A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 7 - Edição nº 72 - Abril de 2022 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Abril de 2022 Mariana - MG
ENCONTRO DAS COMUNIDADES ATINGIDAS COM PARLAMENTARES 24 de março No dia 24 de março de 2022, foi promovido, em Mariana-MG, um encontro que contou com a presença de autoridades locais, da população atingida, dos deputados federais Padre João e Rogério Correia, de Minas Gerais, e Helder Salomão, do Espírito Santo, da deputada estadual Beatriz Cerqueira, do suplente da Assembleia Estadual Leleco Pimentel, de representantes do MAB, da Cáritas e das comissões de atingidos e atingidas de Mariana e de atingidos e atingidas de Barra Longa. A Comissão Externa sobre o Rompimento da Barragem de Fundão foi criada na Câmara dos Deputados em dezembro de 2021 e essa foi sua primeira diligência no território. Na ocasião, foi entregue, sob os cuidados dos deputados federais Padre João e Rogério Correia, um projeto que visa dar continuidade ao Jornal A SIRENE como direito à comunicação dos atingidos e das atingidas. A equipe do jornal também pediu aos deputados que possam indicar o projeto para receber, no orçamento de 2023, uma emenda parlamentar da bancada mineira.
Foto: André Carvalho
AGRADECIMENTO ESPECIAL Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Antenora Maria da Mata Siqueira, Bruno Milanez, Camila, Cláudio Coração, Daniel Rondinelli, Elke Beatriz Felix Pena, Geraldo Martins, Imaculada Galvão, Jussara Jéssica Pereira, Priscila Santos, Virgínia Buarque. Para ajudar a manter o jornal, acesse: www.evoe.com/jornalasirene.
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Eduardo Salles Filho | Reportagem e fotografia: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Joice Valverde, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Stephanie Locker, Tatiane Análio, Crislen Machado | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Eduardo Salles Filho e Crislen Machado | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Cáritas MG | Foto de capa: André Luís Carvalho | Fonte de recurso: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A Sirene. Apoio da ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP.
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Papo de Cumadres: Opinião:
São José também é atingido As duas comadres Clemilda e Consebida estão com o coração cheio de graças e ao mesmo tempo tristes com a festa do patrono de Barra Longa, São José. Por Sérgio Papagaio
– cumadre Clemilda cê vil que lindeza que tava o arranjo que Fabiano Mendes, quês chama de boy, fez pra São Jusé na intrada du salão paróquia? – intonse, vê eu vi, a beleza, mais sem a menor aligria e sim com muita tristeza. – uê que diachu cê tá muito triste e abatida, nem a festa de São Jusé conseguiu botá seu animus de pé? – pois é, cumé que eu vô fica feliz se a festa foi selebrada fora da matriz? É como tá contecenu com nois, todu aniveusário depois du rompimentu nóis passa fora de casa e eu num sintu aligria, só uma tristeza danada, u mesmu eu sinti quandu vi a festa de nosso padrueiru sendo selebrada nu meio du terreiru, cubeltu com um toudu de lona, nem foi foia de banana, que coisa mais cafona. – ai cumadre de Deus, agora meu coração dueu, uma festa tão bunita mais eu tinha me isquecido que são Jusé também tinha sidu atingidu, a renova fechou a casa dele, a nossa igreja, obriganu u pobre coitadu mais uma vez sai de sua casa, como esse mesmu povo fez ele com a virge Maria fugi para Belém onde ela teve seu santu neném. – oia se num é de dá dó e de fazê u coração ficá doloridu: toda a cidade de Barra Longa e até u nossu padrueiru, somus tudu atingidu.
Foto: Sérgio Papagaio
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Em Santana do Deserto, Renova desrespeita direito à água e à moradia dignas Mais de seis anos após o crime do rompimento de Fundão, pela Samarco, Vale e BHP, pessoas atingidas no distrito de Santana do Deserto, na cidade de Rio Doce, ainda sofrem com a supressão do direito à água limpa e com a insegurança habitacional. A comunidade, que vive às margens do rio Doce, convive, desde os anos 2000, com intervenções feitas por grandes empresas ao longo da bacia. Desde a construção da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, mais conhecida como UHE Candonga, inaugurada em 2001, até o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, muitos foram os problemas no caminho dessas pessoas. Atualmente, a Fundação Renova atua no local, com o suposto intuito de mitigar os danos causados, mas as ações realizadas pela instituição não agradam as pessoas, que se queixam da escassez hídrica, da demora para pagamento das indenizações e para reformar as casas, do fluxo intenso de máquinas pesadas, que compromete as estruturas de construções, e do descaso geral com a população. Boa parte desses problemas foram evidenciados no período chuvoso, pois o campo de futebol construído pela Renova começou a ceder, o que colocou novamente em risco moradores que vivem sob a obra, como Raimundo Oliveira.
