A Sirene - Ed. 35 (Fevereiro/2019)

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Edição especial 3 anos PARA NÃO ESQUECER | Ano 4 - Edição nº 35 - Fevereiro de 2019 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Repasses VISITA À AREAL O editor chefe do A SIRENE, Sérgio Papagaio, esteve em Areal-ES para entregar aos(às) atingidos(as) capixabas a 34ª edição do jornal, que publicou matérias relacionadas ao Encontro Ancestral, realizado naquela comunidade, em novembro de 2018, por iniciativa do Movimento Regenera Rio Doce, da Aliança Rio Doce e da Comunidade Indígena de Areal. O material publicado é resultado da apuração e da vivência dos repórteres e de colaboradores do Jornal A SIRENE que participaram do evento e representam o compromisso com o direito à comunicação no contexto do rompimento da Barragem de Fundão, além de tecer mais um ponto entre as realidades de Mariana, Barra Longa, Rio Doce e da foz. A entrega estava prevista para acontecer em um singelo almoço na comunidade, promovido pelo editor-chefe, em nome do A SIRENE, mas acabou acontecendo em meio a uma manifestação, na qual os indígenas da tribo dos botocudos, da comunidade de Areal, reivindicavam seus direitos negados pela Petrobras, que extrai petróleo naquelas terras há mais de três décadas.

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

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NOTA DE SOLIDARIEDADE AOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM DE BRUMADINHO A Arquidiocese de Mariana, chocada com a notícia do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Vale S.A, no Córrego do Feijão, município de Brumadinho-MG, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, vem manifestar seu apoio e solidariedade às vítimas dessa tragédia absurda, aos seus familiares e, especialmente, aos que choram a morte dos que foram tragados pela lama. Asseguramos a todos nossa fervorosa oração, implorando ao Deus de toda consolação e esperança, a força que faz suportar a dor e acreditar na vitória da vida plena e da justiça nesta terra. Vivemos esse mesmo drama de dor, desolação e indignação há três anos, em Mariana, com o rompimento da barragem de Fundão, das mineradoras Vale/BHP Billiton/Samarco, em 5 de novembro de 2015. Lamentamos profundamente que o maior crime socioambiental do país, ocorrido em Mariana, não tenha sido suficiente para evitar a repetição de cenas a que, atônitos, o Brasil e o mundo assistem novamente, desta vez, vindas de Brumadinho. A vida e a dignidade humana não têm preço. É pecado que clama aos céus negligenciá-las sob qualquer pretexto e, mais ainda, submetê-las aos ditames de um sistema que as sacrifica em favor do lu-

Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene

cro. Apelamos às autoridades competentes que não se furtem de sua responsabilidade de rever a atividade mineradora no País, marcadamente predatória e inconsequente com a vida humana. A dor e o sofrimento dos(as) atingidos (as) pela barragem de Brumadinho exigem que a justiça se faça de forma rápida e inequívoca. Para tanto, esperam-se das autoridades competentes ações que não deixem dúvida de que estejam do lado dos(as) atingidos(as). Que as causas dessa tragédia sejam apuradas e os responsáveis exemplarmente punidos, mas que, acima de tudo, se tomem medidas que assegurem o fim de novas tragédias como as de Mariana e Brumadinho. A fé seja nossa força para que, unidos às famílias e comunidades atingidas por essa catástrofe, trilhemos o caminho da justiça. Dom Airton José dos Santos NOTA Por meio desta nota pública, o Jornal A SIRENE se solidariza com os moradores e os funcionários atingidos pelo rompimento da barragem na Mina Feijão, localizada em Brumadinho, Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Prestamos nosso apoio às pessoas atingidas e focamos total atenção ao que pode, a princípio, ser classificado como mais um desastre socioambiental provocado pela mineração em nossa região. O Jornal A SIRENE, criado pelos(as) próprios atingidos(as) do rompimento da Barragem de Fundão, crime ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana, reforça seu repúdio em relação à falta de ações efetivas voltadas à segurança dos trabalhadores e das comunidades vizinhas, por parte das empresas mineradoras.

EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Rafael Pereira Francisco | Editora de Texto: Francielle de Souza | Editora Audiovisual: Larissa Pinto | Editora Visual: Daniela Ebner | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Pedro Lefèvre| Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Pedro Lefèvre| Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Direito de entender

Nota de pesar O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por intermédio da 1ª Promotoria de Justiça de Mariana, se solidariza com as vítimas do crime/desastre da barragem da Vale, no Córrego do Feijão, em Brumadinho-MG, ocorrido FOTO: MATHEUS EFFGEN no dia 25 de janeiro de 2019, com estimativa de centenas de mortes e enorme destruição ambiental. Por essa razão, a coluna “Direito de Entender” será substituída por essa breve nota em que, seguramente, afirmamos: 1º) As barragens de rejeito de minério, construídas mediante “alteamento a montante”, constituem tecnologias baratas, arriscadas e ultrapassadas; 2º) O MPMG, os(as) atingidos(as) e diversas organizações da sociedade civil alertaram o Poder Público sobre a iminência de novos desastres se essas barragens não fossem proibidas. Infelizmente, os gritos das vítimas de Mariana foram ignorados; 3º) A responsabilidade pelo crime/ desastre de Brumadinho é da Vale, de seus representantes e dos legisladores que não votaram vários projetos de lei que poderiam evitar mais esse crime/desastre; 4º) Repassaremos aos(às) atingidos(as) de Brumadinho todas as experiências adotadas pelo MPMG que tiveram êxito e foram conquistadas com a participação efetiva dos(as) atingidos(as) e da assessoria técnica da Cáritas, para que eles(as) possam ter uma justa reparação e não tenham que enfrentar todas as nossas batalhas; 5º) Cobraremos, com mais ênfase, alterações legislativas para garantir mais segurança nas barragens e regras especiais de reparação dos direitos de vítimas desses eventos. Com pesar, Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça de Mariana Foto: Matheus Effgen


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Quem foi sua sirene?

