A Sirene - Ed. 34 (Janeiro/2019)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 3 - Edição nº 34 - Janeiro de 2019 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

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Informes APROVAÇÃO DO PROJETO DE LEI - REASSENTAMENTO FAMILIAR 13 de dezembro, Paracatu de Baixo Após uma série de discussões feitas durante os últimos meses, mais um Projeto de Lei sobre o Reassentamento Familiar de Paracatu de Baixo foi aprovado na Câmara Legislativa de Mariana. O documento estabelece regras para a construção das casas, dos prédios e das vias públicas no terreno escolhido pela comunidade (Lucila), de acordo com as diretrizes do município. O Projeto de Lei foi criado por não existir previsão legal no Plano Diretor para reassentamento. Desde o início, a Comissão dos(as) atingidos(as), os(as) moradores(as) atingidos(as), a prefeitura, a assessoria técnica Cáritas Brasileira, a equipe de reassentamento, com o apoio do Ministério Público, trabalharam em conjunto para a construção do documento. Esse é o segundo PL criado para assegurar as demandas da comunidade. O primeiro texto, também conhecido como PL1, permitiu que as características rurais de Paracatu fossem mantidas no reassentamento. O receio dos(as) atingidos(as) era de que o projeto entrasse na pauta da Câmara, para ser discutido, somente em 2019. No

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

entanto, o texto foi aprovado durante a reunião legislativa realizada no dia 13 de dezembro de 2018. Agora, o projeto segue para o poder executivo. Se aprovado, se tornará lei e passará a ter validade para o município de Mariana.

a implementação dos programas da Renova e fornecer suporte técnico e jurídico às comissões, além de observar os direitos fundamentais dos(as) atingidos(as). Atualmente, há 32 profissionais no corpo técnico, divididos em dois escritórios.

Luzia Queiroz: Nós fizemos um trabalho muito bom em conjunto. Refinou e atendeu a todas as possibilidades. Como a gente fala em Paracatu: não é nem um nem dois que fazem, somos todos nós. Então, com todo mundo ajudando e participando, deu esse resultado belíssimo. Precisamos agradecer também à Rosária, [atingida e integrante da comissão de Paracatu] pelos conhecimentos que ela possui na área jurídica. As pontuações dela foram fundamentais na criação da PL de Paracatu e nós, da comunidade, sentimos gratidão.

Domingos de Araújo Lima Neto, coordenador jurídico da assessoria: Temos problemas muito fortes, especialmente ambientais, que trazem muita angústia e inquietação para os(as) atingidos(as) e, aqui, os avanços da Renova são muito pequenos. É um cenário de três anos de poucas ações para apontar caminhos, apontar soluções e partir para um diálogo efetivo. Então, nosso objetivo é estar junto dos(as) atingidos(as) e somar forças.

ASSESSORIA TÉCNICA DE RIO DOCE

Após conquistar o direito de ter uma assessoria técnica de confiança, os(as) atingidos(as) de Rio Doce, agora, contam com o auxílio do Centro Popular Alternativo Rosa Fortini para ajudá-los no processo de reparação. A assessoria atua no território desde outubro de 2018 e, além de Rio Doce, cobre também as comunidades de Santa Cruz do Escalvado e de Chopotó. A função da equipe é monitorar Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene

Para reproduzir qualquer conteúdo deste jornal, entre em contato e faça uma solicitação.

O rio Do rio tenho a água Que irá me refrescar. Apenas não tenho tempo Para lá eu me mudar Seria bom, exímio trocar A poeira que levanta do chão Por gotículas a me embalar Não se vive só de rio... Ainda que seja DOCE Mas se morre por ele. Sem vida, sem onda Vimos apenas como quem sonda As mazelas humanas outra vez. E com tristeza, com certeza, Ver o rio, outrora triunfante Agora de leito cortante. Das águas impuras, impróprias Daqueles tempos idos de glória Não precisa ser pescador Pra entender tanta dor E ver que a vida ali se esvaiu Da planta que partiu, do peixe que sumiu, sobrou apenas o pescador que de sonhos...se consumiu. Roziny Terezinha Santos Silva, moradora de Rio Doce

EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Rafael Pereira Francisco | Editora de Texto: Francielle de Souza | Editora Audiovisual: Larissa Pinto | Editora Visual: Daniela Ebner | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Bianca Marchiori, Roziny Terezinha Santos | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Silmara Filgueiras | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Uma saudade, um desejo

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Mais um ano se foi e, mais uma vez, a lama parece continuar escoando em nossas vidas. Nem mesmo o tempo é suficiente para que as consequências do crime sejam amenizadas. Enquanto isso, a saudade dos nossos costumes só aumenta. Longe da vida que levávamos, tivemos que reinventá-los, dar novo sentido a eles. As festas de fim de ano que fazíamos, por exemplo, eram momentos de encontro, compartilhamento e intimidade. Hoje, são também motivos para fortalecer os laços e unir forças pela busca dos nossos direitos. Por Antônio José da Silva (Izé), Marlene dos Reis, Maria das Graças Quintão, Madalena dos Santos Com apoio de Wandeir Campos

ilustração: Bianca Marchiori

Monsenhor Horta,

(as) vizinhos(as).


