A Sirene - Ed. 52 (Agosto/2020)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 52 - Agosto de 2020 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

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Repasses NOTA DE PESAR

É com grande pesar que nós, do Jornal A SIRENE e membros das comunidades atingidas, lamentamos o falecimento de Lúcio Mauro dos Santos, morador de Bento Rodrigues. Lúcio partiu neste mês de julho e deixa muitas saudades e memórias afetuosas em todos(as) os(as) que puderam conviver com ele. Em nome da família, Mônica dos Santos compartilha um pouco dos sentimentos e das lembranças que marcaram para sempre sua relação com o irmão. "Vamos sempre lembrar dele como um filho maravilhoso, muito presente, amoroso, carinhoso e como um irmão presente, às vezes, chato (risos), mas de um coração enorme. Ele adorava ajudar as pessoas, era muito querido por todos que o cercavam", relata Mônica. Manifestamos aqui, respeitosamente, a nossa solidariedade aos familiares e amigos(as). Neste momento difícil que enfrentam, pedimos a Deus que conforte seus corações e que dê forças para seguirem.

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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Carlos Paranhos | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Opinião:

Papo de Cumadres: Matriz de danos

Consebida e Clemilda estão encantadas com a construção da matriz de danos, pois os direitos de todos os atingidos esta matriz está valorando.

Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda cê num participô da reunião onte, a professora da universidade lá du Rio de Janeru tava isplicanu u que é matriz de danus. - Oia que danação minha intelnete tava fraca e num abril u link não, mas ocê que palticipô pode tá me falanu o que é matriz de danu. - Cumadre a matriz de danu é uma tabela que a doutora Flavia Braga Vieira da Universidade Rural du Rio de Janeru com sua equipe e us atingidus, contruiru juntus, pra pô preçu nus trem tudu que nois peudemus, tantu os matéria quantu us emocioná . - A eu tô me alembranu dus trem que nus grupu de base a assessoria ficava peuguntanu, entonse era pra fazê esta tabela, quês tava montanu? - É isso também, mas oia u que eu tô te falanu, aquelas reunião num era só pra matriz de danu não. - Cumadre ocê se lembra que eu tava embuchada, já bem adiantada, quandu a lama marvada tirô minha fia de mim, antes mesmu dela abri u zuim. - Uai, lembru sim, num foi eu que cuidei da cumadre e tratei du enterru du anjim, por está prenha na ocasião, ocê tem direitu a mais 10% du total, como ocê é muié tem mais 10%, ocê também é de comunidade tradicioná mais 10% ocê vai ganhá. - Cumadi eu num contei nada dissu intão num vô recebê esses 10% ai? - Presta a atenção, u que foi faladu è que ainda num ta fachadu a quarqué hora du dia ocê pode percurá a assessoria, agora pur telefone pru causa da pandemia, e tirá suas duvida sobre a matriz que foi pra Barra Longa construída mas com as graça de Nossa Senhora Aparecida, há de ajudá toda a bacia.

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Direito de entender:

Compensações: uma medida de justiça

Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor de Justiça

Desde o início do processo de reparação dos direitos dos atingidos, um assunto é repetidamente mencionado, discutido, avaliado, questionado: as compensações pelas perdas que não podem ser restituídas nos processos de reassentamentos (coletivos, familiares e reconstruções). A reparação do direito de moradia constitui, em termos jurídicos, nas obrigações de fazer e entregar, ou seja, edificar uma casa e entregá-la ao atingido e à sua família, em condições idênticas ou equivalentes ao que foi perdido, incluindo todas as características do terreno e suas benfeitorias. Todavia, a construção similar pode tornar-se impossível, especialmente por razões topográficas, pois os terrenos em que serão reconstruídas as casas não são idênticos aos originais. Daí, surge a necessidade de compensar o atingido por tais diferenças, já que a culpa por tal disparidade é das próprias empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, bem como da Fundação Renova. Assim, nos autos da Ação Civil Pública n. 0400.15.004335-6, foram pactuadas diretrizes estabelecendo que o atingido poderá optar pelas compensações em dinheiro, benfeitorias ou terreno. Essa lógica decorre do próprio conceito de Justiça consagrado na máxima honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (“viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”), consolidado em vários dispositivos de nossas leis, especialmente no art. 927 do Código Civil e no art. 499 do Código de Processo Civil. Lamentavelmente, as citadas empresas e fundação recusaram-se a “dar a cada um o que é seu”, rejeitando nossas propostas para definir os critérios e os valores das compensações, apesar das incontáveis reuniões em que participaram com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), as representantes dos atingidos e a assessoria técnica. A bem da verdade, ainda tentaram impor valores e critérios injustos, até mesmo ofensivos à dignidade dos atingidos e ao valor afetivo que eles atribuem aos seus bens. Para garantir a efetividade do direito às compensações, o MPMG ajuizou uma nova Ação, denominada Cumprimento de Sentença, pleiteando ao Poder Judiciário a definição dos critérios e dos valores das compensações financeiras pelas perdas não restituíveis. O processo pode ser acessado a partir da numeração 5001070-93.2020.8.13.0400, no Processo Judicial Eletrônico (PJe), perante a 2ª Vara da Comarca de Mariana/MG. Desse modo, o MPMG busca, pela via judicial, o que as empresas e a fundação não souberam ou não quiseram fazer espontaneamente, o que é óbvio pelas nossas leis, que está concretizado não hoje, nem ontem, mas está na humanidade desde sempre, que é a Justiça na medida certa, dando-se a cada um o que é seu (ou compensando-se aquilo que se tornou impossível ser restituído).