Na edição número zero do Jornal A SIRENE, publicamos a matéria “Quem foi sua sirene?” para contar como os(as) moradores(as) de Bento Rodrigues souberam do rompimento da Barragem de Fundão e salvaram suas vidas. Pouco mais de três anos depois, a barragem da Vale, no Corrégo do Feijão, se rompeu em Brumadinho e ceifou mais vidas. Mais uma vez, a negligência de não soar um equipamento de alerta se repetiu e alguns dos(as) moradores(as) de Córrego do Feijão nos contaram como tiveram suas vidas poupadas graças a outras ajudas.

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Por Itamar Ferreira, Joana Darc Pinto e Wilson Junior Com o apoio de Mateus Effgen, Sérgio Papagaio e Silmara Filgueiras

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Eu trabalho numa terceirizada da Vale, fazendo limpeza. Tenho o costume de almoçar mais tarde, por volta das 12 horas. Só que, no dia em que a barragem rompeu, eu fui almoçar mais cedo, umas 11 horas, porque tinha esquecido minha garrafa de água e estava com sede. Minha sirene foi Deus. Ele é muito bom, me livrou da morte. Itamar Ferreira, morador de Córrego do Feijão

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Minha filha estava em casa, cuidando do filho de seis meses, e me ligou para ir ficar um pouco com ele. Enquanto ela esperava, a luz de casa acabou. Ela pensou que fosse o padrão de luz que tinha dado problema, pois já aconteceu isso uma vez. Quando olhou pela janela, viu a lama chegando. Pegou o filho e pulou a varanda com ele no braço. Chamou o vizinho e pediu minha ajuda. A nossa sirene foi Deus. Joana Darc Pinto, moradora do Córrego do Feijão

Era horário de almoço, né?! Na hora, eu estava em casa, almoçando. A minha sirene foi uma mulher que saiu pela rua gritando que a barragem tinha estourado. Wilson Junior, morador de Córrego do Feijão


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ombudsman

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As sirenes nunca tocam; A SIRENE ainda ecoa Por Karina Gomes Barbosa*

Havia um texto pronto para este espaço. E então houve 25 de janeiro de 2019. Tal qual em 5 de novembro de 2015, a tragédia nos desnorteia, demonstra como são profundas as veias corporativas, negligentes, corruptas, criminosas que regem o Brasil. No noticiário, enquanto o jornalismo tenta, cambaleante, dar conta do rompimento da Barragem do Feijão, da Vale, em Brumadinho, dois tempos se articulam: os fragmentos noticiosos de lama, rios marrons, pessoas resgatadas, isolamento, causas de um presente ainda não explicado e compreendido; e aquele acontecimento consolidado, relembrado, dissecado, de um passado que, visto de fora, parece ser apenas pretérito. A história se repete como crime nas minas cada vez mais instáveis das Geraes e, atônita diante das imagens, me pergunto: o que pode o jornalismo? Por que, com nossas vozes, penas (teclados), gravadores, estilos, técnicas, câmeras, correspondentes, manchetes e redes sociais, somos incapazes de mudar o mundo? Onde ecoam nossas denúncias? Como esses crimes socioambientais se repetem em tão pouco tempo, diante de nossos olhos? Quem nos escuta? Quem quer nos escutar? A lama de Brumadinho carrega, além de destruição, a impotência de um jornalismo que parece gritar as mazelas do país a ninguém - ou não as grita alto o suficiente. Três anos depois, por que as sirenes, de novo, não soaram? É uma coincidência das mais tristes que o Jornal A SIRENE complete agora três anos. Foi criado para bradar o som que faltou a Bento Rodrigues quando a lama da Samarco destruiu a comunidade - e faltou, também, a Brumadinho. Frente a minha desesperança sobre a potência do suposto quarto poder do jornalismo, A SIRENE talvez ofereça alguma resposta. Nesse déjà vu, o crime da Samarco, Vale e BHP Billiton é evocado pela mídia, e parece retomar importância digna de nota. Essa visão de notícia casa com uma cena em que um pesquisador justificou para mim o sumiço do rompimento da Barragem do Fundão do noticiário nacional: “Não aconteceu mais nada por agora”. Olhei-o perplexa. A cada dia, minuto, segundo, desde 5 de novembro de 2015, pequenas e grandes tragédias, dramas familiares, derrotas, conquistas, revezes, aconteceram e continuam acontecendo às pessoas atingidas ao longo da bacia do Rio Doce. Se essas dores não saem no jornal - no deles -, têm saído no nosso jornal - digo nosso pois, de alguma maneira, pertenço ao jornal e ele me pertence, como moradora de Mariana. Desde fevereiro de 2016, a cada dia 5, as páginas d’A SIRENE ecoam, como jornalismo, a urgência que nunca tocou quando a lama chegou. Esse jornal vem

buscando redefinir noções de acontecimento jornalístico, obrigando agentes públicos, corporações, sistema judiciário e, eventualmente, a chamada grande mídia, a readequar suas lentes, a repensar os critérios para escolher o que é ou não notícia - o que “aconteceu” ou não. Aconteceu, e acontece todo dia, para os atingidos e as atingidas. Quando um rompimento acaba? O mais singular na história do jornal é que, ao longo desse tempo, esses acontecimentos invisíveis para muita gente, mas de importância capital para essas comunidades, têm sido contados por elas mesmas. Ao proporcionar o controle parcial desses sujeitos sobre a narração de suas histórias de vida, A SIRENE prova que a educação midiática é uma ferramenta de empoderamento contemporâneo primordial, ainda mais em catástrofes que geram traumas coletivos e demandas comunitárias. Falar o que o jornalismo comercial inúmeras vezes não quer ouvir é necessário e pode ser libertador. A metodologia de produção conjunta entre atingidos(as) e jornalistas não está isenta de tensões e, ao longo desse tempo, eventualmente houve desequilíbrios. Algumas vezes era difícil perceber a voz da comunidade nos textos; em outros momentos essa mediação fundamental faltou. A tensão entre demandas sociais e fundamentos jornalísticos também se expressa nos processos produtivos: o que entra na edição, como entra. Quem fala, quem silencia. Quem são os e as atingidas que ocupam A SIRENE e quem representam. Essas questões não precisam ser resolvidas - não deve haver solução. Precisam ser administradas e lembradas a todo tempo. O trabalho imagético do jornal reforça a capacidade da linguagem visual de traduzir o trauma; aqui, há uma presença mais incisiva dos e das jornalistas, que impacta pela qualidade e pela força informativa. Em um cenário de incertezas, A SIRENE representa a resistência das comunidades em não se deixarem ser esquecidas; em não permitir o esquecimento do rompimento da Barragem de Fundão. Faz isso com uma interpenetração primorosa entre jornalismo, universidade e comunidade. Talvez pareça, em momentos de desesperança, que o jornalismo pode pouco. Vai ver não podemos, mesmo, mudar o mundo. Mas, creio, podemos mover as pessoas. Ao dar a atingidos e atingidas controle sobre o que querem dizer e como será dito, A SIRENE nos força a repensar noções de jornalismo e a posição de jornalista quando somos mais necessários quanto deslegitimados. A repetição da tragédia é mais uma prova da urgência dessa voz que teima em circular em nossas comunidades.

