A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 57 - Janeiro de 2021 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Janeiro de 2021 Mariana - MG
Repasses MAIS UMA MORTE NA MINA DO CÓRREGO DO FEIJÃO 18 de Janeiro, Brumadinho
Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, morreu soterrado na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Um talude se desprendeu na área de descarte de material e matou o operador de retroescavadeira. O funcionário trabalhava para a Vale Verde, terceirizada da mineradora Vale. No dia 19 de dezembro de 2020, a Prefeitura de Brumadinho decretou, no município, a suspensão do alvará de funcionamento e localização da Vale e de suas terceirizadas. A decisão é válida por sete dias ou até que seja garantida a segurança dos funcionários. Nós, do Jornal A SIRENE e membros das comunidades atingidas, lamentamos o falecimento e manifestamos os nossos sentimentos aos(às) familiares e amigos(as) do trabalhador morto.
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Sérgio Papagaio | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
Janeiro de 2021 Mariana - MG
Opinião:
Papo de Cumadres: o natal
Consebida e Clemilda sentem a tristeza aumentar com a proximidade das festas de fim de ano, é mais um natal de abandono. Por Sérgio Papagaio
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- Cumadre Clemilda já fez 5 ano que a barrage istorô e fez 6 natá com nois fora du nossu lugá de morá. - Ah cumadi minha fia num gostu nem de alembra desta nossa agunia, as vez eu sonhu de vortá a sê minina e a acreditá nu Papai Noé de novu, mas dispois me alembru que u Papai Noé deve sê da Renova pois durante toda a minha vida de menina eu isperei por um presente que nunca veiu, eu parei de acreditá nu Papai Noé num é porque cresci não, foi porque iguar a Renova ele nunca trouxe meu presente e nem me deu satisfação. - Ô cumadre muitu boa esta sua comparação incheugá as aparecência du Papai Noer com u povo que num faz reparação. - Cumadi minina de Deus, nesta vida só 3 presente bão eu ganhei, minha minina, meu marido que dispois Deus recolheu e minha casa que a Samaucu com a lama de mim iscondeu. - É cumadre eu cá me alembru da cumiria que nós fazia, vinha us parentes du Barretu e até Dindinha lá d'água fria, us mininu correndu pra tudu inquantu é banda e a nossa Senhora Aparicida tomanu conta de tudu lá da varanda. - Cumadi agora meu coração deu um nó e minha boca ficô margosa quinei jiló, de alembra que a mãe Aparicida que nus sarvô a mardita lama levô. - É cumadre us presente que Deus deu pra nós foram levadu tudu pelus nossus algoz num sobrô nem us retratu de mãe Militinha e nem de nossus avós. - É prima Consebida esta é uma das dor mais duida, num gostu nem de alembrá, num temu nossas casa para u natar passá e nem us retratu de tia Militinha, e nem de vovô mais vovó pra nossa sardade podê matá. - Acaba que nois a 5 ano por causa da Renova que é iguar u Papai Noer, istamu fora de casa, isso chega a me dá medu de sabê que u sacu de promessa da Renova também é de briquedu. *É natal todos os dias que o menino Deus nasce e faz morada em nossos corações.
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Mariana - MG
Direito de Entender:
De assessorias técnicas independentes e da não implementação de acordos Assessorias técnicas independentes são entidades que apoiam as pessoas atingidas durante o processo de reparação. Orientam-se pelo princípio da centralidade do sofrimento da vítima, porque se colocam ao lado das pessoas atingidas por atuações empresariais violadoras de direitos, com vistas a tornar menos desiguais as tratativas que permeiam processos de reparação, ou de prevenção a danos. Atuam de maneira multidisciplinar, uma vez que crimes como os que ocorreram na bacia do rio Doce espraiam seus efeitos em muitas dimensões. São independentes, porque, embora custeadas pelas empresas poluidoras-pagadoras, não se reportam a elas, e só devem contas às comunidades atingidas. São instrumentos de participação qualificada e informada das vítimas na recomposição dos seus direitos. Não são panaceia para todos os males. Funcionam, em resumo, para tornar menos penoso um caminho que, até aqui, tem se mostrado, no caso que afeta as vidas dos leitores de A SIRENE, muito íngreme e difícil para as vítimas da enxurrada de rejeitos e problemas trazidos pela Vale, pela BHP Billiton e pela Samarco. Mesmo podendo reduzir assimetrias (diante de mineradoras que estão entre as maiores do mundo) e aliviar dores (revividas pela população atingida durante um processo longo e de tão poucos resultados concretos), mais um ano se encerra sem que as assessorias técnicas estejam contratadas em todas as 21 territorialidades em que foram organizadas as regiões atingidas na bacia do rio Doce. Apenas cinco assessorias técnicas chegaram a ser contratadas até o momento em que escrevo este texto. Inicialmente, a Cáritas, em Mariana, a partir de acordo celebrado em juízo pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) naquela comarca; seguida pela AEDAS, em Barra Longa; e, depois, pelo Centro Rosa Fortini, nos municípios de Rio Doce e de Santa Cruz do Escalvado (e no distrito de Xopotó, em Ponte Nova), as duas últimas a partir de acordos que o Ministério Público Federal (MPF) e o MPMG firmaram com as empresas rés, respectivamente em 2017 e 2018. Em 16 de novembro de 2017, MPF e MPMG realizaram um acordo aditivo, de âmbito geral, com as empresas Vale, BHP Billiton e Samarco, que reconheceu o direito a assessorias técnicas ao longo de toda a bacia do rio Doce. Com base em tal termo aditivo, as assessorias foram escolhidas em todas as 18 territorialidades restantes, a partir de processos conduzidos pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, com a participação do MPF, do MPMG e das Defensorias Públicas da União e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Dessas 18 regiões, foram contratadas apenas duas entidades, porém em um modelo diferente daquele que constava do mencionado termo aditivo, que previa uma coordenação metodológica das assessorias que viessem a ser escolhidas, o que foi deixado de lado, nesses dois casos, no novo modelo seguido pelas empresas rés e chancelado pelo juízo da 12ª Vara Federal. É incrível que já date de mais de três anos o acordo firmado pelo MPF e pelo MPMG, com as empresas rés, que reconheceu o direito a assessorias técnicas independentes para todas as regiões