A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição nº 22 - Janeiro de 2018 | Distribuição gratuita
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Janeiro de 2018
PARA NÃO ESQUECER
Mariana - MG
Dizer às mineradoras Na última reunião dos atingidos de Mariana em 2017, realizada no dia 20 de dezembro, moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e das comunidades rurais, acompanhados pela Assessoria Técnica da Cáritas, reuniram-se com representantes da Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP Billiton. O encontro, organizado e mediado pelo Ministério Público Estadual, na pessoa do Promotor de Justiça de Mariana, Guilherme Meneghin, questionava as empresas sobre a recusa da BHP em participar de uma audiência de conciliação judicial prevista para o dia 4 de dezembro passado. Nesta data, seriam discutidas questões específicas sobre os reassentamentos, como a previsão de uma multa revertida aos atingidos em caso de atraso na entrega das casas e a situação das famílias residentes nas comunidades rurais. Ao final do encontro, os atingidos garantiram uma importante vitória para 2018: as empresas concordaram em participar de uma audiência para conciliação dos pontos levantados. Confira algumas falas dos atingidos dirigidas às empresas mineradoras. No entendimento geral, essas empresas têm se valido da imagem da Fundação Renova para não cumprirem ou serem devidamente responsabilizadas pelo crime de Fundão: “Não existe nenhuma relação de confiança entre os atingidos e a Fundação Renova. Todos nós sabemos que ela vem como um fantoche para tomar pedrada no lugar das empresas. Ela não resolve nada. Ao invés de resolver, ela burocratiza os problemas.” Mauro Marcos da Silva, Bento Rodrigues “Fazer reunião com a Renova é chover no molhado. ‘Semana que vem vai resolver’, ‘Semana que vem vai resolver’ - é só o que a gente ouve. Agora, falar até papagaio fala. Quero ver resolver. Cadê o terreno que falta para reassentar Paracatu?” Romeu Geraldo de Oliveira, Paracatu de Baixo “Precisamos do processo de reassentamento incluído na Ação Civil Pública de Mariana para nossa garantia. Como podemos acreditar e confiar que o nosso reassentamento vai sair sem estar judicializado?” Genival Pascoal, Bento Rodrigues “O desrespeito e a falta de responsabilidade com a gente é enorme. O nosso povo é uma grande família, mas tá todo mundo cansado. Tem gente desistindo de ir para a comunidade. Vocês estão exterminando com um povoado, um linguajar, uma cultura. Pelo amor de um Deus que vocês tenham, e que existe, resolvam nossos problemas depressa. Ajam!” Luzia Queiroz, Paracatu de Baixo “Vocês [Samarco] estão correndo atrás pra voltar a funcionar. Pois então, a gente tá correndo atrás pra nossa vida voltar a funcionar. Nós também queremos voltar a trabalhar: queremos nossa terra, nossas casas, nós queremos continuar nossas vidas. Hoje estamos vivendo a vida das empresas.” Rosária Ferreira Frade, Paracatu de Baixo Expediente Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Kleverson Lima, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editora de fotografia: Larissa Helena | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Aliança Rio Doce, Antonio Junior (Alicate), Ana Miranda, Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana) | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Luiza Geoffroy | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Ilustração: alicate
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O que Fundão não ensinou As empresas responsáveis pelo crime de Fundão não aprenderam o bastante com o desastre. Seguem colocando interesses financeiros acima do respeito à vida humana e do cuidado com o meio ambiente. Isso é o que percebemos ao acompanhar os esforços da Samarco para retomar suas atividades em Mariana. Com a consciência de que temos o papel de lembrar o que muitos insistem em esquecer, analisamos o Relatório de Impacto Ambiental para o Licenciamento Operacional Corretivo do Complexo de Germano, apresentado pela mineradora em audiências públicas realizadas no mês de dezembro em Mariana, Ouro Preto e Matipó. Os pontos levantados integram a Carta de Manifestação dos Atingidos pelo Rompimento da Barragem da Fundão (publicada, na íntegra, em nosso site). Por atingidos de Mariana Com o apoio de Flávio Ribeiro e Rafael Drumond
ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
Ponto 1: Crise para quem? A mineradora usa do sofrimento das pessoas e do drama do desemprego como estratégia de manipulação emocional da opinião pública. Às vésperas da realização das audiências, anuncia a demissão de 600 empregados. Vale-se de um contexto de crise que, para ela, não existe. Além dos lucros bilionários de suas acionistas, a própria Samarco segue tendo receita com a mineração, mesmo em inatividade (recursos oriundos do seguro das barragens, de lucros cessantes da venda de minério e da revenda de energia elétrica da Cemig). Ponto 2: Mentira, não! Ao contrário do que foi colocado no relatório, a Samarco não precisa voltar a operar para garantir a reparação dos atingidos. As responsáveis pelo rompimento da barragem são a Samarco, a Vale e a BHP Billiton - empresas que possuem lucros anuais bilionários e que têm todas as condições para financiarem as obras de reparação. Ponto 3: Direitos humanos devem ser priorizados! Para a retomada das atividades, a Samarco investiu recursos e canalizou esforços na construção de duas novas barragens – Nova Santarém e Eixo 1 – e quatro novos diques, e não foi capaz de construir nenhuma casa para os atingidos, nem em Mariana e nem em Barra Longa. Ponto 4: Não é com esquecimento que se faz um futuro justo e digno! Quem lê o Rima pode nem se dar conta de que estamos discutindo o licenciamento de um complexo que teve uma barragem rompida há dois anos. O Rima não faz referência ao Dam break (estu-
do de rompimento de barragem) relativo ao Complexo de Germano e não faz nenhuma menção ao Dique S4, que alagou parte de Bento Rodrigues. Ponto 5: Custos baixos, lucros altos. De acordo com o estudo, o método utilizado para exploração do minério ainda será o de barragens de rejeito, e não o armazenamento a seco, mantendo, dessa forma, riscos para as populações e para o meio ambiente. Ponto 6: Contradições entre relatórios. O Rima diz que, no terceiro ano da retomada, será necessário haver um estudo sobre as possibilidades de se armazenar o rejeito corretamente nos próximos anos. No caso do estudo da Cava de Alegria Sul, que segue em paralelo ao licenciamento de todo o complexo de Germano, está escrito que a cava comportaria rejeitos por apenas dois anos. No relatório agora apresentado, consta que a cava suportaria rejeitos por cinco anos. Será possível confiar nessa informação? Ponto 7: Quem tem direito à participação? Questionamos o uso limitado do instrumento de escuta da sociedade via audiência pública. Esses encontros foram realizados apenas em Mariana, Matipó e Ouro Preto, mesmo o Rima reconhecendo que o Complexo de Germano se estende por diversos outros municípios ao longo da Bacia do Rio Doce.