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Protesto silenciado

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Fotos: Ana Carla de Carvalho Cota

A população de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, vive apreensiva com a falta de transparência da mineradora Vale sobre as ações tomadas em relação ao risco que a barragem de Doutor expõe aos(às) moradores(as). Após relatório da auditoria independente, realizada pela SLR Consulting, mostrar que a área da mancha da barragem de Doutor é maior que a considerada pela Vale, a Justiça de Ouro Preto acatou o pedido do Ministério Público de Minas Gerais de que as medidas impostas à mineradora também abarcassem a nova delimitação da Zona de Autossalvamento (ZAS). A decisão aumenta o número de pessoas a serem removidas de suas casas, ação que a Vale vem realizando desde fevereiro. No dia 30 de julho, moradores(as) organizaram um protesto pacífico contra a Vale e, durante a madrugada, fecharam a MG-129. Apesar da Polícia Militar impedir o bloqueio da rodovia, os manifestantes continuaram o protesto à margem da estrada. A manifestação foi motivada após a mineradora adiar em uma semana a entrega de seus estudos sobre a mancha de inundação em caso de rompimento. Por Ana Carla de Carvalho Cota e Patrícia Ferreira Ramos Com o apoio de Wigde Arcangelo

Começamos uma manifestação pacífica, com faixas e o fechamento da MG-129, o batalhão de choque impediu a manifestação, ameaçou soltar bomba se não desbloqueássemos a rodovia, disseram que usariam a força se a comunidade não recuasse e abrisse a estrada. A população do distrito de Antônio Pereira não aguenta mais o desrespeito da mineradora Vale, as violações e a falta de compromisso e de responsabilidade em assegurar a vida das famílias moradoras próximas da barragem de Doutor, com risco de rompimento em nível 2. A população sequer conhece o som das sirenes: já foi solicitado o simulado, a Vale não responde. Caso a barragem venha a romper, muitas vidas serão perdidas. A Vale diz, nas suas próprias regras de ouro, que a vida vem em primeiro lugar: mentira! A realidade é um descaso com as vidas dessas famílias, que não teriam condições de se salvar e não teriam tempo de correr da lama se a barragem romper, morrendo nas suas casas. O que vemos é que a regra número um da Vale, na verdade, é lucro em primeiro lugar. A comunidade pede socorro, muitas famílias adoecidas, sem dormir, com medo e a Vale não dá informações para a população. A Vale impõe tudo para todos. A barragem do Doutor está em nível 2, com risco de rompimento e a Vale só adia, viola os direitos dos atingidos, se nega a tratativas em parceria com a comunidade, desrespeita os moradores e não dá efetiva atenção e urgência que o caso merece. Além de não preservar a vida dos moradores na Zona de Auto Salvamento (ZAS) que estão expostos ao risco de rompimento. Se romper hoje, muitas mortes ocorrerão. Ontem [30 de junho de 2020] era o prazo dela apresentar a nova mancha de inundação e começar as tratativas para retirar as famílias da nova mancha. Ontem, ela informa, para a Defesa Civil, que irá adiar a entrega do mapa por uma semana, sem dar justificativa. A comunidade quer ter voz! Quer que a Vale dê respostas e se posicione. Ana Carla de Carvalho Cota, moradora da Vila Samarco

Protesto silencioso Protestos sobre a situação de Antônio Pereira já aconteciam. Desde o dia 28 de junho, motoristas veem, além das usuais placas de sinalização, faixas de protestos contra a mineradora Vale, ao passarem pela rodovia MG-129. O intuito é mobilizar quem passa pelo local com a causa do distrito. Entre as reivindicações exigidas estão o reconhecimento de que os(as) moradores(as) da Vila Samarco e de Antônio Pereira são atingidos(as) pela barragem de Doutor; o cumprimento do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), de acordo com a Associação Nacional de Mineração (ANM); que a mineradora Vale seja transparente nas informações; e que sejam colocados dois pontos de apoio, um em Antônio Pereira e um na Vila Samarco. As faixas como denúncia surgiram de um movimento dos próprios moradores que se juntaram para fazer essa publicação desde Ouro Preto até o distrito, com várias faixas de denúncia, falando que a Vale não tem olhado para eles, não tem dado informação, que eles não querem morrer. É para tocar mesmo, em quem passa na rodovia. A ideia é que se continue com essas faixas, mantendo a denúncia até que eles se sintam, de fato, seguros, o que, agora, não é uma realidade. A desinformação por parte da Vale continua. A Associação Nacional de Mineração (ANM) deu uma autorização para a Vale depositar rejeito úmido numa cava de Timbopeba. Então, isso garante uma retomada de operações na mina, mas também estamos sem muitas informações. Um dos receios é, inclusive, se isso não atingiria o lençol freático, mas não existe essa informação ainda. Outra questão é sobre umas obras de abertura de estrada que a Vale começou lá. A justificativa é que aumentaria o tráfego de carros ali naquela região por conta do descomissionamento, então essa abertura de uma nova estrada permitiria maior movimento que não atingisse o cotidiano do distrito, não ofereceria risco. A questão é que é um distrito que já convive com poeira, que, agora, aumentou muito mais. Patrícia Ferreira Ramos, professora na Escola Estadual Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira


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Pandemia afeta produtores da Feira Noturna A Feira Noturna acontecia em todas as quintas-feiras, na Praça dos Ferroviários, em Mariana. Nela, atingidos(as) e moradores(as) da região, produtores(as) de frutas, verduras, legumes e outros alimentos, podiam comercializar o que sabiam fazer de melhor. A ideia de possibilitar esse encontro veio dos(as) atingidos(as) pela barragem de Fundão e foi firmada por meio do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Comerciantes locais também participavam da Feira Noturna, como uma forma de fomentar a economia regional e a atuação de todos(as) os(as) pequenos(as) produtores(as). Para os(as) atingidos(as), era também uma forma de rever os(as) amigos(as) e reviver memórias de Bento e Paracatu, a partir dos encontros, dos sabores e da música. Mais do que isso, a Feira Noturna significava uma fonte de renda para a manutenção de diversas famílias. Agora, com a pandemia, os(as) atingidos(as) se vêem novamente desassistidos pelo poder público e pelas empresas. Sem a feira, muitas famílias foram prejudicadas financeiramente e lutam pela sobrevivência. Por Luiz Carlos de Freitas, Roseli Carneiro da Silva, Silvânia Aparecida de Paula Gonçalves e Waldir Pollack Com o apoio de Joice Valverde e Juliana Carvalho