atingidas na bacia do rio Doce, sem que as entidades escolhidas pela população, em 16 territorialidades, sequer tenham sido contratadas pelas causadoras do desastre. Para se ter uma ideia, em 20 de fevereiro de 2019, foi firmado acordo, com a mesma finalidade, pelos Ministérios Públicos e Defensorias, federais e de Minas Gerais, e pela Advocacia-Geral do Estado, no processo de reparação dos danos provocados pelo desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba, perante a então 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual. No caso da bacia do Paraopeba, as cinco entidades escolhidas pela população atingida, nas cinco regiões previstas, estão em funcionamento, a partir de uma decisão do juízo da atual 2ª Vara da Fazenda Pública Estadual, enquanto, no caso rio Doce, apenas cinco entidades chegaram a ser contratadas (uma das quais nem está em atividade, em função de impasse relacionado ao novo modelo que foi seguido pelas empresas rés, depois questionado pela comunidade respectiva), e restam 16 assessorias a serem contratadas pelas empresas. No ponto, é necessário reconhecer a atuação decisiva que o Juiz de Direito Elton Pupo Nogueira exerceu, no caso Brumadinho, para que as assessorias técnicas iniciassem seus trabalhos, que tanta diferença têm feito para a população. Informe sobre o recurso relativo à matriz de danos de Naque No artigo publicado nesta coluna em novembro de 2020, mencionei os recursos interpostos pelo MPF para questionar as matrizes de danos apresentadas por comissões que têm surgido em algumas territorialidades. Devo esclarecer que a antecipação de tutela recursal postulada pelo MPF foi negada, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, pela d. relatoria do recurso de agravo referente à matriz de danos apresentada para o município de Naque-MG. Como se trata de apreciação em grau liminar, o recurso segue em tramitação naquela Corte. A posição defendida pelo MPF (à qual aderiram expressamente as Defensorias Públicas e o MPMG) é a de que tais matrizes de danos – por serem aleatórias (já que não dimensionados os danos) e por limitarem os valores das indenizações devidas pelas empresas rés – deveriam funcionar como um piso mínimo, sem que as pessoas atingidas tivessem de dar quitação integral e abrir mão de seus direitos.
Foto tirada na aldeia Takruk, Terra Indígena Krenak. Por
Edmundo Antonio Netto Junior
Dias
Procurador regional substituto dos direitos do cidadão em Minas Gerais e membro das forças-tarefa Rio Doce e Brumadinho do Ministério Público Federal
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Dívida de empresa terceirizada O rompimento da barragem de Fundão atingiu diretamente e, também, indiretamente diversas pessoas. José João Borges é um exemplo do segundo caso. Morador de Monsenhor Horta, não teve sua casa invadida pelo rejeito de minério, mas foi contratado para prestar serviço para a Vetor Construções, uma terceirizada da Samarco, pouco tempo depois do crime das mineradoras. A empresa não honrou suas dívidas com José, que, hoje, luta na justiça para receber o que lhe é devido.
Por José João Borges Com apoio de Wigde Arcangelo
Quando a barragem rompeu, essa empresa, a Vetor Construções, me procurou para que eu oferecesse alimentação para ela. Ela operava nos canteiros de obras de regiões atingidas pela lama, em Ponte do Gama, Paracatu, essas regiões aqui mais próximas. Como eu estava desempregado, montei uma cantina para fornecer a alimentação. Até aí tudo bem: eu atendia ao pessoal e, nos primeiros meses em que atendemos, eles pagaram direitinho. No último mês, a empresa nos deixou uma dívida que, hoje, seria em torno dos 20 mil reais. O meu advogado entrou em contato com o advogado da empresa, os dois foram até o juiz e fizeram um pacto comigo, de me pagarem parceladamente. Esse montante seria dividido em 10 vezes, mas, até hoje, não me pagaram. Meu advogado entrou em contato com a empresa e ela disse que quem tem que assumir a dívida é a Samarco. Na época, a Renova não tinha assumido ainda, então ela diz que a responsabilidade não é dela. A Vetor alegou que a Samarco iria quitar os débitos que ficaram, mas a mineradora disse que não assume dívida de terceirizada. A empresa estava a serviço da Samarco e eu prestei serviço. Hoje, eu estou numa situação em que estou devendo, venho pagando as minhas dívidas parceladamente, sem condições, pois estou desempregado nessa pandemia. O meu advogado pediu para esperarmos o fim da pandemia, mas as minhas dívidas não esperam. Aí eu fico nessa situação, a minha esposa tem problema de pressão, reumatismo, toma remédios e eu tenho tantas dívidas... Para as empresas, esses montantes não são nada, mas, agora, para mim, isso é muito dinheiro. Durante a pandemia, fornecemos umas marmitas, mas em baixa escala, porque somos só eu e ela, ela também não pode fazer, então eu faço e é o que está segurando a onda, é pouquinho. Mas como você trabalha se não tem como repor? Iria melhorar muito se eu fosse pago, pelo menos aqueles credores que vêm constantemente à minha porta me cobrar, eu teria como quitar as dívidas. Já ajudaria a aliviar a minha mente. Imagina, você ter um dinheiro a receber para pagar seus credores, mas não ter acesso a ele: fica difícil. Quando você deve, como você coloca a cabeça no travesseiro e dorme um sono direito? São noites e mais noites perdidas, só imaginando como você vai tirar o dinheiro para pagar aquelas pessoas. E não sou só eu que não durmo, a minha esposa também não. O que me atinge, atinge ela também. José João Borges, morador de Monsenhor Horta
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Fotos: Joice Valverde
Comunidades rurais isoladas pela falta de ônibus Mesmo que o transporte público seja uma garantia prevista na Constituição, empresas privadas de transporte, que têm, como critério, o lucro, possuem o poder de delimitar como a população pode exercer esse direito. Sendo assim, não é de hoje que as comunidades rurais vivem a constante ameaça de terem também esse direito negado. Após o rompimento da barragem de Fundão retirar os moradores de Paracatu de Cima, a rota de ônibus da região passou a atender apenas as comunidades de Campinas, Pedras e Borba. A redução no número de passageiros é, agora, uma justificativa para a empresa de transporte tentar cortar toda a linha. O ônibus é, muitas vezes, a única alternativa viável de transporte dos moradores até o centro de Mariana.
