A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 54 - Outubro de 2020 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Outubro de 2020 Mariana - MG
Repasses NOTA DE PESAR
É com muito pesar que nós, do Jornal A SIRENE e membros das comunidades atingidas, lamentamos a morte de Maria Macedo Costa, a Dorinha, moradora de Guerra. Dorinha deixa saudades em todos(as) aqueles(as) que conviveram com ela. Manifestamos nosso carinho e nossa solidariedade à família e aos(às) amigos(as). Sérgio Papagaio foi alguém próximo à Dorinha e compartilha seus sentimentos: A tarde mais fria deste inverno, 14 de setembro de 2020, precedeu a noite de minha insônia. Após mais de dois anos lutando, ela foi chamada a fazer a triste travessia. Uma nova ordem se instaura no mundo, o amor, agora domesticado, obedece a prática e muitos sentimentos tendem à mecanização, mas não o meu amor por Maria Macedo Costa, 69 anos, a minha mãezinha Dorinha, esposa de Air Costa, seu Bilu, meu segundo pai. Do meu canto lagrimei junto, pude sentir a passagem daquela que sempre foi amor e bondade - quem conheceu Dorinha sabe bem o que estou falando, quem amou Dorinha sabe bem o que estou sentindo. Dorinha, no Jardim do Éden, virou flor. A saudade em nossos corações dará o tom para eternizar o amor. São tantos os bons sentimentos e as boas convivências que, na família A SIRENE, da qual Dorinha e Bilu sempre fizeram parte, não teremos, em nossos corações, tristezas, apenas amor.
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Agradecimentos: Iana de Paula | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Sérgio Papagaio | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Foto: Daniela Felix
Opinião:
Papo de Cumadres: A morte levou Dorinha Consebida e Clemilda estão desacalentadas com a morte da comadre Dorinha, mais uma pessoa atingida que partiu antes da hora combinada. Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda se dor fizesse barulhu hoje ninguém drumia nesta bacia. - Cumpriendu, pois eu também sintu esta agunia de vê pauti, sem receber a devida indenização, Dorinha, a nossa cumadre Maria, fia da Mãe Aparecida. - Foram praticamente 5 anu e Dorinha mais Bilu isperanu, eles da renova só maucanu prometenu mas nunca recuperanu. - É veudade, u teiadu da casa pinganu poi us maquinário que lá pelto da sua casa tava trabaianu também arredô as teia, e u teiadu ficô vazanu, a baixadinha cheia de lama, até u cavalu que num come aquela grama, da chacra teve que ir mudnu. - Cumadre oia que dor danada a professora Dulce lá da UFOP disse que a lenha suja de lama que Dorinha usava pra substituir toda sua lenha que foi em bora com o rompimentu podia carsar duença e muitu sufrimentu. - Eu num sô dotora nem tenhu cunhecimentu mas tenhu um forte pressentimentu, que a fumaça daquela lenha iscreveu um novu combinadu e com issu Dorinha partiu mais cedu du que já tava riscadu. - É muita sicura junta com esta enorme tristeza, a terra pelo tempu sofre recequida e, pela Renova isquecida, se Deus mandassi chuva agora e moiasse a terra seca, as semente adormicidas acordaria em flores, mas cumadre Dorinha num floresceria não, pois a veudade é que Dorinha foi e sempre será flor nu fundu dus nossu coração.
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Outubro de 2020
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Os problemas dos atendimentos virtuais O período de distanciamento social parece interminável e, a cada dia, vem trazendo mais cansaço e dificuldades para a vida dos(das) atingidos(as). A denúncia de que a Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton estava se aproveitando dos atendimentos virtuais para enrolar ainda mais o processo de reparação das comunidades atingidas já havia aparecido no Jornal A SIRENE a partir de uma matéria da Cáritas, no mês passado. Não se trata, aqui, de culpabilizar as empresas pelo regime de distanciamento social que todos(as) devem adotar em virtude da pandemia do novo coronavírus. Trata-se de estar atento(a) ao modo como a Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton pode se aproveitar da situação em benefício próprio. Por Anderson de Jesus e Luzia Queiroz Com o apoio de Juliana Carvalho
Essas reuniões virtuais, para pessoas mais novas, igual no meu caso, que já trabalharam muito com isso, é um pouquinho mais tranquilo. Mas, para os meus pais ou para as pessoas de maior idade, igual o meu tio, por exemplo, pra essas pessoas que não têm muito envolvimento com a tecnologia, eles ficam muito mais dependentes de terceiros para resolver os problemas deles. Falo pelos meus pais, porque quem passou a participar mais das reuniões foi eu. Antes, eles iam presencialmente, então eles tinham poder de fala, conversa no olho a olho. Meu pai tinha como retrucar e, nessa questão de câmera, eles ficam mais retraídos. E nem todo mundo tem terceiros para ajudá-los. Anderson de Jesus, familiar de moradores de Paracatu de Baixo Estou fazendo o projeto [da casa] e, para que tem um pouco de noção, entende. Mas é muito confuso, tem que rever várias vezes, consertar e solicitar explicação até que esteja compreensível. Um sistema muito perigoso. Se o atendimento pessoal era estressante, o virtual é pior, pois a nossa cultura é gesticular sempre. O trabalho virtual acelera mas, para validálo, tem que repassar tudo e, de preferência, perto de quem domina o tipo de informação pretendida. Tanto no PIM, em reuniões de validação ou de projeto é preciso muita prudência. Luzia Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo