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Viver inseguro
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Medo, angústia, insegurança, falta de confiança, desassossego. Esses são sentimentos constantes para os atingidos pela Barragem de Fundão que ainda vivem no rastro do rejeito de minério da Samarco. Mais do que estarem em situação de risco, eles encontram-se atordoados pela noção de morar embaixo de barragens. Divididos entre razões afetivas e a possibilidade de uma nova história em paz, atingidos de Mariana e de Barra Longa lutam pela garantia do direito à novas terras, também como reparação do crime que lhes atingiu. A Fundação Renova/Samarco admitiu, em reunião realizada no dia 20 de dezembro, com os representantes das comunidades atingidas de Mariana, que a compra assistida de novas terras para os moradores da Zona Rural é um direito e está dentro do Plano de Reparação. Entretanto, não há ainda um compromisso judicial que garanta o cumprimento dessa obrigação por parte da fundação/empresa. Por José de Félix, Maria D’Angelo, Margareth Carneiro e Rosana Aparecida Com o apoio de Madalena Santos e Miriã Bonifácio Foto: Madalena Santos
"Viver aqui na comunidade de Ponte do Gama, pra mim, já não é mais tão bom. Eu não tenho mais confiança de sair passeando na vargem por onde a lama passou. Não temos mais o campo de futebol, que era uma área que, toda a vida, nós gostamos demais. Não temos mais as festas da comunidade, a arena, a cavalgada. Perdemos a segurança com os roubos que estão acontecendo na região. E também o psicológico da gente ficou muito afetado, a gente ficou traumatizado. Qualquer barulho que ouve já acha que é a barragem que vem de novo. Ainda, o pessoal da Samarco deixa a gente mais inseguro, porque eles fazem simulação, trazendo, pra gente, a desconfiança, a insegurança. Isso prejudica ainda mais a memória da gente, o emocional. Quando tá chovendo, a gente tem medo. Quando tá de sol, a poeira nos agride. Temos o pior na saúde da gente. Morar aqui agora é um caso mais complicado. Com relação a eles me avisarem que a área tá sossegada, eu não tenho muito sossego não. Eu só quero que eles nos dêem assistência e reparem o desgaste que a gente teve com o desastre. Aqui, mesmo em área de risco, enquanto eu tiver oportunidade de continuar morando, eu vou. Eles têm que me dar possibilidades, mas eu gosto do meu lugar." Zé de Félix - morador de Ponte do Gama "Eu sinto pavor de morar aqui. Fico acordada a qualquer hora da madrugada e dormir passou a ser uma batalha. Quando chove, dá vontade de sair andando, mas eu penso no meu filho, no meu marido, e aí fico quietinha, sempre tomando conta da casa e da minha família. Quando consigo dormir um pouco, acordo assustada com medo da casa cair. Essa tem sido minha rotina de vida: viver com medo, viver no perigo." Rosana Aparecida - moradora de Barra Longa "Eu converso com as pessoas, elas falam desse risco, mas, para ser sincera, nada de concreto chega até a gente. Nenhum estudo, nada. Nos primeiros dias depois do que aconteceu, a Defesa Civil veio e tirou a gente. Fomos para uma casa alugada em Águas Claras, mas, em pouco tempo, voltamos. A gente ia para lá só para dormir, então não fazia sentido. Porque é assim, aqui a gente tem criação, tem o sítio para cuidar, como que abandona isso? Então eu fico nessa dúvida, nessa angústia de sempre, porque eu quero os meus direitos de ir pra um lugar onde eu vou ter mais segurança no dia de amanhã, porém, se tiver que sair, tem que ir todo mundo para um lugar que tenha terra de qualidade pra gente plantar e levar essa vida que a gente leva. Vivo nesse lugar há 39 anos. A minha casa foi a única que ficou de pé aqui por perto, as dos meus vizinhos foram todas destruídas pela lama. Estou vendo eles reconstruindo no mesmo lugar das que foram derrubadas. A gente pergunta, pergunta, mas ninguém nos dá uma resposta." Margareth Carneiro - moradora de Paracatu de Cima
Mesmo com medo de um novo rompimento, Zé de Félix resiste em seu lugar.
"Eu vejo falarem sobre a saúde dos atingidos em relação à situação de risco, mas nós, das comunidades rurais, estamos vendo a Fundação Renova reconstruir as casas atingidas nos mesmos lugares em que elas foram alagadas. E as empresas Samarco, Vale e BHP não fazem nada. Tem seis meses que a casa dos meus pais está sendo construída no meio da lama. Então, eu quero que as empresas virem para nós e falem que nós temos o direito à novas terras. Nós não vivíamos em área de risco, tínhamos a nossa vida tranquila. A opção de viver na roça era por uma vida saudável. A minha opção por ser lavradora é pela garantia de colocar na mesa, para os meus filhos, aquilo que eu confio, que eu produzo. Essa confusão de empresa destruiu a minha família inteira. Agora, a gente fica tendo que ir em reunião, ir viajar para poder garantir o que já era nosso. Nós estamos embaixo de barragens e continuam construindo casas no rejeito. O pior de tudo é que nem sabemos ao certo o que tem nessa lama. " Maria D’Angelo - moradora de Paracatu de Cima Foto: Arquivo pessoal Maria D'Angelo
Maria D'Angelo vê a paisagem da zona rural com mais preocupação depois do rompimento.