Por Arlinda das Graças Batista Lourenço, Genilda Patrícia Procópio e Vanusa Aparecida Pereira Cerceau Com o apoio de Joice Valverde e Wigde Arcangelo
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Na época do acontecido com a barragem de Fundão, eu era diretora de uma escola em Campinas e também morava no Borba, que é uma vila pertencente a Santo Antônio das Pedras. O transporte sempre foi feito pela empresa Transcotta, de segunda a sábado. Depois do rompimento da barragem, por Paracatu ser um subdistrito com maior povoamento, eles começaram a dar uma parada com o transporte. Quando veio essa pandemia, eles cortaram, alegando ser devido à pandemia, mas eles já tinham cogitado a ideia de fechar, uma vez que não tinha mais Paracatu de Baixo. O que a Transcotta tem alegado é que não dá muito movimento. Mas aí vai isolar Borba, Pedras e Campinas, porque não tem mais ônibus para Paracatu de Baixo. Espera aí, né, gente?! Que coloque um micro-ônibus, mas coloca alguma coisa. Não achavam viável manter o transporte, então a população começou a pagar. Só que, em outros distritos, estava tendo ônibus e lá não. Deve ter uns 15 dias que voltou e o que aconteceu? Esse transporte ficou de passar somente na segunda e na sexta-feira. Gente, não tem como marcar um médico, né? Quem depende de SUS, como todos os moradores dessas regiões, não tem como marcar só pra segunda e sexta-feira. Pra eles, que têm renda baixa, é muito desgastante e é uma falta de respeito com as comunidades. Então, é tudo decorrente do crime da barragem, porque, uma vez que não tem Paracatu, não vai passar nas outras porque não dá mais movimento pra eles. Vanusa Aparecida Pereira Cerceau, moradora de Borba
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Aqui sempre teve muita má vontade sobre a questão de ônibus. Eles já tentaram várias vezes tirar a linha daqui, mas a comunidade fez abaixo-assinado e conseguiu resolver. Agora, assim que passou a eleição, se eu não me engano na semana seguinte, já cortaram o ônibus. Eles sempre alegam que há poucos passageiros, porque agora não tem Paracatu de Cima. E que também, como passava muito caminhão da Renova, a estrada ficava muito ruim. E sempre foi assim. Infelizmente, agora que, às vezes, a gente tem que ir em Mariana, o valor de um carro aqui tá saindo o valor de 170 a 200 reais, aí fica difícil. Às vezes, você tem uma consulta e tem que ir duas ou três vezes em Mariana, aí como é que você consegue pagar esse valor? Agora vai começar a época de chuva, aí como é que fica pagando carro? Genilda Patrícia Procópio, moradora de Campinas Se eu tiver que sair da minha comunidade e ir para Mariana, preciso ter 150 reais para pagar a corrida de carro, pois não tem transporte.Já tem cinco meses que eu não vou à Mariana por falta de condução. Então, pra você imaginar o que já aconteceu e o que tá acontecendo, só a gente que vive aqui pra saber. Quando eles queriam tirar o ônibus daqui, eu fui na Transcotta pedir socorro para que não tirassem. Eu não tenho carro, dependo de ônibus. E fui humilhada igual a um cachorro. Então, ainda dói, porque o ônibus agora voltou a passar só dois dias da semana, segunda e sexta, e nem fui nele ainda para Mariana, mas continua doendo muito, é muita coisa. Arlinda das Graças Batista Lourenço, moradora de Pedras
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Os entraves do reassentamento
foto: Mônica dos Santos
O reassentamento das comunidades atingidas é tema de muita preocupação entre as vítimas do crime do rompimento da barragem de Fundão. Sucessivos atrasos levaram algumas pessoas atingidas ao esgotamento nesse eterno sentimento de espera, mesmo que, em seguida, esse cansaço se transforme em energia para lutar pelos direitos que devem ser respeitados pela Renova/Samarco/Vale/ BHP Billiton do Brasil, pelos governos, pelas prefeituras e pela Justiça. No dia 4 de dezembro, houve uma visita às obras do reassentamento de Bento Rodrigues. Na ocasião, estiveram presentes a Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), a Assessoria Técnica Cáritas, a juíza Marcela Decat, o promotor Guilherme Meneghin e funcionários da Renova, junto ao presidente da instituição, André de Freitas. A visita havia sido um convite da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton do Brasil destinado à juíza e, mesmo suspeitando das reais intenções envolvidas, os(as) atingidos(as) estiveram lá para manifestar à Marcela Decat as falhas constantes da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton do Brasil. Por Antônio Pereira Gonçalves (Dalua), Cláudia de Fátima Alves, Expedito da Silva (Caé), José Geraldo Marcelino, Maria Geralda Oliveira da Silva e Mauro Marcos da Silva Com o apoio de Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo
