A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 4 - Edição nº 44 - Dezembro de 2019 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Dezembro de 2019 Mariana - MG
Aconteceu na reunião 4 ANOS DO CRIME 3 a 6 de novembro, territórios atingidos
Foram promovidas diversas atividades para que os(as) atingidos(as) de toda a bacia do rio Doce estivessem juntos, em Mariana, unindo forças para mais um ano de luta. No dia 3, com o apoio da Cáritas, as comunidades atingidas de Bento Rodrigues, de Paracatu de Baixo e da Zona Rural fizeram um ato nos territórios e fincaram algumas placas com dizeres de resistência. No dia 4, com o apoio do MAB, atingidos(as) se reuniram para conversar sobre saúde, sobre o protagonismo da mulher na luta e sobre propostas de reparação. Além disso, no dia 5, aconteceu a Marcha dos Atingidos e das Atingidas e duas missas, em Barra Longa e em Mariana. No dia 6, alunos e professores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) se reuniram para pensar e propor um novo modelo de mineração.
ENCONTRO DA AMIG 21 de novembro, Congonhas
A Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais e do Brasil (AMIG) promoveu, em Congonhas, um evento para debater a segurança, a possibilidade de descomissionamento e comercialização do rejeito de barragens. A princípio, o evento seria aberto apenas para autoridades, prefeitos e secretários dos municípios e representantes da Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão fiscalizador. Apesar de conviver com 23 barragens de rejeito presentes na cidade, só foi permitida a participação de dois representantes de movimentos sociais da comunidade de Congonhas horas antes do evento, após muita pressão popular. A programação contou, ainda, com uma visita ao complexo Casa de Pedra, da empresa CSN, maior barragem de minério do município e uma das maiores do mundo em área urbana.
NOTA DE REPÚDIO AO RESTAURANTE E PADARIA LAFAYETE GOURMET 4 de novembro, Mariana
Na véspera do dia mais simbólico para os(as) atingidos(as) pela barragem da Samarco, participantes da Câmara Técnica (CT) de Saúde, realizada no Centro de Convenções, em Mariana, foram constrangidos(as) pelo restaurante e padaria Lafayete Gourmet. Os(As) atingidos(as), que vieram de toda a bacia do rio Doce, foram surpreendidos pela proprietária do estabelecimento, que exigiu o pagamento das sobremesas consumidas no restaurante, ao ignorar que o voucher disponibilizado pelo Fundo Brasil cobria o consumo de até 60 reais por pessoa, o que incluía refeição e sobremesa. Mesmo telefonando para os responsáveis pela emissão dos vouchers, a proprietária não se convenceu e disse
a uma das atingidas para que ela não voltasse mais lá. Não é de hoje que os(as) atingidos(as) pelo crime das mineradoras são destratados(as) na cidade de Mariana. A comoção pelas vítimas da barragem de Fundão durou apenas alguns dias após o crime da Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton do Brasil. Logo depois, o preconceito começou a ser destilado de várias formas, e continua até hoje. Repudiamos o tratamento dado ao grupo de atingidos(as) na Lafayete Gourmet e lamentamos a falta de sensibilidade e de respeito com as vítimas de um crime bárbaro cometido contra dezenas de comunidades de Minas Gerais e do Espírito Santo.
HOMENAGEM AOS BOMBEIROS DE BRUMADINHO 28 de novembro, Mariana
A Convenção Batista Mineira homenageou os bombeiros militares do batalhão de Ouro Preto que prestaram serviço às vítimas do crime do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho. A Primeira Igreja Batista em Mariana, a Associação das Igrejas Batistas das Serras de Minas e a Associação Central de Belo Horizonte também organizaram o evento.
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Joice Valverde | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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APARASIRENE NÃO ESQUECER Foto: Joice Valverde
Papo de Cumadres Opinião:
A cooptação
Consebida e Clemilda estão preoucupadas com os companheiros e as companheiras que pela Renova estão sendo cooptados e cooptadas. Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda eu tô muitu percupada com nossa cumpanherada que ta sendu cuptada. - Pois cumadi minina de Deus, num queru ser mar intindida nessa prosa marvada, eu tô mês é aliviada, pois as pessoa que foram disviada já estava tudu istragada. - Cumadre eu cá sô muito religiosa, num queru te contá uma prosa, mas achu issu muitu temerosu, ês é atingidu e a Renova ta atinginu ês tudu di novu. - Dissu cê tem rasão, a Renova pega us fracu e us de pocu coração, que num sabi qui ninhum ser humanu vence sozinhu, sem pricisá de união. - Ês pricisa de ajuda, e nois pricisa ajudá, dandu ês um creditu pois Jesus cristu disse, é u duente que pricisa de remediu. - Cumadi ninha fia, vê si ocê intende esta minha agunia e as vês a minha grosseria, duente nos tudu tá e só tem um remédiu pra nos tudu miora, primeru nois com a Renova pricisa acabá e isperá que a justiça pare de fingi de cega neste plantel e vorte a fazê seu papel. - Cumadre minha amiga du peitu, purissu que é bão cunvelsá, cê já mi fez vê a luta de um outru jeitu, e a maneira celta de tudu istu remediá, é só tirá a renova du pleitu, e levá u istadu nu oculista pamode ele e a justiça, com as graças de nosso sinhô Jesus, possa vortá a inchergá.
