro de 2016 - data em que não recebíamos acompanhamento técnico -, já enfrenta problemas. A baixa vazão de água potável e a extensão do terreno, desproporcional ao número de sitiantes (responsável por oferecer empregos à comunidade), não ajudam na projeção das ruas de modo a atender a vontade de todos. Paralelamente a isso, desde outubro de 2016, a Cáritas Brasileira – Regional Minas presta trabalho de assessoria técnica aos atingidos de Mariana, tendo os grupos de base como um de seus principais canais de diálogo, também reportados nesta edição.

A assessoria tem nos auxiliado na proposta de revisão do Cadastro, uma ferramenta que trará o entendimento do que foi perdido para a realização da reparação dos danos. Esse pedido foi feito uma vez que o cadastro apresentado pela empresa se mostra insuficiente para contemplar todos os direitos das comunidades. Além disso, ele não foi desenvolvido com os atingidos e não apresenta garantias de imparcialidade. Outro parceiro na reelaboração do Cadastro, também abordado nesta edição, é o GESTA/ UFMG - Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais. A iniciativa compõe nossa rede de apoio e, desde o início, estuda os impactos deste desastre/crime socioambiental. Trazemos ainda uma matéria sobre a perda e o difícil acesso às cachoeiras de nossas comunidades. Espaços que, antes, frequentávamos diariamente e que faziam parte da identidade dos nossos lares. E também um ensaio fotográfico com relatos dos adolescentes atingidos pela lama. Em resposta à pergunta “o que ninguém te perguntou?”, os jovens foram ouvidos em suas questões mais próprias, tão frequentemente desconsideradas. Tudo isso nos ajuda a entender que, com a união entre as comunidades e com nossa assessoria, não caíremos nas “pegadinhas” dos termos técnicos da empresa e continuaremos lutando e não aceitando propostas ilegítimas. Seguimos na busca pela garantia de nossos direitos.

Erramos Na edição número 11, o jornal A Sirene errou. Na matéria "Primeira missa", localizada na página 30, não publicamos o seguinte depoimento: “No dia 4 de dezembro de 2016 fui convidada pela Paula para participar da primeira missa do ano, na Igreja de São Bento, em Bento Rodrigues. Foi um momento único na minha vida, muita emoção aconteceu naquele lugar. Padre Geraldo fez uma celebração maravilhosa, eu e meu filho Matheus ficamos admirados com a fé daqueles que perderam tudo. Tantos com os olhos cheios de esperança, o capricho daquele altar com toalhas brancas. É de doer ver que o que sobrou foram tábuas comidas, é de doer o coração. Enfim, termino desejando àquelas pessoas paz e sabedoria para correrem atrás de seus direitos. Sou muito devota a São Bento, ele não desampara ninguém”. Carmen Também informamos, na matéria “Sobre como tornar a morte invisível”, localizada na página 20, que a fotografia era de autoria do arquivo pessoal do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), o correto é Lucas Prates/ Jornal Hoje em Dia. Pedimos desculpas aos envolvidos e reiteramos que vocês, leitores, nos ajudem a corrigir nossos erros escrevendo para a seção “Espaço dos leitores”. jornalasirene@gmail.com

AVISO Não assine nada: • Se tiver dúvidas sobre o conteúdo; • Se precisar de ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista; • Se alguém disser que “todo mundo já assinou, só falta você ”; • Se você quiser consultar algum familiar antes; • Se alguém disser que “se não assinar, não terá mais direito ”.

Atenção! Se alguém tentar fazer você assinar qualquer coisa, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. O tempo para analisar e questionar qualquer documento é seu!

Leve essa mensagem a todos os outros atingidos

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Expediente Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena (Editor Chefe), Angélica Peixoto, Ana Elisa Novais, Antonio Santos, Cristiano José Sales, Fernanda Tropia, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Rodolfo Meirel, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Silvany Diniz, Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Diagramação: Silmara Filgueiras | Foto de capa: Rodolfo Meirel | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), MICA/Brazil Foundation (Carlos Paranhos, Daniela Felix, Flávio Ribeiro, Genival Pascoal, Larissa Helena, Miriã Bonifácio e Wandeir Campos) e Projeto de Extensão A Sirene e o Direito à Comunicação dos Atingidos pela Lama (Curso de Jornalismo/ICSA/UFOP)| Revisão: Ana Elisa Novais, Elodia Honse Lebourg , Fernanda Tropia, Lucimar Muniz e Miriã Bonifácio | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana)| Impressão: Sempre Editora | Tiragem: 2.000 exemplares Fonte de recursos: Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Arquidiocese de Mariana.