Com essa pandemia, ficou muito difícil, para todos nós, produtores da Feira Noturna. Antes tínhamos o apoio da prefeitura, agora não temos nenhuma renda para nos sustentarmos, alguns têm possibilidade de vender on-line, já outros não. A Feira Noturna era o nosso ganha-pão de toda quinta, tínhamos nossos clientes, nossos amigos e os nossos apoiadores. Trabalhávamos toda quintafeira, faça chuva ou faça sol, a gente estava lá. Essa pandemia, além de afastar todos os amigos, afastou também os nossos clientes e tirou o nosso dia de trabalho. Estamos isolados, contando com a fé de Deus para que tudo isso acabe e voltarmos a trabalhar para que todos os feirantes da Feira Noturna possam vender o seu produto. Assim, eu conto com Deus. Silvânia Aparecida de Paula Gonçalves, Presidente da Associação da Feira Noturna de Mariana Participo da feira noturna desde o princípio. Eu trabalhava com pastel feito na hora, né? Tinha um bom rendimento, todas as quintas-feiras. Com o isolamento da pandemia, nós tivemos que parar com todas as atividades e, pra mim, foi muito difícil, porque eu sou a pessoa pensionista, mas a pensão, hoje, não dá pra uma pessoa sobreviver. Então, era mais uma renda que eu tinha para os meus negócios. Agora, tô me virando de outras maneiras, costurando, fazendo outros tipos de coisas pra inteirar o meu dinheiro. Não tive apoio nenhum. A minha filha, Viviane, que me ajudava, ainda conseguiu o pagamento [auxílio emergencial] de 600 reais, que, graças a Deus, ajudou a gente bastante. Mas é isso aí, a gente sabe que tá sendo difícil pra todo mundo, não tá fácil, a gente vai lutando, né? E espero que tudo isso passe pra gente voltar nas nossas atividades. Além de tudo, era um ponto de encontro. A gente encontrava todos os amigos e todos os feirantes, e, depois disso, cada um tá guardadinho no seu canto, não dá nem pra ver as pessoas que a gente tinha costume, os nossos companheiros de barraca. Mas vamos pegar com Deus que tudo isso passe e a gente possa voltar no ano que vem, com outro formato de feira, sei lá como que vai ser… É só Deus mesmo pra dar uma luz pra nós, mas, por enquanto, vamos levando. Roseli Carneiro da Silva, moradora de Camargos

Fotos: Carlos Paranhos e Larissa Helena

Inauguração da Feira Noturna, em 2017.


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Foto: Carlos Paranhos e Larissa Helena

Foto: Carlos Paranhos e Larissa Helena

Foto: Juliana Carvalho

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Aqui, a situação da pandemia foi pior que o rompimento da barragem. Porque estão me repondo o que eu perdi na barragem. Agora, na pandemia, ninguém está me repondo nada, então o prejuízo foi maior na pandemia. As feiras fecharam tudo, eu tô fazendo algumas entregas na cidade, mas é um pequeno grupo que está me atendendo. Inclusive, o município não quer que eu fique na rua vendendo, estacionado em algum ponto. Eu recebi até uma advertência do município nesse sentido, da Guarda Municipal. Mas não tô obedecendo muito isso e estou vindo, porque tem muito produto lá que tá perdendo e eu preciso vendê-lo. Eu estou vendendo o que é possível. Nós estamos sobrevivendo, estamos lutando. Mas é uma situação bem complexa, a gente tá tendo muita dificuldade pra sobreviver. Waldir Pollack, morador de Paracatu de Baixo A barraca, na realidade, é da minha esposa e a gente trabalha juntos. Então, o que afetou foi o seguinte: financeiramente, hoje, ela não tem renda mais. A gente tá tentando se virar da maneira que pode. Felizmente, eu sou aposentado, eu tenho o meu salário, mas ela não, ela tem que trabalhar. E mulher hoje quer ser independente, não quer ser mais totalmente dependente do marido. Eu acho muito bom isso. Ela tentou o benefício [do Governo], depositaram só uma parcela e, depois, não depositaram mais. Estamos presos dentro de casa sem poder trabalhar, sem poder sair. Nós temos que aguardar. Realmente essa pandemia está afetando várias pessoas e, infelizmente, a gente tem que concordar: enquanto não aparecer essa vacina aí, a gente não vai ter como trabalhar realmente, porque os riscos são muito grandes. Luiz Carlos de Freitas, morador de Mariana Até que a outra feira, do Centro de Convenções, a prefeitura liberou pra gente começar com poucos feirantes. Nós vamos começar amanhã (1º/08), só com 15 barracas - nós somos 33 barraqueiros -, e com toda segurança pra ver se vai dar pra gente continuar. E, se não for, a gente vai quebrar o galho da maneira que tá dando. Um pouco das coisas que tá me salvando também é que, como teve a obrigatoriedade de usar máscara e eu sei costurar, tenho feito bastante máscara e vendido pra ajudar nas minhas despesas. Roseli Carneiro da Silva, moradora de Camargos

Registro da Praça dos Ferroviários vazia, em uma quinta-feira, durante a pandemia.


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O medo de mais uma perda Após quase cinco anos do rompimento da barragem de Fundão, em que 48,3 milhões de metros cúbicos de rejeito foram despejadas por toda a bacia do rio Doce, impacto socioambiental jamais visto na história do país, a Renova/Samarco/Vale e BHP Billiton anunciou, no dia 1º de julho deste ano, a suspensão do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) para mais de sete mil pessoas. A decisão tiraria a única fonte de renda de famílias que sobreviviam daquilo que o crime levou. Pescadores(as), marisqueiros(as), ilheiros(as), artesãos(ãs), comerciantes, surfistas. Diversas formas de vida foram atingidas. A responsável pela reparação dos danos afirma que essas pessoas já recuperaram suas atividades. No entanto, os territórios atingidos, o rio, os animais e a natureza seguem com os rastros do rejeito depositado pelas mineradoras. No dia 15 de julho, a Justiça Federal proibiu a suspensão do auxílio. Mas as comunidades atingidas ao longo de toda a bacia seguem amedrontadas pela ameaça de mais uma perda. Por Gilda Maria Cardoso, Joelma Fernandes, Luciana Souza de Oliveira e Maria Célia Albino de Andrade Com apoio de Júlia Militão e Simone Silva