* Professora de Jornalismo da UFOP, coordenadora do projeto de extensão Sujeitos de suas histórias. **Ombudsman é uma coluna escrita por um convidado(a) da área de jornalismo e externo à equipe do veículo de comunicação. Nela, o(a) autor(a) analisa o papel do jornal e as técnicas utilizadas por ele, destacando tanto pontos positivos quanto negativos.


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Fruto do nosso trabalho

Os primeiros dossiês do processo de cadastramento dos(as) atingidos(as) de Mariana começaram a ser entregues na segunda quinzena de janeiro. Construído de forma coletiva, o documento lista os danos e perdas sofridos em consequência do rompimento da Barragem de Fundão. Agora, a reunião dessas informações será a base da próxima etapa pela qual os(as) atingidos(as) deverão passar nos próximos meses: a negociação das indenizações. Por Maria D’Angelo e Tomé Anatalino Com o apoio da Assessoria Técnica Cáritas e de Francielle de Souza

O cadastro aplicado pela assessoria e construído com a participação dos(as) atingidos(as) tem quatro instrumentos: formulário sobre perdas e danos, cartografia familiar, vistoria no terreno atingido e tomada de termo (entrevista) sobre danos morais. Um ano depois do início do processo, os(as) atingidos(as) que já passaram pelas quatro etapas começaram a receber os dossiês. Cada fase gerou documentos, como mapas e relatórios, que deverão ser considerados no momento em que será feita a proposta de indenização. Após essas quatros etapas, os instrumentos são compilados e apresentados em um relatório final. Esse relatório é a quinta etapa. Ele sistematiza e organiza os danos levantados ao longo do processo, numa perspectiva em que os(as) atingidos(as) entendam o que é dano naquilo que eles declararam. O dossiê que os(as) atingidos(as) vão receber é o resultado de todo esse processo, que são os produtos das quatro etapas mais o relatório final. Ana Paula Alves, assessora técnica da Cáritas Esse cadastro é uma conquista para nós, porque o formulário que a Renova apresentou não era condizente com o atingido da nossa região. Ao responder o primeiro questionário deles, a gente estaria construindo provas contra a gente mesmo. As perguntas deles eram muito mal elaboradas. Então, foi uma luta para gente reelaborar esse cadastro. Tivemos que trabalhar por seis meses para tirar as coisas ruins e implantar coisas da nossa realidade. Agora, eu estou ansiosa para receber o dossiê e, ao mesmo tempo, com medo do que pode vir na negociação. A luta não acabou. Maria D’Angelo, moradora de Paracatu de Cima É óbvio que nenhum instrumento será capaz de levantar tudo, nem uma pessoa, ainda que seja dada a ela todas as condições, vai conseguir lembrar de tudo, porque é muita história. Ainda que todo instrumento tenha seus limites e que não seja possível reconstituir a vida das pessoas em um papel, criar formas e mecanismos para isso foi essencial. A própria complexidade dos casos fez com que fossemos aprimorando os produtos e que o cadastro durasse um ano. Então, o que fica, para nós, é que esse cadastro foi construído coletivamente, com a participação dos atingidos, com o olhar deles, com aquilo que eles queriam que fosse levantado. Ana Paula Alves, assessora técnica da Cáritas Agora que as negociações estão se aproximando, eu espero que corra tudo bem. A Cáritas vai fornecer advogados para ajudar a gente a negociar, não vamos fazer isso sozinhos. Então, eu acho que, nessa fase, não pode jogar tudo a perder. Foi um processo de muita batalha e, com fé, garra e determinação, vai chegar o momento de ter de volta as nossas coisas. O que não pode perder é a esperança e a fé que nos move. Tomé Anatalino, morador de Ponte do Gama As entregas dos dossiês vão acontecer na medida em que os produtos ficarem prontos, já que nem todos os(as) atingidos(as) finalizaram o cadastro ainda. No momento certo, a Cáritas vai acioná-los para fazer a entrega e, a cada remessa, haverá uma parcela de idosos a serem priorizados para receber o documento.

Foto: Francielle de Souza

O núcleo familiar do senhor Durvalino foi o primeiro a receber o dossiê.