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Olhar de fora: um rio que ainda passa Por Rafael Drumond (Professor e jornalista)

“Quem nunca sentiu o corpo arrepiar, ao ver esse rio passar” – cantava o refrão do samba-enredo da Portela, campeã do carnaval carioca de 2017. Com um desfile em homenagem aos rios do Brasil e à própria história da agremiação, o grito da águia cumpriu a promessa anunciada e emocionou os presentes na última noite de desfiles da Marquês de Sapucaí. Entre os rios que a escola de Madureira fez nascer na avenida, fomos levados às águas marrons da bacia do Rio Doce. Rompendo o curso azul portelense, uma alegoria e uma ala jorraram memórias do rompimento da Barragem de Fundão, responsabilidade das empresas de mineração Samarco, Vale e BHP Billiton. Na ala “O Lamento do Rio Doce”, foliões sustentavam dizeres de revolta, como “dor”, “tristeza”, “justiça” e “crime”. Na sequência, o carro “Como era doce o meu rio” trazia esculturas de pescadores em estado de agonia, inteiramente tomados pela lama que escorria do alto da alegoria em direção ao sambódromo. Nele, apenas um ator simbolizava a dor dos atingidos pelo desastre. Sem dança, canto ou plumas, a alegoria fez valer seu silêncio em meio ao som forte do canto azul e branco. E assim, nesse estranho barulho gerado por aquilo que emudece, a Portela protagonizou um dos momentos mais políticos do carnaval carioca. Em meio à beleza da “maior festa do mundo” – mensagem espalhada pelo sambódromo –, a escola arrepiou seus espectadores ao trazer à cena aquilo que não podemos esquecer: em plena avenida, a barragem de Fundão rompeu-se mais uma vez, ali na forma de um espetáculo mundialmente televisionado. Por um lado, essa incorporação do desastre por uma indús-

tria criativa e altamente lucrativa, como as escolas de samba cariocas, levanta questões que não podem ser ignoradas. O que significa transformar a tragédia em alegoria carnavalesca e cobrir de dourado a lama que ainda escorre de Fundão? Assim como o restante da escola, o carro e a ala que referenciavam o desastre eram lindos, donos de um apelo estético irresistível. Haveria uma impropriedade ética nessa sedução? Por ora, deixo a pergunta, pois é com ela que me encontro desde o desfile. Contudo, paralelo à desconfiança, existe uma crença forte de que a luta contra o esquecimento se faz em múltiplos campos de batalha, inclusive neste, espetaculoso. Essas formas de visibilidade, desde que constantemente avaliadas, refletidas e criticadas, são fundamentais para que o desastre e suas consequências não sejam inundados pelas águas turvas da desmemória – um projeto que atenderia, antes de tudo, às forças que querem esconder a lama sob diques de desinformação e impunidade. A necessidade de transformar o desastre em memória fica ainda mais evidente em alguns aspectos da repercussão do desfile da Portela. Da plateia, ouvi comentários como “Olha o carro de Mariana”, assim como parte da mídia entendeu que a escola prestou uma “homenagem” à cidade. E ainda: Fátima Bernardes, comentadora do evento, caracterizou o desastre como o rompimento que deixou “uma cidade inteira coberta”. Nota-se aí um reducionismo, uma imprecisão sobre o episódio e uma falta de consciência socioambiental que precisam ser trabalhados. Para Mariana, cabe o desafio de contestar essas falsas percepções, o que só pode ser feito a partir do entendimento real e complexo dos processos que definem o

curso de seus rios, por mais difíceis e traumáticos que sejam. Não será com silêncio e mascaramento que a cidade reerguerá qualquer imagem verdadeira diante do país e do mundo. O próprio carro da Portela trazia certo distanciamento em relação à realidade do desastre. Nele, só um perfil de atingido foi representado: o homem pescador. Na alegoria, não havia mulheres, crianças, idosos. Os índios Krenak não foram lembrados – apesar da relação tão forte que estes nutriam justamente com as águas do Rio Doce. Além disso, impossível não notar a fragilidade gerada pela ausência dos próprios atingidos no desfile da escola. Que força política teria surgido na avenida caso fossem estas as pessoas a sustentarem os dizeres de revolta na ala “O Lamento do Rio Doce”?

Essas perguntas indicam que o caminho da luta é árduo e longo. Contudo, a vitória da Portela é também daqueles que lutam pelo não esquecimento da tragédia. Não podemos fingir que o rio de lama da Samarco não passa, diariamente, por Mariana e por toda a bacia do Rio Doce. Não podemos acreditar no futuro de uma cidade, de um estado ou de um país que seja forjado sem considerar suas memórias, seus cantos e suas dores. Movidos por uma tristeza que nenhuma correnteza há de levar e pela confiança de que a luta é também um modo de cura, o desastre e seus atingidos devem marcar seus lugares nessa história em curso. Que a sirene ecoe! Que a alegria contagiante do carnaval seja atravessada pelo grito de dor e resistência daqueles que sobrevivem diariamente ao rompimento de 2015. Foto: Cezar Loureiro/Riotur


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REDE COLABORATIVA DE APOIO AOS ATINGIDOS: Gesta A Rede Colaborativa de Apoio aos Atingidos que apresentamos ao longo desta série, iniciada na edição de janeiro de 2017 é composta por diversos grupos que atuam junto aos atingidos buscando fortalecê-los como protagonistas de suas ações. Anteriormente apresentamos o Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais da Universidade Federal de Ouro Preto (GEPSA/UFOP) e o Coletivo Um Minuto de Sirene Por GESTA/UFMG Com o apoio de Lucimar Muniz