Foto: Larissa Pinto

Os principais impactos do rompimento, você não pode mensurar, porque foram no curso da minha vida, contra a minha essência. Logo no início, transformou as nossas relações interpessoais. Só sabe do que eu tô falando quem vivencia isso em seus territórios, então essa foi a grande perda e que eu não sei se, algum dia, vai voltar a ser costurada, porque essas relações são lindas, mas são tênues, delicadas. E o outro impacto foi na minha roça, eu tenho uma agricultura de subsistência e, tudo o que nós tínhamos guardado, a gente investiu na roça e a Renova não reconhece isso. Ela reconhece que eu sou atingida, que eu tenho uma roça, mas ela classifica a minha roça como muda. E eu não aceito isso, porque, se eu não tô produzindo, foi por causa da lama da Samarco. Em 2015, eu tinha 50 pés de cacau plantados, com pouco mais de um ano, e 15 pés de banana. E eu tinha duas mil mudas de cacau para plantar. Com o rompimento da barragem, meu cacau morreu e eu perdi as duas mil mudas. Eles não levaram isso em consideração, não quiseram nem colocar a produção que eu perdi. Esses impactos são impactos de uma vida. Como vai ser daqui a cinco, seis, 10 anos, né? Fica sempre aquele ponto de interrogação. A única certeza que a gente tem é que nada vai ser como antes. Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência-ES Eu fui nascida e criada nas margens do rio Doce. Meu pai é pescador e hoje eu sou ilheira. Eu não tenho o rio pra tomar meu banho mais, pra pescar… Eu comia carnes compradas só no dia de domingo, hoje eu tenho que comer a semana toda. Acaba que isso influencia até na minha saúde. O impacto do rompimento na minha vida foi grande, porque a vida no rio passa de geração em geração, tirando areia, mexendo com ilha, pescando… A gente chega na ilha e vê o tanto de coisa que morreu por causa do crime, não foi pouca, não... Meus pés de planta estão mortos por causa da lama e a Renova fala que a gente não tem direito. É o nosso meio de vida, passado de geração em geração, é o jeito da gente viver e a gente não queria mudar isso. É um direito nosso. Joelma Fernandes, moradora de Ilha Brava, Governador Valadares-MG

Memórias do rio que esteve presente de diversas maneiras na vida dos(as) atingidos(as). Na fotografia, a prática da pesca é um exemplo.


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Foto: Tuila Dias

Na edição 32, Geraldo Ferreira da Cruz (Manguaça), nas margens do rio Doce. Foto: Tainara Torres

Na edição 32, contamos a história de Hebert Figueiredo Cota (Tininho) que, assim como Maria Célia, vê as consequências do crime na vida de seus animais. Foto: Tuila Dias

Não tive só o impacto financeiro, mas emocional, sentimental, impacto na saúde física e mental, porque a passagem da lama desestruturou a nossa vida toda. Eu tinha plantação de goiaba, coco, milho verde, pastagem… Eu perdi tudo. O gado começou a abortar, não emprenhava e, quando emprenhava, abortava. O solo não produzia mais alimento pros animais, eu não tinha onde pôr, não tinha água pra dar... A minha renda praticamente foi por água abaixo. Essa perda impacta diretamente na vida dos meus filhos, né, porque eu tenho uma filha fazendo faculdade. A minha meta de vida é formar os dois filhos. Então eu tô vivendo de vendas, eu vendi muitas coisas, vendi lotes, animais, para completar a renda, porque eu não tenho mais a renda que eu tinha. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena-MG A verdade é que o auxílio não supre o que eu perdi, o valor que eu ganhava, mas ele me ajuda, foi a luz que me apareceu pra eu contar com aquela renda todo mês, para custear a minha vida, da minha família, e completar a renda que eu perdi, né? Eu sei que ele não passa nem perto da renda que eu tinha, mas é o que está me ajudando. Quando falaram nesse corte, eu já até comecei a passar mal, porque fiquei desesperada. Eu dependo muito do auxílio. Não só eu, mas as comunidades ribeirinhas que a gente vê que perdeu a renda, todo mundo conta com esse dinheiro até que tenha a recuperação, que as coisas voltem a funcionar como antes. Até porque foram muitas coisas que perdemos na renda e não alcançamos de volta. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena-MG O auxílio é uma questão de sobrevivência e a manutenção dessas pessoas em suas comunidades tradicionais. É toda uma cadeia produtiva que usa o rio e o mar como provimento da sua forma de existência, de pagar suas contas, de ter acesso à água. Então com o rompimento da barragem e com a depredação, a poluição de 20 anos ou mais, ou até mesmo da destruição de espécies nativas, essas pessoas não têm como sobreviver, não têm como tirar seu sustento do rio e do mar, uma vez que milhões de metros cúbicos de rejeito estão sedimentados no fundo do rio. Não temos como ganhar a vida como antigamente. Esse auxílio é, minimamente, a possibilidade de nós, como atingidos, podermos pagar nossas despesas mais básicas para termos o “direito” de continuar em nossos territórios, mantermos nossa essência. Muitos são idosos, só sabem pescar, fizeram isso a vida toda. Como irão viver sem esse auxílio? A Samarco já nos tirou praticamente tudo e agora quer nos tirar o direto às nossas necessidades básicas. Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência-ES


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Foto: Larissa Pinto

Diversas atividades tradicionais de subsistência foram impedidas quando o rejeito de minério atingiu o curso do rio Doce.