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Direito de entender
Esclarecimentos sobre a matriz de danos
Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor de Justiça
Considerando a procura de atingidos(as) em busca de informações sobre a aplicação da matriz de danos em Mariana, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por intermédio da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana, aproveita a edição deste mês da coluna “Direito de Entender” para prestar os seguintes esclarecimentos: 1. Em contraponto à matriz de danos utilizada pela Fundação Renova na Fase de Negociações Extrajudiciais (FNE), a Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, assessoria técnica de confiança dos(as) atingidos(as), contratou diversas entidades, imparciais e independentes, para elaborar uma precificação, isto é, uma valoração dos danos dos(as) atingidos(as) de Mariana, a partir das informações levantadas no processo de cadastramento; 2. Uma das entidades contratadas pela Cáritas é o Instituto de Pesquisas Econômicas Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (IPEAD), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cuja contratação foi paga com recursos bloqueados judicialmente da mineradora Samarco, nos autos da Ação Cautelar no. 0400.15.003989-1, ajuizada pelo Ministério Público; 3. Após manifestação da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana, a juíza da 2ª Vara da Comarca de Mariana deferiu o pedido de liberação de recursos, conforme decisão de 11 de junho de 2019. Com o repasse do dinheiro, a Cáritas honrou seus compromissos com a entidade e o trabalho do IPEAD foi concluído e encontra-se disponível para ser utilizado na FNE; 4. Não é necessária a homologação judicial da matriz de danos da Cáritas para que ela já possa ser utilizada pelos(as) atingidos(as) na FNE. A matriz de danos é um instrumento que serve como parâmetro para avaliação das propostas de indenização oferecidas pela Fundação Renova; 5. Caso o(a) atingido(a) entenda que a proposta não é suficiente, justa ou adequada, ele(a) pode utilizar a matriz de danos da Cáritas como fundamento para pleitear na justiça um valor de indenização maior. Nesse caso, sendo ajuizado o cumprimento de sentença individual para pagamento da indenização, o(a) juiz(a) competente poderá utilizar a matriz de danos da Cáritas ou da Fundação Renova, ou até mesmo determinar uma terceira perícia, para apurar e fixar o valor de indenização devido; 6. Após a decisão judicial de 11 de junho de 2019, as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton recorreram ao Tribunal de Justiça para impedir a liberação de recursos para pagamento do IPEAD/UFMG. O desembargador relator do processo, ao receber o recurso, atribuiu efeito suspensivo à decisão de 1º grau. Isso significa que a decisão proferida pela juíza da 2ª Vara da Comarca de Mariana teve seus efeitos suspensos até que o Tribunal consiga julgar o mérito do recurso; 7. O efeito suspensivo do recurso não impede que os(as) atingidos(as) utilizem a matriz de danos da Cáritas na FNE, enquanto não há o julgamento do mérito. Contudo, caso o Tribunal decida favoravelmente ao recurso, a decisão colocará em risco todo o trabalho realizado pelo MPMG e pela Cáritas quanto ao processo de cadastramento dos(as) atingidos(as); 8. Para garantir a manutenção da decisão de 1º grau e a liberação dos recursos, é importante a mobilização de toda a comunidade atingida; 9. Para esclarecimento de dúvidas e acompanhamento na FNE, há 24 assessores jurídicos disponíveis na Cáritas; 10. A 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana continuará mantendo todos informados acerca do julgamento do recurso interposto pelas empresas.
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fotos: wigde arcangelo
Passado e presente na Escola de Paracatu Desde agosto de 2019, a Escola Municipal de Paracatu de Baixo desenvolve o projeto “Contando histórias com a mala de sonhos do vovô Nono”. O personagem de fantoche vovô Nono visita a escola para levar livros e ensinar as crianças a respeitarem os mais velhos. Os(As) avós dos(as) estudantes de Paracatu também vão à escola para contar memórias e lembranças de suas infâncias. Por Rosalina Alves de Souza e Sônia Sartori Com apoio de Wigde Arcangelo
As crianças precisam saber como foi a infância dos pais, dos avós, aprendem a cultura local. Acredito que contar as histórias das pessoas que viveram em Paracatu faz com que a memória de Paracatu sobreviva. Rosalina Alves de Souza, moradora de Paracatu de Baixo O objetivo é incentivar o respeito pelos idosos, e o gosto pela leitura na Escola Municipal de Paracatu de Baixo, resgatar o discurso dos idosos da comunidade em que o projeto está inserido. Podemos observar que as crianças estão se apropriando da temática, reforçando o gosto pela leitura. Mantém a comunidade presente e as memórias vivas da comunidade. Equipe de professores(as) da Escola Municipal de Paracatu
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Em defesa da nossa matriz de danos