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O que eles não querem entender Para os moradores(as) das comunidades atingidas, o rompimento foi só o início do que viria pela frente. Hoje, além de lutar por uma reparação justa, eles(as) lidam de forma constante com o desmerecimento da Fundação Renova em relação às moradias que eles mesmos haviam construído, já que as empresas afirmam que as casas foram, na verdade, mal feitas. Com essa alegação, a Renova tenta se esquivar a todo momento da responsabilidade pelos desdobramentos do crime quando se trata das casas trincadas por causa do intenso tráfego de caminhões nas cidades após o desastre e, sobretudo, não é capaz de entender que, mesmo diante de uma reconstrução ou uma nova construção nos reassentamentos, os modos de vida desses(as) moradores(as) já foram alterados. Por Caetano Silva, Eder Felipe da Silva e Tatielly Martins Cunha e Vera Maria Martins Cunha Com apoio de assessoria técnica AEDAS e Tainara Torres

Eu trabalhei muito na construção da minha casa, porque os trabalhadores vinham e ficavam fazendo hora. Nós, na pressa de construir, já deixávamos a areia coada, montávamos aquelas ferragens. A gente trabalhava demais, eu e meu marido. E as empresas falaram que a casa foi mal construída. Vera Maria Martins Cunha, moradora de Barra Longa

Quando eu resolvi construir minha casa em Paracatu, foi aquela história, lá na roça, de ter que pedir mamãe e mamãe ter que pedir papai pra eu fazer a casa. Escolhi o lugar onde era a casa da minha avó, e eu nem sabia. Fiz a casa. Ali era o lugar que a gente escolheu pra viver o resto da vida. Caetano Silva, morador de Paracatu de Baixo

Foto: Tainara Torres

"Agora, devido ao tráfego de caminhões, a terra ficou solta e, sempre que chove, desce barranco por cima da minha casa" - Eder Felipe da SIlva.


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No próprio laudo da minha casa tem isso [de que foi mal construída]. A empresa disse que a minha casa tem problemas e, no finalzinho, o engenheiro colocou que o problema é má construção. A minha casa não foi feita para suportar uma lama dessa proporção, que chegou na nossa cidade. Eu costumo falar: se engenharia fosse tão bom, a represa não tinha descido, certo? Quantos engenheiros a empresa tem? A lama não desceu a mesma coisa?! Não estourou?! Quer dizer, engenheiro não é tudo na vida. Faz parte, mas não resolve tudo. Eder Felipe da Silva, morador de Barra Longa

As pessoas argumentaram com a Fundação que, durante a passagem dos caminhões nas ruas, sentiam as casas tremendo. A Fundação rebateu dizendo que ‘o ser humano tem uma percepção de vibração inferior às residências’. Resumindo, ela quis dizer que essa questão de tremer a casa é uma coisa psicológica, a gente não sente a casa. É um absurdo esse argumento. No laudo, ela não considera, em nenhum momento, que a história da cidade é de um lugar com 300 anos e que o método que os moradores usam é a autoconstrução, um saber popular passado de geração a geração. É uma cidade que foi construída sem previsão de rompimento, como qualquer outra cidade do Brasil, com um método usado no país inteiro. Em nenhum momento, a Renova contextualizou as casas com o rompimento da barragem. Danielle Jorge, assessora técnica da AEDAS

Não temos condição de pagar um engenheiro, mas nós temos ótimos profissionais aqui, na nossa cidade. A maioria das casas, prédios, tudo foi construído com gente daqui mesmo. São casas muito bonitas e muito bem-feitas. Então, o problema não é quem construiu a casa e sim o que eles trouxeram para nossa cidade, que é a lama. E, hoje, eles querem colocar a culpa nas nossas casas. Eder Felipe da Silva, morador de Barra Longa

A laje da minha casa foi uma festa! Não foi em caminhão não, foi no braço mesmo. Oitenta homens pra ajudar a bater. Matamos os patos, as galinhas. Foi festa o resto do dia. Essa casa foi uma festa desde o primeiro dia. Só eu sei o peso dos blocos e da peneira de areia que eu coei e, ainda, com alegria. Vera Maria Martins Cunha, moradora de Barra Longa

Se eu mesmo pudesse fazer a minha casa no reassentamento, seria bom, porque tenho mais confiança. Eu sei do jeito que eu faço, a empresa não. Se eles não autorizam você a participar da construção da casa, como é que você vai saber? Eles não vão entrar nela, quem vai morar é a população. Caetano Silva, morador de Paracatu de Baixo