Por que agora eles querem cortar o auxílio, se vieram aqui, fizeram o diagnóstico e viram o estrago que foi feito? Nós provamos que fomos atingidos, o documento tá com eles, e agora eles vêm com essa ideia de falar que a gente não tem direito. Eles falam que, em alguns lugares, já houve reparação. Que reparação? Nosso rio está empesteado de piranha, não tá tendo peixe. Sem contar que a gente já não come peixe do rio mais, eu não compro do mercado municipal de Valadares, porque fico com medo de ser peixe contaminado. Como eles têm a audácia de falar que a vida do atingido já voltou ao normal? Não voltou, não. Eu não posso tomar banho no meu rio, entendeu? Tem uma água aqui, uma coisa maravilhosa, e eu não posso entrar. Como eles falam que já sanou, que a água já está apta para o uso? Isso não é verdade, é uma injustiça cometida contra nós atingidos. Joelma Fernandes, moradora de Ilha Brava, Governador Valadares-MG Para nós, produtores rurais, falaram da contratação de uma Assistência Técnica Rural que viria recuperar nosso solo pra gente voltar a produzir. A Renova fala que a empresa já está contratada, mas, por causa da pandemia, não pôde vir. Se ela nem veio, como fala que já recuperou? Como que eu recuperei a minha renda se eu não tenho mais o solo bom, com produção de milho, goiaba, coco, leite e vaca parindo? Agora nós, produtores rurais, conseguimos uma silagem de seis meses, mas três já passaram. O pior disso tudo é que, até hoje, eu não fui indenizada, ninguém me chamou. O que eu estou tendo agora é essa silagem, por ordem judicial. Hoje eu vejo o cartão emergencial como fonte que não pode parar na vida do atingido e a silagem como a luz no fim do túnel. O cartão tem que ser mantido, não é nem pela pandemia, mas pela questão da recuperação mesmo, porque ela tinha que entregar a minha terra, ela prometeu isso perante a sociedade, entregar a minha terra igual ou melhor do que estava antes e ela não recuperou. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena-MG Pode ter existido uma mudança de atividades na cadeia produtiva? Pode. Entretanto, não tão significativa a ponto da Renova retirar o auxílio de todos os atingidos, sejam pescadores de subsistência,

marisqueiras, comércio e outros. Outra coisa: em quais estudos a Renova se embasou para emitir tal decisão? E por que ela não levou essa decisão para ser debatida no CIF? No entendimento da Comissão de Atingidos de Regência e Entre Rios, a Renova, com essa postura, desrespeita o sistema de Governança que foi criado, o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) e o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) Governança. A Fundação não tem o direito de invadir tudo, destruir esperanças, abalar emocionalmente milhões de pessoas, retirar a dignidade que nos resta. Ela não tem esse direito, não dessa forma, não pela segunda vez! Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência-ES Além das famílias que vivem sob a ameaça de sofrerem o corte do Auxílio Emergencial, existem, ainda, muitos(as) atingidos(as), como a Gilda Cardoso, que perderam a renda do cartão já no ano de 2019. Gilda, cortadora de cana de açúcar, teve o seu trabalho interrompido quando a lama de rejeito da Samarco/ Vale/BHP Billiton chegou em Barra Longa. Hoje, sem a sua única fonte de renda e sem o auxílio, não só Gilda, como todos(as) os(as) atingidos(as) que perderam o cartão ou ainda não foram reconhecidos pela Renova, lutam por sobrevivência e justiça. Antes do crime da Samarco, eu tinha meu serviço. Eu era cortadora de cana e perdi a única fonte de renda que tinha, devido ao crime. Com muita luta e sacrifícios, consegui um auxílio. No ano passado, eles cortaram esse auxílio e o serviço não voltou mais. Os impactos na minha vida foram vários, como problemas de saúde, exames para realizar, não tenho como comprar remédios e, ainda pior, ficar na dependência dos outros. Podia ajudar dentro da minha casa, agora não posso mais. A situação está muito complicada. E não só sou eu, existem mais cortadores de cana que tiveram o auxílio cortado e, com isso, vários impactos em suas vidas. Fomos atrás da Renova várias vezes sem sucesso e com respostas sem sucesso. Falaram que sofremos impactos indiretos, então não tínhamos direito. Todos somos atingidos sim, direta e indiretamente, como a Renova mencionou. Nós tivemos impacto direto em nosso trabalho e em todas áreas de nossas vidas. Para mim, todos temos direito ao auxílio. Não tem como excluir ninguém. Gilda Maria Cardoso, moradora de Barra Longa-MG


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Uma festa espiritual

Registro da comemoração do dia de São Bento, em 2016.

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Foto: Carlos Paranhos

Acostumados com os festejos do dia de São Bento na comunidade, os moradores de Bento Rodrigues foram, pouco a pouco, se adaptando às mudanças da celebração após o rompimento da barragem de Fundão. Mesmo dividida entre a cidade de Mariana e a comunidade do Bento, a festa nunca deixou de acontecer. A devoção ao padroeiro é um sentimento íntimo e pessoal, mas, quando compartilhado, reforça ainda mais a união dos(as) atingidos(as) e a força da fé para que sigam persistentes na luta. Neste ano, foi a vez da pandemia modificar a forma como os devotos festejam o dia de São Bento, comemorado em 11 de julho. Devido às medidas de distanciamento social, não puderam se reunir e a missa foi celebrada virtualmente, pelas redes sociais. Por Cláudia de Fátima Alves, Padre Enzo dos Santos e Rosilene Gonçalves da Silva Com o apoio de Joice Valverde e Juliana Carvalho