O GESTA - Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais está vinculado ao Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - FAFICH/UFMG e é formado por professores, alunos e pesquisadores das áreas da Antropologia, Sociologia, Geografia, Ciências Socioambientais e Direito. Criado em 2001, o grupo desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão a partir de uma abordagem interdisciplinar, dedicada à compreensão dos conflitos e desigualdades socioambientais na realidade atual. Dentre os projetos realizados pelo GESTA/UFMG está o Observatório dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais. O GESTA também conduz pesquisas dedicadas ao tema da mineração e seus conflitos no estado de Minas Gerais, com destaque aos casos relacionados aos projetos Minas-Rio e Manabi, empreendimentos inseridos na bacia do Rio Doce. Desde o rompimento da barragem de Fundão o GESTA/ UFMG estuda os efeitos do desastre sobre as populações atingidas e os mecanismos institucionais criados para a reparação das perdas e danos sofridos no âmbito dos municípios de Mariana e Barra Longa. Neste contexto, foi aprovado em 2016 o projeto O Desastre e a Política das Afetações: compreensão e mobilização em um contexto de crise, financiado pela FAPEMIG com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Além da análise das interações entre as

vítimas e as instituições envolvidas no tratamento do desastre e suas consequências, o projeto objetiva a construção de espaços de troca, reflexão e intercâmbio que contribuam para o fortalecimento e a participação dos grupos atingidos nos encaminhamentos institucionais estabelecidos para o caso, através da realização de oficinas participativas junto às populações atingidas pelo desastre da Samarco (Vale e BHP Billiton). Dentre as ações do projeto, o GESTA/UFMG apresentou em novembro de 2016 o estudo sobre o Cadastro Integrado do Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados (PLCI), elaborado pelas empresas Synergia e Samarco. O parecer produzido pelo GESTA/UFMG apontou equívocos, insuficiências e lacunas do formulário e dos procedimentos de cadastro quanto aos objetivos de reparação e in-

denização dos danos causados, concluindo pela necessidade de reelaboração e complementação dos procedimentos e instrumentos propostos para o levantamento de perdas e danos. Também inserida no contexto do projeto, foi realizada nos dias 18 e 19 de fevereiro de 2017 uma primeira oficina participativa de mapeamento e levantamento dos danos coletivos e particulares junto aos atingidos de Paracatu, na cidade de Mariana/MG, com o apoio da Cáritas Brasileira, entidade que presta assessoria técnica aos atingidos do município. Um dos pontos que mais vem chamando a atenção do grupo são as estratégias corporativas centradas em negociações e soluções individualizadas que contribuem para a fragmentação e marginalização das ações de mobilização dos atingidos.

Como balanço, as parcerias entre a assessoria técnica, movimentos sociais e academia tem produzido resultados positivos. A experiência do GESTA/UFMG em pesquisa e extensão sobre processos de relocação compulsória (reassentamentos) e seus efeitos para as famílias atingidas pode contribuir para o monitoramento e o controle social do processo. O intuito é acompanhar de perto a reformulação do cadastro e o reassentamento das comunidades, evitando que problemas recorrentes em tais situações se repitam neste caso.

Conheça o GESTA/UFMG Acesse o site: www.conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br ou nos escreva pelo e-mail gesta@fafich.ufmg.br

Foto: Thomás Mota

Oficina realizada junto a moradores de Cachoeira do Tenente, município de Ferros/MG, atingidos pelo empreendimento minerário da Manabi.


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Papo de cumadres:

o leilão da Samarco Duas cumadres, Consebida e Clemilda comentam sobre o valor que a Samarco pretende pagar pelos terrenos do Gesteira e seus bens de raízes devastados pela lama da barragem de Fundão. Por Sergio Papagaio

Consebida comenta com Clemilda: - Cumadre cê viu conté que a samarcu qué pagá os nossos trem que a lama estragô? - Vi sim cumadi, isso me faz lembrá do leilão da festa da padroeira, oia só: uma toçera de cana 33 centavos. Aquele vaso de samambaia de Clotilde foi rematado por 35 reá, se fosse cana seria mais de 100 toçera. - Um pé de mandioca ês qué pagar 1,19 um real e dezenove centavo. Um prato de bulin de mandioca que Tonha deu pro leIlão saiu por 15 reá. Vale uns 14 pé de mandioca e cada pé chegava a dá uns 20 quilo. Se somá tudo um prato de bulim vale mais que 280 quilo de mandioca. - Ês também qué leiluá us quintá, cê lembra quanto nós plantava lá? - E o que nos culia ajudava a tratá da mininada. - O quintá dá sigurança, eu pranto pras criança. Sem o quintá, se eu perder meu emprego o que meus fio vai cumê? lêncasa é só eu, tem marido não. - É cumadi se nós vendê nosso quintá o dinheiro vai acabá, mas a terra tá lá pra nós podê prantá. - Cumadre numa comparação nós vale menos que um pé de limão. - Nun intedi não. - Oia só esse comparamento; o leilão de gente que fizero em Bento, saiu por cem mil a vida de um rebento. - Que tristeza cumadre! Nun gosto nem de lembrá as mãe que perdeu fio. - Pois eu tenho aqui por dentro um triste pressentimento que só vai acabá meu sofrimento quando eu fô arrematada pelo Senhor do firmamento. - Não se apoquente não, o fim de todo leilão é acabá na mão de Deus ô du cão e ocê cumadre nun é ruim não. - Cumade cê pode me achá meio tonta, mas eu tava fazendu uma conta. Se nós duas num tivesse juntado pra sarvá da lama meu fio Gustavo, que só tinha cinco ano, e se ele vivê mais oitenta ano no preço que tão pagano, cem mil por um humanu, a vida dele no leilão da compania, se a gente transformasse isso em dia veja bem cumé que choca , um dia da vida dele seria 10 toçera de cana ô três pé de mandioca. - Tudu isso é muito triste, e me ponhu a pensá cumé que a lama foi matá meu pé de cambucá. Foi eu que ajudei vovó a prantá, ele não dava fruta de chupá, dava era uns beijo de vovó, pra nos panhá. - Não se avexe não cumadre nós é rico de amô, amizade e felicidade e ês é tão pobre que a única coisa quês tem é dinhero. Então é purisso quês faz o leIlão, pois na vida ês só aprendeu esse disispero de resorver tudo com o dinheiro.