Na mente dos meus pais, eles estão conversando com uma máquina, não estão conversando com pessoas. Aí você vai perdendo a paciência. Como que luta, briga, com tecnologia? Nós estamos lidando com pessoas de várias escolaridades, com várias particularidades. Como uma pessoa, por exemplo, de 75 anos, que tem plena capacidade de participar de qualquer reunião e bater boca com qualquer um, se preciso for. Mas como que ele briga com uma máquina? Na cabeça dele, isso é muito estranho. Anderson de Jesus, familiar de moradores de Paracatu de Baixo
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Influenciadores(as) em tempos de pandemia @alexandrepaqueiro
Desde o começo do enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, as redes sociais vêm se tornando cada vez mais influentes na vida das pessoas. O TikTok, aplicativo de produção de vídeos curtos e humorísticos, e o Instagram, com os famosos “desafios” de maquiagem e as postagens sobre o cotidiano, por exemplo, se tornaram destaques durante esse período de distanciamento social. Isso não foi diferente com os(as) adolescentes e jovens atingidos(as). Para boa parte deles(as), é claro, a vida de “influenciador(a)” não é exclusividade, mas muitos estão conhecendo habilidades novas e produzindo conteúdos de moda, maquiagem, música, humor, enquanto aqueles(as) que já utilizavam essas ferramentas estão desenvolvendo novos materiais e conquistando seguidores(as). Por Alexandre Gonçalves (Alexandre da Carretinha) e Samila Caetano Com o apoio de Iana de Paula e Júlia Militão
@samilacaetano
Meus amigos falaram que eu sou muito engraçado, eles acham engraçado o jeito que eu falo… Aí falaram pra eu colocar essas coisas nas redes sociais. E aí deve ter uns dois meses que eu comecei, eu uso mais o Instagram e o WhatsApp. Tem uma frase minha que eu fiz até desenho, fiz um monte de coisa, que os meus amigos me deram ideia. A frase é assim: “tô somando não, tô vivendo a vida, rebenta, butão! Poze!”. Aí ela ficou falada demais e “garrou”: todo mundo começou a compartilhar e falar que era bom, aí que surgiu. Aí eu posto as coisas e falo essa frase, tem até na “bio” do meu Instagram. Eu posto mais pros meus amigos mesmo, parentes, os amigos dos amigos… Depois que me falaram pra fazer isso, eu comecei a postar e deu certo mesmo. Alexandre Gonçalves (Alexandre da Carretinha), morador de Paracatu de Baixo Tudo aconteceu naturalmente, eu sempre gostei muito de fotos, sempre amei fotografar os outros, paisagens... mas eu comecei a trabalhar mesmo com isso quando fui fotografada por um amigo, porque até esse dia, eu odiava aparecer nas fotos. Desde então, as lojas que, antes me chamavam esporadicamente, começaram a me chamar sempre, aumentei bastante os parceiros por causa desse trabalho. Eu posto sobre tudo, conteúdo que crio para os parceiros, dia a dia, maquiagem, indicações de produtos, dicas em geral, memes, família... Apesar de ser uma ferramenta de trabalho, o meu Instagram também é bastante pessoal, acho que é isso que meus seguidores mais gostam em mim. Aí, quando eu comecei a usar o Instagram para trabalhar, pensei em limitar meu conteúdo com o que eu mais fazia na época, que era a maquiagem, mas meus seguidores mais próximos me mostraram que seria um erro, pois a maioria das pessoas que me seguem gostam de me ver, ver meu dia a dia, as dificuldades, as coisas como são e, principalmente, as minhas “palhaçadas”... Eu comecei a perceber que estava dando resultado quando muitos seguidores me perguntavam as coisas ou quando eu “sumia” e, obviamente, quando comecei a receber o retorno financeiro também. Como o meu trabalho fixo é na área da saúde, meu setor não parou um dia desde que começou a pandemia, minhas redes sociais ficaram bem abandonadas, eu realmente não tinha tempo, cheguei a ficar quase uma semana sem nem abrir o aplicativo. Hoje já “normalizou”, talvez, quando tudo estiver melhor, eu volte a produzir. Samila Caetano, moradora de Bento Rodrigues
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Do quintal à nossa mesa O alimento que chega à nossa mesa traz consigo muitas histórias, pois carrega um pedacinho do produtor que semeou a terra, plantou as sementes e esperou, atento, pelo tempo da colheita. Esse processo, muitas vezes com raízes na agricultura familiar, é passado de gerações em gerações e faz parte da cultura imaterial das comunidades atingidas. O fruto, por sua vez, vai muito além do consumo, está ligado às necessidades de subsistência e carrega um valor afetivo imensurável. Foi pensando nisso que os(as) estudantes e os(as) educadores(as) da E. E. Padre José Epifânio Gonçalves, em Barra Longa, foram até as comunidades atingidas para conhecer um pouco mais sobre os benefícios e os desafios da prática agrícola. O objetivo é estimular, nos(as) alunos(as), seu reconhecimento como sujeitos e o sentimento de pertencimento à terra e às riquezas que ela nos oferece. Por Cilésia Maria de Oliveira Carvalho, Ilma Gomes, Joana Darc Lemos Ferreira Gomes, João Paulo Costa Gomes e Luiz Miguel Lemos Barcelos de Castro. Com o apoio de Joice Valverde e Simone Silva