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“Não dá para confiar na Samarco”
Por Janaína Paschoal Com o apoio de Marcos Muniz e Miriã Bonifácio Fotos: Lucas de Godoy
Uma falsa lagoa de água transparente e pouca turbidez toma conta da paisagem de Bento Rodrigues desde outubro de 2016. O Dique S4 é uma obra de “contenção” de rejeitos de minério construída pela Samarco com a suposta intenção de parar a lama que desce Rio abaixo desde o crime do dia 5 de novembro. A proposta era de que o dique fosse eficaz nessa tarefa e que, depois de 36 meses, em 2019, se realizasse um processo de desalagamento. Entretanto, o que vemos acontecer nos últimos dias é o recomeço de obras na região, a ausência de respostas por parte da empresa e a falta de provas da efetividade desse dique - que fere os olhos e o sentimento de uma comunidade inteira, que perdeu até o direito de ver suas ruínas. A Samarco alega, informalmente, que o prazo estabelecido até então pode ser prolongado, caso ela (a empresa causadora do dano) veja necessidade. Em contrapartida, as 55 propriedades atingidas diretamente pelo S4 seguem sendo submetidas a negociações desleais e sem acompanhamento técnico ou jurídico. No Hotel Muller, à portas fechadas, Seu Valadares, 74 anos, recebeu, no dia 20 de dezembro, a oferta de seis reais por metro quadrado das terras que roçou e cuidou durante a vida inteira. A angústia não é só pelo valor desigual entre os terrenos - calculado com base em imóveis das regiões mais baratas de Mariana -, ou pelos problemas que o dique vem causando, de discordância em cada família (negociante ou não); é por não saber, ou não confiar, que ele vai dar conta de resolver o problema. “Samarco, você quer uma segunda chance? Faça os atingidos confiarem em você de novo.” - Mauro da Silva (morador de Bento Rodrigues)
“Por fora bela viola...
… por dentro pão bolorento”.
Se você aluga uma casa por um valor, com contrato de um ano, vencendo esse prazo, o preço do aluguel é reajustado. Mas, para a Samarco, não é dessa forma. A empresa apresenta um contrato em que ela te paga um valor fixo por tempo indeterminado de uso das terras. Além disso, o processo de negociação como um todo é desrespeitoso, principalmente com os idosos, que se sentem forçados a aceitar uma proposta pelas propriedades que eles já perderam e que não têm segurança de reaver. Quem acompanha sabe bem como é. Os representantes da mineradora avisam que 44 proprietários já assinaram e que, se você não concordar, não vai fazer diferença, pois eles vão judicializar. Então, o sentimento que se tem é o de que todos estão sendo obrigados a negociar seus pedacinhos de terra, e ainda sem garantias de que o dique vai ser desmontado. Queremos saber quais são os critérios, quais são as intenções da Samarco com as terras de Bento Rodrigues. Queremos satisfações do que é nosso. Queremos respeito!
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Ilustração: Guerreiros do Rio Doce
Pedalando pela Regeneração da Bacia do Rio Doce Da Foz do Rio Doce, em Regência (ES), até Mariana. Três viajantes partiram, em setembro de 2017, para uma missão que durou três meses. Pelo caminho, encontraram muitos desafios, mas as sementes de regeneração, educação e de consciência coletiva ficaram plantadas em cada comunidade atingida por onde passaram. tejamos o encontro e, empolgados, fomos para a primeira escola onde tínhamos marcado uma apresentação.
Por Ananda, Guina e Vitor Com o apoio de Silmara Filgueiras
Nos perguntam: - Suas bicicletas são profissionais? - Não… São apenas bicicletas! Colocamos garupa na frente e atrás, marchas e muito amor. A verde se chama Jurema, a branquinha Brisa, e a preta Camêlo. As três magrelas carregam histórias de estradas pelo Brasil desde antes dessa pedalada.
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Somos Ananda, Vitor e Guina. Cicloviajantes e artistas por natureza que escutaram o chamado de Watu. Colocamos nossas habilidades e ferramentas a serviço da Regeneração. Também somos integrantes do coletivo “Aliança Rio Doce” e estamos espiritualizados pelo
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Movimento Regenera Rio Doce, que nos deu a sinergia necessária para enfrentar esta missão. Saímos com nossas bicicletas em direção à Mariana carregando nas bagagens ferramentas para propor transformações nas escolas e comunidades por meio de atitudes que beneficiassem a saúde das águas. Sim, o foco da pedalada foi as escolas. Buscamos as “guerreiras e guerreiros do Rio Doce” para contar-lhes que Watu, a alma ancestral do rio, está chamando-os para uma grande missão: a Regeneração da Bacia do Rio Doce. Desde o começo, procuramos andar pelos caminhos mais próximos ao rio, e essa foi uma escolha decisiva para os três meses de viagem.