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Indiscutivelmente, a partir do rompimento da barragem, os modos de vida das comunidades mudaram, principalmente porque as pessoas passaram por um deslocamento forçado. A Fundação Renova não consegue entender que as pessoas tiveram os modos de vida alterados em função de vários fatores: quando passaram a não morar mais no espaço em que residiam anteriormente, quando elas perderam as referências de vizinhança, quando não tem mais acesso ao rio ou às comunidades que foram dizimadas, além da lama, a poeira, as vias que sofrem danos diariamente. Na verdade, o rompimento foi o início de vários outros danos que acontecem até hoje, em consequência dele. Danielle Jorge, assessora técnica da AEDAS

Essa casa tem a vibe do meu pai, a vibe do amor, da criação, da felicidade. A vibe que você não acha em lugar nenhum. Todo mundo que entra aqui se sente bem. A nossa criação, o nosso convívio foi muito bom, aqui com papai. Ele, mamãe e eu tínhamos uma convivência incrível. Então, de certa forma, a gente revive isso aqui dentro de casa, essa alegria que ele deixou. Em cada cantinho, a gente lembra. Olho pra janela da cozinha e vejo ele olhando o rio igual era. Isso não vai ter em lugar nenhum. E a empresa não entende isso: que podem oferecer um castelo, mas não vai ser o que tem aqui. Você trabalhar, construir sua própria casa, juntar seu dinheirinho. Na época, era muito sofrido, pai ganhava o básico do básico. Tatielly Martins Cunha, moradora de Barra Longa

A história que a minha casa casa tem — de ter sido feita no mesmo local onde era a da minha avó — não vai ter mais no lugar para onde vamos. Mudou tudo. De lá, eu saía, largava ela toda aberta e ia pra casa da minha outra vó, voltava e a casa estava do mesmo jeito. Fora, ainda, que a gente está abandonando uma história que a gente criou, de você ver a construção. Quando a gente bateu a laje lá, fizemos uma feijoada doida, tomamos cerveja, jogamos truco ainda na porta de papai. Isso a gente não vai ter. Caetano Silva, morador de Paracatu de Baixo

A minha casa não é, assim, uma maravilha de casa, mas é uma casa que eu sempre sonhei em ter daquele jeito. É a que me suporta. Tudo que tem lá eu agrado, de cada tijolinho que foi colocado lá. Hoje, eu não tenho a minha casa mais. Tinha os vizinhos, a tranquilidade. Eu considero meus vizinhos como família, e nós perdemos tudo isso hoje. Ninguém tá morando perto do outro mais, cada um está morando em um lado da cidade. Isso é o que deixa a gente mais chateado, hoje em dia. Eder Felipe da Silva, morador de Barra Longa


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Foto: Sérgio Papagaio

Papo de Cumadres Opinião:

Barra Longa: um eterno canteiro de obras

Consebida e Clemilda estão desalentadas com as obras que a Samarco vem desenvolvendo em Barra Longa há três anos e que parecem ter começado hoje. Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda, por que as obras que a Samarcu começô dispois que a barrage istorô e a Renova continuô, ainda num terminô? - Pois é, eu achu que ês num qué, se quisesse já tava tudu prontu, oia lá em Bentu pra fazer u diki S4 foi num momentu, demorô mais u guvernadô assiná du que u diki ês terminá. - A rua primeru de Janeru ês tão cunsertanu nestes três anos inteiru, a gente passa pra lá e ês tá arrumanu, nós pensa que ta tudu acabanu ês ta só começanu. - As rua que ês arruma hoje amanhã já ta isburacanu. - Sê lembra daquela casa verde na beira du riu Carmu na praçinha? - Aquela que foi pur eles atingida e dispois demolida? - Aquela mês, nu lugar dela uma cerca de pau ês fez pra terra acomodá, plantaru grama ficô até bacana, mas na primeira cheia du rio quandu ês já tinha acabadu eu fui oiá u lugá ta todu rachadu. - Eu ficu a me perguntá será que a Fundação vei pra arrumá ou pra trapaiá? - Sei não, só sei que se arruma um muncadim trapaia um montão, a verdade eu vô falá, é que ês num sabe arrumá uma coisa sem a outra trapaiá. *A pedido do autor, este texto não passou por revisão ou edição.


