A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 3 - Edição nº 29 - Agosto de 2018 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
CONVITE
Agosto de 2018 Mariana - MG
RETRATAÇÃO Para a matéria "Separação e angústia”, localizada na página 13, publicada na edição anterior, deste Jornal A SIRENE.
O Coletivo de Saúde de Barra Longa convida a todos(as) para participar da I Feira de Saúde de Barra Longa, que acontecerá na cidade no dia 18 de agosto, a partir das 8 horas, na Praça Lino Mol. Estão previstos debates sobre o crime cometido pela Samarco e a situação da saúde dos(as) moradores(as) da cidade. Além disso, serão oferecidos para os participantes espaços de cuidados pessoais, como tratamento homeopático, terapia reiki, massagem, acupuntura, fitoterapia, benzeções, troca de sementes e mudas, entre outras atividades. Venham e participem!
Esclarecimento de Carlos Roberto Silva (Carlinhos) sobre o depoimento de D. Maria Geralda. "Quero dizer que nunca me afastei da minha mãe e que nunca a desamparei. Pelo contrário, a amo muito. Quando ela está doente, levo ao médico e dou toda assistência necessária. Minha esposa, Marli Martins e Silva, a levou para passear em São Paulo, na casa da minha filha, para que ela pudesse se distrair. Sempre procuro saber como ela está. Optei por não participar dos encontros familiares porque depois deste transtorno todo causado pela lama da Samarco me senti excluído por alguns. Mas não desamparei e não desamparo nunca a minha mãe, pois sei o quanto ela é importante para mim. Vou na casa dela, nos encontramos na rua, conversamos, e já até ofereci para que ela ficasse em minha casa quando minha irmã precisar sair. Foto: Acervo pessoal / Marli Martins
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Bento Rodrigues conquista autorização para início das obras de reassentamento No dia 1º de agosto foi aprovado a licença ambiental que autoriza o início das construções para o reassentamento de Bento Rodrigues. Cada obra, no terreno de Lavoura, também depende da liberação do seu alvará de construção - que será lançado pela Prefeitura Municipal de Mariana. A expectativa para a entrega da comunidade é de cerca de dois anos. “Fiquei muito feliz com a assinatura pois isso nos traz a esperança de que até que enfim as coisas vão começar a andar. Espero que, tanto a Fundação Renova/Samarco, quanto a Prefeitura de Mariana cumpram seus papéis e façam o mais rápido possível o que tem que ser feito.” Maria Quintão, moradora de Bento Rodrigues Na sexta-feira, dia 03, os(as) moradores(as) realizaram um Culto Ecumênico no lote do reassentamento. A cerimônia promoveu esperança para todos(as) os(as) atingidos(as) que aguardavam há dois anos e nove meses por essa notícia. “Diante de toda dificuldade que enfrentamos nesses, quase, três anos, te pedimos Senhor, força, coragem, fé, perseverança, para continuar lutando por nossos direitos, por nossa família, nossa comunidade. Que permaneçamos unidos em Cristo, pois essa etapa é apenas uma de muitas conquistas que ainda virão. Um novo ciclo se inicia. Que Deus nos abençoe e nos conserve sempre unidos, para, juntos, voltarmos para a nossa comunidade Bento Rodrigues.” Cláudia Alves, moradora de Bento Rodrigues
EXPEDIENTE Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Cristiano José Sales, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Juçara Brittes, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Rafael Drumond, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Papagaio | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Editora Visual: Larissa Pinto | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Sérgio Papagaio, Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Ananda Martins | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Silmara Filgueiras | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Falar na nossa língua
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Depois do rompimento da Barragem de Fundão, os(as) atingidos(as) passaram a ter que conversar com diferentes grupos que atuam no contexto do desastre-crime. Esses diálogos, porém, não são fáceis de enfrentar, pois, além das desigualdades de poder, as comunidades têm dificuldades para entender o uso de termos técnicos e de uma comunicação, principalmente a feita pela Fundação Renova/Samarco, não pensada para eles(as). Diante desse desafio, os(as) moradores(as) falam sobre a sua vontade de ver as questões sendo tratadas dentro de um vocabulário que todos(as) tenham condições de entender.
Por Luzia Queiroz e Mirella Lino Com apoio de Daniela Felix e Wandeir Campos Foto: Daniela Felix
Desde 2015, Luzia Queiroz anota tudo o que é discutido com a Fundação Renova/Samarco e marca as palavras que precisam ser melhor explicadas.
Logo no início, a Renova/Samarco começaram a falar de masterplan, dam break, stakeholders. Parecia que a gente falava com extraterrestre, porque não entendia “patavinas”. A gente também não sabia o que significava impactado. E, depois do esclarecimento do promotor Guilherme, decidimos não aceitar esse termo, porque nós fomos atingidos até a alma. Rejeito também foi uma palavra que aprendemos a usar passado um tempo. Eles falavam lama, mas entendemos que o correto é rejeito tóxico. Também chamavam a gente de atores, até que perguntamos se estávamos participando de uma novela. Evento foi outra palavra que a gente recusou, porque dá a entender que é uma coisa boa. Lembro de quando os funcionários da Renova/Samarco começaram a dizer que precisavam da validação da Comissão dos Atingidos. Quando soubemos que isso significava “dar um ok” para as coisas, começamos a ter mais cuidado, para não assumir compromissos que não queríamos. E, quando os advogados do coletivo Margarida Alves disseram que a gente precisava de um assessoramento técnico, ficamos em dúvida do que seria isso. Só depois foi explicado que assessoria era um grupo de profissionais para trabalhar em nossa defesa. Hoje, ainda temos que estar por dentro de TAC, TTAC, Câmara Técnica, CIF, acordão, força tarefa, cadastro e PIM, que são coisas que muita gente ainda não sabe o que é. Quando começamos a discutir o novo mapa de Paracatu, usavam umas palavras nas assembleias que a gente voava igual passarinho. Aí alguém de nós tentava resumir o que foi discutido. Mas, por mais que a gente se esforçava, voltava pra casa sem pegar tudo. Tem pouco tempo que começamos a entender, por exemplo, o que é se apropriar. A Angélica, como membro da comunidade e professora da Escola de Paracatu, nos explicou da forma dela. E, aí, discutimos sobre como poderíamos nos apro-