Nos inspiramos no verde dos caminhos e nos encantamos com os desenhos das árvores. Eram tantas belezas naturais que, numa bifurcação, o grupo se dividiu sem perceber que tinha tomado direções diferentes. Ficamos separados logo no primeiro dia de viagem, mas cada um encontrou uma família amiga que o acolheu. Passamos a noite protegidos pelas rezas das benzedeiras que nos abençoaram antes de começarmos a missão. No dia seguinte, nos reencontramos, chegando em Linhares (ES). Fes-
Oficinas, sementes nativas e a rede de educação Foram mais de 15 escolas visitadas, entre elas, instituições urbanas e municipais. Encontramos também escolas rurais e indígenas. Trouxemos, na nossa bagagem, ferramentas lúdico-didáticas e, a partir delas, criamos uma peça teatral para estimular a sensibilidade e evocar a voz de Watu. Apresentamos a proposta do “Grande Ciclo’’ e também desenvolvemos as oficinas: “Plantio de mudas e sementes crioulas”, “Rádio Solta Sapo”, “Corpo Vivo”, “Arte Gráfica”, “Lixo Zero” e a “Enciclopédia da Regeneração da Bacia do Rio Doce (WikiRioDoce)”. E, assim, os pequenos guerreiros foram convocados a experimentar passos práticos para o cotidiano: 1 - Parar de intoxicar a terra e as águas: Lixo Zero, reciclagem e consumo consciente; 2 - Plantio: despertar uma paixão por plantar árvores e hortas em todo lado; 3 - Comunicação Livre: formas ágeis de se conectar para atuar articulados em rede. “Sinto que posso conseguir uma nova vida para o Rio Doce plantando árvores, tentando fazer uma corrente ao redor dele para não prejudicar as árvores e elas
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WATU As histórias dos mais velhos, os pedaços de antigas cerâmicas e as almas caboclas que habitam as matas da mágica Foz do Rio Doce nos ensinaram que, algum tempo atrás, quando não existiam cercas nem outras divisões estranhas, a Bacia do Rio Doce era um território unido por caminhos onde circulavam Povos Ancestrais, sementes, animais, culturas, símbolos, medicinas da floresta e deuses. Nesses "Caminhos Ancestrais", lugares especiais acolhiam os povos e multiplicavam a potência dos elementos em circulação, atualizando relações de cuidado e afeto entre natureza e coletividade. Esses povos chamavam o Rio Doce, e ainda o chamam, de Watu, que significa “Rio Avô, Rio Sábio.”
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poderem crescer sem ninguém mexer…” Guerreirinho de Baixo Guandu (ES) “Tem que reciclar, e a gente da nossa escola recicla todas as coisas. E a gente tá reciclando pra fazer o Natal aqui na Escola.” Guerreirinha de Barra Longa “Menos hipocrisia, porque muita gente fala que se importa mas não faz nada de verdade.” Guerreirinha de Itapina (ES) Os resultados começaram a aparecer! As crianças nos surpreenderam com sua entusiasmada adesão. Em algumas escolas, escolheram plantar árvores e cuidá-las. Em outras, optaram por não ter mais lixeira na sala de aula, e aderiram o uso de Tijolos Ecológicos feitos com garrafas PET. Houve turma que escreveu uma carta coletiva que foi entregue às autoridades da cidade. A garotada aprendeu que um rio sujo não é normal, e que elas são as principais Atingidas do Futuro. Força nativa A lama levou, no seu passo, algo de todo mundo que mora ao longo do rio. Tamanha dor chama a força nativa das comuni-
dades inteiras que perderam seu modo de vida, trabalho, brincadeiras, o direito de aprender a nadar, os rituais de conexão e até o som das cachoeiras, que ficou abafado pela densidade da água. Durante o percurso, vimos lágrimas escorregarem ao lembrar do que se foi, mas também corações pulsando mais forte ao se encontrarem com seres que trabalham pela Regeneração. Existe uma força interior dentro de cada atingido que “nem a lama destrói”! É ali que mora a ancestralidade em que o “Grande Ciclo” se inspira. Radio Solta Sapo A rádio é uma ferramenta on-line de comunicação livre para unir as vozes, histórias e culturas que habitam toda a Bacia do Rio Doce. Acesse: wikiriodoce.org/ Radio_Solta_Sapo Jogo da Bacia do Rio Doce Foi o resultado do processo de diversas expedições que aconteceram ao longo do rio para compreender os desdobramentos do rompimento da barragem. Realizamos oficinas com
o jogo, com o objetivo de ampliar a visão dos jogadores desde uma perspectiva de danos socioambientais locais para danos integrais, dimensionados em termos de bacia hidrográfica. Pesquisa viva Pesquisa viva remete à prática de usar a própria vida como método de pesquisa. O caminho de regeneração realizado pelo Grande Ciclo escolheu a bicicleta como meio de transporte e o tema da educação como foco da pesquisa. Para isso, criamos vínculos com os Centros de Educação através da apresentação de uma peça, algumas oficinas, uma Enciclopédia de Regeneração e uma Rádio Nômade. Outro ponto-chave desse tipo de pesquisa é que ela tem relevância se for levada à prática: na nossa experiência, viajar de bicicleta nos permitiu uma observação sutil e afetiva da Bacia, nos proporcionou espontaneidade ao chegar às comunidades, onde cultivamos simplicidade e
trocamos afeto sincero com as pessoas que cruzaram nossos caminhos. De forma autônoma e espontânea, fomos apontando e registrando tudo o que chamou nossa atenção: tanto as coisas boas e inspiradoras, quanto as ruins, que agrediam a vida do Rio Doce. Usamos o site WikiRioDoce.org como ferramenta para organizar as informações levantadas na viagem. Ela é uma Enciclopédia de Regeneração: uma rede de conteúdos colaborativos em que você encontra ações e notícias relacionadas aos desdobramentos do maior crime socioambiental do Brasil. Todo o conteúdo da WikiRioDoce é escrito de forma livre e colaborativa. Você também pode ajudar e participar. Agora, nosso grande desafio é seguir conectados à rede conhecida durante o trajeto e entender como cooperamos no processo de Regeneração da Bacia do Nosso Rio Doce.