Dos dias oito a dez de julho, celebramos um Tríduo, preparandonos para a celebração maior, no dia 11 – dia dedicado a São Bento. Imagens da Festa de São Bento, realizada em 2017, em Bento Rodrigues. Foto: Carlos Paranhos Neste ano, por causa da pandemia de Covid-19, não foi possível reunir os devotos, especialmente os da comunidade de Bento Rodrigues. Por esse motivo, celebramos através das redes sociais e, desse modo, conseguimos chegar à casa de muitas famílias. As celebrações religiosas são comemorações de pessoas, fatos ou mistérios que, ao manifestarem publicamente as convicções religiosas de um grupo social, fortalecem a pertença de cada pessoa ao grupo dos que comungam das mesmas convicções religiosas. Celebrar São Bento é reforçar a identidade e a pertença a uma família especial que, apesar das provações pelas quais passou e passa, continua com o firme propósito de se manter fiel à sua raiz religiosa, geográfica, afetiva. Não foi possível a presença física dos membros da comunidade, mas, certamente, a fé e a esperança de dias melhores uniram a todos naqueles dias tão especiais. Que São Bento continue trazendo muitas bênçãos para todos os que continuam na caminhada e na luta pela fraternidade e pela justiça. Padre Enzo dos Santos, Pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus A festa de São Bento, padroeiro da nossa comunidade, era o momento mais esperado para nós. A comunidade se envolvia. Desde que viemos pra Mariana, tudo mudou, a festa não aconteceu mais como de costume, a participação não foi mais a mesma, devido à situação, à distância das famílias alocadas na cidade, em bairros diferentes, dentre outras situações. Mesmo assim, a festa não deixou de acontecer. Nos últimos cinco anos, celebramos o Tríduo de São Bento, sendo dois dias aqui na cidade e dois dias em nossa comunidade de origem, Bento Rodrigues. Todos que tivessem interesse e disponibilidade de participar, assim o faziam, pois muitas pessoas de Bento não se sentem bem indo nas ruínas da comunidade, as recordações são ruins. Neste ano, a Festa do Nosso Padroeiro São Bento foi diferente, devido à situação que o mundo está vivendo por ocasião da pandemia da Covid-19. Foi realizado o Tríduo de São Bento sem a participação presencial da comunidade. As celebrações aconteceram através das redes sociais da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus (Facebook e YouTube). No dia 11, dia dedicado a São Bento, o Coral da Comunidade fez um vídeo em homenagem ao Padroeiro. Assim, aconteceu nossa festa esse ano. São Bento não ficou esquecido. Cláudia de Fátima Alves, moradora de Bento Rodrigues

Foto: Carlos Paranhos


Agosto de 2020 Mariana - MG

São Bento quis que lutemos pela vida e humildade, pois tudo que está aqui pertence a Deus e não aos homens. O dia de São Bento é muito importante pra nossa comunidade. São Bento é festejado duas vezes no ano. Em nossa comunidade, a festa é em julho. Nós, que moramos em Bento Rodrigues, temos o privilégio de tê-lo como padroeiro, esse santo tão querido e amado, íntimo de Deus. Não tem como dizer como é a fé, porque ela nasce de dentro pra fora, é algo que não se explica, é algo que se sente, é algo que é capaz de mudar o que se pensa e o que se faz. É muito bom. A devoção a São Bento nos faz acreditar naquilo que é sagrado, naquilo que é invisível. São Bento foi todo de Deus, não aceitou viver num lugar de baderna, bebedeira, gritaria, maldade, riqueza de bens materiais etc. Ainda jovem, deixou tudo, pois o mundo que procurava não é onde ele estava, mas o que Deus havia preparado para ele. A importância dessa devoção é que podemos ver que somos capazes de, mesmo sem entender nada de santidade, buscarmos imitá-lo na fé. Eu me tornei devota de São Bento quando um padre falou assim, em uma missa: “alguém aqui sabe por que este santo está como padroeiro?”. Ninguém respondeu. Daí eu quis saber quem era São Bento. Comecei pela medalha e seus significados. Fazer o uso da medalha de São Bento nos livra e afasta de todo mal, visível e invisível. São Bento nos ensina a ter paciência, a fazer silêncio para se encontrar consigo mesmo, no amor em Cristo. Nos ensina que se deve trabalhar, orar e sermos caridosos um com o outro. Durante esse tempo em que estamos em Mariana, está muito difícil festejar São Bento com a comunidade. Estamos espalhados em cada bairro da cidade. A comunidade não se reúne toda. Mesmo que tenhamos fé, os obstáculos estão enormes e nos impedem de nos encontrarmos pessoalmente. Rimos, cantamos, choramos, nos divertimos, pois a vida tem de andar e o que sentimos ninguém mais vai sentir, nem os que

Registro da comemoração do dia de São Bento, em 2016.

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vierem depois. É um sentimento que nos une na fé, que nos fortalece, mesmo com tanta dor e perdas que temos. Nesse ano foi ainda mais doloroso celebrar, devido à pandemia. Celebramos em casa, cada um com sua própria família. Participamos pelas redes sociais. Irmãos de outras comunidade da paróquia, com o Padre Enzo e os diáconos Robson e Vicente, celebraram por nós. Participei todos os dias. Digo que não foi nada bom, pois a comunidade se viu em fevereiro e não tivemos mais missas presenciais. Saber que íamos celebrar assim foi muito doloroso. Quando, na missa, o padre disse “cantemos”, aquilo entrou tão profundo, pois não tinha ninguém da comunidade na missa presencial. A vontade era de estar lá também. Essa mudança veio sem que esperássemos por ela. Nós, que já estamos isolados há quase cinco anos, que já estamos longe um do outro e, agora, também da família, temos que nos inspirar em São Bento e pedir que nos ensine a viver esse tempo de provações com mais aprendizado e fé, assim como ele viveu isolado de tudo e suportou com mais amor ainda. Peço a São Bento que nos ajude a suportar o que ainda está por vir. Durante todo esse tempo em que estamos aqui já não estava bom celebrar em um local que não é nosso, que não tem a nossa tradição. A cultura se abalou, a comunidade está abalada. Sabemos que a igreja é cada um e essa igreja está de pé. Não temos um templo ainda, mas temos uma igreja construída e esta ninguém nos tira, só fortalece. Quando estamos juntos, é a melhor coisa que acontece. Não foi possível neste ano, espero que estejamos todos juntos no ano que vem. Muitos de nossos irmãos já estão com Deus e deixaram saudades, muita saudades. Tiveram pessoas que perguntaram pela festa, e foi muito doloroso dizer que as celebrações não seriam presenciais. Neste ano, a festa de São Bento foi espiritual. São Bento, rogai por nós. Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Agosto de 2020 Mariana - MG

Violações de direitos nos atendimentos remotos da Fundação Renova Há exatos quatro anos e nove meses, o crime cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton impõe suas consequências nas vidas das pessoas atingidas pela barragem de Fundão. Esse é também o tempo da violação continuada de direitos, que se agrava durante a pandemia. Por Ellen Barros, Mayara Costa e Renne Tavares