O projeto “Soberania e Segurança Alimentar na Padre Epifânio”, iniciou no ano de 2019, com o Plano de Ação da Juventude, que é uma proposta da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) que visa o protagonismo juvenil. Sendo assim, planejamos, com os estudantes representantes de turma, o projeto “Juventude da Padre Epifânio: Protagonismo em Ação”, que nasceu, basicamente, a partir da constatação de uma necessidade básica do ser humano: conhecer o local onde vive e convive, conhecer a si mesmo e a comunidade onde está inserido. A proposta interdisciplinar envolve estudantes, profissionais da escola, familiares e comunidades. Daí, constatamos outra necessidade: de alcançar, pelo menos, 30% dos recursos destinados à compra da agricultura familiar para a merenda escolar, bem como discutir e conhecer a alimentação em Barra Longa a partir da escola. O principal objetivo é identificar a base econômica do município e sua produção agrícola, bem como reconhecer as potencialidades dos sujeitos envolvidos na escola, de maneira a afirmar a própria identidade, autonomia e empoderamento dos participantes. Inicialmente, planejamos o desenvolvimento, de maneira presencial e interdisciplinar, distribuído em áreas de conhecimento. A primeira área foi a de Ciências Humanas, que recebeu o nome “Vista minha pele” e foi trabalhada na íntegra. O desenvolvimento se deu com a distribuição de tarefas entre todos os professores, que assumiram determinadas áreas, e estudantes indicados como referências nas comunidades. Juntos, se mobilizaram e contribuíram com a coleta fotos e depoimentos. A ideia foi justamente promover essa aproximação entre a escola e as comunidades, de maneira que um conheça o contexto do outro, e que os estudantes se reconheçam como parte de todo o processo e sejam reconhecidos como sujeitos do processo, ressaltando o valor de seus saberes, quereres e fazeres. Com a pandemia, todo o projeto precisou ser repensado: tempo, espaço, metodologia. O principal desafio tem sido a questão do acesso. Nossos estudantes, foco do projeto – protagonismo -, são, na maioria, moradores da zona rural, e muitos não possuem nem um aparelho de celular. Além disso, a forma de trabalho remoto é totalmente nova para todos nós. Outro desafio foi o trabalho coletivo à distância, pois construir e praticar uma proposta a muitas mãos é desafiador. Estamos aprendendo. O resultado apresentado na primeira fase foi muito importante para mostrar a realidade de nossa escola, os sujeitos que ela atende e como atende. Ainda ficou muito clara a falta de acesso aos meios eletrônicos pela maioria dos estudantes. Agora, a área da Matemática
já assumiu e segue na mesma linha de trabalho. Já aconteceram algumas reuniões virtuais com os professores que dialogaram e definiram alguns passos: o nome “Nada do que foi será”; e os temas abordados, que são a economia, os quintais produtivos e o patrimônio cultural (entre o período de 2015 a 2020). A mensagem que fica é a de reconhecimento. Devemos nos reconhecer como gente e como sujeitos. Se almoçamos, jantamos, nos alimentamos é porque, no campo, tem gente cuidando de nós. E essa gente precisa ser conhecida e reconhecida. Cilésia Maria de Oliveira Carvalho, diretora da escola E. E. Padre José Epifânio Gonçalves, em Barra Longa Ilustração: Ciro Monteiro
Ilustração inspirada na obra Retirantes (1944), de Cândido Portinari.
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Professora Ilma Gomes: Você produz o quê, João? João Paulo Costa Gomes, morador de Gesteira: Sou produtor de cachaça, aguardente de cana. Professora Ilma: Qual é o local onde você produz? João Paulo: Meu local é onde tritura cana, extraindo caldo. Professora Ilma: E essa produção tem destino? João Paulo: Essa produção tem. A gente fornece para as cidades vizinhas e distritos. Professora Ilma: Você foi também atingido pelo rejeito da barragem de Fundão? João Paulo: Sim, na época em que teve o rompimento da barragem, a gente tava em produção, em atividade. Foi rompida a atividade de produção de cachaça e, na verdade, até hoje, a gente nem foi reconhecido com a fábrica que é registrada, né? Eu sou a quinta geração dessa fábrica e nós pagamos imposto, temos o CNPJ, temos tudo direitinho e a gente não foi reconhecido, até hoje, pelo fato de ter sido atingido pela lama, entendeu? Professora Simone Silva: E sobre os valores que eles estão oferecendo? João Paulo: É um absurdo, né? Porque nós temos a mão de obra cara, né? A roça, hoje, não produz o que eles pensam que produz. E a matéria que a gente tem, que é a matéria-prima, não tem valor, porque eles queriam pagar centavos em uma moita de cana, na época que tava com aquele PIM [Programa de Indenização Mediada] em Barra Longa. É um absurdo isso. Hoje, eu compro a cana por 225 reais a tonelada. Agora imagina uma roça de cana em que você paga a centavos…