Por Clara Ribeiro, Jeane Aparecida de Souza Silva e Raimundo Ribeiro Com o apoio de Crislen Machado
“A obra aqui é um campo que eles fizeram. Fizeram em cima da nossa rede de água e tem uns três a quatro metros de terra por cima. O cano já quebrou umas três vezes e a comunidade fica sem água. Outra coisa: deu rachadura no campo e está descendo para cima das casas…”
“Aqui em Santana, somos ribeirinhos, fomos afetados e não somos reconhecidos como atingidos. Estamos sem água aqui, está saindo areia, não dá para lavar roupa nem fazer nada. Eles até fizeram um poço artesiano, mas nunca tivemos acesso. Além disso, já faz dois anos que a Renova nos tirou das nossas casas. Apesar de estarem pagando o aluguel, eles prometeram que, em cinco ou seis meses, iriam entregar as moradias, mas só estão enrolando o pessoal. Estamos morando em casa de aluguel, dependendo dos outros
e ainda temos que lidar com o campo caindo, as ruas quebradas e, até hoje, não tivemos satisfação sobre como vão resolver essa situação. Faz oito dias que mudei e já exigiram que eu mude de novo, eu tô com o fêmur quebrado e não posso andar, mas eles mandaram eu sair. Meu marido está com a cabeça ruim, o vizinho com a pressão alterada, eu não consigo dormir nem comer direito.” Clara Ribeiro, moradora de Santana do Deserto
Raimundo Ribeiro, morador de Santana do Deserto
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Fotos: Jeane Aparecida de Souza Silva
“A Renova fala que só vai trazer benefícios e melhorias, mas olha o que eles realmente fazem: colocaram quatro metros de terra em cima da rede que abastece a comunidade com água, ficamos sem abastecimento por vários dias e agora a estrutura ainda está cheia de rachaduras. Já pensou se o barranco desce? As pessoas morrem soterradas e eles não fazem praticamente nada para prevenir isso. Antes de ter essa obra, aqui não dava esse tipo de problema. A Renova chama isso de campo, mas só tem mato, não tem nada. Acabaram com um campo de 100 anos e criaram esse aqui que só traz transtorno para comunidade.” Jeane Aparecida de Souza Silva, moradora de Santana do Deserto “Eu já fui à prefeitura, eu já conversei com o pessoal da Samarco e eles não fazem nada. A gente precisa de apoio de outros órgãos para ajudar o pessoal aqui da comunidade, pois não podemos contar com o prefeito e nem com a Samarco, apesar de serem eles os responsáveis pelos danos aqui na comunidade.” Raimundo Ribeiro, morador de Santana do Deserto “O que estão fazendo com a gente é uma injustiça. Estão pressionando a gente para sair daqui, mas não sabemos pra onde vamos. Querem parar as obras das nossas casas para tirar o barranco do campo que está descendo por cima, as rachaduras apareceram depois das chuvas e agora eles estão desesperados procurando casas para a gente mudar. Já disseram que vão nos despejar, que vamos sair por bem ou por mal, falaram que vão mandar a polícia tirar a gente e agora todos da comunidade estão passando mal sem saber o que fazer.” Clara Ribeiro, moradora de Santana do Deserto
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À espera dos templos, a comunidade do Bento celebra no território Passava um pouco das três quando o padre Marcelo Santiago, acompanhado de dois seminaristas, se posicionou num corredor entre as fileiras de cadeiras de plástico, encostado na rede de vôlei, para caminhar até o altar improvisado e iniciar a missa. Na sombra da quadra coberta com seu teto muito alto, o calor de domingo dava um refresco para as cerca de 50 pessoas que estavam ali. No dia 26 de março, ocorreu, no reassentamento de Bento Rodrigues, a segunda celebração no território. Ainda