Ainda que seja impossível reparar todos os danos causados pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, é necessário lutar por uma indenização justa. Os(As) atingidos(as) não merecem migalhas. Suas vidas foram fortemente impactadas pelo crime do rompimento da barragem de Fundão. Há danos que ultrapassam o valor financeiro, pois foram danos na alma. É por isso que a matriz de danos, construída com os(as) atingidos(as), pela Cáritas, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é de grande relevância neste momento. Essa matriz leva em conta os danos separados em quatro eixos: perdas e danos materiais individuais ou familiares; perdas e danos referentes às atividades econômicas; perdas e danos materiais e morais de bens coletivos; e perdas e danos extrapatrimoniais. Por Maria do Carmo D’Angelo e Bernardo Campolina (CEDEPLAR/UFMG) Com o apoio de Juliana Carvalho Foto: Joice Valverde
Não há dinheiro que pague uma vida. Quanto vale nossa casa que foi embora? A gente precisava saber valorar esses danos. A gente precisava ter alguém capacitado pra dizer pra gente quanto vale a perda de uma casa, de seu terreno. Quanto vale a pessoa ficar sem produzir tantos anos. Maria do Carmo D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima
Indenização pelos danos à saúde É muito injusto os valores da Renova. E ela disse que a matriz dela foi construída junto com os atingidos. Não foi. Eu participei de todas as reuniões e nunca construímos matriz junto com a Renova. Isso nunca existiu. A matriz de danos construída por nós propõe uma indenização bem diferente da indenização e dos valores praticados pela empresa. São questões que as empresas não discutem, não põem valor, principalmente a questão da saúde humana. A Renova não está indenizando nem a saúde física, nem a saúde mental das pessoas. E, na nossa matriz de danos, nós temos valores para esses danos. Maria do Carmo D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima A luta pela homologação Hoje, a gente tenta, a muito custo, muito sofrimento, saber se nós vamos poder usar essa matriz. Foi homologado com a juíza para que a Renova pagasse a nossa matriz de danos e aí, hoje, a Fundação recorreu e não quer pagar. Nós, atingidos, temos que lutar pra que
ela não consiga esse recurso. Então, é isso o que os atingidos têm que buscar junto à Justiça: a homologação da nossa matriz de danos, porque, aí sim, as pessoas vão ser indenizadas com justiça. Maria do Carmo D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima Os atingidos devem se informar a respeito de seus direitos, buscando o apoio da Cáritas Brasileira. A matriz de danos, um trabalho desenvolvido pelo CEDEPLAR/UFMG e pelo IPEAD/UFMG, em parceria com a Cáritas, apresenta uma estrutura técnica e científica capaz de fornecer elementos para as demandas dos atingidos. Esse trabalho é dos atingidos e deve ser utilizado por eles. Bernardo Campolina, coordenador do CEDEPLAR/UFMG A gente pede, com muita fé, que a gente consiga ser reparado com a nossa matriz de danos, que foi construída com a nossa assessoria, com as pessoas das universidades, mas também com os atingidos. Tivemos várias entrevistas para saber como valorar esses danos. E a gente espera da juíza que ela entenda que a nossa matriz de danos é um meio da gente se sentir reparado justamente. Maria do Carmo D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima
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Arquitetos demitidos
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Poucos meses antes dos quatro anos do rompimento da barragem, a Fundação Renova/Samarco, Vale e BHP Billiton comemorou a colocação do primeiro tijolo da primeira casa no reassentamento de Bento Rodrigues, em Lavoura. Hoje, uma das questões que afligem os(as) atingidos(as) é a demissão dos arquitetos responsáveis pelos projetos das casas. A comunidade atingida afirma que, segundo a Fundação, os vínculos com a empresa contratada, J+T, não haviam sido desfeitos e ainda existia a possibilidade de renovação dos contratos. No entanto, a J+T ainda não recebeu retorno do projetos, que estão com a Renova, e novos arquitetos estão sendo apresentados às famílias atingidas. Por Antônio Pereira Gonçalves (Dalua) e Rennê Tavares (assessor técnico da Cáritas) Com apoio de Júlia Militão
Os arquitetos da J+T começaram a se envolver muito com os atingidos por causa da proximidade. Eles estavam na casa dos atingidos uma ou duas vezes por mês. O atingido, para desenhar a casa, tinha que contar para o arquiteto como era a casa dele, como ele vivia, como as coisas se distribuíam dentro do lote, do terreno, como era o modo de vida dele. E, a partir daí, o arquiteto começou a tomar conhecimento dessa vida. Então, o desenvolvimento do projeto começou a ser feito a partir das diretrizes garantidas e homologadas na justiça e a partir de uma metodologia que garantia a participação e a deliberação dos atingidos. Rennê Tavares, assessor técnico da Cáritas Eu entendo a demissão como uma perda, porque já tem dois anos que os arquitetos estão acompanhando as famílias, acompanhando o pessoal de Bento e o pessoal de Paracatu. Ali, se cria um vínculo com essas pessoas. É um arquiteto que trabalhou com minha mãe, agora tá comigo, foi pra minha irmã, ou trabalhou com meu amigo ou na casa de algum parente. Isso gera um impacto, porque ficamos preocupados das pessoas que vierem não terem o mesmo atendimento. Quando você se acostuma com aquela pessoa, você se sente à vontade e a gente fica meio ressabiado com as pessoas que chegam recentemente.