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O que ninguém te perguntou?

“Somos todos atingidos, mas ninguém percebe” disse Jennyfer ao nos contar sobre como foi e ainda é sua vida após o rompimento da barragem. Sonhos fragilizados, preconceitos escancarados e saudades arrebatadoras. Um misto de emoções na vida desses jovens, adolescentes, que sentem muito o desastre de Fundão. Difícil é alguém os perguntar sobre isso, mais raro ainda é ouví-los. Por Mônica Santos e Larissa Helena

Júlio Cesar Salgado – 18 anos

Lembro que eu estava tomando banho quando ouvi minha mãe gritando para eu sair porque a barragem tinha estourado. Saí correndo e fui salvar a vó de Jhennyfer e Pablo. As coisas hoje em dia não estão ruins, mas é muito difícil pelos outros, por esses preconceitos que a gente sofre. Falam que a gente é culpado o tempo todo. Eu tenho o sonho de ter minha própria academia, quero estudar pra isso acontecer.

Gabriel Marcos Cardoso Silva – 13 anos

Lembro que recebi uma ligação do meu pai dizendo: - Filho, o Bento acabou! Fui para casa da minha vó, que é em Mariana, e liguei a TV. Foi quando percebi que era verdade. Bento já não existia mais. Uma das coisas que eu mais tenho saudade é poder andar de bicicleta lá em Bento. Nunca esqueço de quando havia ganhado uma de presente no dia de Natal. Nesse dia fiquei na rua até de madrugada andando de bicicleta. Lá a gente brincava o dia todo, aqui não tem isso.


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“ Lá no bento...

a gente tinha o que fazer, não precisa de internet pra passar o tempo.

a casa era nossa, essa não é. eu tinha liberdade e segurança, aqui não.

Tenho medo desse novo Bento virar um centro histórico pra turista passear.

Pablo Henrique Fialho dos Santos – 16 anos

Estava na escola quando a barragem rompeu. Eu achava que era de água, que depois que ela passasse tudo ia voltar ao normal. Que ilusão! Para mim, a coisa mais difícil é adaptar. É ruim, sem contar que todo mundo me julga; É muito preconceito em todo lugar. Me dói pensar que a história da gente não recupera, nunca, e o que vivemos lá vai estar sempre em nosso coração.

Jennyfer Fialho dos Santos – 12 anos

Eu também tava na escola no dia, só lembro da professora chorando e a gente saindo correndo. O tempo todo eu pensava na minha vó em casa, se alguém iria salvá-la. Queria ir até onde ela estava, porque se eu morresse ia morrer junto dela. No dia, o chão tremia, o barulho era forte demais e a imagem, era de um mar de lama. Hoje, meu sonho é que meus avós possam entrar dentro da casa deles lá em Bento e falar que é deles. Só quero vê-los felizes. Isso não deveria ser difícil.

Fotos: Larissa Helena

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Foto: Lucas de Godoy

De atingido para atingido: reconstrução

Por Antônio Geraldo Santos Com o apoio de Miriã Bonifácio

A palavra reassentamento soa como um alento e traz esperança para os atingidos. As pessoas estão angustiadas num local diferente do original. -“Aqui o dia parece mês”. Por isso, vemos na reconstrução a oportunidade de termos de volta o que nos foi brutalmente subtraído. As comunidades destruídas levaram séculos para serem construídas e ainda estavam em evolução. Agora, temos o desafio de reconstruir tudo isso em três anos, pois os atingidos têm pressa, estão ansiosos e ainda têm medo de não terem de volta suas casas e tranquilidade. É importante lembrar que nada vai surgir de repente e que apesar do cansaço da cidade e da ansiedade, várias etapas do processo de reconstrução serão necessárias, como licenças ambientais, elaboração e

detalhamento dos projetos das ruas e casas, até chegar na construção. Essas etapas passam por órgãos públicos e é de suma importância que elas não sejam atropeladas, pois darão segurança para o que for reconstruído. O trabalho é enorme e na elaboração e execução desse projeto é fundamental a nossa participação. Somos nós que iremos frequentar as praças e não podemos deixar o arquiteto fazer tudo do seu jeito, muito menos permitir que alguém defina o modelo de nossas casas sem antes nos consultar. E a dificuldade não se restringe às casas e ruas, mas também ao modo de vida das comunidades. Laços terão que ser refeitos num lugar totalmente diferente e não há técnico que consiga refazer uma comunidade com

a nossa identidade sem entender o contexto em que vivíamos. Somente os atingidos são capazes de trazer esses elementos de volta. Há uma luta enorme pela frente até o abstrato se tornar realidade. Temos urgência e ainda vivenciamos um cenário irreal. Precisamos unir forças e tomar as rédeas desse processo, pois assim o tempo de execução será menor. Os atingidos devem participar das reuniões para que com a voz ativa possam subsidiar os técnicos na execução de um trabalho que seja satisfatório. Participar dos encontros pode ser cansativo, mas é necessário. Esse projeto passa pelo esforço de cada atingido e por meio da nossa atuação a esperança do reassentamento vai se tornar real e deixar de ser uma frustração.