As violações dos direitos das pessoas atingidas têm diferentes formas, mas o fator tempo é sempre utilizado a favor das criminosas. Trata-se do uso do tempo para potencializar a dor, o descaso e a impunidade. Isso se agrava com o distanciamento social, provocado pela pandemia de Covid-19, nos atendimentos remotos realizados pela Fundação Renova, em Mariana. Tarde da noite, a mediação contratada pela Renova envia uma proposta mesquinha de indenização pelo WhatsApp de um atingido. Indignado, ele responde à mensagem com reclamações diante do desrespeito. Sem pestanejar, a Renova recomenda que a família envie um e-mail de recusa da proposta. Com esse modus operandi, a Fundação ignora a dignidade das pessoas que, há tanto tempo, aguardam e lutam por uma indenização justa. O estímulo à recusa impensada serve apenas à Renova, que deixa de ser obrigada a ouvir os atingidos, a estudar uma contraproposta construída pela família, com apoio da Assessoria Jurídica da Cáritas (AJ). Não se trata de um caso isolado. A agilidade em sugerir uma recusa é inversamente proporcional ao tempo das reuniões sobre a indenização (FNE/PIM). Essas reuniões remotas podem chegar até a 12 extenuantes horas de duração. O tempo de negociação efetiva é substituído por longos interrogatórios sem sentido, uma vez que tudo o que as famílias tinham a declarar já está no dossiê, fruto do processo de cadastramento. O tempo é usado também como fator de constrangimento das famílias para que aceitem a proposta de indenização logo na primeira reunião, por mais injusta que seja. Isso porque há uma ameaça de que, caso não aceite rápido a indenização, a família não terá um prazo para receber a revisão da proposta, não terá sequer garantias de que a contraproposta será analisada em um tempo razoável. Há recusa em utilizar plataformas de videoconferência que atendam às necessidades da família, com a imposição do aplicativo Microsoft Team, sobre o qual existem diversas reclamações: é “pesado” para instalar, “cai” toda hora etc. Há ainda a sugestão da Renova para que famílias participem da reunião via teleconferência, uma alternativa não recomendada pela AJ, uma vez que, na prática, são cerca de oito pessoas numa chamada telefônica, em que fica difícil identificar os falantes, sem ver rostos. O desrespeito aos direitos das famílias atingidas durante a pandemia se estende aos atendimentos remotos sobre

Foto: Tainara Torres

O tempo do desrespeito expresso no cartaz empunhado durante audiência judicial, no dia 23 de maio de 2019, quando se discutia a prorrogação do prazo para conclusão dos reassentamentos.

reassentamento. É acordado que a Renova envie, toda sexta-feira, até o meio-dia, a agenda de atendimentos, para que a Assessoria Técnica (AT) possa acompanhar as famílias que assim desejarem. No entanto, nem sempre a Renova cumpre esse prazo e, além disso, tem feito revisões nas agendas ao longo da semana, o que, por si, já é uma violação do acordo. Houve semanas em que foram enviadas até três versões da agenda. A situação se agravou durante a pandemia, a Renova tem mudado a data da reunião para o dia anterior ao combinado, ou pior, tem feito a videochamada para a família no mesmo dia, porém em horário anterior ao combinado. Com isso, realiza as reuniões sem informar a AT, inviabilizando a participação de assessoras(es) da Cáritas. Trata-se de um grave desrespeito ao direito ao assessoramento técnico dessas famílias. Nesses casos, a Fundação Renova coloca na ata simplesmente que a AT foi convidada, mas não compareceu. Ao final da reunião, o representante da Renova lê a ata para a família, que toma ciência dessa ausência de forma mentirosa e irresponsável. Além disso, nas reuniões sobre reassentamento, não há respostas efetivas às demandas das famílias. Mesmo em casos com precedentes e soluções já homologadas na justiça, como as diretrizes de reassentamento, a resposta é, geralmente, que será analisada a demanda e agendada outra reunião. Nunca há um prazo para que essa resposta efetivamente ocorra, o que gera ainda mais angústia para as pessoas que, há tanto tempo, esperam e lutam pelo direito de ter de volta suas casas.


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Corte do Auxílio Financeiro Emergencial em Barra Longa Por Isabel Gonçalves Carneiro (Assistente Social), Juliana Cobuci (assistente social) e Verônica Viana (advogada)

No mês de julho de 2020, a Fundação Renova informou o cancelamento do pagamento do auxílio financeiro emergencial (AFE) a sete mil atingidos(as). Essa suspensão teria incidência significativa entre pescadores artesanais e ribeirinhos, comunidades tradicionais profundamente atingidas pelo rompimento da barragem da Samarco/ Vale/BHP Billiton. A justificativa para a ação, segundo a Fundação, era a recuperação do rio Doce e, consequentemente, das condições de consumo do pescado, ou seja, da existência de segurança alimentar. Segundo informativo da Renova, o auxílio deixaria de ser pago para “aqueles que não preenchem os requisitos do TTAC e aqueles de diferentes categorias que já têm as condições necessárias para voltar a exercer sua atividade produtiva”. Entretanto, não houve qualquer explicação sobre os critérios de análise que demonstram a retomada das condições ambientais capazes de garantir segurança alimentar às populações dependentes do rio. Por isso, a Advocacia Geral da União entrou com ação questionando a atitude da Renova por compreender que não estavam claras as bases que levaram aos cortes e que a suspensão do pagamento provocaria uma crise social, especialmente nesse momento de pandemia da Covid-19. Assim, a Justiça Federal concedeu uma liminar que mantém o auxílio financeiro a essas pessoas e obrigou a Fundação Renova a continuar os pagamentos. Mas essa não é a primeira vez que a Fundação Renova investe sobre o pagamento desse auxílio. No mesmo período do ano passado, a Fundação Renovasuspendeu o pagamento do AFE para 141 atingidos(as) ao longo da bacia do rio Doce, entre os quais estão atingidos(as) de Barra Longa. Esses cortes, ao contrário da situação mais recente, não foram revistos e a suspensão dos pagamentos se mantém. Como justificativa, a Fundação Renova apresentou, à época, uma argumentação vaga e, em comunicado, informou que “deu início ao cancelamento do pagamento do auxílio financeiro emergencial (AFE) para aqueles casos concedidos na fase emergencial que não preenchem os requisitos do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) e para aqueles que já tiveram restabelecidas as condições para retomada de atividade econômica ou produtiva, com base nos resultados de estudos técnicos e científicos produzidos e compartilhados com os órgãos públicos”. Ainda segundo o informativo, os pagamentos de agosto, setembro e outubro de 2019 seriam realizados de forma única e as famílias que sofreriam a suspensão seriam avisadas por meio de cartas. Na ocasião, os cancelamentos se deram sem oportunidade de contraditório dos beneficiários ou de análise dos casos em específico. É importante lembrar que o TTAC adota, como critério para o recebimento do auxílio: (i) o comprometimento da renda; (ii) a