sem as igrejas de São Bento e de Nossa Senhora das Mercês prontas, sem conhecer os projetos por inteiro, os e as fiéis da comunidade utilizam o espaço da quadra poliesportiva da Escola Municipal Bento Rodrigues. Mais uma conquista da comunidade, que ainda aguarda, há mais de seis anos, o direito de rezar junta nas moradas do padroeiro e de Nossa Senhora. A celebração vai se repetir a cada quarto domingo do mês, sempre às 15h. Em alguns, vai haver também catequese, às 14h. São momentos simples e com a cara do Bento. Com orações pelos falecimentos, graças pelas recuperações, cantoria, Zezinho, criança zanzando
durante a reza, lembrança das lutas contínuas. São, acima de tudo, momentos de encontros. Foi ali, na quadra, perto da trave do gol, que algumas pessoas se reencontraram. Não se viam desde que o crime da Samarco, da Vale e da BHP desarticulou muitos dos laços que uniam a comunidade, em novembro de 2015. Imagine, espalhadas pela sede de Mariana, algumas pessoas vão a igrejas diferentes, aquelas mais perto de casa. Outras perderam o gosto de celebrar. Muita gente ficou sem companhia para a missa. A expectativa, agora, é começar a organizar a comunhão e trabalhar junto para, quando os templos chegarem, as pessoas estarem reunidas, em comunidade. Vai faltar muita gente que partiu ao longo desses anos de batalha e espera, mas há novas pessoas. Na missa, o padre Marcelo orou pelas vítimas do rompimento da barragem de Fundão e por quem se foi desde então. Também orou pela construção do "novo Bento" e pela caminhada com cada pessoa de Bento Rodrigues, com a catequese, com as pastorais, para recomeçar.
Por Marcelina Xavier Felipe, Rosilene Gonçalves da Silva e Seu Zezinho Com o apoio de Karina Gomes Barbosa
Fotos: André Carvalho
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Toda a comunidade do Bento está convidada a comparecer às celebrações, que acontecem no quarto domingo do mês, às 15h, na quadra da Escola Municipal Bento Rodrigues
“O sentimento das pessoas foi totalmente diferente de quando a gente junta aqui. Foi simples, mas se sentiram bem mais à vontade para celebrar lá. Tem muita gente deprimida, mas fica mais feliz de celebrar lá.” Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues
“O que quero é ver todo mundo junto. Ver projeto só, não tô essas coisas, não. Minha casa tá num projeto em cima do guarda-roupa. Eu quero ver é a coisa pronta. Claro que, no dia que entregar, não sei como vou reagir, quero que seja coisa muito boa. Não sei se vou passar mal, chorar.”
“Rompeu o contato de sempre estar falando, indo junto à igreja, muita gente precisa de companhia. Minha mãe, pra ela ir, tem que estar indo alguém junto. Algumas pessoas, por estarem distantes, outros perderam o gosto de ir, porque, quando a gente celebra uma coisa que é da comunidade, tem a cara da comunidade.”
Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues
Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues “Eu trabalhei com máquina, eu destruía a natureza, eu vi o que tá acontecendo com a gente.” Seu Zezinho, morador de Bento Rodrigues
“No Bento, eu não perdia uma missa, uma festa. Em Mariana, parei de ir. Gostei aqui hoje, foi bonito, foi diferente. Vou voltar. Minha casa é aqui pertinho [da quadra].”
“A igreja é a comunhão. Ser comunidade em comunidade e ser comunidade com as comunidades vizinhas. Ser igreja, a igreja é cada pessoa. O templo é o local onde a pessoa vai se reunir. A gente conseguindo unir essa igreja, quando essa igreja templo chegar, fica mais fácil pra gente continuar essa comunhão com a comunidade, com o padre, com outras religiões, com quem não tem religião.”