Foto: Genival Pascoal
É muito importante manter os arquitetos do início ao fim, até pra você cobrar da empresa. Saber das pessoas que estão ali trabalhando. Seria melhor, porque você tem a responsabilidade da assinatura daquele que iniciou e terminou seu projeto. É mais fácil do que uma empresa que iniciou o projeto e você ter que cobrar da segunda empresa que vai terminar, porque vai ficar no “jogo do empurra”. É um meio de tirar a responsabilidade delas, nenhuma vai se responsabilizar. Começa a fazer a sua casa e o outro termina: vai encontrar coisa errada. Eu creio que não vai ter coisa errada, quero acreditar que não, pra gente não ter esse problema, mas, se houver, nós podemos nos preparar, porque vai ter essa situação de um empurrar pra outro. A responsabilidade é da Fundação Renova, mas ela vai falar: “não, mas é a empresa que tava aí no início que fez, como vai fazer com a nova?”. Antônio Pereira Gonçalves (Dalua), morador de Bento Rodrigues Já tem alguns novos arquitetos trabalhando, mas eu não conheço nenhum deles ainda, não foram apresentados pra gente. Segundo a comunidade de Bento, vários deles já procuraram as famílias falando que seriam os novos arquitetos. Já trocaram até mesmo sem avisar que tava trocando, o que é mais um erro. Tinha que fazer uma reunião e apresentar os novos arquitetos, a nova empresa. Antônio Pereira Gonçalves (Dalua), morador de Bento Rodrigues
Antônio Pereira Gonçalves (Dalua), morador de Bento Rodrigues A gente entende que os novos profissionais que vão chegar não vão continuar desenvolvendo esse papel de deixar os atingidos construírem junto com os arquitetos. A gente tem visto os profissionais da nova empresa chegarem com o projeto pronto, sem construir ou desenvolver o projeto com o atingido. O profissional senta no escritório e desenvolve um projeto na cabeça dele, que ele acha mais pertinente. Só que, para a vida dessas pessoas que não saíram das suas casas porque quiseram, isso não se aplica, porque elas precisam ter participação efetiva no desenvolvimento das suas casas. Esse tem sido o maior impacto da saída dos profissionais da J+T.
Esse processo, que vai do pré-projeto até o detalhamento, é um processo que nunca deveria sair da empresa que desenvolveu o anteprojeto com a família atingida. E foi a primeira coisa que a Renova fez, tirou isso da empresa e transformou o projeto numa confusão, que o atingido, no final das contas, não teve poder de deliberar exatamente como ele queria. Se o processo fosse feito da maneira como foi desenvolvido e escrito pela assessoria, na metodologia que a gente construiu, com certeza, os projetos estariam muito mais bem encaminhados. Quando a Renova faz essas alterações e tira os profissionais que estão iniciando o processo, ela também está atrasando a obra, o desenvolvimento do projeto e a execução da obra.
Rennê Tavares, assessor técnico da Cáritas
Rennê Tavares, assessor técnico da Cáritas
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O peso do minério em nosso “Minha menina tem um ano e dois meses. Está com alergia. Passa a mão nos bracinhos dela e parece uma lixa. Ela só fica coçando”, disse Simone Silva, na edição zero do Jornal A SIRENE, em fevereiro de 2016. Três meses após o crime do rompimento da barragem de Fundão pela Samarco, Vale e BHP Billiton, estampamos, em nossas páginas, a preocupação dos(as) atingidos(as) com relação à contaminação pela lama de rejeito. Com o passar do tempo, outras vozes se juntaram à de Simone na reivindicação de estudos que comprovassem essa suspeita. Algumas pesquisas e exames indicam que os(as) atingidos(as) não estavam errados em suas desconfianças. Essas pesquisas foram divulgadas mais de quatro anos depois do crime, o que só ocorreu mediante pressão midiática, após a Pública (Agência de Jornalismo Investigativo) vazar esses estudos e afirmar que a Renova/Samarco já tinha os resultados das pesquisas desde março, enquanto o Governo do Estado conhecia esses resultados desde maio. Ainda assim, a Fundação Renova/Samarco se recusou a participar da devolutiva dos estudos realizados pela Ambios Engenharia e Processos. Por Anderson Tomás, Cleusa da Silva Gomes, Creuza da Silva, Dulce Maria Pereira, Eder Felipe da Silva, Eliane Balke, Fabrício Fiorot, Marino D’Angelo, Ramon Lourenço Ivo e Sandra Maria da Silva Com o apoio de Francelino Neto, Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Papagaio e Wigde Arcangelo
O estudo da Ambios - empresa contratada pela Fundação Renova - comprovou que o ar e o solo dos territórios atingidos estão contaminados pelos metais cádmio, chumbo, cobre, zinco e níquel (este, apenas em Barra Longa). Tanto as comunidades atingidas de Mariana quanto de Barra Longa foram classificados como locais de perigo categoria A, ou seja, perigo urgente para a saúde pública. O estudo recomenda ações ambientais e de saúde para lidar com a situação, mas os(as) atingidos(as) estão expostos à contaminação há quatro anos. Embora o estudo não indique contaminação nos alimentos e na água, no momento, ressalta que deve ser realizado um acompanhamento de ambos.
Meu menino, o Arthur, fez 15 anos, agora em outubro. Ele começa a tossir, os olhos ficam saindo água, o nariz fica todo irritado e ele começa a esfregar. Daqui a pouco, o rosto dele tá desse tamanho e a pele toda manchada. Eu já levei nos médicos, já olharam, já passaram vários remédios e continua a mesma coisa. Aquelas manchas horríveis, sabe? E ele já está ficando sem graça de ir para a escola. Eu já levei ele umas quatro vezes lá na UPA. Sandra Maria da Silva, moradora de Barra Longa A gente deixa uma água no copo, ou em alguma outra vasilha, de hoje pra amanhã. E, quando joga a água fora, aquela vasilha tá escorregando. A gente lava a vasilha e, se você não passar um Bombril com força e detergente, o copo não fica limpo. O copo fica amarelinho, amarelinho. Então a preocupação nossa é essa: porque se o copo fica daquele jeito, e o nosso organismo, como tá? A gente tem que falar, reclamar, porque a gente tá cansado. Quatro anos não são quatro dias. Eles fingem que não ouvem a gente. Tem criança e tem mais gente idosa acima de 50, 60 anos, igual eu. Cleusa da Silva Gomes, moradora de Gesteira
Foto: Sérgio Papagaio
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o sangue Outras pesquisas ainda estão sendo desenvolvidas de forma independente, como é o caso do estudo comandado pela professora Dulce Maria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). A pesquisadora acompanha o caso desde 2015. Foto: Júlia Militão
Se não há controle da contaminação, a gente não tem controle da dispersão da contaminação. São quatro, basicamente, os fatores que fazem com que a pessoa viva uma realidade de contaminação: a quantidade, a qualidade, a forma de contaminação e a exposição. Uma coisa é você estar exposto a uma quantidade limitada de elemento tóxico num determinado momento e depois passa. Às vezes, o elemento está abaixo do nível aceitável, mas você tem uma exposição constante e ele potencializa. Então, o problema é que um ambiente contaminado tem que ser controlado. E não controlar é crime. Por isso, é que nós vamos viver um embate, vão tentar desqualificar todos os nossos trabalhos. Dulce Maria Pereira, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto Sempre me senti incomodado com a questão da contaminação, porque a gente viu, em Barra Longa, pessoas contaminadas. E a gente viu amigos nossos morrendo. Pessoas muito próximas, vizinhos. Num lugar muito pequeno, nível de câncer altíssimo, quatro pessoas com câncer. Três já morreram. Pessoas novas, pessoas saudáveis, pessoas que estavam na luta junto com a gente, e a empresa sempre negando que tem contaminação.