Próximos passos Após a entrega do dossiê, o(a) atingido(a) estará apto para realizar a negociação da indenização com a Fundação Renova/empresas e pode autorizar, quando quiser, o envio do documento para a fundação. A partir da data do recebimento, a Renova tem o prazo de até 90 dias para oferecer uma proposta de indenização, que poderá ser aceita ou não pelo(a) morador(a). Caso aceite, o(a) atingido(a) terá 10 dias para se arrepender. Já o que não for aceito durante a negociação poderá ser acionado na Justiça em outro momento (fase de execução). O centro de atendimento do Fórum estará disponível para mediar as divergências. Se, ainda assim, não houver acordo, a juíza decidirá o valor a ser pago. Porém, a Cáritas esclarece que o dossiê é apenas um dos quatro elementos necessários para garantir uma reparação justa. Por isso, mesmo que a pessoa atingida tenha a liberdade de iniciar a negociação a qualquer tempo, a assessoria recomenda que: • O(A) atingido(a) não negocie sem ter a Matriz de Danos em mãos Ainda em construção, a Matriz de Danos é o instrumento que ajudará a definir os valores para as perdas e danos. É a partir dela que o valor da indenização será atribuído, levando em consideração as informações declaradas pelo(a) atingido(a) no cadastro. Sem ela, o(a) atingido(a) perde a oportunidade de contestar a proposta da Renova/ empresas, que pode não condizer com o que o(a) morador(a) entende como digno de reparação. • O(A) atingido(a) aguarde as diretrizes de reparação As diretrizes de reparação serão construídas de modo coletivo e irão nortear o processo indenizatório. Elas servirão para tratar, por exemplo, de como indenizar aquilo que é geral e o que é específico. • O(A) atingido(a) aguarde a disponibilização dos advogados pela Cáritas Os profissionais não poderão advogar. Eles apenas terão a função de assessorar os(as) atingidos(as), de forma extrajudicial, na fase de negociação, para garantir que a proposta da Renova/empresas seja benéfica para os(as) moradores(as). Esses profissionais estarão cientes da situação do(a) atingido(a), já que são eles quem sistematizam os relatórios finais do cadastro. A previsão é de que os assessores sejam disponibilizados a partir de abril de 2019.


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Foto: Lucas de Godoy

Papo de cumadres: três anos do Jornal A SIRENE Consebida e Clemilda olham, com alegria, os três anos do Jornal A Sirene, mas estão apreensivas com a possibilidade de o jornal não continuar sendo editado, por falta de verba. Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda, eu tô muito feliz e ao mesmo tempo com tristeza. - Me fale com mais clareza, pamode eu ter ceuteza se nois duas neste momentu partia du mesmu sufrimentu. - Então cumadre, põe sintido se nun é muito alegre e muito sufridu, são três anus que u jorná A Sirene ta sendu imprimidu, levanu nuticia prus atingidu sendu o gritu dos oprimidu e saber que agora pode acabar porque num tem mais dinheiru pras dipesa du jorná podê pagar. - Então cumade eu vô falá, dá uma aligria batuta, e uma vontade de chorá, aligria de vê em riba da mesa a minha coleção de jorná, mesmu com poca leitura eu consigu entender u jeito dês iscrevê i consigo podê lê, tristeza de saber que a Renouva goza de 39 milhão pamode fazê contra u atingidu a tar comunicação, e nois num tem mais nem um vintém pra comunicação fazê também. - É istu que me perculpa ês vai podê falar u que quiser du atingidu, e nos vai tê que nus defendê com a cunversa nu pé du ouvidu. *A pedido do autor, este texto não passou por revisão ou edição.


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Para não esquecer Nesta edição comemorativa de três anos do Jornal A SIRENE, trazemos a história deste veículo de comunicação e propomos uma reflexão sobre o papel do jornalismo na preservação da memória, da cultura e da identidade de comunidades atingidas. Após 36 meses de trabalho, chegamos à 35ª edição com a sensação de que estamos do lado certo, mas sabemos que a luta não acaba por aqui. Enquanto houver o que reparar, haverá também o que registrar e/ou denunciar. Por isso, nesta reportagem especial, revisitamos o nosso modelo de comunicação para recordar o que nos trouxe até aqui e refletir sobre qual legado podemos deixar para a luta de atingidos(as) por barragens no Brasil.

Por Amanda Gonçalves, Gustavo Nolasco, Lia Timson e Sérgio Papagaio Com o apoio de Silmara Filgueiras e Wandeir Campos

O Jornal A SIRENE Em fevereiro de 2016, o Jornal A SIRENE nasceu com uma proposta diferente dos tradicionais veículos de comunicação. A construção desse novo “fazer jornalístico” surgiu da necessidade de representatividade que os(as) atingidos(as) não encontraram em grande parte da imprensa que noticiou/noticia o crime de Fundão. Desde então, a proposta trazida pelo jornal é de que ele seja feito para os(as) atingidos(as), com eles(as) e distante de qualquer outro tipo de interesse que se oponha ao deles(as). Essa proposta que sustentamos há três anos traz marcas de um jornalismo comunitário, ou seja, que reflete marcas da identidade das comunidades e que possui interesses em comum na luta pela reparação justa, além de ser um instrumento de preservação da memória material e imaterial das pessoas que tiveram suas vidas atingidas pela Barragem de Fundão. As reportagens “Nossas histórias debaixo dos pés de frutas”, “O céu de Paracatu”, “Nossa memória, nosso patrimônio”, “O laudo de Sofya” e “O que esconderam de nós” revelam nosso empenho em registrar e preservar a cultura das comunidades atingidas sem deixar de, ao mesmo tempo, denunciar as doenças causadas pela lama e a construção de mais barragens pelas empresas sem consultar os moradores. Para abordar essas e tantas outras narrativas, recorremos ao jornalismo que brota das comunidades, que é escrito por elas e a elas retorna. Sempre contadas em primeira pessoa,

as histórias que estampam as páginas deste veículo são, portanto, uma das formas que encontramos de lutar por justiça e mostrar que as pessoas atingidas pelo crime têm nomes, rostos, costumes e saberes. Ao dar lugar a essas histórias é que se torna possível assegurar o direito à comunicação em um contexto de poder tão desigual como este. Ainda que o jornal seja um projeto limitado - em comparação com a estrutura de comunicação da Fundação Renova/ empresas - alcançamos, ao longo desse tempo, com muito esforço e vontade, a cobertura de três cidades atingidas: Mariana, Barra Longa e Rio Doce. A partir de 2017 e especialmente em 2018, expandimos também o nosso contato com os(as) atingidos(as) capixabas, o que resultou em algumas publicações sobre as consequências do crime no Espírito Santo. Esse é mais um fruto do jornalismo comunitário que aprendemos a fazer: entender que a luta não deve ter fronteiras se as injustiças também não têm. Ao ouvir nossos(as) colaboradores(as), a certeza que fica é a de que aprendemos a pensar e a realizar um jornalismo diferente, sem abrir mão da ética e da qualidade profissional; um jornalismo que busca transformar aquele modelo tradicional que vimos cobrir e pautar essa tragédia/crime; usamos uma comunicação que, ao mesmo tempo, ensina e ouve aqueles(as) que são a razão da existência e resistência deste veículo; uma comunicação que, sobretudo, não esquece e não deixa que esqueçam o crime que alterou vidas, cotidianos, rios, mares e um país inteiro.