Marcelina Xavier Felipe, moradora de Bento Rodrigues
Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues
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ato luta pela emancipação das atingidas pela mineração Por Stephanie Locker
Na terça-feira, 8 de março, um ato público abordou a luta feminina pela reparação dos crimes socioambientais da Samarco, Vale e BHP sofridos na região da bacia do rio Doce. O evento também demandou uma mineração mais justa e segura para todos e todas. A Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG), ao lado de outros movimentos, como o Olga Benário, organizou o ato feminista marxista a favor dos direitos da mulher trabalhadora e da sororidade feminina. Aliliane Caetano, moradora do distrito ouro-pretano de Antônio Pereira, dividiu algumas de suas dores, como mulher e mãe, de morar perto de uma barragem que pode romper a qualquer momento. “Injustiça é a palavra certa. Nós estamos sendo atingidas por uma barragem que não rompeu. Quando começa a chover, a gente não sabe se vai romper ou não, pessoas receberam o auxílio emergencial e outras não. Na nossa casa não chega água, chega lama. A gente perdeu a liberdade, a Vale tirou da gente a liberdade. Nosso psicológico fica abalado. Quando tem previsão de chuva, não sei se vai romper ou
Foto: Stephanie Locker
não, se vai dar tempo de fugir ou não. Estamos totalmente desamparados, pela prefeitura, pela Vale.” O evento teve início às 15h30, na Praça Tiradentes. O percurso desceu as ruas Direita, Paraná e do Pilar, ao som de hinos que pediam por justiça, até chegar à Prefeitura de Ouro Preto, onde a manifestação teve fim. Mais de 50 pessoas, em sua maioria mulheres, estiveram presentes para contestar a ordem vigente e lutar por uma sonhada igualdade de gêneros. “Nossa geração está cada vez menos tolerante com qualquer tipo de segregação. Hoje estamos lutando contra a segregaçãofeminina”, afirmou Maria Fernanda Vieira, estudante e ativista do movimento Olga Benário. Maria Gabriela Ferreira, que também participou da manifestação, explicou: “hoje estamos aqui para lutar também pelas nossas reivindicações da região, como o Fora Saneouro [empresa de serviços de água e esgoto de Ouro Preto], por uma água pública e de qualidade. Contra a violência, contra a carestia”.
Foto: Sérgio Papagaio
Foto: Sérgio Papagaio
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O que vale é a vida!
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Comunidade Garimpeira de Antônio Pereira se organiza na luta por direitos Por Emmanuel Duarte Almada Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais
A luta das comunidades atingidas pela mineração no Alto Rio Doce se fortalece a cada dia por meio da organização popular. Nos últimos meses, os garimpeiros e as garimpeiras do distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto, têm se organizado para enfrentar o poder da Vale, que tem impedido e criminalizado seu modo de vida. Além dos impactos ambientais do processo de descomissionamento da Barragem de Doutor, garimpeiros e garimpeiras também têm sido impedidos de acessar as áreas de extração do ouro, o que compromete o sustento de centenas de famílias. A marginalização do garimpo tradicional em Antônio Pereira tem suas raízes no período colonial, mais um capítulo de uma longa história de exclusão e criminalização, tanto pelo Estado quanto pelas empresas. Todavia, foi a partir da extração do ouro, que utilizou uma grande diversidade de técnicas e saberes africanos e indígenas, que a comunidade garimpeira construiu sua história e as bases de sua sobrevivência. No último dia 5 de março, garimpeiros e garimpeiras de Antônio Pereira realizaram uma assembleia para fundação de sua associação, um passo importante em sua luta por direitos. Nessa mesma oportunidade, os garimpeiros e as garimpeiras se autodeclararam como comunidade tradicional. Esse ato se soma ao processo de autorreconhecimento da Comunidade Tradicional Garimpeira do Alto Rio Doce, que agora abrange os municípios de Ouro Preto, Mariana, Acaiaca e Barra Longa. O autorreconhecimento da Comunidade Tradicional Garimpeira do Alto Rio Doce é um momento singular na luta das pessoas atingidas. Ao mesmo tempo que é uma ferramenta de luta por direitos à indenização e reparação, significa uma reafirmação da comunidade garimpeira com a defesa do meio ambiente, por meio da adoção e do aperfeiçoamento de técnicas e saberes tradicionais que permitam a manutenção de seus modos de vida e a regeneração dos ecossistemas, inclusive aqueles degradados pela mineração empresarial. Animados pela fé e por suas memórias, a comunidade garimpeira segue na luta, apurando ouro em meio à lama do capitalismo que fere e mata.