Luiz Miguel Lemos Barcelos de Castro, aluno do 6° ano: Na sua família, você tem a prática de cultivo de agrícola? Joana D’arc Lemos Ferreira Gomes, moradora de Barra Longa (tia de Luiz Miguel): Bom, aqui na nossa família, a prática sempre foi de cultivo, mas para consumo familiar mesmo. Luiz Miguel: O que vocês costumam cultivar? Joana D’arc: O que sempre costumo cultivar, aqui no terreiro, no quintal, sempre foi hortaliças, verduras, mandioca, inhame, feijão, milho. Frutas, verdura de folhas em geral e alguns legumes. Mas era para o consumo da própria família. Luiz Miguel: Há um período de uma estação própria para o cultivo desses produtos? Joana D’arc: Com certeza. Eu não plantava diretamente, mas eu sei que tem o período exato para cada tipo de planta, né? Tem a época de dar cada fruta, a época certa de plantar e colher o feijão, tem o preparo do solo. Não sou eu que faço, mas isso sempre aconteceu aqui no nosso terreno. Luiz Miguel: Há incentivo de alguma entidade, governo ou ONGs? Joana D’arc: Não, no nosso caso, porque não é cultivo para ser usado como renda familiar. Não é para comercializar. É só para ser consumido mesmo na própria família. Então, não. Isso sempre foi do gosto que meu pai sempre teve para poder plantar e que meus irmãos continuam tendo também. Luiz Miguel: Para você, a prática da agrícola familiar tem um impacto positivo ou negativo para o meio ambiente? Joana D’arc: Positivo, com certeza. Porque o cultivo familiar, os produtos usados pro preparo da terra, para adubação da terra, são produtos naturais. Não usam produtos agrotóxicos que podem interferir na natureza. Luiz Miguel: Você e sua família foram atingidos diretos ou indiretamente pelo rompimento da barragem do Fundão? Joana D’arc: Bom, diretamente e indiretamente. Indiretamente, a cidade inteira foi atingida, uma vez que causou um transtorno muito grande, a poeira, como todos os resíduos que vieram com a lama, isso fez mal para a saúde de todo mundo. E de forma direta também. Por quê? Porque as coisas que plantavam no quintal serviam pro nosso consumo, coisas que, hoje, a gente precisa comprar. Então eu digo que atingiu de forma direta e indireta. Luiz Miguel: Neste contexto da pandemia, teve alguma mudança na sua prática agrícola? Qual e como? Joana D’arc: Nem é no período de pandemia que eu vou dizer que houve uma mudança. A questão é que, no terreno que foi atingido, aqui na nossa casa, da nossa família, hoje não nasce nada. Nada que planta cresce, nem pé de banana que, toda vida, não precisava nem plantar que já nascia. Hoje, planta, ele cresce um pouquinho, mas não chega nem a dar fruto. Então, não é questão nem de pandemia. É questão do pós-lama, o solo ficou infértil. Luiz Miguel: Refletindo sobre a pandemia, você acredita que a prática da agrícola pode ajudar de alguma forma a superar o momento? Joana D’arc: Com certeza, né? Porque tá faltando muitos alimentos, o preço de tudo subiu muito com essa pandemia. Teve uma inflação muito grande. Então, quem puder cultivar em casa, além de ter uma alimentação mais saudável, vai ter uma forma também de economizar.
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Fotos: Sérgio Papagaio
A proteção de Nossa Senhora O mês de outubro é muito celebrado por ser um momento em que a Igreja Católica homenageia a padroeira de nosso país, Nossa Senhora Aparecida. Um dos principais símbolos da religião e conhecida como santa protetora, ela é sempre lembrada pelos(as) fiéis por terem alcançado inúmeras graças concedidas, especialmente em forma de milagres. Iovane Marino Moreira e Sérgio Papagaio, moradores de Barra Longa, nos contam sobre a devoção à Nossa Senhora Aparecida, histórias em que vivenciaram o livramento concedido pela proteção divina da padroeira e como ela é a expressão da força, resistência e determinação do povo brasileiro e, especialmente, para os(as) atingidos(as) do rompimento da barragem de Fundão que, em diversos momentos viram na fé refúgio e motivação para seguir na luta.
Por Iovane Marino Moreira e Sérgio Papagaio Com apoio de Júlia Militão
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Conto de fé Uma história de fé e devoção a Nossa Senhora Aparecida Iovane Marino Moreira, 60 anos, atingido pelo rompimento da barragem de Fundão e morador do bairro Volta da Capela, em Barra Longa, juntamente com sua família é protagonista de uma história de devoção e Fé à Nossa Senhora Aparecida. Iovane conta: na chegada do povoado do Pimenta, na cidade de Barra Longa, terra onde eu nasci e me criei, tem um poço de água do córrego onde a gente costuma se refrescar. Eu estava lá um dia fazendo um churrasco com amigos, quando saiu o assunto sobre Nossa Senhora Aparecida, um dos meus colegas me perguntou: “você é tão devoto de Nossa Senhora Aparecida, porque que você não faz um oratório para ela aqui?” Por muito tempo eu fiquei com aquilo na cabeça, pensando: “logo, quando eu puder, vou construir uma casinha pra ela lá perto do poço”. Então agora, com as graças de Deus e Nossa Senhora Aparecida, no final de abril e princípio de maio, comecei a construção, que já está quase no fim. É uma casinha muito simples, mas fiz com muito amor e muita fé. Há mais ou menos uns dois meses, eu deixei uma panela no fogo, fritando uns torresmos, e meu neto Diogo passou mal. Eu fui buscar um remédio pra ele e quando cheguei esqueci da panela e fui arrancar umas minhocas pra pescar, mas eu deixei a chave do bar onde estava a panela, no fogo, perto da porta, lugar em que eu nunca tinha colocado a chave. Quando Marlene, minha esposa, viu uma fumaça no bar, ela veio ver o que estava acontecendo e deu com a porta fechada. Ela procurou um jeito de abrir a porta, encostou a mão na chave que estava no buraco do tijolo, abriu a porta e desligou o fogo, nos livrando de um mal maior. Lá dentro do bar tinha cinco litros de gasolina, dois botijões de gás e muita coisa que podia pegar fogo. Nossa Senhora deu o livramento aqui dentro do bar, onde estava praticamente tudo o que eu tenho, até o meu carro. Eu tenho certeza que quem fez o milagre foi minha Mãezinha. Mãe Aparecida Por Sérgio Papagaio
Em homenagem à Nossa Senhora, Iovane irá escrever o poema de Sérgio Papagaio na capela.