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Além de “Para não esquecer” Eu vejo o Jornal A SIRENE com uma importância muito grande a favor dos(as) atingidos(as). As grandes mídias, hoje, não são fiéis às nossas falas, na íntegra. Quando o(a) atingido(a) é entrevistado(a), a sua fala não é publicada totalmente. Essas mídias têm dado muito mais ênfase para a Samarco, que é a causadora do crime, do que para os(as) atingidos(as). O Jornal A SIRENE tem a vantagem de ir até o(a) atingido(a), de fazer a comunicação e trazer a informação, diferentemente das outras mídias, que apenas trazem informações, muitas vezes distorcidas. Ele comunica de igual para igual com o(a) atingido(a) porque as pessoas que o produzem, produzem de acordo com a realidade dessas pessoas. Nós vamos dentro das casas dos(as) atingidos(as) e participamos, vivemos e sofremos com eles, transformando tudo isso em informação. Hoje, ocupo o cargo de editor-chefe do jornal e, para mim, é muito importante ocupar esse lugar. Eu sou atingido e consigo enxergar que o jornal me protege e protege a todos(as) atingidos(as). Posso dizer que esse veículo de comunicação é também atingido, porque ele está no dia a dia dessas pessoas e toda a equipe de produção absorve as nossas tristezas, carregando isso pra dentro de si, mas, ao mesmo tempo, fazendo com que isso tudo seja amadurecido de forma a produzir um jornal diferente. O Jornal A SIRENE é o grito dos(as) atingidos(as) contra as negativas de direito da Fundação Renova/Samarco. Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa e editor-chefe do jornal

A sensibilidade com as manifestações da experiência humana e o trabalho sério e politicamente engajado são eixos norteadores da SIRENE, que, de prontidão e com muito carinho, acolheu a mim e à pesquisa que venho construindo em conjunto com pessoas que tiveram suas vidas abruptamente interrompidas pelo maior crime envolvendo a mineração no Brasil. Conhecer a versão on-line, depois o jornal impresso e acompanhar um pouco dos bastidores da produção não só direcionam a pesquisa, mas desafiam e me transformam como sujeito no mundo - marca de um jornal dos(as) atingidos(as) e para os(as) atingidos(as). Amanda Gonçalves, pesquisadora e mestranda em Antropologia pela Universidade Federal de Viçosa

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Vejo a SIRENE como a voz dos(as) atingidos(as), uma publicação com um objetivo muito nobre e forte, que é dar visibilidade às histórias humanas de sofrimento da tragédia/crime. É diferente do jornalismo tradicional, que visa a cobertura imparcial de eventos e procura expor todos os lados das questões independentemente. A SIRENE (prefiro chamá-la assim, em vez de “o jornal”, pois, para mim, tem personalidade própria - um tom feminino, de carinho e cuidado), eu presumo, tem como objetivo realmente aumentar o volume da voz daqueles que não poderiam ou saberiam se expressar de maneira eficaz para alcançar justiça. É nisso também que se diferencia dos demais jornais. Fora isso, a SIRENE me impressionou no conjunto de sua capacidade profissional: jornalistas que, embora jovens e recentemente treinados, possuem grande talento e a garra necessária para expor histórias importantes de maneira sensível, sem sensacionalismo, bem escritas e otimamente produzidas. A qualidade do jornal - do tom ao layout - deixa muita publicação maior pra trás. Lia Timson, correspondente e editora de notícias internacionais dos jornais australianos The Age e Sydney Morning Herald

O Jornal A SIRENE surgiu como um instrumento de comunicação revolucionário do ponto de vista de tentar fugir do (e, ao mesmo tempo, enfrentar o) modus operandi de agentes com alto poder econômico e político quanto ao uso da comunicação em situações extremas, como, por exemplo, o rompimento de uma barragem de rejeitos que, no primeiro dia, matou 19 pessoas e arrasou todo um território. A forma como se tornou fundamental ferramenta de documentar violações e, ao mesmo tempo, de escutar os atores mais vulneráveis, os(as) atingidos(as) da tragédia e da agora disputa judicial, fez dele um agente de extrema importância no campo de defesa dos direitos humanos. Passados três anos, a guerra midiática e judicial anunciada no momento da criação do jornal se confirmou. Armas deploráveis, como chantagens contra o poder público e ações de mídia sem transparência, vão rompendo como um rio de lama, levando recursos e dignidade que deveriam estar a serviço da reparação de direitos, do meio ambiente e de indenizações inquestionáveis. Três anos depois e com o “rei renovado e nu”, o Jornal A SIRENE se mantém de pé ao lado dos(as) atingidos(as), sejam eles(as) os(as) de carne, osso, água, mata ou memórias. Gustavo Nolasco, jornalista coordenador de comunicação do Lei.A e um dos fundadores do Jornal A SIRENE


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Entre a memória e a resistência

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Fotografar é, quase sempre, um ato impulsionado por um desejo de memória, um desejo de guardar o instante e de poder revisitá-lo em qualquer época. Ao longo da história do Jornal A SIRENE, muitas capas registraram os momentos marcantes da trajetória vivida pelos(as) atingidos(as) após o rompimento da Barragem de Fundão. Hoje, elas são mais do que apenas registros: servem também como lembretes de resistência à passagem do tempo em uma cidade tomada pela urgência do cotidiano, mas sempre à sombra de um crime ainda mal resolvido. Por Luzia Queiroz e Mônica Santos Com o apoio de Pedro Lefèvre e Wandeir Campos


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Depois de um tempo todas as coisas ficam marcadas como se estivessem impregnadas de veneno Há um tempo em que os lugares são limpos e novos abertos como clareiras mas já não é este o tempo Sobre cada lugar se sobrepõe a experiência do lugar como um selo num cartão-postal [...] Trecho do poema “Três Postais [São Paulo]”, de Ana Martins Marques.