priar daquele espaço, reconhecê-lo e se enxergar nele. Alguns tinham entendido que isso era como se transportar para aquele lugar e fazer de conta que se está nele. Também precisamos de informações sobre os órgãos SEMAD e SECIR, entre outros, porque, às vezes, durante uma assembleia, alguém tem que dar o grito: "quem são esses?". O termo patrimônio cultural também podia ser melhor explicado. Queremos saber o que é, para que serve e o que engloba, já que estamos discutindo bastante sobre isso nas reuniões. Tem gente que acha bobagem, quando, na verdade, é algo muito importante, que vai “segurar” a nossa comunidade. Depois de tudo, posso dizer que, se tem uma coisa que aprendi, é que quem cala, consente. Então, a minha função na Comissão dos(as) Atingidos(as), hoje, é a de questionar tudo. Luzia Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo Entender as palavras e tentar, de alguma forma, dar um significado para elas foi e ainda é bem incômodo, porque isso cansa mais o processo. Até procurar saber o que significam as palavras que a Fundação Renova/Samarco usa, entender qual é a sua proposta, para depois ver se concorda ou não e, assim, construir uma proposta que achamos justa. Não há necessidade dessas palavras, é desrespeitoso com todos nós, atingidos. Não vejo empenho da fundação/empresas em nos explicar o que essas palavras significam, ao contrário, eles só se dão ao trabalho de falar sobre isso quando alguém pergunta. Na maioria das vezes, cobramos que usem palavras mais acessíveis a todos, mas o que ela faz é explicar e continuar a usá-las. Elegibilidade, parâmetros, deliberar. Algumas eu já conhecia, mas o difícil era entender o sentido que elas tinham no contexto da proposta da fundação. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama
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Casas em risco, nossas vidas também
Fotos: Wandeir Campos
Com o surgimento de trincas e rachaduras nas moradias, por causa do trânsito de máquinas pesadas na cidade, há quase três anos, os(as) atingidos(as) de Barra Longa perderam sua privacidade, tranquilidade e sensação de segurança. Recentemente, a Fundação Renova/Samarco entregou laudos em que avaliou problemas presentes em 98 casas do município. Porém, mais uma vez, a fundação/empresa entendeu que a culpa para os abalos nas estruturas é anterior ao rompimento da Barragem de Fundão. Na assembleia do dia 17 de julho, os(as) atingidos(as) e sua Assessoria Técnica AEDAS apresentaram à Renova/Samarco uma lista com 203 casas que precisam de reforma, outras 59 que devem ser reconstruídas, e, ainda, 23 que estão em estado de risco de emergência e necessitam de uma solução urgente. Por Maria Lúcia da Conceição, Rosana Aparecida Pinto, Simone Silva, Tatielly Martins Cunha e Vera Martins Cunha Com o apoio de Assessoria Técnica AEDAS e Wandeir Campos
De acordo com os laudos técnicos da Fundação Renova/Samarco, realizados pela empresa Vaz de Mello Consultoria em Avaliações e Perícias, os problemas nas casas atingidas são por causa da falta de um(a) engenheiro(a) no período de construção das moradias, somados a um cuidado inadequado com as residências durante sua vida útil. Mas, será apenas uma coincidência que várias construções apresentem problemas ao mesmo tempo? “Moro em Barra Longa desde que nasci. Tenho um vínculo muito grande com a cidade e com a minha rua, a 1º de Janeiro. Nela, o tráfego de caminhões, carros e máquinas pesadas é muito grande. Tenho 27 anos e posso dizer que, praticamente, nasci e cresci nessa casa. Nunca tinha visto rachaduras e nem os problemas que ela tem apresentado hoje.” Tatielly Cunha, moradora de Barra Longa
Um ano depois, a garagem reconstruída pela Renova/Samarco já apresenta trincas.
“Tem 18 anos que resido em Barra Longa e, desde 2010, que eu moro nessa casa, na rua 1º de Janeiro. Uma rua que, depois da lama da Samarco, ficou muito movimentada por caminhões pesados. Tinha vez que a gente esperava 20 minutos para sair de casa, porque dia e noite eram máquinas e rolo compressor. Antes, tinha paz. Passava carro, mas não muito, como agora. Primeiro, começaram as trincas; semanas depois, vieram as rachaduras. Até hoje, eles não me procuraram para olhar a situação da minha casa. Acho isso um descaso comigo e com a minha família, porque não sou melhor nem pior do que ninguém. E a Renova diz que essas rachaduras não foram por causa do tráfego de caminhões das terceirizadas.” Rosana Aparecida Pinto, moradora de Barra Longa
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“Moro na rua Ezaú Homero há mais de 30 anos e sou atingida pelo crime da Samarco. Era babá de crianças em Barra Longa e cuidava de uma idosa. Como eu ia trabalhar de chinelos, depois que os caminhões da empresa passaram a subir o morro da minha rua, derramando rejeitos pela cidade, passei a ter contato direto com a lama. O chinelo escorregava, eu tirava e voltava descalça. Fui atingida quando vi os resultados dos exames dos meus netos, Davidy e Sofya, contaminados pelo rejeito. Fui atingida quando vi meus filhos, Juliano e Daniel, cortadores de cana, não tendo seus direitos reconhecidos pela empresa. Minha casa está com rachaduras, porque passa máquinas pesadas da Samarco toda hora aqui. De dentro, pelas trincas dá pra ver a rua. Hoje, minha casa se encontra em estado crítico e corro risco de morrer debaixo dos escombros de um desabamento. Quantas vezes mais precisarei ser atingida para ser reconhecida pelas empresas criminosas?” Maria Lúcia da Consolação Marques, moradora de Barra Longa Ameaça reconstruída Em agosto de 2017, a garagem da casa de Vera Martins, mãe de Tatielly Martins, foi reconstruída por uma terceirizada da Renova/Samarco, e, já em julho deste ano, a reforma, que contou com dois engenheiros para inspecionar a obra, apresentou trincas e rachaduras. Mesmo assim, no laudo, ainda consta que “a nova garagem construída pela Samarco apresenta um padrão construtivo bem melhor em relação à antiga garagem.” “É um laudo utópico e não condiz com a nossa realidade. Eles alegam que as rachaduras e as trincas são por conta da construção ser em um solo que não aguentaria, pois é um solo de aterro. Outros motivos que eles apontam é que teríamos utilizado matéria-prima de segunda para erguer nossas casas, mão de obra desqualificada e que não tivemos engenheiro especializado para acompanhar a construção. Mas minha família teve um engenheiro daqui de Barra Longa que acompanhou. Antes de construir a casa também foi feito um estudo do solo, em Belo Horizonte. Mas, no laudo eles alegam que as rachaduras e trincas não são relacionadas ao rompimento da Barragem de Fundão e que seria de responsabilidade nossa consertar todos os ‘defeitos’ das nossas casas.” Tatielly Cunha, moradora de Barra Longa
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As rachaduras no banheiro de Tatielly e Vera surgiram no início de 2017.