Neste 12 de outubro que se comemora o dia das crianças, é também seu dia, minha mãe Aparecida. Neste data tão festiva, sejas tu, minha mãe, a criança que faltava na minha vida, a menina dos meus olhos, a padroeira dos meus sonhos de infância neste país de intolerância. Sejas tu a mulher dos milagres curumins, enquanto tua pele negra tinge de luz e unidade os quilombos das desigualdades neste racismo da maldade e quebre o preconceito da escravatura no seu peito, onde o Pai Eterno, no seu jeito, te escolheu para mãe do Deus menino e, deste jeito, lhe concedeu grande direito, de reinastes com seus efeitos, entre presidente, governadores e prefeitos, sobrepondo o preconceito, da mãe negra da capa azul, ter o colorido da simplicidade que te faz grande de verdade, pois Deus pintou suas vestes da cor de seu reino, pra mostrar para nós, humanos, como somos pequenos e para onde todos vamos, se entendermos que tem um caminho soberano sob o seu manto que pode curar a dor e enxugar o pranto.
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Festa do Menino Jesus: fé e alegria
Foto: Joice Valverde
Foto: Joice Valverde
Música, devoção e brincadeiras são presentes na Festa do Menino Jesus, uma tradição em Paracatu de Baixo que foi passada de geração a geração. O festejo acontece nos meses de setembro, com uma procissão da bandeira saindo da casa de uma família devota, acompanhada pela Folia de Santo Reis de Paracatu. Nem mesmo o rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade da Samarco/Vale/BHP Billiton, conseguiu parar esse momento de fé. Anualmente, os moradores devotos retornavam ao território para poder celebrar a Festa do Menino Jesus. Com a pandemia de Covid-19, em 2020, os(as) fiéis tiveram que adaptar a Festa do Menino Jesus ao momento em que vivemos.
Por Maria Geralda Oliveira da Silva Com o apoio de Wigde Arcangelo Procissão da Festa do Menino Jesus, em setembro de 2019.
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Organizo a Festa do Menino Jesus há muitos anos, nasci e cresci participando da festa. Como meu pai sempre esteve na frente da festa, eu ajudo a organizar desde jovem. O meu pai é o coordenador da Folia de Santo Reis, uma das principais atrações da celebração, e também é quem coordena a festa com a ajuda da comunidade. A Festa do Menino Jesus acontece na comunidade há mais de 50 anos. Eu me sinto muito bem em ajudar a organizar essa festa, que já vem de geração a geração na minha família, eu me sinto feliz. É uma coisa que meu pai gosta e que eu também gosto. A festa celebra o nascimento de Jesus e é tradição da comunidade, significa ter a fé praticada. Celebrar o renascimento de Jesus é acender a fé que reside dentro de mim, a união das pessoas para fazerem acontecer a festa é uma das coisas que eu mais gosto. O momento que mais me marcou foi o ano de 2016, pois tivemos que improvisar as coisas. A festa teve que acontecer fora da igreja e não conseguimos fazer como fazíamos há anos. A falta das pessoas da comunidade na festa, a sensação de tristeza de não podermos fazê-la acontecer como queríamos, e o cenário devastador que a barragem deixou em nossa comunidade: pela primeira vez, estávamos ali de uma forma diferente, com aquele cenário que nos marcará para sempre. Este ano houve o festejo, porém, novamente de uma forma diferente. A missa foi celebrada em Monsenhor Horta, a nossa paróquia, e foi transmitida para a comunidade pelo Facebook. No sábado, eu e minha família fizemos oração do terço, levantamos o mastro e a bandeira lá na comunidade. Também fizemos a apresentação da Folia com o meu pai, que é coordenador, com algumas pessoas da minha família, com todo cuidado possível por causa da pandemia. Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu de Baixo No meio da Folia de Santos Reis, uma figura chama atenção: um palhaço, com máscara de macaco, que brinca com os devotos e corre atrás das crianças. Por trás da máscara está o Zé Nestor, o responsável por alegrar os foliões. O meu pai, José Patrocínio de Oliveira, o Zezinho, quando conheceu a Folia de Reis que havia na comunidade, ela já trazia o palhaço. Então, a festa do Menino Jesus vem trazendo folia e o palhaço, o Zé Nestor participa fantasiado de palhaço. Ele veio por meio de um senhor que gostava da folia e, com isso, o Zé passou a participar fazendo o papel do palhaço, estava garotinho e nos ajuda até hoje. Ele é um grande amigo da família hoje em dia. O Nestor gosta da folia, de fantasiar de palhaço, brincar com as crianças... É um carinho muito bonito que ele tem. A criançada gosta, é muita brincadeira, o palhaço corre atrás das crianças... A presença dele é muito legal. Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu de Baixo
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Foto: Wigde Arcangelo
As cores da Festa do Menino Jesus, realizada em setembro de 2019, refletem no instrumento da banda que participou da celebração. Foto: Joice Valverde
Zé Nestor faz graça com as pessoas ao seu redor, na Festa do Menino Jesus, em 2019. Foto: Wigde Arcangelo
As crianças se divertem correndo do Zé Nestor, em setembro de 2019.