Quando a Fundação Renova nos ligou, isso causou estranhezas a mim e a alguns outros membros da comissão, porque o principal questionamento era: de quem estava partindo a visita? E aí nos informaram que a comissão estava sendo convidada, mas que estavam ligando individualmente pra cada membro, e que a juíza havia solicitado essa visita e pedido para a Fundação Renova mobilizar a comissão. Já fomos pra visita cientes dos nossos questionamentos. Questionei o presidente da Renova sobre o porquê dele ter assumido o cargo há mais de um ano e só agora ter resolvido aparecer. E, em seguida, eu já emendei questionando diretamente a juíza, já que ela tinha solicitado essa visita e eu, particularmente, queria saber qual era o motivo da visita, se era uma visita institucional, uma visita de reconhecimento, ou uma vistoria, ou uma visita judicial, uma inspeção judicial... E aí ela disse que não, que
era uma visita institucional, porém não foi ela que tinha chamado a visita. Quem a convidou foi a Fundação Renova e ela colocou como condicionante que fosse convidado o Ministério Público e a Comissão de Atingidos. Aí as máscaras já começaram a cair, porque a gente sabe que a Fundação Renova está sempre tentando ganhar tempo, ganhar a credibilidade dos órgãos, principalmente do judiciário, e nós acreditamos que isso era mais uma das suas artimanhas. Mas conseguimos, a partir desse momento, contornar a situação e torná-la favorável a nós. A todo momento, os questionamentos feitos, direcionados à juíza ou à Fundação Renova, eram questionamentos pertinentes e que davam a entender que nós estamos por dentro do que está acontecendo, nós temos conhecimento do que está acontecendo nas obras, do frequente atraso. Nós acreditamos que o intuito da visita é a Fundação Renova sensibilizar a juíza, uma vez que o prazo da entrega do
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reassentamento, que é 27 de fevereiro de 2021, já está praticamente se esgotando, e jamais a Fundação Renova terá condição de entregar o reassentamento nesse prazo. A juíza até colocou que queria, com essa visita, apaziguar, quebrar resistência de ambos os lados. Mas a nossa resistência, a resistência da comissão e da comunidade é única e exclusiva, porque a Fundação Renova acredita que ela pode fazer as coisas do jeito dela e que nós vamos acatar. Infelizmente, nós não temos a qualidade técnica, a formação acadêmica, mas nós temos o conhecimento prático. Ninguém, nem de Fundação Renova, nem de governo, nem de Justiça, tem o conhecimento do Bento como a gente tinha, ou tem ainda, porque continuamos frequentando lá. Então, esse questionamento, essas colocações foram muito bem ponderadas por todos os membros da comissão e muito bem acatadas pela juíza. Mas quanto à visita da juíza, eu acredito que, mesmo sendo uma articulação da Fundação Renova, ela acabou sendo favorável aos atingidos. Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues Nós tínhamos aí uma previsão de entrega do reassentamento e essa previsão, segundo as informações, ela prevalece. Mas acredito que a empresa vai entrar com algum pedido de alguma ação pra que prorrogue esse prazo. Nós tivemos cinco casas que foram terminadas. É uma questão também que me preocupou muito, porque são cinco anos, cinco casas, e a gente vê previsão de entrega pro ano que vem. Com todo esse atraso da pandemia, as coisas não evoluíram tanto em relação ao reassentamento de Bento Rodrigues, ainda que tudo tenha evoluído em relação à retomada da empresa. Pra atrasar o reassentamento, a pandemia fez, mas, pra fazer a retomada da empresa, ela não atrasou, não afetou, que ela já tá aí liberada pra funcionar, mas nós não temos 10% das obras concluídas no nosso reassentamento. Nós não tivemos ainda todas as casas iniciadas. Ainda tem projetos que nem foram pra Prefeitura. Muito importante a visita da juíza no reassentamento, foi agendado uma para o de Paracatu, e depois vai visitar também o “velho” Bento, o Bento atingido. A visita dela foi muito importante pra ela ver de perto os questionamentos que a gente vem fazendo a todo tempo. Que as coisas não andam, que as coisas não são do jeito que atingido quer. Uma coisa é nós questionando de um lado, e a empresa questionando do outro; e a outra coisa é você ver a realidade de perto, igual a gente foi lá e a juíza viu, o promotor viu, e sentiu o que a gente tá sentindo. É a vontade, o anseio de voltar para as suas origens, para as suas casas e ver tudo ali ainda travado devido a uma só questão que é em relação à Fundação Renova, que não age conforme deveria agir. Então eu acredito que a juíza vai saber avaliar bem isso aí. Antônio Pereira Gonçalves (Dalua), morador de Bento Rodrigues No meu ponto de vista foi proveitoso, independentemente se foi com a Renova, nós, da comissão e da assessoria, mostramos pra juíza vários pontos que já estamos cobrando há muito tempo. Eu tive a chance de falar sobre questões que a gente vem apontando ao longo do tempo. Todos nós, que fomos na visita, falamos. Pra mim, foi muito boa a visita. Expedito Silva (Caé), morador de Bento Rodrigues Atingidos(as) apontam também para a importância das visitas aos terrenos, a fim de fiscalizar as obras e garantir que tudo seja feito de acordo com as necessidades da comunidade que será reassentada. Além disso, as comunidades anseiam pelo retorno aos seus modos de vida e, por isso, são favoráveis à continuação das obras com o obedecimento dos critérios de segurança em relação à saúde dos(as) trabalhadores(as).