Com medo de escorpião e outros insetos, Rosana tampa o buraco com sacolas.
Rosana passou massa nas paredes do quarto do filho, mas as rachaduras voltaram.
Na reunião do último dia 27, a Renova/Samarco apresentou uma resposta sobre os 23 casos de urgência indicados pelos(as) atingidos(as) e sua assessoria técnica, afirmando que irá realizar a reparação das famílias por meio de um auxílio-moradia. “A princípio, ficou acertado os 23 nomes, mas depois da negociação, a Renova começou a perguntar sobre alguns desses nomes, ou seja, isso ainda está em processo. Até agora foi acertado que a fundação vai pagar um auxílio-moradia, que não é um aluguel. Mas ainda vai ter uma reunião, no dia 9 de agosto, para continuar discutindo o valor desse auxílio e outras questões que serão de responsabilidade dela.” Alexandra Borba da Silva, assessora técnica da AEDAS
Pelas rachaduras do quarto de Maria Lúcia é possível ver a rua de trás da sua casa.
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Um problema que nunca tivemos
Da mesma forma que acontece na cidade de Barra Longa, os(as) moradores(as) de Rio Doce convivem com rachaduras e danos nas estruturas de suas casas. Problemas que também foram causados pelo trânsito intenso de veículos pesados no município. Por Euda Márcia de Souza e Margarida Maria de Andrade Pereira Ferrari Com o apoio de Larissa Pinto e Tainara Torres
“A situação da minha casa ficou precária. As telhas começaram a deslizar e a cair. A casa é antiga. Tem 41 anos que eu moro aqui, mas a primeira vez que eu fiz reforma foi agora. Eu tive que fazer um empréstimo e, até o dia de hoje, eu pago por ele. É muito difícil, porque diminui bem o meu salário. Meu marido morreu triste com isso. A gente sabe que empréstimo é algo que dorme e acorda com a gente, e eu durmo com a preocupação desse empréstimo.” Margarida Maria Ferrari, moradora de Rio Doce
Fotos: Tainara Torres
"Sinto minha casa tremer quando os caminhões passam", Margarida Ferrari.
“A minha casa é velha, mas não tinha essas rachaduras. É muito caminhão, essas coisas pesadas que passam por aqui, então, rachou. O moço tem uma loja aqui do lado, depois que tiraram a placa da loja, eu vi que tem uma rachadura grande lá. Quando passam muitos carros, a gente sente aquele baque dentro de casa. Com o tempo, as telhas vão descendo e eu penso que a qualquer hora elas podem cair na cabeça de alguém. Dá goteira dentro de casa e tudo.” Euda Márcia de Souza, moradora de Rio Doce “Tem várias casas aqui do centro que foram atingidas, inclusive, veio uma empresa, que eu não me lembro mais, e tirou retratos, mas eu não tive acesso à essas fotos. Antes da reforma, estava mais decadente ainda. A frente, então, estava toda esburacada.” Margarida Maria Ferrari, moradora de Rio Doce Para diminuir a circulação de veículos de grande porte no município, a prefeitura de Rio Doce proibiu o trânsito de caminhões pesados na região do centro. Mesmo que o número tenha diminuído, o transtorno que esse período de intensa movimentação causou ainda não foi reparado. Quando a medida foi tomada, várias moradias já estavam com rachaduras visíveis nas paredes que comprometem todo o imóvel.
"Não tinha nem como dormir, de tanto movimento aqui na frente", Euda Márcia.
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Opinião:
Papo de cumadres: o garimpo Consebida e Clemilda relembram, com saudades, o tempo do garimpo antes da lama chegar. Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda, tô aqui, minha fia, com uma sardade danada, da época que nós nu garimpu labutava. - As vêz, eu achu que nós duas tem uma cabeça só, eu tô numa tristeza de dá dó, quandu lembru dus tempu, que u garimpo dava u sustentu, pra nós e nossus rebentu. - Cumadre, ouvi de cumpadre Davi, que os rius que a Samarcu matô era nosso pai, portantu, dus nossus fius avô. - Eu tava impregada na casa de inhá Ismerarda, u dinheiru que ela pagava num dava pra podê tratá dus meus fio, era o rio que interava. - Meu falicidu maridu na fazenda Esperança trabaiava e, com seu gaiame, de nossas criança tratava. Pra construir nossa casa, todo dia nu Gualaxu eu entrava, e u orin que eu tirava, eu comprava materiá pra nossa casa acabá. - Onte eu passei lá e me pûs a chorá, venu minha casa pela lama tombada, e a sua casa toda rachada, e a impresa falanu que elas sofreru danu porque foru mar construída, mar conservada e mar usada. - É de rachá u coração. Nós fez nossa casa com nossas próprias mão. Era pra nós sê vítima só du crime de Fundão, num era pra também tá sofrenu esta triste humilhação. - É tanta negação de direitu e, deste jeitu, que Deus nus acude, estes negoçu todo dia tá cabanu com nossa saúde. - Eu nun sei cumé que vamu arrumá, além de perder a casa de morar, nós também perdemu us rio, ondé que nós vai trabaiá? Ês pricisava arrumá uma outra área, pra, com dignidade, nós podê garimpá. - Era onde nós tudu sempre valia quandu u negoçu apertava e u dinheiru num dava, o Pai Eternu a saúde e a corage imprestava, e us nossus pai, u Carmu e Gualaxu, u nossu sirviçu com oru pagava. - Óia que sina de pavor, num temu pai e nem mãe, nossus maridu a morte levô e us riu que nus adotô a criminosa Samarcu matô.