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A destruição do que restou A comunidade de Bento Rodrigues vem sendo desrespeitada pela omissão da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton que, diante da falta de manutenção das ruínas da capela de São Bento, não apontam para qualquer movimento de zelo com o patrimônio dos(as) atingidos(as). A capela, que leva o nome do padroeiro da comunidade, vem sendo alvo de descuidos há muito tempo, e apresenta vários sinais de deterioramento e de falta de limpeza. O que era para ser da responsabilidade da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton, os(as) atingidos(as) tentam fazer, a fim de que o local não sofra ainda mais com o descaso das empresas. Por Cristiano Sales e Mauro Marcos da Silva Com o apoio de Juliana Carvalho Foto: Genival Pascoal
A realidade é que está um total estado de abandono por parte das empresas, especialmente por parte da Renova, que foi constituída para a reparação e também preservação do patrimônio histórico. Na última reunião que nós tivemos com a equipe de patrimônio da Renova, no início de 2019, o acordo é que seria construída uma tenda ao lado das ruínas de São Bento para que fosse restaurado o piso e as paredes remanescentes. Nós solicitamos que fosse feito de alvenaria, a fim de resistir mais tempo, porque o que tem lá hoje são tendas e essas tendas são trocadas periodicamente, e a que está lá está toda furada. Então foi feita essa reunião e a intenção da Renova seria tirar o assoalho, levar para a reserva técnica, restaurar, voltar e recolocar. Nós, da Comissão e da comunidade, não concordamos, visto que o interesse das empresas é que não tenha vestígios de algo que possa ser relativo ao patrimônio. O que foi feito lá pra preservar o assoalho está acelerando o processo de decomposição da madeira. Pra gente, é uma perda irreparável. Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues Já tem uns dois meses que venho solicitando a limpeza das ruínas da capela de São Bento, só que a Renova fica nos enrolando. É responsabilidade dela. Eu vejo o descaso por parte da empresa. Está bastante complicado lá, com muito mato, não tem nem como acessar direito. Vou lá todo final semana. A Renova sempre fala que vai limpar e só fica enrolando, em um “jogo de empurra”, sabe? A limpeza é muito importante por causa de animais. Cristiano Sales, morador de Bento Rodrigues
Situação atual da capela de São Bento. Foto: Genival Pascoal
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Foto: Joice Valverde
Registro das ruínas da capela, em novembro de 2019. Foto: Genival Pascoal
O TTAC garante essa preservação, mas a Renova faz “corpo mole”. A gente tem que ficar implorando para a Renova fazer o que já está acordado e homologado. Por exemplo, a capela das Mercês ainda não caiu, porque nós continuamos indo lá, abrindo pra ventilar, pra circular o ar e fazer pequenos reparos no telhado, porque a gente vê que não há interesse por parte das empresas em preservar aquele patrimônio. A gente vê que tem um interesse muito grande, tanto da Samarco quanto da Vale, para que não haja sequer vestígios de algum patrimônio. A intenção das empresas é que o local de Bento e as ruínas de São Bento, desapareçam ou sejam remanejados para um outro lugar a fim de que as empresas possam expandir suas atividades minerárias. O interesse das empresas é único e exclusivo na total destruição do que restou de Bento Rodrigues. Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues
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Outubro de 2020 Mariana - MG
O crime não compensa Por Caromi Oseas e Sara Côrtes Gama
Dia 26 de agosto ocorreu a primeira audiência judicial, sobre compensações, da qual as famílias das comunidades atingidas não puderam participar presencialmente. A audiência foi virtual em razão da Covid-19 e contou com a presença de representantes da Comissão dos Atingidos Pelas Barragem de Fundão (CABF), Cáritas e Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), além dos advogados das rés Vale, Samarco e BHP. As empresas não concordaram com as propostas de conversão e compensações construídas pelos atingidos e solicitaram mais tempo para apresentar contraproposta e a audiência foi encerrada. No dia 17 de setembro as empresas apresentaram seus argumentos para não aceitarem a proposta, dentre diversos outros pontos, a Samarco alega que não deve haver a “inversão