Fotos: Pedro

Lefèvre


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Fevereiro de 2019 Mariana - MG

Antes não tinha isso

Após o rompimento da barragem, veículos pesados passaram a circular no distrito de Santana do Deserto, em Rio Doce, para atuar nas obras de contenção de rejeitos no rio realizadas pela Fundação Renova/empresas. Além de alterar a paisagem do local e a rotina dos(as) atingidos(as), as máquinas têm contribuído também para o surgimento e/ou aumento de rachaduras nas casas antigas da comunidade. Após denúncias feitas à Defesa Civil, os técnicos enviados pela Fundação Renova/empresas visitaram os seis imóveis que tiveram a estrutura comprometida por causa do trânsito intenso. Até o fechamento desta edição, os(as) moradores(as) ainda não tinham tido acesso ao laudo e não sabiam como os problemas seriam resolvidos. Enquanto isso, eles (as) continuam nas casas, mesmo com riscos. Por Clara Alves Pereira Ribeiro, Janaína Barbosa Salustino, Geraldo Magela Silva, Geraldo Marcelino Miranda, Raimunda de Brito Pena e William Pinto Gonçalves Com o apoio de Daniela Ebner, Matheus Effgen, Sérgio Papagaio Fotos: Daniela Ebner

Comprei essa casa e moro nela há 22 anos. Depois de algumas visitas da Defesa Civil, a Renova enviou um técnico aqui, que olhou e tirou algumas fotos das rachaduras, mas não disseram mais nada. Não sei se vão reformar. Agora, cada vez que o caminhão passa, vai rachando mais. Até o chão tá assim, e antes não tinha isso. Desde quando começou a passar caminhão aqui, a gente tenta falar com eles. De julho pra cá, começou a abrir mais. Tem seis casas assim. Raimunda de Brito Pena, moradora de Santana do Deserto

Eu moro aqui, na comunidade, desde que nasci. As rachaduras na parte nova da casa aumentaram depois de 2016, com os caminhões que começaram a passar aqui. Eu até cheguei a tapar as “gretas” que foram aparecendo, mas não adiantou muita coisa. A coisa está feia: rachou a cerâmica toda e até o porão, que é novo. Aqui, os técnicos da Renova também vieram e tiraram umas fotos, mas não disseram nada sobre a reforma. Eles falam que nossas casas foram mal construídas. Geraldo Marcelino Miranda, morador de Santana do Deserto


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APARASIRENE NÃO ESQUECER

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Depois que a lama desceu, as trincas aumentaram. Começou a passar máquina pesada, trator e esteira. A casa foi construída em 1987 e, em 2004, reformei ela todinha. A cada dia que passa, as rachaduras só aumentam. Tentei passar uma massa pra arrumar, mas não adiantou nada. No começo do mês, a Renova contratou uns engenheiros pra olhar a casa, mas eles também não fazem nada. Eles têm que dar um jeito de tirar as pessoas da área de risco antes que aconteça o pior. Eu vou para onde? Eu não tenho outro lugar para morar. Geraldo Magela Silva, morador de Santana do Deserto

Quando começou a passar caminhão pesado, começou a rachar. Meu marido ficou com medo de cair e teve que fazer um pilar. Ele remenda, mas não adianta nada, racha tudo de novo. Veio um pessoal olhar, mas não falaram nada não. Meu marido mora aqui nesta casa desde que nasceu e eu vim morar aqui com ele, em 2017. Moramos com nosso filho, João Pedro, que está com 3 meses. Janaína Barbosa Salustino, moradora de Santana do Deserto

É um entra e sai de gente daqui, tira foto, mede, mas não resolveu nada pra ninguém. O teto do meu quarto caiu. Eu tinha saído do quarto cinco minutos antes. Por pouco, não caiu em mim. A Renova contratou uma firma pra fazer um laudo, disse que sairia em 10 dias. Essa semana fez 10 dias e ainda nada. Clara Alves Pereira Ribeiro, moradora de Santana do Deserto

Essa casa é de pau-a-pique e existe há 40 anos. Meus avós, que já morreram, moraram nela antes. Hoje, moramos eu, minha mãe, meu pai e meu irmão. No ano passado, o chão do banheiro afundou. Vieram um arquiteto e um engenheiro civil para fazer o laudo, mas ainda não deram retorno sobre quando ele fica pronto. William Pinto Gonçalves, morador de Santana do Deserto


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

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Fazer com as próprias mãos

Há mais de três anos, são recorrentes as situações em que a saúde da cidade de Barra Longa fica em segundo plano. Mesmo diante de uma forte mudança na rotina da população após o rompimento e que afeta diretamente a saúde dos(as) atingidos(as), não houve, nesse tempo, o que os moradores pudessem comemorar em relação a melhorias na área. Agora, com o evidente descaso da Fundação Renova/empresas, mais uma vez, o trabalho em conjunto fez a diferença: os(as) atingidos(as), com apoio da assessoria técnica, se uniram para elaborar um Plano de Ação em Saúde para Barra Longa.