Foto: Sérgio Papagaio
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Justiça, pelos olhos atin
A injustiça é um sentimento que a gente vem carregando há dois anos e nove meses. A palavra justiça, então, tem vários si Mesmo que a reparação dos danos do rompimento da Barragem de Fundão seja devidamente feita, não há valor que pa como eram antes, e ter a dor de ver como elas estão agora. Ninguém devolve a nossa vista para o Rio Gualaxo, o nosso o mentar os passarinhos lá no Bento. Assim como ninguém tira a situação de vergonha que já passamos por sermos atingi que aperta na alma, na mente e no coração da gente. Uma mudança nas leis, o reconhecimento do crime por aqueles que tragédia e uma indenização justa para cada pessoa podem minimizar essa sensação, mas jamais irão cobrir aquilo que nã Por Andreia Sales, Cintia Silva, Jadir José Arantes (Nonô), Maria Quintão e Milton Sena Com o apoio de Dulce Maria Pereira e Miriã Bonifácio
“Teríamos justiça se tudo o que aconteceu não passasse de um sonho ruim, e, de repente, ao acordarmos, estaria tudo como em 4 de novembro de 2015. Mas como isso não é possível, hoje, seria feita justiça se reparassem o que for possível a todos(as) os(as) atingidos(as). E também se tivesse uma punição para os criminosos que ainda estão à solta por aí. Milton Sena, atingido de Ponte do Gama “A questão da justiça, para nós, seria o comprometimento da empresa a partir do crime que ela causou. Que ela realmente assumisse e procurasse resolver as coisas de maneira que pudéssemos tentar recomeçar as nossas vidas. Esse crime também deveria ser pago através de mudanças no modo de trabalho dessas empresas. Que aqueles que estão ali
Da esquerda para direita, Maria Quintão, Milton Sena, Cíntia Silva e Jadir José Arantes (Nonô).
para fiscalizar realmente fizessem o trabalho deles, que se preocupassem de verdade com o que uma tragédia como essa pode causar. ” Andreia Sales, atingida de Bento Rodrigues “O primeiro ponto para a justiça de todos seria a fiscalização e a criação de novas regras de funcionamento dessas barragens, porque, depois dessa tragédia de Mariana, a gente viu que ela não foi a primeira e, se continuar desse jeito, não vai ser a última. O segundo ponto, e um dos mais importantes para gente, seria que houvesse um tempo determinado, sem prorrogação, para que eles construíssem as nossas casas, para que a gente pudesse voltar, ter um lugar para chamar de nosso.” Cíntia Silva, atingida de Paracatu de Baixo
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Fotos: Lucas de Godoy e Silmara Filgueiras
ngidos
significados para a nossa vida. ague o saber das nossas vidas olhar o céu de Paracatu, o aliidos(as), nem esse sofrimento e foram responsabilizados pela ão tem preço.
“Não só no nosso caso, mas o que mais se vê não é justiça e sim o oposto. A sensação que temos é que, a cada dia que passa, vamos nos sentindo mais acuados. A pressão é muito grande, pois a nossa briga é com os grandes, empresas, governo, ou seja, ela é muito difícil e requer muita persistência. E sabemos que, para eles, qualquer dinheiro vale mais do que justiça. Por isso, sempre prefiro acreditar e esperar pela justiça divina. Nessa sim podemos confiar.” Maria Quintão, atingida de Bento Rodrigues “Pessoas que se percebem injustiçadas têm o direto de expressar seus sentimentos e demandar reparação pelo sofrimento que a injustiça lhes causa. Assim, a judicialização da dor causada por sentir-
-se injustiçado(a) é parte do cotidiano do judiciário também. Há uma relação direta entre sentir-se injustiçada(o) e ser injustiçado(a). Não há valor justo em um processo que teve como resultado mortes e que causa tantos adoecimentos a partir da dor. Há o valor mais justo, e é o que temos discutido na construção da Matriz de Danos. O pedido de desculpas pode ser parte de um processo de reparação e/ou de indenização por dano moral.” Dulce Maria Pereira, professora da UFOP e consultora da Cáritas na assessoria às atingidas e atingidos.
Um pedido por justiça "Nós, proprietários do Sítio Água Boa, em Ponte do Gama, Jadir José Arantes, Maria de Fátima Arantes, Maria das Graças Arantes, José das Graças Arantes e Valdemira Inácia Vieira Arantes, cobramos da Fundação Renova, representante das mineradoras, a efetuação da compra da casa apresentada por nós. Essa casa é reposição à outra de 13 cômodos e também da casa de caseiro, de quatro cômodos, que foram destruídas. Nós estamos sofrendo com essa situação. Nossa mãe tem 94 anos, e ela reza um terço todos os dias. As empresas causaram muitos problemas para nós. A parte da nossa terra que nos ajudava todos os dias está coberta de rejeitos. Perdemos a forma de produzir nossos alimentos naturais que ajudavam muito na nossa saúde. Exemplos dos alimentos: galinha caipira, frangos, ovos, queijo, requeijão, broa de fubá, cuscuz com queijo e mandioca ralada, frutas, legumes, verduras, peixes da represa e do rio, e outros tipos de carne. A nossa terra ia ser irrigada pela queda da cachoeira sem gastar bomba e força elétrica. Tem regiões em que é necessário o uso de energia elétrica para irrigação, e gasta-se três mil reais ou mais por mês. Hoje, nós temos esse problema, deixamos de ter esse benefício na nossa geração e nas outras futuras. A nossa terra tem material que contém ouro. Já conseguimos tirar 30 gramas de ouro em porcentagem por semana dos garimpeiros que trabalhavam na área. Esse ouro está em uma média de sete metros de profundidade. Era uma opção para nós, proprietários, quando a necessidade de dinheiro era de força maior. Nós também perdemos os amigos que acampavam e compravam nossos produtos. Perdemos o jeito de fazer a casa de campo para alugar. Os donos das mineradoras, empreiteiros e aliados continuam na vida boa. Nós tínhamos a terra que oferecia muitas coisas. A Samarco, Vale e BHP mandaram, além de lama, muito rejeito que acabou com as opções dessa terra. A indenização deve ser competente para cobrir todos os danos. Contratamos um topógrafo para fazer a medição da área e deu que estamos com nove hectares de terra com rejeito."
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Direito de entender Prescrição: Ação coletiva e Ação individual Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor da 1ª Comarca de MarianaJustiça.