do ônus da prova”, ou seja, que quem deve provar os problemas nos lotes e prejuízos que as famílias estão sofrendo por causa dos erros da Renova deve ser o MPMG. A Samarco também alega que foram as comunidades que escolheram os terrenos dos reassentamentos em um processo participativo promovido pela Renova e que, como as famílias receberão casas com materiais de melhor qualidade do que tinham na origem, além de diversas outras supostas melhorias, essas já deveriam servir para compensá-las. A Vale critica a proposta dos atingidos, elaborada com apoio da Assessoria alegando que ela não foi construída em conjunto com a Renova e por isso não pode ser considerada, por ser unilateral. No entanto, a Vale parece desconhecer que nos atendimentos a Renova tem apresentado como única opção regras e condições que a própria Renova criou sem construir com as famílias/assessoria/MPMG. Assim, não há margem de negociação, as famílias aceitam a política da Renova ou ficam sem atendimento. Da mesma forma que a Renova, Vale, Samarco e BHP, após dois anos da homologação das diretrizes, até o momento, não propuseram um processo de construção coletiva dos parâmetros de conversão e compensação, apenas atacam a proposta dos atingidos/assessoria/MP, defendendo suas propostas unilaterais que não levam em consideração a centralidade da dor da vítima. A exemplo, na conversão de áreas da Fundação Renova, tanto quem possuía 1000 metros quadrados de terreno quanto quem possuía 100.000 metros quadrados deve receber um terreno de 360 metros quadrados na zona urbana. Essa conversão tem sido imposta às famílias que, por sua vez, sempre se manifestam contrárias. O processo de reparação deve garantir a retomada dos modos de vida das famílias atingidas, no entanto as empresas rés demonstram total desconhecimento sobre a realidade das comunidades. A Vale, por exemplo, alega que a relação de vizinhança estará garantida nos reassentamentos coletivos quando restituídos os bens coletivos, portanto não haverá perda a ser compensada. A Vale deturpa o conceito de vizinhança em seu favor, para não ter que arcar com os acordos homologados na Ação Civil Pública.
Projeto arquitetônico conceitual de imóvel no reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo.
Com relação à compensação por perda de fontes de captação de água, a BHP Billiton afirma que a obrigação das empresas rés é garantir acesso à água, mas alega que não cabe compensar as famílias se esse acesso não for garantido ou não for suficiente. Argumenta que os recursos hídricos são bens de domínio público e não uma propriedade privada das famílias, e que as comunidades escolheram os terrenos dos reassentamentos sabendo que não estariam às margens de cursos d’água. Mais uma vez as empresas se furtam da obrigação de restituir integralmente as famílias. Somente se comprovada a impossibilidade técnica de restituição do acesso a água em qualidade e quantidade satisfatórias, devem ser aplicadas as compensações. É este o intuito das medidas compensatórias. A Vale alega que, por estarem cientes das consequências da escolha pelo atendimento no reassentamento familiar, as famílias que optaram por esta modalidade, não teriam direito a compensações em relação a perda de vizinhança, diferença de área de terreno e topografia, testada, por exemplo. Desconsiderando que o reassentamento familiar, no caso de algumas famílias da zona rural, é a única opção, o que não necessariamente configura uma escolha. É sabido também que, grande parte das famílias que optaram pelo reassentamento familiar, o fazem por estarem insatisfeitas com as condições apresentadas nos reassentamentos coletivos, como a falta de área para produção agrossilvopastoril e de acessibilidade. Importa ressaltar que, apesar das respostas negativas das empresas, a questão da compensação ainda está em disputa e, como aspecto da restituição integral, os parâmetros de compensação devem ser condizentes com as necessidades e a vontade das vítimas do crime da Samarco, Vale e BHP. Além de cumprir aspectos da reparação integral, as medidas compensatórias devem ter caráter pedagógico a fim de constranger o descumprimento das diretrizes. É fundamental que as famílias sigam mobilizadas e lutando para garantir que a reparação ao direito de moradia seja feita em sua totalidade, com dignidade, visando a retomada dos modos de vida destruído com o crime cometido em 05 de novembro de 2015.