Por Ana Clara Silva Martins, José Eduardo Filho, Renato Passos de Castro e Sandra Maria Com o apoio da Assessoria Técnica AEDAS, de Tainara Torres e de Simone Silva Fotos: Tainara Torres

Já era pra Renova ter feito algo pela saúde. Na UPA, tem os médicos de emergência, mas você vai pegar uma receita e não tem, quer passar no médico pra pegar um pedido de exame e não tem. Você tem que ir na policlínica. Renato, meu esposo, saiu cinco horas da manhã esses dias, porque eu tô passando mal com muita cólica e sangramento. Em dezembro, passei Natal e Ano Novo com muita cólica. Eu falei: “Renato, você vai ter que marcar médico pra mim, porque eu tenho que pegar exame pra fazer”. Ele saiu daqui às cinco e meia da manhã porque são 10 fichas no período da manhã, 10 à tarde e mais duas para demais emergências. Você chega lá e tem aquela fila de todo tamanho e depois, quando vai ver, são poucas fichas. Se acabam as fichas, eles não atendem mais ninguém. Aí eu pergunto: não precisa de um atendimento 24 horas? Para onde as pessoas vão? Pra Ponte Nova? Vão ser atendidas onde? Sandra Maria, moradora de Barra Longa Não tem um médico alergista em Barra Longa. Na cidade era pra ter um médico que cuida de pele, especialista. E, se perguntar pra Renova, eles falam que tem, tudo eles falam que tem aqui, mas eu nunca vejo. Pediatra, aqui, é uma vez por semana. Pra você passar uma criança de 0 a 1 ano no pediatra é a maior briga. A saúde de Barra Longa está sendo tratada como se não tivesse acontecido nada, como se a cidade estivesse normal, antes do rompimento. Na verdade, nunca teve um acompanhamento firme depois do crime. José Eduardo Filho, morador de Barra Longa

A casa de Renato e Sandra foi atingida e, por isso, a família já se mudou cinco vezes. "Isso é um desgaste muito grande".

A nossa rotina mudou completamente. A verdade é essa. Não temos condições de fazer o que fazíamos mais. Não pode, nem se quiser. Tomo remédio pra pressão alta, e, antes, eu não tomava nada. Quando eu fico nervoso, minha pressão sobe. Onde a gente morava era tranquilo, sossegado, tínhamos nossas coisas lá. Era bem melhor. Nós mudamos de vida, então, a saúde também muda, né? Às vezes, as pessoas pensam que a gente tá pedindo a mais do que tem direito. Mesmo que a gente receba o benefício, não adianta. Dinheiro não compra a saúde. Ela tem que estar em primeiro lugar. Renato Passos de Castro, morador de Barra Longa À tarde, quando chegava da escola, eu e meu pai sentávamos lá na beira do rio. Meu pai pescava e a gente ficava um tempão. Hoje, não tem isso mais, e me causa muita tristeza. Ana Clara Silva Martins, moradora de Barra Longa Faltam respostas. Você reclama de alguma coisa e a Fundação não tem respostas. Não existe uma pessoa responsável dentro da Renova que vem e diz o que está acontecendo em Barra Longa. Tudo aqui é através de luta, tem que brigar. Nós somos vítimas. Por que vítima tem que brigar? Eu tenho que provar que minha filha ficou doente

Antialérgicos e remédios para dor, depressão, gastrite, tratamento de pele e pressão alta são comuns na rotina da família de Sandra.


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Plano de Ação em Saúde de Barra Longa O plano tem como objetivo o desenvolvimento de ações que fortalecem o Sistema Único de Saúde de Barra Longa, desde a atenção básica, passando pela atenção especializada até a saúde mental do município. Ele é, teoricamente, uma forma de denúncia e de proposição. Denúncia porque demonstra tudo o que aconteceu na comunidade, o que se agravou, o que piorou após o rompimento. A população não sofria com tantos problemas de saúde como sofre agora e isso qualquer um que vier na cidade escuta de todos(as) os(as) atingidos(as). No plano também está o que a população atingida, com o apoio da assessoria técnica AEDAS e do poder público, propõe para a prevenção e promoção da saúde da população de Barra Longa. Ele mostra dados, tanto quantitativo quanto qualitativos. O que precisamos nessa cidade? Precisamos de uma equipe de saúde mental, reforçar a atenção básica do município; de uma vigilância em saúde melhor; de um sistema de informação que gere dados. Precisamos de especialistas como pneumologistas, cardiologistas que são especialidades cuja demanda tem aumentado muito. Se conseguimos organizar o sistema de saúde no município e a população fica bem assistida, os agravos tendem a diminuir. Aline Pacheco, assessora técnica da AEDAS Se não tivesse a união do povo na parte da saúde, se fosse pra esperar um respaldo da Renova, não teria acontecido nada. O povo teve que se unir para tentar criar esse plano de saúde. José Eduardo Filho, morador de Barra Longa José Filho ainda guarda os laudos dos exames que a filha precisou fazer depois que teve problemas de saúde devido ao rompimento.

por conta da Samarco? Tenho que provar que a minha filha precisa de médico? Eu tenho que provar que eu preciso de um psicólogo? Eu não tenho que provar nada não, gente. Ela [Fundação Renova] tem que trazer gente adequada, que pode olhar isso. Eles não querem admitir que eles são culpados, querem é provar que são inocentes. José Eduardo Filho, morador de Barra Longa Desde o rompimento da barragem, as conversas que a Renova tinha, quando tinha, eram sempre (e somente) com o poder público e nunca com os(as) atingidos(as), mesmo que, em relação à saúde de Barra Longa, os(as) atingidos(as) estejam organizados há muito tempo, desde o rompimento, justamente por entender que os problemas se agravaram a partir do desastre/crime. Aline Pacheco, assessora técnica da AEDAS Até então, a Renova não reconhecia como tinha atingido a saúde de Barra Longa. Isso foi uma luta grande. Minha filha, por exemplo, fez seis anos agora e, de 2015 até metade de 2016, foi muito sofrimento. Fiz vários pedidos — na época, era a Samarco — pra eles nos ajudarem, porque ela teve uma crise de tosse. Baixou a imunidade, atrasou o crescimento dela, eu creio. Temos os laudos dos exames que foram feitos em Ponte Nova e que nós tivemos que pagar. Na época, o médico me pediu pra mudar de Barra Longa. Como vou mudar se minha casa está aqui? Como vou pagar aluguel em outra cidade? Lutei pra ser ressarcido pela Samarco e ela dizia que não reconhecia a saúde como uma consequência do crime. Não sabemos se essa água é adequada para tomar. Até hoje, que eu saiba, não foi feita nenhuma análise nela, nenhuma análise no peixe que as pessoas pegam no rio pra comer. José Eduardo Filho, morador de Barra Longa Desde 2016, eu tô cada dia com um remédio, passando em psiquiatra, psicólogo. Vestia 42 e hoje visto 50. Passo mal de noite, com dor no braço, no pé. Vivo com o pé inchado. Tem dia que é assim, vou trabalhar passando mal. Eu sofro muito com isso também, porque eu tenho que ir trabalhar doente. Meu filho mais velho, o Arthur, de 14 anos, hoje, assim como eu, toma remédio pra depressão. Sandra Maria, moradora de Barra Longa