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Assessoria técnica: o que são os grupos de base? Por Assessoria técnica

A Cáritas Brasileira - Regional Minas é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos. Sua atuação é em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma sociedade justa, igualitária e plural. Em Mariana a Cáritas coordena o projeto de Assessoria Técnica aos atingidos/as pela barragem de Fundão. A equipe de Assessoramento técnico aos atingidos/as vem trabalhando desde outubro de 2016 em Mariana e tem como objetivos centrais: promover a reparação de direitos aos atingidos/as e garantir o acesso à informação e ampla participação de todos/as os/as atingidos/as nos processos de reconstrução, indenização e compensação. Assessoria orienta tecnicamente as comissões de moradores, mas também dialoga com toda a comunidade, entendendo que é

somente com a organização coletiva que direitos são garantidos. Um desses canais de diálogo da Assessoria Técnica e das Comissões com as comunidades são os Grupos de Base (GB´s). Os grupos de base são espaços das comunidades com a assessoria técnica, onde são apresentados e discutidos os assuntos que estão em pauta nas reuniões de comissões, como por exemplo: os processos de reassentamento, reconstrução e indenização. Serve também para ouvir outras demandas da população, buscando garantir que todos/as tenham voz ativa nos processos que envolvem a reparação de direitos. O trabalho de base é uma prática multiplicadora e solidária que visa a construção coletiva e a participação, como o próprio nome sugere é a base, o alicerce, o que dá sustenta-

ção e deve portanto, orientar todo o trabalho a ser desenvolvido. A Assessoria Técnica em conjunto com as Comissões de Atingidos/as tem organizado Grupos de Base nas comunidades rurais e com as famílias atingidas que estão morando em Mariana, os grupos encontram-se quinzenalmente em lugares previamente definidos. Informe-se sobre seu grupo com a comissão de atingidos/as e assessoria técnica e participe. É somente com união, participação da comunidade e trabalho coletivo que direitos são conquistados! Como nos encontrar? Entre em contato com Assessoria Técnica pelo número: (31) 3557-2488. Foto: Wandeir Campos

Nos encontros os atingidos discutem os assuntos que são pertinentes para a contínua luta dos seus direitos


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Cadastro para quem? Por Johne e Mauro (da Comissão dos Atingidos de Mariana) Com o apoio de Assessoria técnica e Miriã Bonifácio

O “Cadastro Integrado do Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados (PLCI)”, elaborado e aplicado pelas empresas Samarco e Synergia, é um formulário que pretende levantar e avaliar os danos às pessoas e famílias atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Porém, após avaliação do Ministério Público e dos próprios atingidos, ele se mostrou insuficiente para contemplar tudo a que eles têm direito. Diante disso, a Assessoria Técnica vem trabalhando desde março junto com os Grupos de Base dos atingidos, contratando equipe e levantando perdas e danos para subsidiar a proposta de revisão do formulário para que, assim, ele seja aplicado em conjunto, com isenção e imparcialidade. Veja no documento, abaixo, pontos que levantaram dúvidas e levaram à proposição da revisão do Cadastro para os atingidos de Mariana. Depois de uma reunião realizada no Centro de Convenções de Mariana, no último dia 13, com a participação dos atingidos, da assessoria técnica, do Ministério Público, na figura de Guilherme de Sá Meneghin, promotor de Justiça, e de representantes da Samarco, ainda não se sabe qual a aceitação da empresa em relação ao pedido de revisão do Cadastro. Eles protocolaram uma “resposta” na Justiça Federal e a previsão é que até o dia 13 deste mês os atingidos tenham conhecimento do parecer. “Como sempre eles fazem de tudo para adiar/atrasar as coisas. Estão usando do tempo, que é o principal aliado deles neste momento. Quanto mais demorar, mais as pessoas ficarão desesperadas e, consequentemente, aceitarão a primeira coisa que lhes for oferecida”. Johne

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A Samarco e os R$0,33 centavos de indenização Proposta da empresa inclui pagar R$1,19 por um pé de mandioca e R$0,33 por uma touceira de cana. Família que aceitar ficará sem terra. Por Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Foto: Simone Silva

Registro da destruição em Gesteira. Lama também encobriu os lotes que produziam alimentos

O Programa de Indenização Mediada (PIM) é uma das ações previstas no acordo federal entre a Samarco (Vale\BHP Billiton) com a União e os estados de Minas Gerais e o Espírito Santo que criou a Fundação Renova. Cada família atingida, após ser cadastrada pela mineradora, deve se dirigir ao escritório de indenização onde será atendido por analistas da Fundação e “mediadores neutros” contratados pela empresa que vão apresentar a proposta com base nas informações do cadastro. Em Mariana, os atingidos ainda não fizeram o cadastramento porque consideram que a Synergia, contratada pela Samarco, apresentou um plano de cadastro não validado pelo conjunto dos atingidos, que não respeita a história das comunidades, as condições próprias e a realidade das famílias apresentando um material cheio de “armadilhas” que pode resultar na retirada de direitos. Este é um assunto amplamente discutido pelo MAB, pela Comissão dos Atingidos, pelo Ministério Público e pela aAssessoria tTécnica organizada pela Cáritas Brasileira - Regional Minas.