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Acho extremamente essencial a retomada das obras, tendo em vista todo o atraso que já tivemos até o momento. Nesse tempo todo de obra, se não estiver enganada, temos cinco casas prontas, em fase de acabamento, num total de mais de 200 casas: praticamente nada. Sem contar com os inúmeros projetos que estão paralisados por motivos de readequação, realocação. Um outro ponto grave: tem famílias que estão optando pelo reassentamento familiar devido à demora na entrega e também por problemas familiares relacionados aos lotes. Sabemos que esse ano foi um ano difícil devido à pandemia da Covid-19, mas algo tem que ser feito para a continuidade das obras, todas as medidas de segurança devem ser adotadas para a continuidade e a prevenção dos colaboradores nas obras. A saúde tem que ser preservada, mas a obra não pode parar, mesmo que seja com um quadro menor de colaboradores, mas que seja efetiva dentro das possibilidades da empresa e sabemos que possibilidades ela tem. Por isso, é importante a visita fiscalizadora periódica da comissão e da assessoria, para ver o que andou dentro da obra de um mês para o outro. Para termos condições de cobrar da empresa um acordo que não tenha sido cumprido na última visita realizada. Importante também a visita das famílias que estão com o projeto em execução, elas têm que acompanhar para ver de perto o que foi acordado dentro da elaboração do projeto, pra não haver nenhum transtorno que, posteriormente, não possa ser solucionado, como já aconteceu em outros projetos, infelizmente. Cláudia de Fátima Alves, moradora de Bento Rodrigues A visita da juíza Marcela Decat ao reassentamento de Paracatu de Baixo está prevista para esse mês de janeiro. Os(As) atingidos(as) da comunidade acumulam reclamações sobre o andamento das obras e seus constantes atrasos. A retomada da obra não teve nenhum progresso. Da forma que está, está péssimo, vamos ter problemas, sim, e muitos. Me sinto muito triste, porque, com essa pandemia, estão aproveitando para empurrar a obra com a barriga, nada está sendo feito. José Geraldo Marcelino, morador de Paracatu de Baixo Sobre a retomada das obras, foram feitas algumas fundações de casas, mas ainda existem ruas que sequer saíram da terraplanagem. Por causa da pandemia, foram interrompidas as visitas de fiscalização por um bom tempo. Na volta da visita, o que se vê, no reassentamento, são as mesmas coisas de antes de suspenderem a visita, pouco se vê de avanço nas obras. A única coisa que se sabe é que se passaram cinco anos e os reassentamentos estão longe de ser entregues. Acho que a Renova não está com esse empenho todo para entregar, já que, a cada ano que se passa, é uma desculpa diferente para não entregarem as obras. Cinco anos não são cinco dias. Não há uma data concreta para a entrega dos reassentamentos, não há nenhuma resposta para os atingidos, isso desanima e desmotiva as pessoas a voltarem para o nosso lugar. Já sobre o nosso lugar de origem, se vê apenas descaso. Mato está tomando conta de tudo, está parecendo um lugar abandonado. A Renova quase não aparece para saber como está a situação da comunidade atingida, acho que eles nem fazem questão já que é a prova viva do crime cometido por ela. O que foi feito pela comunidade foi a partir de luta e manifestações dos atingidos. Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu de Baixo
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Fotos: Sérgio Papagaio
Descobrindo-se atingido(a) cinco anos depois Os(as) moradores(as) da comunidade de Taboões, distrito de Barra Longa, descobriram ser atingidos(as) cinco anos após o rompimento da barragem de Fundão. O vilarejo de Taboões, é localizado a aproximadamente oito quilômetros das margens do rio Gualaxo do Norte, por onde escoou a lama de rejeito da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco/Vale/BHP Billiton do Brasil.
Por Ednaldo Morreira dos Santos e Fabiana Alexandra da Silva Ferreira Com apoio de Sérgio Papagaio
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Quando houve o rompimento, a estrada de acesso ao Gesteira ficou interditada pelo acúmulo de rejeito em seu eixo, usaram portanto a estrada que passava por Taboões. Os caminhões passavam com máquinas para limpar a estrada, os caminhões da 3T passaram com pedras para por nas margens do rio. Com tanto movimento de caminhões pesados, a ponte no terreno de Marco Mol não aguentou o peso e foi interditada. As nossas casas que não foram construídas para aguentar este tipo de caminhão pesado, apresentaram várias rachaduras, chegou até pousar helicóptero aqui no campo para socorrer o Gesteira. Ednaldo Morreira dos Santos, morador de Taboões No começo, quando os caminhões começaram a passar aqui, nós achamos normal. Depois as casas começaram a trincar. Procuramos saber e descobrimos que também fomos atingidos. Parei de estudar porque a estrada ficou interditada. Estava fazendo EJA [Educação de Jovens e Adultos] e parei no segundo ano do segundo grau. O pessoal foi desistindo, o ônibus não passava na estrada para Barra Longa, que estava cheia de rejeito, todo mundo foi desistindo não tinha como ir à escola. Com isso não voltei a estudar até hoje. Ficamos uma semana sem luz, a lama derrubou os postes que traziam a energia para cá. Os tanques de resfriamento de leite não funcionavam, perdeu muito leite. As coisas da geladeira perdemos tudo. Não dava para ir em Barra Longa receber e fazer compras, passamos falta de muitas coisas. A falta de energia deixou a gente sem telefone, sem água, sem um monte de coisas que tínhamos que buscar fora ou conservar em geladeira. Fabiana Alexandra da Silva Ferreira, moradora de Taboões
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As partilhas no Bento O desejo de uma vida mais simples leva algumas pessoas a procurarem o interior. Fugir dos pequenos estresses cotidianos de uma cidade grande, dos trânsitos, da rotina corrida, da falta de tempo para partilhar a vida com a comunidade e os amigos são alguns dos motivos. Cleinice Rezende de Sá, que passou a vida toda em Belo Horizonte, sempre sonhou em morar no interior. Em 2012, conseguiu realizar esse grande desejo, mas foi só em 2014, ao se mudar para Bento Rodrigues, que experimentou uma curta, porém enriquecedora, etapa de sua vida. As lembranças e a saudade de Bento são grandes e o maior aprendizado que Cleinice carrega, em todos esses meses como integrante de uma grande família, é a fé e o cuidado que os moradores da comunidade têm com o outro. Foto: Arquivo pessoal de Cleinice Rezende de Sá
Por Cleinice Rezende de Sá Com apoio de Júlia Militão
Sempre sonhei em morar no interior e, em 2012, resolvi realizar esse sonho. Inicialmente, fui para Catas Altas, que eu já conhecia e onde já tinha algumas boas amizades. No início de 2014, conheci uma pessoa que residia em Bento Rodrigues e, com alguns poucos encontros, decidimos viver juntos. Foi então que conheci o lugar que seria inesquecível para mim, sob vários pontos de vista. Não fui morar apenas em um distrito de uma cidade histórica, entrei no seio de uma grande e amorosa família. Todos eram irmãos, primos, filhos, pais, mães, tios, avós. Todos interagiam como uma família unida, encontros constantes, celebrados com alegria e amor. Problemas, como toda boa família, que rendiam alguns questionamentos por poucos dias, até que se reencontrassem num casamento, batizado, funeral, aniversário ou em qualquer outro evento que justificasse as reuniões da comunidade/família, em que todas as diferenças eram esquecidas e a alegria ou a dor novamente os unia. E, sem muita cerimônia, fui recebida assim, de braços abertos e sorrisos largos, como membra da família/comunidade.