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Por amor ao Bento: onde tudo começou
Há 25 anos atrás, precisamente no dia 19 de dezembro de 1992, Marquinhos Muniz e Marinalda Muniz realizavam a cerimônia de casamento deles na Igreja de São Bento, em Bento Rodrigues, celebrada pelo Padre Geraldo Barbosa. Na ocasião, a comunidade lotou todos os bancos de madeira da Capela que se encontrava de pé e toda decorada, consagrando uma união de amor. No final de 2017, no dia 23 de dezembro, o casal retornou à Igreja para celebrar suas Bodas de Prata. Apesar da decoração também estar presente, o que restou do local foram ruínas e um teto inexistente, que precisa de uma cobertura para que os convidados possam permanecer debaixo do sol, consequências de um crime que deixou enormes marcas. Realizar a cerimônia neste lugar, mesmo com todas as limitações, significa vitória não só para o casal, mas para toda a comunidade do Bento. Os atingidos, mais uma vez, demonstram que, através da união, é possível ocupar um espaço que lhes pertence. Acima do amor entre duas pessoas, está o amor por várias histórias de vida, está o amor por Bento Rodrigues. Por Mara Regina Silva Muniz, Marinalda Aparecida Silva Muniz, Manoel Marcus Muniz e Mônica Santos Com o apoio de Carlos Paranhos
Foto: Album da família
Foto: Album
Os noivos e amigos na celebração do casório, em 1992.
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Foto: Album da família
A noiva, Marinalda:
Vivemos a emoção de celebrar as bodas na simplicidade do nosso povoado Bento Rodrigues. Foi nas ruínas da Igreja São Bento, celebração realizada pelo Padre Armando Godinho, e ao lado dos nossos parentes e dos verdadeiros amigos que nos acompanharam desde a infância, e também aqueles que conquistamos ao longo dessa trajetória.
O noivo, Marquinhos: da família
Aquele lugar, principalmente a Igreja, pra gente é muito valioso. Foi ali que começamos a aprender as coisas. Depois do rompimento da barragem, eu pensei: “perdi a Igreja, esse espaço”; mas hoje em dia eu penso que é muito importante ter celebrado ali, nas ruínas mesmo, no Bento.
A filha, Mara
Comemorar as bodas na Igreja de São Bento é muito importante para os meus pais e para todos os atingidos. A chave da Igreja ficava sobre proteção do meu avô, era ele quem abria e fechava depois das missas. Se a Igreja precisasse de algum conserto, a própria comunidade ia lá e arrumava tudo. Eu penso que essa celebração vai trazer o mesmo sentimento de antes, quando Bento se reunia para fazer as festas e as celebrações.
Os amigos, Loucos pelo Bento:
Durante esses 25 anos temos certeza de que foram muitos os momentos de alegria, de cumplicidade e companheirismo. O destino quis que nosso querido Bento fosse atingido por esse crime, mas estamos aqui de pé, cabeça erguida sem perder a esperança. Vocês, ao virem aqui, nos dão o apoio e nos ajudam a acreditar que o Bento se reerguerá no apoio, na união de todos!
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Fotos: Lucas de Godoy
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Ilustração : Ana Mi r anda
Nossas histórias debaixo dos pés de frutas Se os nossos pés de frutas falassem, quantas histórias eles teriam para contar? As árvores são como abrigos: nos dão sombra, segurança, amor. Em nossas comunidades, elas não só nos alimentavam, protegiam e embelezavam as paisagens, como também guardavam nossos segredos, nossos sonhos, nossas histórias. Algumas se foram logo naquele dia 5 de novembro, outras resistiram, ou resistimos por elas. Mas ainda hoje recebemos notícias das que estão morrendo, indo embora aos poucos, sem conseguirem sobreviver ao baque. Estes depoimentos são uma homenagem de todos os atingidos pela Barragem de Fundão para as “amigas” que construíram em suas memórias momentos inesquecíveis.
Por Maria das Dores (Dorinha), Maria das Graças Quintão, Marinalva Salgado, Mônica Quintão, Sonia Nazaré dos Santos e Wuilsom Emiliano dos Santos Com o apoio de Larissa Helena, Miriã Bonifácio, Sérgio Papagaio e Simone Silva
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Janeiro de 2018 Mariana - MG "A gente tinha vários pés. Era acerola, limão doce, jabuticaba, pitanga. Tinha muita variedade. Eu adorava subir no pé de jabuticaba, porque gostoso é subir no pé e panhar a fruta. O jeito mais gostoso de comer fruta é assim. Vocês nem imaginam como é bom isso. Agora, a gente tem que comprar, mas não tem o mesmo sabor, porque o sabor está em você pegar a fruta direto no pé. Não tem como descrever como era maravilhosa essa vida nossa. Lembro que lá em casa eram dois pés de jabuticaba e minha mãe só deixava a gente subir depois da famosa chuvinha da jabuticaba. Então, quando dava a chuvinha, era bom demais, as crianças ficavam juntas comendo aquelas que davam nos galhos baixinhos. No lugar que a gente morava não sobreviveu nada, acabou tudo. Só tem mato e a água [Dique S4], que agora tá chegando lá. Nem das casas que sobraram existe mais algum pé, eles todos morreram com a lama. A Samarco tirou esse privilégio da gente viver, porque hoje a gente não vive, a gente vegeta." Marinalva Salgado, moradora de Bento Rodrigues "Desde que me entendo por gente, conheço este ipê. As flores que nascem nele são muito bonitas, de cor rosa, mas nós quase perdemos ele. Primeiro a Samarco cortou uns galhos para que pudessem passar com as máquinas. Depois, estavam cavando um espaço para que o esgoto pudesse passar e, aí, então, cortaram algumas raízes e o ipê começou a se inclinar. Brigamos e conseguimos que eles mudassem o esgoto de lugar, porque se continuassem com esse trabalho, ele iria morrer." Maria das Dores de Sousa, moradora de Barra Longa "O pé de manga fazia parte da nossa vida, era como se fosse um membro da família. Quando iam podar ele, a gente ficava vigiando pra não cortar muito. Lembro que teve uma vez que cismaram que o pé estava prejudicando a Igreja e que eles