Sem respeitar a necessidade de uma justa e esclarecida validação do cadastramento por parte dos atingidos, a Samarco avançou com o cadastro nas cidades de Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado que estão na Comarca de Ponte Nova onde a competência do processo está na Justiça Federal. Os atingidos responderam a um cadastro complexo sem o acompanhamento de uma aAssessoria tTécnica independente, que somente agora está sendo encaminhada com o Ministério Público e a Fundação. Mesmo nestas condições, o cadastramento já avançou e com ele o Programa de Indenização Mediada (PIM). “Agora, cada família tendo em mãos o seu cadastro, deve avaliar em casa e sozinho o que respondeu. E depois se dirigir também sozinho a um escritório.” Aqui está um problema fundamental: além dos atingidos não terem participado como protagonistas da construção deste Programa, são obrigados a entrar em um processo individual que não tem possibilidade de garantir uma reparação justa pela simples des-

proporção entre as partes”, avalia Thiago Alves, militante do MAB. “A negação do processo coletivo na validação e avaliação do cadastro e de situações complexas, como o reconhecimento de garimpeiros artesanais, é uma nova violação de direitos que terá várias consequências em toda a bacia”, avalia Thiago. Acordo oferece indenização irrisória e faz família ficar sem terra Para avaliar a extensão dos danos deste formato de cadastramento e indenização, pode-se considerar o que o PIM ofereceu para uma família de Gesteira que teve um lote de quase 1.000m² às margens do rio Gualaxo do Norte completamente tomada pela lama. O casal de idosos está casado há 45 anos sempre morando na comunidade. Em 1979, uma grande enchente provocou a destruição do povoado que foi reassentado em uma parte mais distante do rio, chamado hoje de Mutirão. Mas, o casal e as demais famílias que moravam na área destruída continuaram a ocupação praticando a agricultura de subsistência. “Depois que respondemos o cadastro, recebermos o caderno das respostas, achamos que estava tudo certo. Depois, fomos chamados para ir no escritório. Nos levaram de carro. Lá, um pessoal que se apresentou como analista e outro como mediador, mas não disse de que empresa era. Eu questionei porque estavam sem crachás, não estavam identificados. Ficaram meio sem o que dizer e disseram que os crachás chegariam em 10 dias”, conta a idosa de 64 anos. Durante a entrevista, os analistas da Fundação entregaram para o casal uma folha com todos os dados e valores propostos. Além dos valores referentes ao terreno, o documento traz a valoração de cada planta que o casal tinha, entre eles 33 centavos pela touceira de cana e 1,19 centavos pelo pé de mandioca. Todos os pés somados

darão menos de 8 mil reais de indenização: mamão, laranja, limão, tangerina, além de plantação de feijão e milho e muito mais. “Achamos um absurdo, muito barato. Quem decidiu estes valores? Nossa cana chegava a 3 metros de altura cada uma e um pé de mandioca pode dar até 20kg. Se vendermos isto por 3,00 o quilo, já teremos 60,00,”, questiona o agricultor de 69 anos. “E a questão não é só preço, porque não tínhamos a prática de vender o que tinha no lote, mas o fato de que ao aceitarmos este acordo pegaremos o dinheiro e não teremos direito ao reassentamento. Ficaremos sem terra, sem o lugar de plantio que sempre tivemos”, completa a agricultora. “O que nós queremos é uma indenização melhor e a garantia de terra no reassentamento e não tivemos esta opção no escritório. Nosso terreno não estava à venda”, completa. Para Thiago Alves, aqui está mais um exemplo de violação de direitos. “Queremos saber quem e como foram definidos estes valores que ignoram o real valor financeiro, mas, sobretudo, a relação das famílias com a terra, a importância da economia de subsistência para esta região. Além disto, comprar a terra e a produção por um preço tão baixo e deixar a família fora do reassentamento é perverso porque tira a possibilidade dos filhos e netos usufruírem deste direito”, afirma. Na busca de garantir um instrumento que leve informação para as famílias e a melhor possibilidade de uma justa reparação, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Ministério Público também lutam para que Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado tenham uma Assessoria Técnica. Em Barra Longa, a expectativa é que semana vem seja autorizado o depósito para que se iniciem os trabalhos.


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PARA NÃO ESQUECER

Nossas cachoeiras A lama que nos atingiu também atingiu bens naturais, que jamais voltarão a ser os mesmos. As cachoeiras que constituíam a paisagem, a memória e a identidade do local onde vivíamos não existem mais ou são quase inacessíveis. Por nós os Atingidos

Cachoeira do Bento Mônica Era muito bom quando íamos à cachoeira. Ficávamos o dia todo apreciando aquela beleza, era uma paz. Aquelas águas cristalinas e geladas. Por 1 ano e 3 meses, achei que nunca mais voltaria a ter essa sensação, a ver tanta beleza. Mas no dia 18 de fevereiro me arrisquei e fui junto com Olívia, Branco e Cristiano. Andamos no rio, pois o caminho está impossível por causa do mato e dos entulhos misturados com a lama. Atolei, perdi os chinelos, mas valeu muito a pena. Incrível como o Bento me faz tão bem.