A prescrição é a extinção da possibilidade de requerer judicialmente a reparação para um direito que foi violado. De acordo com o artigo 189 do Código Civil Brasileiro, quando desrespeitado um direito, nasce, para o(a) cidadão(ã) titular, a reivindicação por justiça, a qual, se encerra, pela prescrição, nos prazos determinados nos artigos 205 e 206 desse mesmo código. Segundo o autor Flávio Tartuce, na prescrição, ocorre a extinção do prazo de se ajuizar uma ação, porém o direito em si permanece preservado. “Tanto isso é verdade que, se alguém pagar uma dívida prescrita, não pode pedir a devolução da quantia paga, já que existia o direito de crédito que não foi extinto pela prescrição.”¹ No caso do desastre da Barragem de Fundão, o prazo de prescrição para requerer a indenização é de três anos, contados a partir da data do fato (5 de novembro de 2015), conforme artigo 206, §3º, V, do Código Civil. Mas, apesar desse prazo se aplicar como regra, é preciso diferenciar o tratamento da prescrição na ação coletiva e na ação individual. Ação coletiva No que diz respeito à ação coletiva, chamada de ação civil pública, é válido relembrar que ela foi ajuizada no dia 10 de dezembro de 2015, pelo Ministério Público de Minas Gerais, e segue na 2ª Vara da Comarca de Mariana. Durante o andamento do processo, a prescrição não corre, ou seja, ainda que essa ação coletiva seja julgada após os três anos, no dia 5 de novembro de 2018 não haverá prescrição. Ação individual Em relação à ação individual, é importante destacar que qualquer pessoa pode requerer individualmente a reparação dos danos sofridos, contratando advogado(a) particular, solicitando à Defensoria Pública ou negociando diretamente com as empresas e a Fundação Renova. É uma escolha do(da) atingido(a) e não existe qualquer obstáculo para fazer essa opção.
No entanto, cumpre dizer que, se o(a) atingido(a) fizer a negociação direta com a Fundação Renova, por meio do Programa de Indenização Mediada (PIM), ou por meio de ação individual, ele não poderá exigir a indenização pelos mesmos danos sofridos na ação coletiva ajuizada pelo MPMG. O prazo de prescrição para a ação individual é de três anos, mas a jurisprudência brasileira não tem entendimento firmado a respeito da influência da ação coletiva na ação individual. E, por isso, há, pelo menos, três posicionamentos sobre isso no Brasil. O primeiro deles afirma que a ação coletiva não interrompe e nem suspende o prazo para a ação individual: portanto, a prescrição da ação individual correria a partir do dia 5 de novembro de 2015, encerrando-se no dia 5 de novembro de 2018. O segundo entendimento diz que o ajuizamento da ação coletiva interrompe a prescrição da ação individual. Nesse caso, a prescrição se iniciaria no dia 10 de dezembro de 2015 (quando foi ajuizada a ação coletiva) e terminaria no dia 10 de dezembro de 2018. Esse foi o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.641.167. O terceiro entendimento defende que não prescreve a reparação dos danos ambientais e, assim, os danos causados a terceiros, derivados de violações ambientais, teriam a prescrição suspensa enquanto o meio ambiente não fosse reparado. Por isso, com o objetivo de evitar a insegurança desses posicionamentos, o Ministério Público, as comissões de atingidos(as) e a Assessoria Técnica da Cáritas trabalham para que as empresas reconheçam a obrigação de indenizar as vítimas, por meio de um termo de transação e matriz de danos homologados pela Justiça na ação coletiva. A homologação desse acordo valerá como uma nova interrupção da prescrição, ressurgindo o prazo de três anos para requerer indenização, e, ainda, com a vantagem de que o(a) atingido(a) terá instrumentos suficientes para essa finalidade: termo de transação e matriz de danos (título executivo judicial) e dossiê formado através do cadastramento das pessoas atingidas (provas dos seus direitos). ¹ TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 323.
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Novo acordo: que poder teremos?
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O novo Termo de Ajustamento de Conduta, chamado TAC Governança, foi assinado no dia 25 de junho pelo Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPE), Defensorias Públicas, Fundação Renova/Samarco, Vale e BHP Billiton, governos e outros órgãos públicos. Embora esse novo acordão inclua a participação dos(as) atingidos(as) em todas as etapas do processo, o poder de voz das comunidades nas cadeiras mais importantes, isto é, naquelas que decidem pelo “sim” ou pelo “não”, ainda é muito baixo se comparado com o poder da fundação e das empresas causadoras dos danos. A 12ª Vara da Justiça Federal em Minas Gerais ainda irá avaliar se reconhece como legítimo ou não o novo TAC, que envolve o futuro de cerca de 500 mil vítimas. Essa decisão está prevista para acontecer no dia 8 de agosto, em Belo Horizonte. Por Genival Pascoal, Marino D’Angelo e Mauro Lúcio Com o apoio de Flávio Ribeiro
“Eu não concordo com a forma como foi elaborado nem o primeiro e nem o segundo TAC. Porque a gente só vê direitos sendo construídos para a empresa e, quando o criminoso está ditando as regras, fica ainda mais difícil. Os promotores que aceitaram essa proposta perderam mais do que ganharam, porque serão suspensas multas, entre outras coisas. Deveriam ter transformado as multas em direitos para os(as) atingidos(as). Agora, dizem que o Conselho Curador da Fundação Renova/ Samarco vai ter dois(duas) atingidos(as) que vão representar as comunidades, mas é mais uma ficção, porque vão ser dois contra sete, e que aí não vão ter poder nenhum. Quem vão ser esses dois? Qual a credibilidade que eles têm? Quem garante que não vai ser a empresa que vai jogar essas pessoas lá dentro? É mais uma manobra para legitimar a fundação/empresas.” Marino D’Angelo, morador de Paracatu de Baixo “No meu entender, se estavam criando um novo acordo e queriam a nossa participação, deveriam ter trazido há mais tempo uma proposta para analisarmos e, assim, fazer a construção de diretrizes de participação iguais as que construímos com a nossa assessoria técnica, para que não ficássemos à mercê da Fundação Renova/Samarco. Não tem como colocar diretrizes nesse novo TAC se ele não foi construído com a gente. Esse acordo não é bem uma empresa, mas parece pela estrutura política. E eu penso assim pelo fato de que tudo foi formado e aprovado dentro de várias instâncias que não são totalmente transparentes.” Genival Pascoal, morador de Bento Rodrigues “Eu não tive nenhum retorno se as sugestões dadas para a criação do novo TAC tinham sido aceitas. Algumas delas podem até ter sido atendidas, mas acho que não foi bem da maneira que estávamos querendo. O que foi sugerido era que houvesse participação ativa dos(as) atingidos(as), com igualdade, e não com a maioria esmagadora sendo de pessoas que não são atingidas, porque aí eles vão estar sempre mandando e a gente nunca vai ter voz ativa. Essa era a minha esperança com o novo TAC, que a voz dos(as) atingidos(as) tivesse mais poder ou que, ao menos, fosse igualada diante de outros integrantes, como o Ministério Público, os governos e a Fundação Renova/Samarco.” Mauro Lúcio, morador de Ponte do Gama
QUEM É QUEM NO NOVO TAC Etapas de discussões e propostas: 19 Comissões Locais + Assessorias Técnicas
6 Câmaras Regionais
Articulação das Câmaras Regionais
Conselho Curador da Renova/Samarco
Formularão propostas e críticas sobre as ações de reparação. Serão criadas nas regiões ao longo da Bacia do Rio Doce. Propõem mudanças e revisões nos programas de reparação, baseadas nas discussões das Comissões Locais e das Assessorias. Reunirá as propostas das Câmaras Regionais e as encaminhará para o CIF, Câmara de Repactuação e/ ou Renova/Samarco. Planeja os orçamentos, as contratações e a aprovação dos programas. 2 votos para atingidos(as); um para o CIF; 6 para as empresas.