interrupção comprovada de atividades econômicas ou produtivas; (iii) o decorrente do rompimento da barragem; e (iv) que existia uma dependência financeira dessa atividade interrompida. E esse pagamento deveria ocorrer até o restabelecimento das condições para a retomada das atividades produtivas ou econômicas. Mas os(as) atingidos(as) de Barra Longa, e também os(as) de outros municípios da bacia do rio Doce, sempre questionaram a aplicação dos critérios pela Renova por considerarem que, além de terem sofrido o comprometimento de renda, não houve a retomada das atividades produtivas em seus territórios de modo a restabelecer suas condições econômicas e de autonomia financeira. Dessa maneira, em diversas ocasiões, houve reivindicação sobre a revisão do corte do auxílio. Em razão da situação descrita, a Ramboll (um dos experts que auxiliam na atuação do MPF no caso) decidiu realizar um estudo sobre a suspensão do pagamentos do AFE. Para subsidiar a análise referente a Barra Longa, a assessoria técnica entrou em contato com os(as) atingidos(as) que tiveram o auxílio financeiro emergencial suspenso para realizar o registro das situações. Após o contato com as famílias e o registro dos casos, a assessoria técnica produziu e encaminhou para a Câmara Técnica de Organização Social e Auxílio Emergencial (CT-OS) - grupo técnico dentro do órgão que fiscaliza a Renova, o CIF -, documento com informações sobre a situação de trabalho e renda dos(as) atingidos(as) de Barra Longa que deixaram de receber o auxílio financeiro emergencial. Verificouse que o rompimento estabeleceu, em Barra Longa, um contexto socioeconômico de acentuação de vulnerabilidades que tende a se aprofundar em razão da não retomada das atividades econômicas e produtivas e do consequente não restabelecimento de oportunidades de trabalho e emprego no município. Os relatos dos(as) atingidos(as) e as informações sobre os efeitos da chegada da lama na economia local assinalam tanto o direito ao AFE como o quanto a sua suspensão tem colocado as famílias em situações de intensas dificuldades uma vez que não foram extintas as condições que determinam o acesso ao auxílio financeiro emergencial e que, portanto, não se justifica a sua suspensão. Negligenciar a situação gerada pelos impasses com o AFE impede o acesso a um importante recurso, especialmente agora, no contexto da pandemia da Covid-19, que reduz as possibilidades de busca por oportunidades de trabalho em razão das medidas de restrição e distanciamento social, por isso, é tão importante a consideração da situação pela CT-OS. Assim, a assessoria técnica seguirá acompanhando esse debate na câmara técnica para buscar garantir que a pauta tenha um encaminhamento.


EDITORIAL Em julho de 2017, a população de Mariana ganhou um novo espaço de lazer: a Feira Noturna. O evento, que acontecia nas noites de quintas-feiras, foi uma idealização da Associação dos Atingidos pela Barragem de Fundão e firmado pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Há mais de quatro meses, a Feira Noturna teve suas atividades paralisadas devido às medidas de isolamento social. Nesse período, os produtores ficaram desamparados, sem apoio do poder público para repor a fonte de renda que era obtida com a Feira. A capa traz uma recordação da inauguração do evento; nela, Waldir Pollack e sua barraca de verduras. Hoje, a rotina não é mais a mesma e, como os outros produtores, ele luta para se manter. Algo que os(as) atingidos(as) sabem bem é que a garantia dos nossos direitos está sempre em disputa. Aquilo que foi conquistado, ao longo desses mais de quatro anos, aconteceu por meio de lutas exaustivas que consomem tempo, energia e saúde mental e física. Um processo longo e contínuo. Cada vitória é motivo de felicidade, mesmo assim, é preciso estar vigilante às tentativas de retrocessos, pois a forma como a máquina do sistema opera garante aos poderosos vantagens nessa arena. Em julho, a Renova anunciou o corte do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) para mais de sete mil pessoas. Um direito conquistado com esforço e que ainda não abarca todas as pessoas que deveria. A notícia foi recebida com espanto pelos(as) atingidos(as), principalmente pela justificativa da suspensão. A Renova alegou que os meios de produção e de sobrevivência dessas pessoas já estão recuperados. Atingidos(as) e aqueles(as) que convivem com essas pessoas sabem que essa não é a realidade. As comunidades atingidas não aceitaram essa imposição e conseguiram, judicialmente, reverter a decisão. Embora o AFE dessas pessoas agora esteja assegurado, elas passaram por momentos de estresse e medo de perdê-lo, uma situação desgastante que acompanha a vida dos(as) atingidos(as). Viver com medo não deveria ser algo natural, mas é a condição de quem vive próximo a barragens em situação de risco, uma realidade da população de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto. Os(As) moradores(as) do distrito exigem respostas para as dúvidas que a mineradora Vale cultiva. É inadmissível que a mineração continue, a qualquer custo, atropelando vidas, direitos e desrespeitando trabalhadores(as). Torna-se cansativo, para nós e para quem está na luta diária por um novo modelo de mineração, repetir as mesmas frases, tais como: o crime se renova, o crime se repete, o crime parece não ter fim. É exaustivo que precisemos reiterar, o tempo inteiro, o que todo mundo está vendo. É a Vale quem deveria se cansar de cometer as mesmas atrocidades de formas diferentes. Talvez, se a justiça fosse feita anos atrás, a mineração não tivesse o “passe livre” para matar civis inocentes e trabalhadores(as).


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