Foto: Joice Valverde
Marino D’Angelo, morador de Paracatu de Cima As casas estão sendo reformadas em cima da lama de rejeito. A lama está na porta da cozinha do atingido e você acha que lavar roda de carro vai resolver? No meu ponto de vista, não. Se não tirar a lama de Barra Longa, não vai resolver trazer médico, que nós vamos continuar contaminado e a poeira vai continuar subindo. Temos que tirar a lama e a Renova da nossa cidade, pra nós começarmos a tratar da nossa saúde. Eder Felipe da Silva, morador de Barra Longa Nosso trabalho foi realizado pela demanda dos atingidos. Nós fizemos um estudo muito criterioso sobre as perdas ecossistêmicas no que diz respeito à água, ao ar, pela contaminação e por outros fenômenos. O estudo mostra que, onde há rejeito, há um aumento significativo da temperatura da superfície, inclusive no rio. Fizemos uma análise do próprio fenômeno da ruptura da barragem, que é um crime em si. Isso implica na perda de qualidade de vida das pessoas, implica em perdas econômicas muito significativas, como a possibilidade do plantio. Lembremos, é um estudo indicativo do que precisa ser estudado. Ele não é um estudo definitivo em si, embora sejam resultados que nos mostram o que acontece no território. Dulce Maria Pereira, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto
Foto: Júlia Militão
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De Minas ao Espírito Santo A devolutiva dos estudos diz respeito apenas à Barra Longa e às comunidades atingidas de Mariana. Porém, atingidos(as) do Espírito Santo possuem laudos que comprovam estarem contaminados por metais pesados. O crime atingiu da cabeceira até à foz do rio Doce, e contaminou pessoas e o meio ambiente. A comunidade tradicional da pesca e mangue, em São Mateus, sofre com os impactos no modo de vida e sustento. Um pouco mais adiante, em Regência, ponto tradicional do surf, a prática do esporte está comprometida por conta da contaminação da água.
Eu recebi a notícia de contaminação através de um grupo de estudo da USP [Universidade de São Paulo], que fez umas coletas de uns materiais pessoais meus e me deram esse resultado com esses aumentos de metais pesados no meu sangue. Pra mim, no início, foi um baque, mesmo mediante todo acontecimento, o fato de eu não ser reconhecido. Agora, tenho uma prova que me ajuda a correr atrás do meu direito. Ramon Lourenço Ivo, morador de Regência, Espírito Santo Eu sou pescadora e uma das atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Eles fizeram essa avaliação da exposição a metais pesados em moradores residentes na área atingida ao norte da foz do rio Doce, em São Mateus, Linhares, Conceição da Barra, atingidos pelo rompimento da barragem de rejeito de minério lá de Mariana. Devido à grande atividade econômica presente aqui no litoral, especialmente relacionada a atividades da mineradora Samarco, muitos componentes tóxicos podem estar depositados no sedimentos do rio Doce. Eliane Balke, moradora de São Mateus, Espírito Santo O laudo mudou toda a minha estrutura familiar, meu estilo de vida, meu contato com o rio e mar. Fabrício Fiorot, morador de Regência, Espírito Santo O laudo diz que nós estamos contaminados com arsênio muito alto. Isso afeta a todos, porque a gente não pode pescar, não pode consumir, não pode comercializar. A contaminação foi no rio, os peixes, mariscos, sururu, caranguejo. Não pode comercializar um pescado do mangue, porque tá tudo contaminado e, se pegar, não vende, porque tá velho e ninguém compra. Anderson Tomás, morador de São Mateus, Espírito Santo Essa contaminação mudou a minha vida, minha identidade com a água, como pescadora. Além da minha saúde, os meus direitos de dignidade, que é o trabalho e a cultura, e o modo que eu tinha de vida coletiva. Ficou bem difícil, porque são famílias tradicionais da pesca, catadores de caranguejo e marisco. Agora, apoio relativo à saúde só o SUS mesmo, com a Fundação Renova nós não tivemos nenhum diálogo ainda. Eliane Balke, moradora de São Mateus, Espírito Santo Eles precisam tomar as atitudes deles e reconhecer, porque o minério acabou até com a nossa humanidade por estamos contaminados com o arsênio e o chumbo. Tenho os exames. Creuza da Silva, Campo Grande, São Mateus, Espírito Santo A contaminação afeta o surf de todas as formas, que tá concentrado na foz do rio Doce, um berço intocável de onda e de animais marinhos. Nós temos campeões de surf de várias datas e o surf é uma das coisas mais atingidas aqui. Como uma das classes mais atingidas do crime ambiental da Samarco, eu peço para quem causou isso que dê uma solução, porque a gente precisa de respostas. Ramon Lourenço Ivo, morador de Regência, Espírito Santo
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Foto: Sérgio Papagaio
Creuza Campelo da Silva segura laudo que aponta contaminação por arsênio. Foto: Sérgio Papagaio
Surfistas convivem com as incertezas quanto ao futuro do esporte.