Etapas para revisões e decisões: Comitê Interfederativo (CIF)
Monitora e fiscaliza as ações da Renova/Samarco. 2 votos para atingidos(as) e 13 para os demais órgãos envolvidos.
Processo único de repactuação
Irá rever os programas e ações de reparação. Consulta 2 atingidos(as) e as partes envolvidas.
Conselho Consultivo da Renova/Samarco
Aconselha sobre os programas de reparação. Consulta 7 atingidos(as) e 12 indicados(as) pelos órgãos e fundação/empresas.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Agosto de 2018 Mariana - MG
Fotos: Marcinho Lazarini
O que esconderam de nós Na última edição do Jornal A SIRENE, os moradores de Santana do Deserto, distrito de Rio Doce, denunciaram as condições dos diques de decantação construídos pela Renova/Samarco, no terreno da Fazenda Floresta, área próxima à Hidrelétrica de Candonga. A partir de uma nova suspeita, os moradores Marcinho e Tininho fizeram mais uma denúncia à Defesa Civil de Belo Horizonte, que, junto com a Defesa Civil de Rio Doce, exigiram da fundação/empresas um estudo que esclareça se há condições de continuar a obra. A empresa Allonda Ambiental, terceirizada responsável por esse estudo, tem 30 dias para a entregar um laudo. Por Sebastião Silva de Oliveira (Tininho), José Augusto Delazari e José Márcio Lazarini (Marcinho) Com o apoio de Larissa Pinto e Tainara Torres
Só agora que veio ao nosso conhecimento que o deslizamento de terra aconteceu no dia 15 de maio. Eles esconderam isso da gente. No mês passado, quando soubemos que havia acontecido um deslizamento no terreno da Fazenda Floresta, pensávamos que fosse algo recente. Fizemos uma denúncia para a Defesa Civil de Belo Horizonte e, a partir disso, tivemos uma reunião, no dia 19 de julho, com alguns engenheiros da Renova, com a Defesa Civil de Rio Doce e de Belo Horizonte. No mesmo dia, Marcinho e eu recebemos a liberação para acompanhar o processo de construção dos diques e fizemos uma visita ao terreno. Como nunca tínhamos tido acesso ao canteiro de obras, achávamos que a água do rio já estava sendo bombeada para os diques, mas eles só estavam colocando o rejeito seco. Pelo que eu vi lá, parece que aconteceram dois deslizamentos, um mais pra cima e outro na parte de baixo do dique. Tininho, morador de Rio Doce Durante a visita, os engenheiros nos explicaram que existem dois diques na Fazenda Floresta. O Dique 1, que está em
construção, vai ser a bacia para receber o rejeito. Logo abaixo, é o Dique 2, onde houve o deslizamento de terra. Do outro lado, foi onde o barranco chiou [deslizou]. Mais pra cima do barranco, onde tem um corte de terra, já estão aparecendo outras trincas. O que sai do Dique 1 é a água, ainda suja, que cai no Dique 2 e recebe o tratamento de filtragem, por meio do processo de decantação, para cair no córrego de novo e ir embora. Se o Dique 2 estiver comprometido, vai ter que anular todo serviço. Marcinho, morador de Rio Doce Na nossa opinião, a Fundação Renova não está preocupada em limpar o rio Doce, e sim os 400 metros acima do muro da usina, que é o suficiente para ela voltar a operar, pois eles só estão tirando um terço de toda lama que está no rio. O que a gente entende é que vai ser um trabalho contínuo, porque se chover o rejeito desce de novo. Eles fizeram os barramentos dentro do lago para ver se impedia o rejeito de descer, só que ele desce do mesmo jeito. O serviço não funcionou. Zé Augusto e Marcinho, moradores de Rio Doce
"Desceu muita coisa, desceu árvore, desceu tudo. Mas, quando nós fomos na visita, eles já tinham dado uma ‘sarada’ no terreno com as britas que cobrem tudo. Agora já deu outra trinca." Tininho, morador de Rio Doce "Eles vão prensando esse barranco pra não chiar mais, vão colocando pedra, compactando, porque lá é uma grota. Fazem isso de um lado ao outro, subindo e prensando. Agora estão esperando o resultado dessa sondagem." Marcinho, morador de Rio Doce
Local onde houve o deslizamento no terreno da Fazenda Floresta. O Dique 2, construído pela Fundação Renova/Samarco, já apresenta trincas.