Paula A cachoeira de Bento Rodrigues pra mim era um refúgio. O lugar onde eu juntava as meninas e ia me divertir. Hoje em Mariana, não tenho a meninada, porque está todo mundo longe. E também não tenho a minha querida cachoeira. Muita saudade da nossa cachoeira, muita mesmo. Samara Que bom era poder ir no nosso lugar. Triste e difícil é não poder voltar. Cristiano Foi um sentimento de limpeza da alma voltar à nossa linda cachoeira. Foi como voltar no tempo.

Branco A cachoeira é a coisa mais linda e que a Samarco não conseguiu destruir. Coisa de Deus.

João Pedro Eu gostava do Bento. Era um lugar legal, eu andava de bicicleta. Gostava da cachoeira também porque era muito legal, eu nadava lá. Agora, aqui em Mariana, sem a cachoeira não “tá” legal não.

Olívia Ir à cachoeira foi uma aventura inesquecível! Me diverti muito, nadei naquela água gelada e gostosa e matei a saudade. Pretendo voltar lá muitas vezes.

Marquinhos Esta maravilha foi nossa por muitos anos e tem que continuar sendo por muitas gerações que vierem pela frente.

Saudades de Doracema Rayane A cachoeira localizada dentro do distrito de Paracatu era o nosso lazer. Muito aconchegante, fresca e de águas calmas, ela era motivo de divertimento para todos. Tinha pedras e sua profundidade chegava a tampar uma pessoa de 1m e 90cm, mas ficava ainda mais funda dependendo da sua “lonjura”. Por estar localizada numa mata fechada, haviam diversas árvores ao redor da cachoeira, o que criava muita sombra e aumentava o frescor da área. O acesso para chegar até a cachoeira não era difícil, e no caminho tinha pés de manga que faziam com que ela ficasse ainda mais bela e familiar. Nossa população era privilegiada com essa dádiva da natureza!

As águas do Gama Madalena Das Dores Quando chegava o final de semana o rio quase não cabia de gente. A água era temperada, cristalina, uma maravilha! Quando a turma se juntava para ir nadar era uma alegria tão grande que só se via sorrisos no rosto. O barulho da água era encantador. Às vezes eu nem entrava, ficava observando do lado de fora ela rolar, os desenhos que iam se formando. Cada palavra que ponho neste texto é uma lembrança que vem em minha memória. Essas lembranças me fazem sorrir. Já o que temos hoje dá vontade só de chorar. Sei que existem muitas cachoeiras bonitas, mas nenhuma delas será igual à nossa, porque aqui os adultos viravam crianças de novo. Era algo especial essa cachoeira, a alegria tomava conta de todos e não existia espaço para pensar em coisas ruins. É, essa nossa água era mágica. Mas ainda carrego uma dúvida comigo, será que um dia teremos a nossa preciosidade de volta?


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PARA NÃO ESQUECER

Foto: Arquivo pessoal / Cátia

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Foto: Cristiano Sales Para chegar até a cachoeira de Bento hoje, temos que enfrentar os entulhos (Bento Rodrigues)

Foto: Arquivo pessoal / Cátia

Doracema eternizada na memória do povo de Paracatu Foto: Cristiano Sales

A água cristalina e gelada recompensa nosso esforço (Bento Rodrigues)

O antes e depois de Doracema (Paracatu) Foto: Milton Sena

Antes da lama a cachoeira era o maior lazer da comunidade do Gama


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Março de 2017

PARA NÃO ESQUECER

Direito de entender: Fundação Renova Por Guilherme de Sá Meneghin / Promotor de Justiça

A instituição da Fundação Renova não exclui a responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP Fundação é uma espécie de pessoa jurídica, caracterizada como um acervo de bens, criada por meio do ato de dotação ou instituição e que, dessa maneira, recebe personalidade jurídica para realização de fins não lucrativos. Segundo o artigo 62, parágrafo único, do Código Civil, as fundações somente podem ter as seguintes finalidades: I – assistência social; II – cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III – educação; IV – saúde; V – segurança alimentar e nutricional; VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII – pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos; VIII – promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; IX – atividades religiosas. Sobre a Fundação Renova Nota-se que as fundações cumprem importante papel social, pois, ao contrário de outras pessoas jurídicas, como as empresas, não objetivam o lucro, mas sim a execução de ações de interesse coletivo, como a defesa do meio ambiente e da saúde. Por isso muitos hospitais e organizações não governamentais (Ong’s) são, juridicamente, fundações e, assim, estão sujeitas à fiscalização pelo Ministério Público (artigo 66 do Código Civil).Após o desastre do dia 05 de novembro de 2015, provocado pelo rompimento da barragem de Fundão da Samarco Mineração, a própria Samarco e as empresas acionistas desta (Vale e BHP) formalizaram um acordo (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, TTAC, conhecido como “acordão”), com a União (Governo Federal), Estado de Minas Gerais e Estado do Espírito Santo, no dia 02 de março de 2016, perante a Justiça Federal, prevendo a criação da Fundação Renova, para executar programas de recuperação ambiental e socioeconômica que são de responsabilidade obrigatória da Samarco. É o que diz, em linhas gerais, o artigo 6º (sexto) do estatuto da Fundação Renova. Embora essa estratégia não seja ilícita, porque, legalmente, não extingue a responsabilidade da Samarco, a Fundação Renova e, particularmente, o órgão que direciona a fundação, o Comitê Interfederativo, não contempla efetiva participação dos atingidos pelo desastre. Não existem mecanismos claros, amplos e eficientes para que as vítimas participem das deliberações e decisões acerca de seus próprios direitos, diariamente analisados pela Fundação. Diante dessa situação, o Ministério Público Federal questionou judicialmente o TTAC e obteve a revogação da homologação do acordo no Superior Tribunal de Justiça, com base, principalmente, na inexistência de participação das vítimas. Em Mariana, a Comissão de Atingidos, a Assistência Técnica gerida pela Cáritas Brasileira - Regional Minas e o Ministério Público trabalham para que as atividades da Renova desenvolvidas aqui sejam transparentes e atendam aos interesses dos atingidos, sem perder de vista que a Samarco é a verdadeira responsável pelos danos causados pela tragédia, tanto é que, nos processos coletivos ajuizados pelo Ministério Público, a Samarco, a Vale e a BHP sempre são intimadas a comparecerem e são as entidades que assumem a responsabilidade. Vale dizer que a Fundação não pode fugir de seu escopo. Financiar atividades distintas da execução dos programas de recuperação previstas no estatuto constitui evidente desvio de finalidade, sujeitando a fundação e seus gestores a diversas sanções, podendo chegar até mesmo ao afastamento do gestor e à extinção da entidade (artigo 69 do Código Civil). O patrocínio de atividades de interesse exclusivo de prefeituras, por exemplo, não é permitida. Em síntese, a constituição da Fundação Renova não exclui a responsabilidade das empresas (Samarco, Vale e BHP) e, por outro lado, enquanto estiver operando, a fundação deve ser administrada de acordo com a finalidade para a qual foi criada, cabendo aos atingidos velarem, juntamente com o Ministério Público, para que a fundação seja realmente um ente que valorize os direitos de todos os atingidos pelo desastre.