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Resistência, cultura e regeneração do rio Doce
Fotos: Sérgio Papagaio
Nos dias 1º, 2 e 3 de novembro, aconteceu o Quarto Encontro de Cultura Ancestral de Areal, no Espírito Santo. O evento reuniu povos dos manguezais, comunidades quilombolas, indígenas, pescadores(as) e ribeirinhos(as) atingidos(as) ao longo do rio Doce. Por meio do afeto e da cultura, a partir de oficinas, rodas de conversa e celebrações, os(as) atingidos(as) se articularam em prol da regeneração das vidas atingidas pelo crime. Nos três dias, houve intercâmbio cultural e trocas de saberes. O encontro também foi de união de forças e de luta, no qual os(as) atingidos(as) levaram suas pautas. Por Adecir de Sena, Antônio Matias Celestino (Mestre Boi), Creuza da Silva, José Carlos dos Santos (Coruja), Leonardo Osorio dos Santos, Mainon Cunha da Silva (Ewera), Mônica Dantas dos Santos, Rômulo de Barcelos Rosa e Wiler Araújo Barbosa Com o apoio de Júlia Militão, Sérgio Papagaio e Wigde Arcangelo
A gente gosta muito que aconteça esse evento todo ano, porque ajuda a ter visibilidade, principalmente para nós, que estamos em processo de reconhecimento indígena, isso fortalece mais ainda. Ajuda, também, a ter ideias para termos uma boa regeneração dos nossos rios e lagos. Nós, que moramos na foz, tivemos nossa biodiversidade muito atingida, então, esse evento ajuda a fazer essa ligação. Rômulo de Barcelos Rosa, morador de Areal-ES Na minha concepção, cada pessoa que está aqui vem trazendo uma experiência diferente do seu lugar. Eu entendo que cada um, em seu determinado espaço, lida com esse problema da regeneração do rio Doce de uma forma diferente. E, quando a gente faz um encontro que vai agregar diversas comunidades, eu acho que são vários pontos de vista e várias metodologias de conseguir trabalhar com essa regeneração do rio Doce. Mainon Cunha da Silva (Ewera), morador da aldeia Nova Esperança, Aracruz-ES
Depois do crime da Samarco/Vale/BHP, acabou com o Rio Doce, com tudo. Então, esperamos eles tomarem atitude e agirem por nós. Eles estão de olhos fechados para nos ajudar. Esperamos que a empresa arque também com todo o prejuízo porque nós, pescadores, catadores, povos tradicionais, estamos passando uma situação muito precária, muito difícil, porque eles acabaram com nosso caranguejo, com tudo. Esperamos que a empresa tome atitude, porque nós não estamos sendo reconhecidos. Nós, mulheres dos povos tradicionais, queremos ser reconhecidas e a empresa não quer pagar a nós, mulheres pescadoras, principalmente as que não têm o RGP ou o protocolo de 2015 para cá. E quem não tem, eles não querem pagar. Eles têm que pagar, porque todos os pescadores e catadores estão passando uma situação muito difícil, muito precária. As mulheres não estão tendo o mesmo reconhecimento que os homens, eles não estão reconhecendo os direitos das mulheres. Queremos ser reconhecidas. Creuza da Silva, Campo Grande, São Mateus-ES
A gente quer dar força a essa tão bonita festa que quer resgatar o rio Doce, para trazer a natureza principal dele, e não essa destruição que aconteceu e permanece... As autoridades permanecem de braços cruzados e olhos fechados, e muita gente não está preocupada com isso.
Para mim e para as comunidades que vivem da bacia do rio Doce, principalmente eu, que represento os povos tradicionais dos manguezais, esse encontro - que é uma força que a gente busca da natureza, é uma vida que sai da água e ela vem para a prática aqui com a vida humana, para nos ensinar a cuidar, a zelar - é o que o capitalismo não faz. Nós tentamos mostrar para eles que, sem o meio ambiente e sem essa riqueza que Deus nos oferece, nós não conseguimos viver.