iam ter que cortar. Foi uma briga danada, meu pai não queria deixar, tudo por causa do pé de manga. Quando compramos nossa casa, os pés de manga já existiam, então meu pai fez bancos de pedra embaixo deles e a gente usava a sombra pra conversar, namorar, dava até pra deitar. Era um lugar onde a gente sempre se reunia. Aos domingos, sentavam todos lá, era muito bom. A relação que criamos com o pé de manga é muito forte. Tanto é que, agora, ele está lá morrendo e o sentimento é de que estarmos perdendo um membro da família. Eu cresci subindo naqueles pés. Não tem nada melhor que subir num pé de fruta pra comer, né? Principalmente, jabuticaba e manga. E faz falta subir, sabe? Mesmo que seja subir por subir, era bom demais." Maria das Graças Quintão e Mônica Quintão, moradoras de Bento Rodrigues Lá em casa, tinha vários pés de fruta, por exemplo, pés de acerola, mamão, carambola, manga, banana e o principal era o pé de goiaba, que tem história demais. Quando era época de goiaba, a gente subia no pé para panhar as frutas, que eram muito gostosas e docinhas, não davam bicho. Eu, minhas irmãs e sobrinhos ficávamos brincando de achar a maior goiaba do pé. Era muito divertido. O pé de manga era diferente. A gente levantava cedo para ir chupar porque as mangas estavam mais fresquinhas. Eram muitas, as mais docinhas que eu já chupei na vida. Igual aquelas eu acho que nunca mais vou encontrar. Lá tinha pé de coco também. A gente pegava a casca dele pra poder brincar de escorregar com os nossos primos, era muito divertido, dávamos risadas demais. Depois que a gente cansava de brincar, quebrávamos o coco e fazíamos docinho com a casca. A gente ficava feliz que tinha fruta pra comer. Meu pai ficava orgulhoso de ver os pés dando frutas. Tinha várias árvores que a gente brincava embaixo delas, fazia piquenique. Era o tempo todo lá de baixo, até dormir a gente dormia. Quando a lua estava clara era muito bom. Mas, depois do dia 5 de novembro de 2015, que teve esse crime da Samarco, nossos sonhos foram embora. Ela arrancou tudo o que a gente tinha de maravilhoso, agora são só lembranças, porque nunca mais vai ser como antes. É muito triste dizer isso, só Deus pra ter misericórdia da gente." Sonia Nazaré dos Santos e Wuilsom Emiliano dos Santos, moradores de Pedras
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Foto: Arquivo Mônica Quintão
Foto antiga do banco de pedras onde costumavam se reunir. Foto: Mônica Quintão
Os pés de fruta que restaram em Bento estão perdendo a folhagem e morrendo. Foto: Sergio Papagaio
Pé de Ipê no Parque de Exposições de Barra Longa.
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Quem são os atingidos e atingidas de Barra Longa? Por moradores de Barra Longa Com apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens e Rafael Drumond
Desde novembro de 2015, nós, atingidos e atingidas de Barra Longa, sentimos na pele, no corpo e na alma, as dores trazidas pela lama de Fundão. Por aqui, seguimos nossa luta diária contra as adversidades impostas pelo crime e pela condução morosa dos processos de reparação. Para darmos conta dos enfrentamentos necessários, estamos organizados em Grupos de Base, na Comissão de Atingidos e no Movimento dos Atingidos por Barragens. No cotidiano da luta, vamos compreendendo a força da organização coletiva como único caminho possível para a conquista de nossos direitos. Com a contribuição da Assessoria Técnica da Aedas, realizamos – entre setembro e dezembro de 2017 – uma série de reuniões para debater os diversos danos provocados pela empresa Samarco (Vale, BHP Billiton). A partir desses encontros, levantamos as principais demandas individuais e coletivas dos moradores do município. Diante disso, trazemos aqui a reivindicação de diversas pessoas que buscam o reconhecimento de seus direitos como atingidos e atingidas. Essa é uma demanda importante, sobretudo quando se considera que as empresas/Fundação Renova negam tal reconhecimento a muitos moradores de Barra Longa. Para eles, “impactados” são apenas aqueles que tiveram algum dano material decorrente do desastre. Sabemos que esse critério é restritivo e insuficiente. Os causadores do crime não podem dizer quem são suas vítimas. São elas, uma vez lesionadas em seus direitos, que irão manifestar como a lama de Fundão invadiu suas vidas, e porque devem ser consideradas nos processos de reparação e indenização. Neste texto, documentamos quem são os atingidos e atingidas pelo crime das mineradoras.
Fotos: Sergio Papagaio
A SIRENE
Janeiro de 2018 Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER
Em Barra Longa, atingidos/as são todos/as aqueles/as que: Viviam no trajeto da lama e tiveram mudanças nas condições de trabalho, no modo de vida, nas relações sociais, familiares e comunitárias.
Não têm informação a respeito da qualidade da água para consumo humano, animal e para a agricultura.
Sofreram e ainda sofrem perturbação do seu modo de vida a partir do aumento da circulação de maquinário, caminhões, trabalhadores, poluição sonora, mau cheiro e assédio constante dos funcionários das empresas.
Sofrem com a possibilidade do rompimento das barragens de Germano e Santarém e dos diques construídos abaixo da Barragem de Fundão e sofrem com a falta de informação precisa e de credibilidade por parte da empresa.
Foram forçados(as) a saírem de suas casas, sendo elas completamente ou parcialmente destruídas.
Tiveram perda do espaço de produção e/ou diminuição da produtividade, perda dos terrenos, dos quintais, dos arrendatários e meeiros.
Tiveram suas condições de moradia violadas (casas trincadas e rachadas, casas com estrutura abalada em consequência do intenso tráfego de maquinários, casas reformadas de forma inadequada e/ou em desrespeito ao formato original...).
Perderam e continuam perdendo com a queda nas vendas do comércio local, sendo formal ou informal, e convivem com o risco de não recuperação.