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Os dias em Bento Diferentemente de tudo o que eu tinha vivido até então, viver em Bento foi um retorno à infância que morava saudosa em minhas memórias. De repente, me vi num improvisado túnel do tempo, transportada para um tempo em que os vizinhos se conheciam, onde você pede emprestado uma xícara de chá de trigo para inteirar a receita do bolo, mas, na verdade, era mesmo para puxar “um dedin de prosa” com a vizinha e saber se estava tudo bem com as crianças, se a tosse do marido tinha amenizado com o xarope caseiro que Dona Maria fez pra ele. A xícara de trigo mesmo, se não tivesse em casa, podia buscar na venda do Barbosa, com ou sem dinheiro, ou na mercearia dos Sobreira. A gente pagava depois. As crianças brincavam nas ruas sem muitos cuidados, as mães não tinham motivos pra se preocupar. Não carecia ser a mãe de alguém pra chamar a atenção, caso tivesse se excedendo, ou pra prestar um socorro no caso de um se machucar. Sempre era da família mesmo. Os nascimentos eram celebrados com tanta alegria que a criança já vinha ao mundo se sentindo bem-vinda. As perdas eram sentidas profundamente. As emoções eram sempre intensas e comunitárias. Ninguém ficava feliz sozinho, ninguém chorava sozinho. Tudo era partilhado. E, nessas partilhas, fui conhecendo todos, me encantando com cada história de vida de cada um, com a fé em Deus, com a gratidão pelas coisas mais simples. Convivi com tanta riqueza de sentimentos que, para mim, tinha mais valor do que qualquer minério de ferro que pudesse gerar fortunas às mineradoras. Ouvia sons de pássaros desconhecidos, os via nos galhos das árvores no quintal. Conheci o sabor de frutas, verduras, legumes, tubérculos cultivados sem agrotóxico. Comi carne de frango sem gosto de hormônio. A pureza dos sabores, o sabor da água que a gente buscava nas minas. Sinto falta de tudo. Sinto falta da vida que havia ali. Era bucólico, lúdico, sem pressa. O tempo passava mais devagar. Havia tempo para preparar um café da manhã farto, sentar à mesa pra tomá-lo enquanto programava os afazeres da casa; a visita à Maria que tinha dado à luz ao terceiro filho, o André Lucas, que era uma gracinha de neném; ou acompanhar o Sr. Elias na consulta em Mariana; no caminho, parava pra ver a mãe da Rosa, que tava sempre sentadinha no alpendre. Tinha tempo pra uma prosa com a dona Teresinha e o Sô Deco, eu gostava de ir à tarde, na hora da sopa de macarrão. O tempo se estendia, era maior. Aqui não acho tempo pra nada, a gente nem vive. É uma correria só, um trânsito infernal. Mal você acorda e se mete a sair pra trabalhar ou pra uma visita a algum parente, e lá se foi o dia. Em Bento Rodrigues, o relógio era generoso. Corria mais devagar. A casa da Fatinha tava sempre limpa e arrumada, as roupas do varal exalavam o cheiro de roupa bem enxaguada, sem pressa, macia. E ela sempre tinha um tempo pra uma prosa boa ou pra ajudar a gente em alguma tarefa da casa. Tinha a Mina (Dona Hermínia), mulher de fibra, que, apesar da idade e das dores de coluna que a levavam de vez em quando à minha casa pra aplicar uma injeção intramuscular para que ela pudesse continuar trabalhando na limpeza da cidade, trazia, no rosto cansado, uma beleza que insistia em permanecer, resquícios de uma juventude que deve ter arrebatado corações. O bar do Seu Juca, onde os amigos se encontravam à tardinha pra “tomar uma”, enquanto jogavam conversa fora e estreitavam a amizade comendo “dobradinha à milanesa”. Tinha a casa do Senhor Antonio, essa família é festeira. Povo animado. Dona Maria tem
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gosto de receber uma visita. Aquela varanda cercada de bambu e pneus, colorida de flores, vibrava de alegria. Paula “da motinha”, como ficou conhecida nacionalmente depois do rompimento da barragem. Pensa numa energia sem fim: é ela. Um sorriso que conquista o coração da gente em segundos. Ser prestativo ali é genético. Cláudia, a menina do posto de saúde (tava mais pra assistente social)... Não tem nada na área da saúde que ela não se desdobre pra resolver. E ainda consegue cuidar das programações da igreja. Esse é um capítulo à parte. Talvez a melhor parte. A fé e as celebrações religiosas na comunidade Tantas coisas me marcaram ali... Mas creio que o fator determinante é, sem dúvida, a FÉ. Durante o período de convivência em Bento Rodrigues e, ainda hoje, graças a Deus, desfrutando das amizades feitas ali, posso constatar a fé em sua expressão mais pura. Não religiosidade, que nos leva a frequentar uma igreja nos dias marcados ou comemorar algum evento religioso, como cumprimento de um dever com a sociedade, mas a fé que é demonstrada no zelo por tudo o que diz respeito à igreja e ao exercício da gratidão a Deus como autor da vida, doador do tempo e submissão à Sua soberana vontade. A fé atuante, que não manda embora quem tem fome, mas lhe dá de comer. A fé que desconhece cansaço. Quando mencionei Cláudia, a nossa agente de saúde, é porque ela representa bem esse compromisso com a fé atuante. Quanto amor eu via nesse trabalho dedicado às atividades da igreja local. Não só ela, mas todos da comunidade. Catequistas, Lelena, tão dedicada no ensino às crianças, as preparando para o caminhar com Deus e com a igreja. O coral da igreja, Deco e Zezinho no violão, dona Irene animada no compasso do pandeiro, as vozes harmoniosas entoando os cânticos espirituais, as procissões, as festas e missas em comunidades vizinhas. Sr. Filomeno, patriarca cuidador da igreja, incansável no trabalho. Essa fé me inspirou a ser mais cristã. Foi nessa comunidade que aprendi o exercício da fé. Essa fé atuante fez toda diferença no dia do crime. Não foi “cada um por si”, nunca foi. Todos se ajudaram, foram avisados pela Paula, que saiu do serviço quando viu a lama descendo em direção à comunidade e, na sua moto, passou pelas ruas gritando pra que se salvassem. Foi o marido da diretora da