José Carlos dos Santos (Coruja), morador de Serra-ES
Adecir de Sena, morador de São Mateus-ES
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A gente percebeu, aqui, que há essa questão de trazer a consciência de cada um, esse respeito com a natureza, com toda a energia que nos cerca. Vimos, aqui, uma mobilização de vários grupos de diversas regiões. Mônica Dantas dos Santos, moradora de Vila Velha-ES Essa consciência tem que ser dada quanto ao meio ambiente, ao fortalecimento da margem do rio, ao plantio das árvores, para poder ter uma qualidade de água maior. Leonardo Osorio dos Santos, Mestre Naé, Vila Velha-ES Esse encontro é uma maravilha, pessoas estão querendo entender a regeneração do rio, cada nascente que joga água para o rio Doce precisa ser realimentada e, aqui, se compreende que a tarefa é fazer com que a água das nascentes corra novamente na foz do rio Doce, na entrada aqui no mar. Então, eu vejo que esse encontro é um realimento para que as pessoas cuidem uma das outras, porque, se a gente for olhar a gravidade, o absurdo, o ridículo da ignorância que foi essa lama horrenda correndo na veia principal do rio, a gente vê que é um motivo de adoecimento, de degeneração. Aqui no encontro, é um tratamento, uma regeneração, aqui é o entendimento, a experiência e o sentimento de que nós vamos avançar, independentemente do tempo. Aqui, nós estamos criando uma nova sociedade, um novo mundo, um rio limpo. Wiler Araújo Barbosa, morador de Viçosa Nós que somos pequenos, agora, precisamos nos unir. Nós temos que fazer o trabalho de formiga, que é pequena, mas se, juntas, subirem no pé do elefante, ele vai se incomodar. Assim somos nós, devemos nos unir. Tem uma cartilha por aí, que eu não li, porque sou analfabeto, mas nela está escrito: “ninguém solta a mão de ninguém”. Nesse 2019, com esse governo que está aí, nós devemos prestar muita atenção. Nesse encontro, que fala das barragens, aprendi muita coisa. Nós precisamos ir à luta. Se nós não unirmos, já somos pequenos, vamos nos tornar piores. Se nós unirmos, ficamos grande, ninguém deve soltar as mãos. Antônio Matias Celestino (Mestre Boi), morador da Comunidade Quilombola Córrego do Meio, Paula Cândido-MG
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Rumos da (não)reparação: Violações são cometidas pela Fundação Renova durante o processo de indenização em Mariana Por Ellen Barros Com informações de Maria do Carmo D’Angelo e Flávia Gondim
Com propostas de indenização infundadas e desrespeito à dor dos(as) atingidos(as), a Fundação Renova viola direitos e provoca ainda mais sofrimento às pessoas que lutam, há quatro anos, por uma reparação justa. A equipe de Assessoria Jurídica da Cáritas, formada para prestar informações e acompanhar os(as) atingidos(as) na Fase de Negociações Extrajudiciais (FNE), em que devem ser pagas as indenizações, tem presenciado e denunciado diversas violações sofridas pelos(as) atingidos(as) no escritório da Renova. Entre as denúncias, destacam-se os desgastantes interrogatórios a que são submetidas as vítimas do crime da Samarco (Vale e BHP Billiton). Em reuniões que duram até cinco horas, atingidos(as) são constrangidos(as) sobre as perdas e os danos que declararam, e muitos desses prejuízos são desconsiderados para fins de indenização pela Fundação Renova, que deveria realizar a reparação. Em casos ainda mais absurdos, pessoas atingidas são chamadas até o escritório da Fundação para escutar que todos os danos declarados não são indenizáveis, sem qualquer fundamentação, um flagrante desrespeito ao princípio da autodeclaração. A gente sabe que tem pessoas sendo chamadas para o escritório da Renova que estão sendo indenizadas por 500 reais. Todos os seus danos a 500 reais! E ainda ouvem a Renova dizer que os danos que foram levantados no seu cadastro, infelizmente, não são indenizáveis. Não é uma nem duas pessoas, são várias pessoas que falam isso pra gente. ‘A Renova disse que eu não tenho nenhum direito. O medo de morrer que eu sofri não vale nada. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima A Renova, representante das empresas que cometeram o crime em novembro de 2015, acha que pode ditar quem é e quem não é atingido pelo rompimento da barragem. Dessa forma, segue violentando diversos núcleos familiares. Flávia Gondim, coordenadora da Assessoria Jurídica da Cáritas
Além disso, o cadastro dos atingidos tem sido desconsiderado, não existe a possibilidade de discutir os danos imateriais e muitos esclarecimentos solicitados não são respondidos. “A Fundação Renova não fornece prazos de resposta para os questionamentos levantados pelos atingidos acerca da proposta apresentada. No cenário de quatro anos após o crime, diante da ansiedade em que os núcleos familiares estão para receber a proposta, os atingidos esperarem pela resposta sem um prazo definido configura mais uma violação. Flávia Gondim, coordenadora da Assessoria Jurídica da Cáritas Atualmente, cerca de 200 famílias acionaram a Assessoria Jurídica da Cáritas para acompanhamento na FNE. É fundamental que todos(as) os(as) atingidos de Mariana saibam que podem solicitar os serviços gratuitos de Assessoria Jurídica por meio do Plantão de Atendimento da Cáritas, no telefone 3557-4382. É importante saber que as solicitações para acompanhamento nas reuniões da FNE devem ser feitas com, no mínimo, três dias de antecedência. A Assessoria Jurídica da Cáritas realiza reuniões preparatórias com núcleos familiares, para que se sintam mais seguros nas negociações. Além disso, são produzidos documentos que auxiliam as famílias na luta por uma indenização justa.