Foto: Ivone Pereira Zacarias
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Pessoas atingidas apresentam demandas ao Poder Judiciário Mais uma vez, as pessoas atingidas narraram suas histórias ao Judiciário brasileiro, na expectativa de serem ouvidas e de que suas reivindicações estejam em primeiro plano em qualquer tipo de repactuação judicial relativa ao crime da Samarco, Vale e BHP. Na terça-feira, 29 de março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou uma audiência pública no Fórum de Mariana com parte da população atingida. O CNJ é mediador do processo de repactuação dos acordos da bacia do rio Doce. Das cerca de 100 pessoas atingidas que compareceram à audiência, dezenas relataram os mais de seis anos de descaso, negligência e violações cometidos pelas mineradoras e também pela Fundação Renova. As demandas giraram em torno dos reassentamentos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo, do adoecimento físico e mental, do empobrecimento das comunidades, da desconsideração da matriz de danos produzida com a Cáritas MG, da exclusão de crianças e adolescentes nos programas de reparação, entre outros assuntos.
Da redação do Jornal A SIRENE, com informações da Cáritas MG e do MPMG
“Conviver com a Fundação Renova é conviver com um crime maior do que o rompimento da barragem. Ela não faz nada para resolver os nossos problemas. Só multiplica.” Marino D'Angelo, morador de Paracatu de Cima “Já foram três datas de entrega do reassentamento, sem cumprimento e, até hoje, ninguém pagou multa, ninguém tomou sanção nenhuma, a não ser a gente, que está nesse sofrimento há quase sete anos fora de casa. As empresas simplesmente fazem o que querem, do jeito que querem. Parece que, no Brasil, não tem lei, não tem ninguém que pare a mineração.” Mônica Silva, moradora de Bento Rodrigues Leia no nosso site os pontos de reivindicação e a carta entregue ao CNJ.
Pessoas atingidas de Antônio Pereira, em Ouro Preto, e de Barra Longa também falaram das dificuldades que vêm enfrentando devido à ausência de assessoria técnica e às negações repetidas de direitos sofridos. O processo de repactuação está previsto para ser assinado em agosto de 2022, de acordo com o conselheiro do CNJ Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, que conduz os trabalhos. O editor-chefe do Jornal A SIRENE, Sérgio Papagaio, entregou a Mello Filho o projeto de financiamento do veículo para ser incluído na repactuação. A Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e a Cáritas MG entregaram o documento “Considerações para a continuidade da reparação em Mariana”, para ser encaminhado ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, presidente do CNJ. Mello Filho se comprometeu a levar todas as demandas para a mesa de repactuação, que inclui o governo de Minas, o Poder Judiciário e as mineradoras. Também estiveram presentes o deputado federal Padre João, o promotor Guilherme de Sá Meneghin, o pároco Marcelo Santiago e o representante da OAB Mariana, Bernardo Machado.
Fotos: André Carvalho
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Enxadas, pás e força coletiva Diante do descaso da Fundação Renova, pessoas atingidas abrem à mão estrada de acesso a Bento Rodrigues Por Ellen Barros, Wan Campos, Joana Rosário e Maria Luísa Sousa
Cansados da negligência da Fundação Renova, moradores e moradoras de Bento Rodrigues, munidos de pás, enxadas, picaretas, indignação e força coletiva, abriram, à mão, no dia 20 de março, um acesso à comunidade de origem. Desde janeiro deste ano, em função de um desabamento de encosta, a estrada que leva à comunidade estava interditada. Cobrada pela Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF), a Fundação Renova prometeu resolver o problema até 27 de janeiro de 2022, o que não aconteceu. Membro da CABF, Mauro Marcos da Silva explica: “a gente cansou de implorar, tanto ao poder público quanto à Fundação Renova, para restabelecer esse acesso, imploramos por mais de dois meses”. Antes disso, porém, a comunidade tentou resolver o problema pelos meios formais. A última tentativa foi realizada no dia 15 de março, quando estava prevista uma reunião entre a Prefeitura de Mariana, a Fundação Renova, a CABF e a Cáritas MG para tratar sobre o problema. No entanto, os membros da CABF e da Cáritas MG foram impedidos de participar da reunião com a Renova, deixados na espera até que ela acabasse para, então, escutar dos servidores da prefeitura que não houve encaminhamento para a resolução do problema, pois alegaram que a equipe da Renova que esteve presente não poderia decidir pelas manutenções das estradas. A situação da via até Bento Rodrigues não é