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Março de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

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AGENDA DE MARÇO 6 Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

14 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião aberta do Fórum Acolher Horário: 8h30 - 12h Local: Centro Arquidiocesano de Pastoral (Rua Dom Silvério, 51 - Centro)

Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Convite especial:

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

29 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Observações: *Agenda sujeita a alterações **As demais reuniões quando forem marcadas, serão comunicadas através dos grupos de base.


Lucila: uma tentativa de recomeçar Muitas são as dúvidas em torno do terreno Lucila, onde será reconstruído o novo Paracatu. Um ano e quatro meses depois, os moradores ainda não têm respostas concretas sobre o lugar. Apesar disso, todos os atingidos do distrito têm uma certeza: “queremos que ele se pareça ao máximo com o que era Paracatu e que a gente viva bem”. As casas destruídas pela enxurrada de lama em Paracatu de Baixo serão reconstruídas no terreno Lucila, que fica localizado no distrito de Monsenhor Horta, em Mariana. O local foi escolhido pelos próprios atingidos, em assembléia realizada no Centro de Convenções no dia 3 de setembro de 2016. No total, foram 67 votos que decidiram pelo local. Também estavam em votação os terrenos de Toninho e Joel, com 33 votos e 1 voto, respectivamente.

Por Luzia Queiroz Com o apoio de Carlos Paranhos e Wandeir Campos

Minha visão como atingida é a de que Lucila é muito linda, a vista é maravilhosa e quando for urbanizada será um lugar lindo para se viver. Quanto a fonte de trabalho ela não oferece muita opção, só tem a fazenda de Zezinho e "Café DU MONTE". Também não tem lugar para nos refrescarmos e falta espaço para todos os sitiantes. Sem isso muitos não têm a possibilidade da renda, do emprego, visto que os moradores de Paracatu de Baixo trabalham na terra. Além disso, o que mais queremos é manter a vizinhança e o mínimo da situação em que vivíamos, pois já perdemos muito. Sei que cada um tem sua forma de pensar, mas cabe a todos escolher como se quer viver. Sei que a comunidade quer ir embora o mais rápido possível, porém temos que arrumar a casa primeiro para depois colocar as coisas no lugar, e em um lugar definitivo para que não tenha arrependimentos. Não quero milhões, quero a minha dignidade de volta. Quero poder dizer que esta é a minha casa e não quero que me digam “a Samarco deu para você”, e sim “eu que fiz”. Não vou carregar esse nome pelo resta da minha vida. Como diz meu marido Caetano, que nasceu e cresceu nessas terras: “A minha casa foi eu que construí. Sou pedreiro e não quero que digam que ganhei da Samarco. Não tive ajuda nem da Prefeitura e nem da Samarco, estou indo contra a minha vontade, não quero dormir pensando que outra desgraça caia sobre nós, seria viver e morrer a cada dia que nasce. Andar com a cruz na cabeça. Eles acabaram com tudo e vão acabar comigo”.

Um tiro no escuro Nós conversamos com os melhores engenheiros da Samarco e desde o início eles nos disseram que iria caber lá, mas é visível que não cabe. Além disso, na maquete que foi apresentada, com a realocação de casas e ruas, vimos que muita coisa estava errada, como por exemplo a Rua Furquim que está dividida. Acho que um dos maiores problemas, logo quando começamos a tratar com a empresa, foi a falta de uma Assessoria Técnica conosco, para nos informar de como todo o processo deveria ser. Foi como ter dado um tiro no escuro, e agora é que nós estamos tendo um conhecimento maior sobre Lucila e outras questões. Romeu Oliveira


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