Agosto de 2018 Mariana - MG
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APARASIRENE NÃO ESQUECER
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Se dividindo entre a luta, o trabalho e a família, as mulheres atingidas assumiram um protagonismo na defesa dos direitos de suas comunidades. Quando conseguem, elas participam de uma rotina intensa de reuniões, de segunda a sexta-feira, e, muitas vezes, aos fins de semana. Porém, esses encontros costumam terminar tarde da noite e, geralmente, acontecem em lugares que ficam distantes de suas moradias provisórias em Mariana. Por causa do medo de terem que voltar sozinhas para casa, e levando em consideração outras dificuldades, como a das pessoas idosas, das mães com filhos de colo, e também de quem precisa arcar com o custo de passagens, elas entendem a necessidade de haver transporte dentro da cidade que possibilite uma presença em todos os espaços de debate interessantes aos(às) atingidos(as). Por Claudia dos Santos e Maria Geralda Com o apoio de Assessoria Técnica Cáritas e Daniela Felix
“Às vezes, a Renova até manda uma van, mas não é sempre. Depende do que se trata a reunião. Acredito que o certo seria disponibilizar transporte para todos, pelo menos na hora da volta. Porque aí a gente não precisa ficar se preocupando com a hora que vai terminar, e como vamos voltar para casa. Tenho medo de andar em Mariana sozinha à noite, e de ficar esperando no ponto de ônibus vazio. Quando o encontro é no escritório da Comissão, por exemplo, eu volto num galope só, conversando com Deus. É duro também ficar pagando passagem com o meu dinheiro. Gosto de estar presente em todas as reuniões, mas moro longe. Com o transporte seria mais fácil, mais gente iria, e sem precisar sair mais cedo por conta do horário. Eles [Renova/Samarco] poderiam se organizar em relação à isso.” Maria Geralda, moradora de Paracatu de Baixo “Eu vou nas reuniões que dá para ir, né, porque tem durante a semana toda. Eu vou a pé, com meus filhos e minha mãe. Às vezes, também levo o meu bebê de três meses, porque tenho que amamentar. Deveria ter transporte pra gente ir nas reuniões. Pelo menos na hora de voltar, porque acaba tarde da noite. Você já foi da Vila Maquiné até o Centro de Convenções? Pois é. E tem muita família morando aqui nesse bairro que participa sempre. Também tem as pessoas mais velhas, como a minha mãe, de 59 anos, e outras donas com mais de 60, que vão a pé. A gente até já se acostumou a andar, mas tem hora que cansa, principalmente depois de ter passado o dia todo fazendo um monte de coisa. Então, se pudessem arrumar um jeito de mandar transporte, a gente agradeceria. Eu acho que assim as pessoas participariam mais.” Claudia Aparecida dos Santos, moradora de Bento Rodrigues “O entendimento que a gente tem é que seria importante que a Fundação Renova oferecesse transporte aos(as) atingidos(as) para toda e qualquer reunião, independentemente se ela está presente ou não. Mas o que acontece é que a Renova só disponibiliza o transporte quando ela comparece. O projeto de assessoria técnica, por sua vez, não possui recursos para o transporte.” Gladston Figueiredo, Coordenador Operacional da Assessoria Técnica Cáritas O Jornal A SIRENE perguntou à Fundação Renova/Samarco sobre a disponibilização de transporte para os(as) atingidos(as) em todas as reuniões definidas em agenda, e obteve, como resposta, que a fundação/empresa identifica essa necessidade durante a sua mobilização para algum encontro, e também quando o(a) atingido(a) faz esse pedido de forma individual ou por meio de sua comissão. Porém, não informaram um canal de comunicação específico para receber essa demanda.
Foto: Tainara Torres
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Agosto de 2018 Mariana - MG
Fotos: Ananda Martins
Olhares de fora
O rompimento de Fundão repercute não só no dia a dia dos(as) atingidos(as), mas também nos espaços de estudos. A chegada de pesquisadores(as) pode assustar e gerar desconfiança: “quais os interesses desse pessoal?”. Mesmo assim, os(as) atingidos(as) entendem a importância de que suas denúncias, histórias e sonhos sejam ouvidos e refletidos. Além disso, quando há retorno, alguns resultados dessas pesquisas servem como provas e, assim, ajudam na busca por justiça. Por Marcos Muniz e Simária Quintão Com o apoio de Ananda Martins, Edson Bessa e Flávio Ribeiro
“Em uma de minhas visitas a Bento Rodrigues, caminhei pelas ruas da comunidade com o Marcos Muniz. Após passarmos pelas casas dos seus vizinhos, pela praça e pelas laterais da igreja de São Bento, alcançamos um grande volume de água represada pelo Dique S4. Sobre a paisagem de água, Marquinhos apontou cada cômodo da sua casa e o local de suas plantações, agora submersos. Antes de irmos embora, ele me mostrou, com o celular, imagens da casa que era sua antes da lama chegar, quando, imediatamente, se corrigiu: ‘Essa casa ainda é minha’. A conversa com o Marquinhos e com outros moradores durante minha pesquisa de mestrado fizeram com que eu percebesse que a relação dos(as) atingidos(as) com seus espaços construiu “Eu vejo que a participação das universidades é de grande suas memórias e seus modos de vida. Hoje, o desastre contiimportância para nós. Nós temos que receber de braços abernua por meio de uma série de violações de direitos e revela tos e agradecer muito a essas pessoas que estão nos ajudando. as forças desiguais de poder que existem em nossa sociedaFazer o possível para estarmos juntos, porque senão estamos de. Nesse sentido, cabe aos(às) pesquisadores(as) construíperdidos. Quando eles chegam, a gente fica com o pé atrás, rem, com os(as) atingidos(as), caminhos para que as pesquisas com um pouco de medo, mas procuramos nos informar mesaiam das bibliotecas e cheguem até as comunidades e, assim, lhor se eles estão do nosso lado ou do lado das empresas. Acho sejam ferramentas na luta por justiça. Sou muito grata aos(às) que alguma contribuição que ainda poderiam fazer seria com atingidos(as) pela confiança e hospitalidade, e por terem comrelação ao patrimônio, à preservação de Bento Rodrigues, para partilhado comigo momentos de suas vidas.” que ali não vire uma barragem e que sirva de memorial, um Ananda Martins, mestre em Urbanismo e graduada em ponto de visitação e aprendizado.” Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues “Vários fatores tendem a classificar o rompimento da Barragem de Fundão como um crime, especialmente por causa dos fatos históricos contados por quem sempre viveu em Bento Rodrigues. Daí a importância de conversar com quem entende essas mudanças na comunidade como um plano das mineradoras, que durante muitos anos, queriam tomar todas as terras de Bento e juntar as barragens de rejeitos. A conversa “A conversa com o pesquisador estava sendo importante com a Simária e com o Mauricélio me mostrou questões que depara ele, mas pra mim também. Se a pesquisa mostrar a hisverão ser parte central da minha pesquisa, em que tento ententória como a gente contou será importante para as pessoas der os conflitos de uma ‘tragédia anunciada’ a partir dos relatos que não estão aqui conhecerem a verdade, através de quem e denúncias. Eles me revelaram que o rompimento era possível vive a realidade e não através da empresa. Se a pesquisa fosse de ocorrer a qualquer momento, e que a construção dos Difeita com a Renova/Samarco/Vale/BHP ia ter só o lado ‘bom’ ques S3 e S4 comprova a ganância da Samarco em ter aquelas que elas querem mostrar. É necessário que as pessoas de fora terras. Percebi, por suas falas, que conhecer bem o lugar onde saibam da realidade, porque a gente não tem os mecanismos as pessoas vivem e criam seus laços pode ser importante para que a fundação/empresas têm, por exemplo, para fazer markeentender o poder das mineradoras diante das comunidades. ting por meio dos veículos de comunicação, de internet e tudo Conhecer a história da comunidade e suas transformações só mais. Nós somos a parte mais fraca e o que nos resta é receber é possível a partir da sabedoria de fala dos(as) moradores(as), esses pesquisadores e mostrá-los o que vivemos. Se os pesquique mesmo em uma situação de desastre/crime, toca a nós, sadores levarem a verdade da maneira que contamos, nos ajupesquisadores(as), por conta da sensibilidade do relato. Semdam a desmascarar a Renova/Samarco. Porém, às vezes, não pre irei agradecer pela oportunidade de conhecer as histórias vemos o retorno das pesquisas e reportagens. Não queremos de pessoas como eles.” esse retorno para saber se ficou bom ou não, se ganhou algo Edson Bessa, mestre em Antropologia Social ou não, mas para saber se retratou as coisas como elas são de pela Universidade de Brasília (UnB) verdade, porque, quando isso acontece, é o que mais importa para nós.” Simária Quintão, moradora de Bento Rodrigues
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Agosto de 2018 Mariana - MG
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Fotos: Tainara Torres
O meu refúgio Por Ângela Sant’Ana, Arnaldo Arcanjo, Rosana Aparecida Pinto, Tomé Anatalino e Vera Lúcia Aleixo Silva Com o apoio de Tainara Torres
"O Rabito veio na hora mais difícil. Me ajudou a levantar a cabeça e saber que Deus existe. Cuidando dele, esqueço das coisas ruins." Rosana Aparecida Pinto, moradora de Barra Longa
"Fazendo mudas eu tiro o foco do passado. Plantar uma árvore e, daqui cem anos, ter um passarinho comendo as frutas dela vai estar de bom tamanho." Arnaldo Arcanjo, morador de Bento Rodrigues
"O que me dá força são meus quatro filhos. Eu levanto todos os dias e corro atrás, mesmo não estando bem. Meus filhos são meu tudo." Ângela Sant’Ana, moradora de Ponte do Gama
"Eu me apego muito e primeiramente em Deus. Tenho Jesus como o meu centro. Ele é o que me motiva." Tomé Anatalino, morador de Ponte do Gama
"Ana Júlia veio trazer alegria. Com ela, a gente não se viu mais fechado, porque é como uma flor desabrochando. Foi medicina para nós." Vera Lúcia Aleixo Silva, moradora de Gesteira
EDITORIAL Durante todos os dias das nossas vidas, especialmente, a partir do momento em que fomos obrigados(as) a deixar nossas casas, nossas comunidades, nossos vizinhos e amigos, temos nos sentido injustiçados(as). Porém, essa injustiça começou há muitos anos, antes do rompimento da Barragem de Fundão, quando a mineradora Samarco iniciou sua exploração de minério construindo barragens de forma irresponsável e, consequentemente, transformando a nossa sorte. Pensando nisso, tentamos trazer, com a foto dos olhos da Cintia Silva, atingida de Paracatu de Baixo, nossa capa deste mês, uma ideia de justiça que vem do modo como enxergamos aquilo que temos enfrentado. É assim que buscamos dizer sobre um sentimento que é só nosso e que, apesar de tudo, nos mantém em movimento durante esse tempo todo: queremos ver nossas vidas reparadas da maneira mais justa. Para lutar por essa justiça, reivindicamos mudanças, como o uso de uma linguagem da qual vamos conseguir nos apropriar, pois, além de enfrentarmos longas e exaustivas reuniões, nos sentimos perdidos em meio ao uso de termos, muitas vezes, desnecessários, que só complicam ainda mais o processo. Além disso, as verdades precisam ser ditas por nós, e é necessário que acreditem em nossas palavras, porque só a gente sabe o que o crime nos causou e continua nos causando. Por isso, quando falamos que nossas casas estão em risco por causa das rachaduras que surgiram devido ao trânsito de caminhões pesados, em Barra Longa e no Rio Doce, estamos acrescentando mais um item à lista de direitos que devem ser reparados. Dessa forma, não cabe à Fundação Renova/Samarco duvidar ou avaliar o modo como nossas moradias foram construídas, mas sim reconhecer os problemas que sua chegada provocaram em nosso dia a dia. Não podemos tolerar que as empresas sigam “reparando” os danos cometendo outros. Cobramos que a fundação/empresa e suas terceirizadas também sejam responsabilizadas por novos erros. No mês passado, nós denunciamos os perigos trazidos pelas obras de limpeza no Rio Doce, na área da Hidrelétrica de Candonga, no distrito de Santana do Deserto. Neste mês, tristemente, informamos que o que temíamos, em partes, aconteceu: em julho, houve um deslizamento de terra na Fazenda Floresta, região onde estão sendo construídos os diques que servirão como depósito dos rejeitos retirados da água. Após reclamarmos nossa presença no local, estamos conseguindo acompanhar as obras mais de perto. Essa é a nossa tentativa de evitar que o mesmo rejeito não nos atinja de novo. Por tudo isso, também exigimos que a nossa participação seja, de fato, reconhecida, e em maior número, nos principais espaços de decisão, como os previstos no novo TAC Governança. Se, antes, não tínhamos nenhum poder de voto no acordão, agora, conquistamos uma pequena representação que, de novo, corre o risco de ser insuficiente e continuar a nos deixar sem o poder que tanto precisamos para tornar esse processo de luta um pouco mais igual. Chegamos ao final de mais uma edição do Jornal A SIRENE um pouco mais confiantes depois de recebermos a notícia da assinatura do termo de anuência que autoriza o início das obras de reconstrução do nosso Bento Rodrigues. Esperamos, com fé, que esse passo seja um reflexo para o que deve acontecer também com as comunidades de Paracatu de Baixo e Gesteira, que aguardam, ansiosas, o cumprimento de seus direitos.