escola que a alertou a tempo de evacuar a escola antes que a lama atingisse as dependências. Ninguém correu sozinho, todos se preocuparam em amparar um idoso ou carregar uma criança. A fé atuante, que se mostra no amor ao próximo, salvou quase todos os moradores de Bento Rodrigues. A fé que os mantém unidos e esperançosos quanto ao futuro. Que instrução, que exemplo recebi ali. Isso é minha lembrança mais forte e determinante. Eu sou cristã, nascida e criada na Igreja Presbiteriana. Durante o tempo em que residi em Bento Rodrigues, bem como após o crime, como parte da comunidade, sempre frequentei e participei das festas, eventos e programações regulares da Igreja Católica. Nunca tive dificuldade em conviver com meus irmãos católicos, mas, em Bento Rodrigues, fiz parte dessa família que me acolheu como membra. Sempre participei, de forma bastante regular, de tudo o que representava a comunidade de Bento Rodrigues, a comunidade que me recebeu, acolheu e até hoje, embora tenha regressado a Belo Horizonte, minha terra natal, me considera, como eu a eles, parte da família, irmanados e unidos no amor de Cristo.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Janeiro de 2021 Mariana - MG
Marcas invisíveis da lama: os danos à saúde mental de crianças e adolescentes Por Gabriela Câmara, Ana Maria Walter e Ellen Barros Foto: Victória Oliveira / Jornal A Sirene
Ainda é possível ver as marcas da lama nas paredes que suportaram o mar de rejeitos despejados pela barragem de Fundão. No entanto, há marcas desse crime que os olhos não podem ver. São danos imateriais, que se caracterizam por violar direitos fundamentais, afetar a saúde mental das pessoas e, no caso de crianças e adolescentes, o impacto pode ser ainda mais avassalador. Dentre as 922 declarações referentes a danos imateriais sofridos por crianças e adolescentes, levantadas até o momento pelo processo de cadastramento conduzido pela Cáritas, 59,3% remetem aos danos à integridade psíquica, ou seja, prejuízos ou lesões emocionais ocasionados pelo evento traumático; 66,8% são danos às relações de amizade e vizinhança; e 77% referem-se às perdas e aos danos aos modos de vida locais. Apesar dos números expressivos, tais violações são ainda subnotificadas, posto que reviver os sentimentos decorrentes do rompimento e seus desdobramentos é um grande sofrimento para essas crianças, adolescentes e seus representantes. O tema é tão complexo que alguns familiares só tomaram conhecimento de algumas situações a partir da Tomada de Termo, quarta etapa do processo de cadastramento, como afirma Luzia Queiroz, de Paracatu de Baixo: "várias pessoas, na Tomada de Termo a Cáritas mesmo sabe disso -, é que as mães descobriram que os filhos estavam sofrendo demais da conta, muitos estavam sofrendo bullying na escola, chamavam eles de 'atingido', chamavam eles de 'folgado', ou então falava que o povo era 'vagabundo e não tinha serviço para fazer', que era culpa dos atingidos que a barragem estourou." * Esse tipo de relato evidencia não apenas a dificuldade de mensurar a extensão do dano causado à saúde mental de crianças e adolescentes, como também comprova a importância de uma metodologia ampla e sensível à coleta dos danos sofridos, uma
vez que essas crianças e esses adolescentes tiveram suas vidas modificadas por completo. O deslocamento forçado de famílias da zona rural para a urbana, por exemplo, acarretou uma mudança radical nos modos de vida. O espaço ao ar livre foi substituído, em muitos casos, pelo quarto das casas alugadas na cidade, o que causou o distanciamento das redes de suporte afetivo com amigos e familiares. Crianças e adolescentes vivenciam ainda, junto de suas famílias, a espera angustiante pela retomada de suas comunidades nos reassentamentos. Contudo, costumes se perderam, o contato com a natureza, agora, é algo distante e menos atrativo, assim como as festas tradicionais que, para muitos, não têm mais o mesmo valor. A escola, instituição relevante no processo de socialização das crianças e adolescentes, foi, para muitos, o espaço da violência emocional gerada pelo preconceito, como relata Mauro Marcos da Silva, de Bento Rodrigues: "então, não só ele [filho de Mauro], como as outras crianças de Bento, também vieram sofrendo preconceito ao longo do tempo, e parte desse preconceito é por culpa da Renova. Porque, ao colocar alunos de um outro local em uma nova escola e apartar esses alunos - porque, na escola em que os alunos do Bento foram estudar, era uma ala para os alunos de Bento e a outra ala pros da cidade - não tinha uma confraternização, não tinham uma troca de experiências." * As escolas construídas em Mariana eram o principal espaço de socialização antes da pandemia. No entanto, crianças e adolescentes relatam que não têm o mesmo sentimento de pertencimento, além do estigma de ser atingido que permeia as interações, o que, por vezes, dificulta a experimentação de novas relações sociais. São diversos os fatores psicossociais que agravam a saúde mental de todos os atingidos. O relatório sobre saúde mental, contratado pela Cáritas e realizado pela UFMG em 2017, demonstra que há um alto índice de atingidos, entre jovens e adultos, com depressão em Mariana. Após essa pesquisa, foi criado, no município, o serviço de atenção psicossocial e saúde mental Conviver, que desenvolve ações junto aos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. O serviço conta com uma equipe multiprofissional formada por psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, arteterapeuta e psiquiatra, e atua também com crianças e adolescentes. O Conviver funciona de segunda a sexta, das 8h às 17h, na rua Genoveva Leão Lemos, 25A. Contato: 35574222. *Trechos de entrevistas concedidas à Cáritas em novembro de 2020 e disponíveis no site mg.caritas.org.br
APARASIRENE NÃO ESQUECER
Janeiro de 2021 Mariana - MG
Foto: Arquivo Aedas
Registro da Feira de Saúde realizada em 2018 - Barra Longa - MG.