Outubro de 2020 Mariana - MG
APARASIRENE NÃO ESQUECER
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Desafio da participação dos atingidos em tempos de pandemia Por Juliana Aparecida Cobucci (assistente social), Laís Aparecida Santos de Oliveira (mobilizadora), Verônica Medeiros Alagoano (coordenação)
A pandemia do novo coronavírus, que atinge a população mundial, significa também o agravamento da situação das populações que sofrem com os danos causados pelo rompimento das barragens. Isso se dá na medida em que a pandemia influencia a dinâmica de organização e a luta dos atingidos pela conquista de seus direitos. Em Barra Longa, a luta pelo reconhecimento da população atingida como tal foi travada desde a chegada da lama, que desencadeou a completa desorganização da vida social. Por meio de muitas e diversas reuniões entre o povo, as empresas e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a população conquistou o direito à Assessoria Técnica Independente. A Assessoria Técnica é, portanto, fruto da luta do povo reunido, da efetiva participação popular. Desde que iniciou sua atuação em território, a Assessoria Técnica organiza seu trabalho tendo como princípio a participação popular, isso porque os atingidos compreenderam que, estando reunidos, as possibilidades de avançar na pauta da reparação são mais efetivas do que se negociarem individualmente. Na pauta de reivindicação dos atingidos, escrita pela população de Barra Longa e entregue à Samarco, à Renova e ao poder público municipal, em dezembro de 2017, a população elencou, como elemento essencial ao processo de reparação, o direito à participação. No entanto, é importante destacar que participar não significa apenas ouvir ou estar presente nas discussões. Ter direito à participação significa poder, de fato, decidir sobre ações que interferem nas suas vidas. E, para participar, ou seja, para ter poder de decisão, é necessário ter informações reais sobre o processo. Nesse sentido, negar informações também significa retirar o poder de decisão dos atingidos. O projeto da Assessoria Técnica de Barra Longa foi estruturado tendo como eixo central a participação. E, considerando que a atuação da assessoria no território tem, como espaço fundamental do processo de trabalho, os grupos de base, é nesse espaço que são debatidas e organizadas as pautas das comunidades e o processo de reparação para, em seguida, ocorrerem as negociações com a Fundação Renova, em assembleias. Ambos os recursos, grupos de base e assembleias, têm em comum a potencialidade de reunir, em um mesmo local, as principais pessoas interessadas em compreender e debater a reparação. Nesse contexto, reunir adquire um significado maior, pois estabelece a ligação entre os atingidos e, por isso, tais espaços, e ainda outros, adquirem um caráter fundamental e indispensável na luta da população atingida, ou seja, o de unir todos os atingidos numa só luta pela reparação integral. Para garantir a participação das comunidades rurais em todos
os espaços de debate e negociação, a Fundação Renova tinha a obrigação de garantir o transporte das comunidades nos dias de reuniões e/ou assembleias para que os atingidos pudessem exercerem seu direito à participação. No entanto, com a pandemia do Covid-19, que experimenta ampla disseminação no país em 2020, houve uma mudança significativa neste contexto. Tornou-se fundamental o distanciamento social, ou seja, o afastamento físico entre as pessoas para buscar evitar o contágio pelo vírus. Nesse quadro, os espaços de participação presencial dos atingidos foram suspensos, o que levou a Assessoria a buscar novos meios para garantir a execução do trabalho, mesmo que, por agora, isso ocorra à distância. A AEDAS vem se desafiando a garantir o direito à informação e à participação por meio de diferentes instrumentos, como ligações para os atingidos e participação na rádio Barra Longa. Recentemente, decidimos, em consenso com a Comissão de Atingidos e Atingidas e as comunidades, retomar os grupos de base de forma virtual. Percebemos que a retomada das reuniões tem sido de extrema importância para a discussão e o avanço das pautas. Contudo, é importante destacar as dificuldades encontradas pelos atingidos no acesso às reuniões virtuais, afinal, a maioria da população não conta com planos de internet capazes de garantir uma boa conexão, nem com aparelhos de telefone e outros equipamentos necessários para acesso às reuniões. Dessa maneira, a falta desses recursos se torna um entrave à participação nas reuniões e nos grupos de base. Importante destacar que muitas famílias têm utilizado o limitado acesso à internet por meio de dados móveis para que as crianças e os adolescentes possam acompanhar as aulas, que também ocorrem de forma remota. Logo, ao final da tarde, a internet já não é suficiente para garantir a permanência dos atingidos nos espaços de discussão virtual. Assim, tendo em vista a necessidade da internet para ter acesso às reuniões e garantir, de fato, o direito à participação e à decisão sobre o processo, a comunidade de Gesteira travou uma luta com a Fundação Renova e conquistou o direito à internet para que a comunidade possa continuar discutindo os próximos passos do reassentamento. Com a compreensão do direito à participação e a complexidade de danos ainda não reparados, as comunidades têm entendido e reivindicado da Fundação Renova os meios necessários para acompanhar reuniões on-lines e participarem da luta pela Reparação Integral. Sem dúvida, a conquista de Gesteira aponta para a viabilidade dessa proposta, que deve ser considerada como medida necessária para a participação efetiva de todos atingidos neste contexto de pandemia.
EDITORIAL As crianças e a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, dividem o mesmo dia de comemoração, 12 de outubro. Nossa Senhora Aparecida é um símbolo de fé, de descanso na certeza que as preces sobre as injustiças serão ouvidas e atendidas. Já as crianças são conhecidas por não se contentarem com as respostas óbvias dos adultos, são fortes, cheias de energia. A teimosia infantil em não aceitar as velhas explicações dos adultos nos ensina muito. Na sociedade em que vivemos, os poderes são ordenados para não serem questionados. Quando alguém ousa desrespeitar essa regra não escrita, a balança costuma pesar para o lado das pessoas poderosas. Não aceitar aquilo que nos é imposto exige força e determinação. Não é fácil lutar contra a forma como as grandes instituições enxergam o mundo e que, muitas vezes, violam nossos direitos, passam por cima de nossas vontades. Porém é possível passar pelas brechas dessas forças que ordenam o sistema e sermos ouvidos(as), exigir que os(as) mais fracos(as) nesse jogo de forças sejam atendidos(as). É essa certeza de que as injustiças podem ser consertadas que impulsiona a luta. Os(As) atingidos(as) pelo rompimento da barragem de Fundão carregam essa dualidade do dia 12. São quatro anos e 11 meses lutando contra grandes poderes econômicos com a mesma certeza das crianças, de que as respostas dadas pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton podem e devem ser questionadas. E, quando o cansaço, natural de nossa humanidade, aparece, é a fé de que o crime não ficará impune que dá força para que a luta continue.