A gente tem que falar, porque tem gente que não fala. Eu tenho que falar pra mim e pra outras pessoas, porque tem gente que é tímida, tem gente que tem medo. A gente põe na mão de Deus e tem que lutar. Não podemos continuar omitindo as coisas aqui em Barra Longa. Sandra Maria, moradora de Barra Longa Dentre outros pontos, foram aprovados para o município, através do plano, mais uma equipe para a atenção básica, um núcleo de saúde mental com equipe própria, a intensificação da vigilância em saúde com o auxílio de mais profissionais, assistência farmacêutica e laboratorial. O plano prevê ainda um sistema de informação eficaz e a atualização da Relação Municipal de Medicamentos. Agora, a Renova deverá cumprir essas medidas, que foram deliberadas e aprovadas pelo Conselho Interfederativo (CIF). Algumas delas são consideradas de carácter imediato. Foi uma grande conquista, mas a gente teve que ouvir, por exemplo, que esse não era um processo legítimo. Que legítimo seria se tivesse sentado e conversado com a prefeitura, com a secretaria de saúde (a portas fechadas), deslegitimando esse processo democrático. Tivemos que dizer, mais uma vez, que processo legítimo era feito com o povo. O plano foi feito em conjunto, entendendo que os atingidos também são “técnicos” e eles têm esse entendimento porque eles vivem aqui, sentem na pele as consequências do rompimento da barragem. Existem questões alarmantes em relação à saúde em Barra Longa: uma população idosa muito adoecida, aumento considerável de certas doenças, muitas pessoas com problemas relacionados à saúde mental, uma automedicação muito grande. Então, o que a população fala é o que, de fato, os dados trazem. Tendo um SUS fortalecido no território, ações de prevenção e promoção à saúde, a gente consegue chegar ao objetivo que é uma população saudável. Queremos uma saúde da família fortalecida, conhecer como cada pessoa está. Assim, vamos poder ter uma prevenção muito melhor e, se tiver algum agravo, poderemos ter garantida a assistência em saúde, uma saúde que seja sempre pensada no seu sentido mais amplo, junto com a população, para que a cidade possa ter uma qualidade de vida melhor. Aline Pacheco, assessora técnica na AEDAS


EDITORIAL No dia 5 de fevereiro de 2016, o Jornal A SIRENE foi lançado na praça da Sé, em Mariana. Este veículo nasceu ali para relembrar e romper o silêncio que antecedeu o crime de Fundão. Hoje, soar a nossa sirene a cada mês é mais do que um protesto diante da negligência da mineradora Samarco em não possuir um alerta para as comunidades próximas às barragens. Soar a nossa sirene ultrapassa o sentido físico, porque é, também, sobre poder ecoar para o Brasil a experiência que estamos construindo aqui, na luta por uma reparação justa e integral. Agora, pouco antes de completarmos três anos de nossa primeira edição, a barragem da Vale se rompeu, no Córrego do Feijão, em Brumadinho, e deixou em evidência, mais uma vez, a falha que poderia ter poupado dezenas, mas, mais provavelmente, centenas de vidas. De 2015 para cá, muitas ações poderiam e deveriam ter sido tomadas para que novos crimes não acontecessem. Porém, a atuação irresponsável das empresas mineradoras não permitiu que nem mesmo o básico funcionasse: o alerta que não tocou em Bento Rodrigues permaneceu em silêncio em Brumadinho. Desde o crime de Fundão, nós, atingidos(as) e colaboradores do Jornal A SIRENE, temos nos manifestado em relação à ganância das empresas que mineram em nossa região, mas que pouco se preocupam com as consequências que a prática econômica tem causado. São danos que desrespeitam o meio ambiente, a vida humana e dos animais. Mesmo sabendo que perdas como as que sofremos são irreparáveis, estamos persistentes na busca por justiça e lutando para que todos os responsáveis sejam devidamente punidos. E agora, diante do rompimento em Brumadinho, nos questionamos: quantas vezes mais os crimes terão que se renovar para que alguma medida seja tomada? A infeliz coincidência entre o aniversário do nosso jornal e o rompimento da barragem em Brumadinho deixa uma lição: ainda há muito a ser feito. Os(As) atingidos(as) do Córrego do Feijão e da região, agora, se juntam a nós, seja pela dor, seja pelo desejo de justiça. Completar três anos de existência em meio a esse caos mostra a necessidade de permanecermos denunciando os rompimentos que nunca terminam e evidenciando aquilo que somente aqueles que tiveram as vidas alteradas de maneira forçada podem atestar, por meio de um jornalismo que só completa o seu sentido na construção coletiva e na vivência em comunidade. Para nós, a lição que fica é clara. Continuar a luta aqui é, também, abraçar Brumadinho. Denunciar o descaso das mineradoras e registrar a realidade que vivemos após o rompimento de Fundão é garantir que as autoridades não se esqueçam dos(as) atingidos(as). É ecoar as vozes de outras vítimas. E este é o nosso maior desejo: que tudo aquilo que temos pensado e construído possa ser espalhado para todos e todas que precisam. Somente assim, alardeando as nossas sirenes, é que poderemos, enfim, romper definitivamente os silêncios.


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