[...] O meu ou o seu caminho não são muito diferentes, têm espinho, pedra, buraco pra mode atrasar a gente. não desanime por nada pois até uma topada empurra você pra frente!” (Um ano de esperança - Bráulio Bessa)
O ano de 2020, com toda certeza, foi, para todos nós, um grande desafio, um ano que se iniciou com tantos planos e que tiveram de ser readaptados para uma realidade que nenhum de nós esperava: a pandemia do Covid-19. Nossas reuniões, nossos encontros e nossas visitas, sempre acompanhados de um bom cafezinho e de uma boa prosa, tiveram de ser reinventados. Substituídos por ligações, mensagens de WhatsApp e reuniões on-line, esse novo formato nos apresentou também novos desafios, como o acesso à internet, contudo, seguimos insistentes, aprendemos novas formas de construirmos juntos e seguimos nos desafiando. Nessa caminhada, a luta pela reparação justa tem se revelado árdua, mas cada vitória nos dá a certeza do poder da organização popular. E, por isso, celebramos a chegada de um outro ano em que, juntos, seguiremos em luta, dando continuidade à construção de um projeto que acreditamos e no qual cada atingido e atingida de Barra Longa desempenha um papel fundamental na nossa luta: caminhamos e crescemos juntos. Esperamos que 2021 seja regado de conquistas, avanços, muita luta, organização popular, e que haja menos retrocessos. Que neste novo ano nos mantenhamos unidos e não percamos a esperança e a fé. Que nos apeguemos somente àquilo que nos trouxe sorrisos e aprendizados ao longo desse difícil ano. Que 2020 leve embora consigo as injustiças, a ambição e a ganância. Que 2021 nos fortaleça como grupo, como povo que carrega consigo o potencial de transformação dessa sociedade e de enfrentamento das injustiças. E lembrem-se sempre: “Companheiro/a me ajude, que eu não posso andar só. / Eu sozinho/a ando bem, mas com você ando melhor!” (Trecho da ciranda feminista, cantiga popular [adaptado]). Que venha um bom ano para todos nós, em que seguiremos juntos! Nosso fraterno abraço, Equipe de Assessoria Técnica AEDAS - Barra Longa
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EDITORIAL O ano de 2021 chegou e trouxe para mais perto o prazo de entrega do reassentamento de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo: 27 de fevereiro. Apesar disso, uma série de dúvidas e receios surgem em relação ao cumprimento do acordo. No dia 4 de dezembro de 2020, a juíza Marcela Decat esteve nas obras do novo Bento Rodrigues, a convite da Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton do Brasil. A visita também contou com a presença da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), da Assessoria Técnica Cáritas e do promotor Guilherme Meneghin. Os(As) atingidos(as) puderam expor para a juíza seus anseios e suas críticas em relação ao andamento das construções e esperam que esses apontamentos sejam levados em consideração nas próximas audiências. O encontro não garante a agilidade nas obras ou o cumprimento da data, mas permitiu que os(as) atingidos(as) mostrassem suas perspectivas sobre o processo. Muitas dúvidas e críticas ainda resistem. No entanto, foi possível mostrar que, para além de moradias, o reassentamento envolve as histórias das comunidades. A frieza exigida nas audiências torna difícil alcançar essa sensibilidade. São histórias como a de Cleinice Rezende de Sá, contada nesta edição, que se mudou para Bento e foi abraçada pela comunidade, mas que, após o rompimento, retornou para a capital. Nessa edição, falamos de como, após o 5 de novembro de 2015, o transporte público das comunidades rurais atingidas piorou. A locomoção, que deveria ser tratada como um direito, fica nas mãos dos interesses privados de empresas. Mostramos também como pessoas que não são atingidas tiveram suas vidas afetadas pelo crime. É o caso de José João Borges, que passou a trabalhar para uma terceirizada da Samarco, após o rompimento da barragem. A empresa parou de prestar serviço para a mineradora e deixou José sem receber o que deveria. São inúmeros os problemas causados pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton do Brasil. Problemas que vêm se agravando com o tempo, quando deveria ser o contrário. Que, neste ano de 2021, a força das comunidades atingidas seja multiplicada e que as pessoas atingidas possam, enfim, vislumbrar um futuro possível, no qual a justiça será feita e as famílias serão reassentadas e respeitadas em seu mais profundo trauma causado pelo crime do rompimento da barragem de Fundão.