Tiveram que reformar novamente suas casas com recurso próprio após reforma realizada pela empresa. Tiveram a terra e os imóveis desvalorizados. Perderam bens materiais (carro, moto, casa, móveis, máquinas e ferramentas agrícolas, plantas, fotografias, objetos de valor sentimental, objetos pessoais, artesanatos, produção agrícola). Perderam patrimônios imateriais, tais como os espaços coletivos, as festas religiosas, a quadrilha, o encontro dos rios, entre outros. Tiveram que conviver com o rejeito, seja na época do rompimento, na utilização para calçamento de vias, no depósito no Parque de Exposição, seja na contaminação do ar, da água e do solo. Tiveram restrição aos espaços de lazer, cultura, esporte, religiosidade e convivência comunitária. Perderam o acesso ao rio, espaço de lazer, e à atividade da pesca artesanal e produtiva. Perderam terra para uso de animal produtivo. Perderam acesso às vias e tiveram obstruído o direito de ir e vir, ficando sem água, comida, acesso aos serviços básicos de saúde, com perda da produção, perda da comunicação com familiares, com a comunidade, sem acesso às escolas e aos locais de trabalho.
Diminuíram a produção e convivem com a incerteza de recuperação da produtividade. Eram trabalhadores autônomos e perderam sua fonte de trabalho com o rompimento e com a chegada das empreiteiras (pedreiros, empregadas domésticas, vendedoras, garimpeiros, taxistas, meeiros de quintais, manicures, artesãs, bordadeiras, pescadores, cortadores de cana, trabalhadoras e trabalhadores rurais, entre outros). Estão com restrição ao acesso à alimentação saudável, devido aos quintais destruídos pelo rejeito. Perderam animais produtivos e/ou de estimação. Sofrem com problemas de saúde relacionados ao rompimento da barragem, inclusive os que não residem mais no município, mas foram atingidos com o rompimento (problemas respiratórios, alérgicos, traumas, insônias, estresse, depressão). Sofrem com o autoritarismo das mineradoras, assim como da Fundação Renova, que impedem que eles(as) decidam sobre seu futuro. Estão em fase de formação, tanto na infância, quanto na adolescência, e vivenciam as consequências do crime. Perderam seus modos e projetos de vida.
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A SIRENE
Janeiro de 2018 Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER
Fazer pelo outro
Em novembro e dezembro, muitas cidades de Minas Gerais sofreram com as pancadas de chuva. Os municípios de Caeté, Rio Casca, Bom Jesus do Galho, Urucânia, Santa Cruz do Escalvado, São Pedro dos Ferros, Santo Antônio do Grama e Piedade de Ponte Nova foram os mais prejudicados com as enchentes e desabamentos. Ainda, os distritos Águas Férreas e Vista Alegre, que pertencem respectivamente as cidades de São Pedro dos Ferros e Rio Casca, receberam parte dos destroços carregados ao longo da enxurrada e seus moradores tiveram muito trabalho para limpar a área. Diante disso, os atingidos pela Barragem de Fundão sentiram a necessidade de fazer por essas pessoas aquilo que, um dia, precisaram que fizessem por eles. O sentimento de ajudar o próximo falou mais alto e as comunidades se uniram para arrecadar doações em prol das vítimas das chuvas. Por Keila dos Santos, Marinalva Salgado e Milton Sena Com o apoio de Silvany Diniz e Wandeir Campos
Fazer pelas vítimas das enchentes parte do mesmo sentido que a gente fez aqui na cidade de Mariana há dois anos, na época do rompimento da barragem. Nessas enchentes que tiveram nas regiões de Minas Gerais, não foi difícil de ajudar o próximo e mobilizar as pessoas daqui, porque temos a experiência desses dois anos que lutamos contra a Samarco. Entendendo que é necessário ajudar, arrecadar e fazer chegar, às vítimas, as doações. É esse o sentido do serviço comunitário, o comunitário abrange não só a sua cidade, mas toda e qualquer comunidade que necessite de ajuda. É um serviço normal, é cansativo, você se doa nisso, mas é um serviço que traz a recompensa de você estar ajudando e fazendo o bem. É uma necessidade que você vê. Isso já se tornou automático depois do que nós vivemos aqui. Você viveu aquilo, sentiu aquela dor, então você corre para ajudar, para buscar amenizar a dor do outro, que está perdendo casa, perdendo parentes, perdendo tudo. A primeira cidade a ser atingida foi a minha: Caeté. Com isso, meus filhos e eu já começamos a juntar tudo o que tínhamos e falar com o povo daqui de Ma-
riana para ajudar também. Só aqueles que já passaram por situações difíceis assim sabem como é lidar com a dor da perda, por isso, precisamos conscientizar a todos sobre a necessidade de ajudar o próximo. O pessoal da Confraria Capim Canela nos ajudou muito. Eles já levaram uma parte das doações e, no Natal, levamos a outra parte. Milton Sena, morador de Mariana Foi uma coisa muito triste o que aconteceu com as pessoas de Minas Gerais que foram vítimas da chuva. Saí juntando tudo o que eu tinha, abri meu guarda-roupa, separei roupas e água. Falei com meus parentes e eles também ajudaram. Foi bom ter ajudado, mas senti uma tristeza, mesmo ajudando as pessoas que estavam precisando. Senti que eu estava no dia da tragédia novamente. Muitos atingidos daqui de Mariana também ajudaram. Quando nós precisamos, muitos nos ajudaram, estamos apenas retribuindo aquilo que foi feito pela gente no dia do rompimento da barragem. Marinalva Salgado, moradora de Bento Rodrigues
Eu vi passando na tevê toda aquela tragédia e me veio na memória tudo o que passamos e o quanto fomos ajudados pelo mundo inteiro. Logo comecei a falar com as pessoas do Bento pra levarmos doações aonde estavam os pontos de coleta. Eu doei material de limpeza e de higiene pessoal. Poder ajudar, pra mim, foi uma forma de retribuir o que foi feito para nós com tanto amor. E também poder ajudar o próximo é a melhor coisa do mundo. Keila dos Santos, moradora de Bento Rodrigues Quando aconteceu as chuvas e apareceu notícias sobre as enchentes, alguns alunos da Escola de Bento junto com suas famílias resolveram arrecadar mantimentos de casa em casa, principalmente de desconhecidos da cidade de Mariana e moradores de Bento Rodrigues que pudessem contribuir para ajudar as vítimas. Muitos pais, assim que saíam do serviço passavam nas casas, recolhiam e deixavam com os guardas responsáveis para enviarem àqueles que estavam precisando. Silvany Diniz, professora da E.M. Bento Rodrigues Fotos: Arquivo Confraria Capim Canela
O grupo Confraria Capim Canela ajudou no recolhimento dos mantimentos e na entrega das doações em cidades distintas.