um caso isolado. As estradas de acesso às outras comunidades e distritos de Mariana atingidos pelo mar de rejeitos da Samarco, Vale e BHP também estão em situação precária. Deslizamentos de encostas e estradas esburacadas colocam em risco a vida de moradores, que já sofrem com as mais diversas consequências do rompimento da barragem de Fundão, desde 2015. Vicente Celestino, atingido de Paracatu de Cima, zona rural do município, relata o risco de acidente devido aos buracos na estrada que leva ao subdistrito. “Na semana passada, estourou um pneu e quase saí da estrada para o caminhão não bater em mim”, declara. Além do risco de morte, o dano material fica na conta das pessoas atingidas. “Perdi o pneu, a roda amassou e o prejuízo é da gente”, acrescenta. A partir do acordo firmado em 2017, a responsabilidade pela manutenção dessas estradas é da Fundação Renova que, omissa, não faz os devidos reparos. “Desde que a barragem rompeu, que foi constituída a Renova, a gente fica brigando pra eles arruma-
Atingidos se reunem para reconstruir estradas devastadas pelas chuvas Foto: Mauro Marcos
rem a estrada e sempre eles fazem o paliativo, serviço muito ruim”, desabafa Mônica dos Santos, integrante da CABF. A Assessoria Técnica Independente (Cáritas MG) tem apoiado a CABF nas recorrentes denúncias da situação e nas cobranças por resolução do problema. De acordo com o presidente da Comissão Municipal para Assuntos Ligados à Fundação Renova (COMAR), Newton Godoy, a prefeitura do município também está se movimentando nesse sentido. “A gente tem feito reuniões, conversas, notificações e cobranças sobre a manutenção desses trechos”, afirma. No entanto, a situação das estradas segue precária e a Fundação Renova continua impune. “O que foi acordado, que é de responsabilidade das empresas, são os moradores que estão fazendo”, indigna-se Mauro Marcos da Silva. Ao risco de acidentes somam-se outras violações de direitos provocadas pela péssima condição das estradas, como o isolamento comunitário e a restrição do direito de ir e vir dessas famílias já assoladas pelas consequências do crime-desastre. “Esses dias, acabei encontrando mais barreiras para trafegar, o córrego encheu e não teve como passar”, afirma José de Félix, motorista atingido que faz o transporte escolar da comunidade de Ponte do Gama.
EDITORIAL Nas últimas semanas, um turbilhão de acontecimentos. Audiências, reuniões, diligências, decisões judiciais, perspectivas de julgamento. Siglas diferentes, que, às vezes, pouco dizem, diante do vácuo da reparação, para as pessoas atingidas, como CNJ, TJMG, TTAC. A possibilidade de uma repactuação no horizonte, que não inclui, mais uma vez, quem foi atingido e atingida pelo crime diretamente na mesa de negociação. Enquanto isso, as violações de direito continuam acontecendo. A Fundação Renova parece incapaz de garantir direitos básicos, como acesso ao território, ou reparar sem destruir ainda mais coisas pelo caminho, assuntos que tratamos nesta edição. Isso sem contar, claro, o fato inacreditável de, até hoje, os reassentamentos não terem sido entregues. Talvez não seja apenas incapacidade. Talvez a destruição ou a não reparação seja projeto, seja meta. Além de violar cotidianamente os direitos das pessoas atingidas, a Renova viola o direito à comunicação dessas comunidades. Deliberadamente, coloca entraves para o Jornal A SIRENE realizar suas atividades de informar, garantidas constitucionalmente e fundamentais à democracia, à transparência e à responsabilização de atores sociais. Cercear, total ou parcialmente, o trabalho da imprensa é uma violência contra o jornalista ou a jornalista, mas é, também, uma violação do direito social à informação que toda sociedade tem, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É censurar o trabalho da imprensa livre e independente de informar, questionar e impedir a plena liberdade de expressão. Nós, do Jornal A SIRENE, repudiamos com veemência as tentativas da Fundação Renova de tentar impedir ou criar entraves para o livre exercício do jornalismo nas interações com pessoas atingidas e outras instâncias governamentais, institucionais e sociais. Vamos denunciar e continuar lutando para exercer nossas atividades, que têm sido mantidas com muito custo, muita batalha. Fazemos isso sem deixar de lado os afetos que circulam e que nos movem nessa caminhada. Reencontros impedidos por seis anos começaram a acontecer, o que demonstra a resistência e a comunhão da comunidade.. A emoção de uma celebração no território, ainda de modo provisório, foi de todas as pessoas que estavam lá, como contamos nesta edição. Que venham outros domingos, outras celebrações.