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Novembro em Barra Longa O mês de novembro, em Barra Longa, foi marcado por eventos importantes para os (as) atingidos(as): a divulgação da Matriz de Danos e a devolutiva dos estudos de contaminação. Por Ciro do Nascimento Monteiro, Leandro Raggi, Lineu Viana de Oliveira Ribeiro, Verônica Viana de Sousa Com apoio de Joice Valverde, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo
O direito à indenização justa O direito à indenização justa aparece na pauta dos(as) atingidos(as) de Barra Longa pelo rompimento da barragem de rejeito das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, em Mariana, desde 2017. A pauta de reivindicação foi construída nos grupos de base com os(as) atingidos(as) de Barra Longa e com sua Assessoria Técnica. Os(As) atingidos(as) determinaram que a pauta da indenização fosse dividida em quatro eixos: Moradia e Objetos; Produção Agrícola, Comércio, Trabalho e Despesas; Saúde; Dano Moral. A matriz de danos é uma ferramenta utilizada para valorar em dinheiro os danos causados pelo rompimento da barragem de rejeito da Samarco aos(às) atingidos(as) da bacia do rio Doce. A proposta de uma nova matriz de danos foi apresentada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) para a Comissão de Atingidos(as) de Barra Longa. Essas discussões trouxeram, como proposta, uma Assembleia de Negociação com a Fundação Renova, para apresentar a nova matriz de danos, no dia 16 de outubro de 2019. A Fundação, além de não comparecer, pediu 15 dias para voltar ao município para uma nova negociação. No dia 30 de outubro, a Fundação Renova compareceu à Assembleia de Negociação, na qual lhe foi apresentada a proposta de uma nova matriz de danos e um documento teórico que fortalece a importância do direito à revisão da matriz pelos(as) atingidos(as). A Fundação Renova deixou acordado com os(as) atingidos(as) que voltaria no dia 7 de novembro com respostas, mas, novamente, não compareceu e justificou que não caberia à Assessoria Técnica a discussão sobre a matriz de danos. Nesse sentido, é importante ressaltar que a revisão da matriz de danos proposta pelos(as) atingidos(as) e pela Assessoria faz parte do seu trabalho e está descrita no projeto da Assessoria Técnica Independente dos(as) atingidos(as) de Barra Longa. Devolutivas da Saúde No dia 22 de novembro, foi realizada, em Barra Longa, uma coletiva de imprensa para divulgar os estudos desenvolvidos pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por meio da
coordenação da professora Dulce Maria Pereira. Tais estudos são produtos desenvolvidos com a atuação da Assessoria Técnica dos Atingidos de Barra Longa que prevê a elaboração de estudo e de produção de dados relativos aos danos à saúde e ao meio ambiente decorrentes do desastre-crime provocado pelo rompimento da barragem de Fundão/Samarco. Importante ressaltar que o estudo foi fruto da construção coletiva dos(as) atingidos(as) que, inclusive, escolheram a professora Dulce como profissional de sua confiança, bem como a UFOP como instituição idônea capaz de contribuir para a compreensão dos danos desse desastre-crime. A divulgação da pesquisa desenvolvida pela UFOP, somada à divulgação do estudo sobre saúde realizado pela AMBIOS (mesmo com um recorte diferente, seus resultados corroboram com as conclusões da estudo da UFOP), é um passo importante para a reafirmação de que toda a população de Barra Longa e da bacia é atingida pelo desastre-crime da Samarco. Também alerta para a urgência da implantação do Plano de Saúde, construído pelos atingidos com a colaboração da Assessoria Técnica, como mecanismo importante para a mitigação e o monitoramento da saúde no território fragilizado pelo contexto da exposição do rejeito na bacia. Foto: Júlia Militão
EDITORIAL Desde a nossa edição zero, publicada em fevereiro de 2016, evidenciamos a preocupação dos(as) atingidos(as) com a toxicidade da lama de rejeitos, a contaminação das comunidades e as possíveis consequências que o crime das empresas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton trariam às diversas formas de vida. No entanto, somente após quase quatro anos do crime e, com forte pressão da mídia, as pesquisas atestaram as incertezas em relação à saúde dos(as) atingidos(as). Ao longo de toda a bacia do rio Doce, diversas pessoas carregam o laudo médico da contaminação. Os estudos comprovam que o ar e o solo dos territórios atingidos estão contaminados por metais pesados, como cádmio, chumbo, cobre, zinco e níquel, que podem ser altamente prejudiciais à saúde. Além disso, algumas pesquisas independentes citam, entre diversas questões, a relação da contaminação com os danos ao meio ambiente, aos animais, à população, o que inclui possíveis problemas de fertilidade. Vale ressaltar que a Fundação Renova/ Samarco, Vale e BHP Billiton e o Governo do Estado de Minas Gerais tinham conhecimento do resultado dos exames meses antes da divulgação e, até hoje, a empresa não se pronunciou sobre o assunto. Nesta edição, o Jornal A SIRENE aborda os resultados desses exames e diversas denúncias de atingidos(as) que vivem, trabalham e garantem o seu sustento em territórios contaminados. A vida dessas pessoas segue em ambientes completamente hostis à vida. As mineradoras criminosas insistem em violar o direito à saúde, previsto na Constituição Federal. Mas não é apenas esse direito que a Fundação Renova/ Samarco, Vale e BHP Billiton têm negligenciado. Trazemos, também, nesta edição, a defesa da matriz de danos produzida pelos(as) atingidos(as) em busca da reparação justa dos danos causados pelo crime e a questão da demissão dos arquitetos da empresa J+T, que tem gerado cada vez mais incertezas em relação ao direito à moradia. Apesar disso, as comunidades atingidas buscam forças para seguir resistindo. O IV Encontro Ancestral, tema do ensaio de fotos desta edição, reuniu diversas culturas para pensar a articulação em prol da regeneração do rio Doce, na comunidade de Areal, no Espírito Santo. Foram momentos de resgate das origens dessas comunidades que se reuniram em oficinas e rodas de conversa.