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Janeiro de 2018 Mariana - MG Foto: Hauley Valim
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Papo de Cumadres: reassentamento A Terra Prometida e o Mar Vermelho
Por Sérgio Papagaio
Consebida e Clemilda fazem a comparação da Terra Prometida com o reassentamento e do Mar Vermelho com o mar de lama. Cumadre, eu façu um cumparamento dus iscravo du Egitu e u povu du reassentamentu. Pois é ceutu seu cumparamentu. Nóis é tudu iscravu, cada povu com seu sufrimentu. Cumadre, quandu Deus livrô o povo hebreu da escravidão, ele abriu o Mar Veumelho como caminho de sarvação. Aqui, o diabu nus mandô uma mardição, o mar veumelho de lama lá de Fundão. Lá nu Egitu, o povu de Deus correu pru deseuto rumu à Terra Prumitida. Aqui, o diseutu correu sobre nossas terra, matanu pessoas e cabanu com nossas vida. Lá u povu de Deus recebeu das mão de Moisés a táuba dus Dez Mandamentu, iscritu com o dedu do Sinhô du Firmamentu, que era guia du povo e também mantimentu. Nóis recebe mintira, e cada dia uma caltilha sobre u reassentamentu iscrita pelu senhor da tristeza e rei du desalentu. Móises foi castigadu. Viu mais num chegô à Terra Prumitida, pois a morte a mandu de Deus carregô sua vida. Pois aqui a morte tem carregadu vida muitu antes de vê a Terra Prumitida. Quandu fizeru u bizerru de ouru, para adorar como Deus, foram todus castigadus e até amardiçuadus. Pois é, tem gente que viu nossa terra passar por um infelnu e estão adoranu o bizerru de ferru, será que também serão castigadu, ou o pai mais maduru e cansadu já us terá pelduadu? Nós temus que sê pacienti, e tê fé nu Deus de Israé, siguindu sempre com confiança ni quem u sinhô iscolheu prá guiá o povo du Gestera, Paracatu e Bentu, nu rumu celtu du reassentamentu. Cumadi, é sempre muitu bão ter fé e união, pois os únicos dois homens que entraram em Canaã, terra prumitida por Javé, foram os que tiveram fé: Caleb e Josué. Mar em Regência (ES) após a chegada da lama.
Editorial Começamos 2018 em estado de vigilância, confiança e disposição para acompanharmos ativamente os processos de reparação nos quais estamos envolvidos. Sabemos que não é fácil virar mais um ano com a vida em estado de incerteza, mas o caminho da luta nos ensina a importância da persistência. Somente assim não nos permitiremos cair no esquecimento e no descaso com os quais as mineradoras querem tratar um crime do qual somos vítimas diárias. Por isso, gritamos a cada direito violado. Foi o que, em Mariana, fizemos na última reunião de 2017. Ali, dizemos às empresas, ao Ministério Público e a nós mesmos: estamos cansados, mas juntos e articulados! Deixamos clara a importância da Ação Civil Pública do município e reafirmamos que não possuímos relação de confiança com a Fundação Renova - e assim continuaremos, enquanto as ações dessa entidade seguirem orientadas pelos interesses das mineradoras. Nossas pautas são muitas. O reassentamento precisa virar prioridade dos agentes responsáveis pela reparação. Chega de enrolação! Queremos respostas tecnicamente competentes e celeridade frente às burocracias. Queremos um reassentamento justo, humano, compatível com nossos modos de vida. Repetimos o absurdo das mineradoras terem construído diques e barragens e não terem refeito uma só casa para atingido! Seguimos questionando: quando o Dique S4 será desmontado? Até quando famílias que ainda vivem em áreas de insegurança geradas pelo Complexo de Germano seguirão sem direito à informação e sem a oferta de alternativas de habitação? Por quantos séculos mais nossas populações serão chantageadas por uma mineradora que usa o desemprego para requerer a si o papel de vítima de um crime fundado em sua inteira (ir)responsabilidade? Por todos os desafios anunciados, entramos no terceiro ano do crime cada vez mais conscientes do nosso lugar como atingido. Nesse papel, para o bem e para o mal, nossas vidas particulares ganham contornos políticos que fazem de nossos gestos instrumentos importantes à resistência e à luta. Nessa relação que faz o pessoal, político – que escreve as memórias do pé de manga no tronco da História - é que o jornal A SIRENE chega a janeiro. Na capa desta edição, trazemos o desejo de transformação que toca a vida de cada atingido e que transborda ao longo de toda uma Bacia. Alimentados pelo poder revolucionário do amor, brindamos às bodas de 25 anos do matrimônio de Marquinhos e Marinalda. Brindamos aos muitos anos de história que fazem das terras de Bento Rodrigues, Bento Rodrigues. Brindamos a cada e a todas as comunidades atingidas pelo desastre de Fundão. Somos muitos e estamos a construir um futuro possível onde a consciência e afeto irão redesenhar a história de um bravo rio, acertadamente batizado de Doce. A todos nós – gente, bicho, mata e rio: que 2018 nos seja o ano da virada. O início de uma verdadeira e poderosa regeneração!