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Chega de sofrer calada

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Além do desafio de não serem reconhecidas como trabalhadoras pelas empresas causadoras dos danos (Samarco, Vale e BHP Billiton) ao serem consideradas como dependentes dos maridos no processo de cadastramento, as mulheres também sofrem com o assédio dos trabalhadores das terceirizadas contratadas para atuar nas comunidades. A chegada de tantos homens nas cidades de Barra Longa e Rio Doce alterou o cotidiano dessas mulheres e trouxe novos problemas para regiões que já sofreram tanto com o crime das mineradoras. As páginas desta reportagem especial são preenchidas apenas pelos relatos de assédio, para fazer ecoar as vozes da vítima e dar a elas um espaço de acolhimento diante de mais essa dor em consequência do desastre. Por Beatriz, Paula, Rafaela, Sílvia e Viviane* Com apoio de Laís Oliveira (AEDAS), Larissa Pinto e Tainara Torres * Para proteger as mulheres, optamos por manter suas identidades em sigilo, assim como as cidades e as comunidades das quais fazem parte. Todos os nomes usados nesta reportagem são fictícios. ** Alertamos que o conteúdo dos depoimentos pode acionar desconfortos emocionais em leitores sensíveis a temas relacionados a assédio e violência contra mulher. Recomendamos também que esta reportagem não seja lida por crianças sem a supervisão de um adulto.

Eles acham que as mulheres têm o dever de ficar com eles, principalmente quando bebem, né?! São insuportáveis! Isso tá acontecendo demais. Se você parar pra conversar, a maioria das mulheres aqui vai falar a mesma coisa. Tem abuso de poder: é chefe, é gerente. Até os mais simples se acham. E o pior é que você fica com medo porque nunca sabe quem é quem, se pode confiar ou não. Antigamente, não tinha isso, agora tem muita firma aqui e isso foi devido à barragem. Veio muito homem de fora. Não é que nunca existiu, mas agora tá demais, é homem que você nunca viu na face da Terra. Sílvia Existe um sistema que é histórico não só no Brasil, mas universal: o patriarcado, que está muito presente na nossa sociedade. Nesse sistema, os homens vêem as mulheres como propriedade. Isso fica mais forte na cidade, porque é a combinação do capitalismo e do patriarcado. Juntos, eles formam um modelo de controle ainda mais forte sobre a vida das mulheres. Então, além de conviver com a exploração, ainda tem a opressão. Ainda mais aqui: uma cidade que recebeu muitos trabalhadores. Isso influencia diretamente a vida das mulheres, porque as relações mudam. As pessoas daqui se conheciam e, com essas pessoas que passam a circular na cidade, as mulheres não se sentem mais seguras. Laís Oliveira, assessora técnica da Aedas

Muita gente não consegue ficar na porta de casa mais. Na hora do almoço, você passa e os homens já começam a mexer, já começam as gracinhas. Essas horas são as piores. Você fica constrangida porque tem aquele monte de homem. E, quando reclama, ninguém toma atitude nenhuma. Se chamar uma autoridade, eles vão falar que é mentira. Gente de firma, aqui, tem mais valor que os próprios moradores.” Sílvia Na época que aconteceu o rompimento, nós tínhamos contato direto com o pessoal da Samarco e tinha muito assédio. A cidade estava um caos e, depois de tudo que aconteceu, a gente não imaginava que alguém ia querer tirar proveito. Eu conheci um funcionário da Samarco que disse que ia me ajudar. Ele tinha um cargo de destaque na empresa. Depois de um tempo, comecei a notar que ele passava aqui em casa com muita frequência. Sempre vinha aqui pra tomar café, parava o carro e me chamava pra ir a Mariana, dormir com ele e voltar no outro dia. Vinha com a mesma desculpa de tomar café e, todos os dias, depois do café, vinha o convite: “Vamos pra Mariana. A gente sai pra jantar, fica mais à vontade, conversa melhor. Lá tem spa”. Ele sempre falava: “Você é muito bonita, tem que sair daqui”. Eu me senti assediada e fiquei muito mal, porque vi que ele tinha segundas intenções. Estava se tornando uma coisa recorrente, quase jogando na minha cara: “Eu te ajudei quando você precisou.

Patriarcado é um sistema social que dá poder aos homens. É caracterizado pela dominação masculina e opressão das mulheres, já que os homens, nesse espaço, exercem autoridade sobre elas.


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Agora, estou cobrando isso de você, então você tem que fazer isso comigo”. Depois que ele foi embora, o assédio continuou pelo WhatsApp. Ele me convidou para viajar e ficar com ele em outro Estado por uns dias, disse que ninguém nos reconheceria. As mulheres aqui passam por isso, mas elas não entendem como assédio. Tem meninas grávidas aí. Por ser cidade pequena, isso fica normal.” Paula

Feminismo é um movimento social e político que existe desde o século XIX e que busca conquistar o acesso a direitos iguais entre homens e mulheres.

Violência é quando uma pessoa se sente autorizada a ter mais poder do que a outra e age para impor essa condição. Pode ser tanto de forma física (agressão corporal ou sexual) como de forma simbólica (agressão verbal, desvalorização, negação de acesso à direitos, pressão psicológica).

“A gente vê muito, na fala das pessoas, a forma naturalizada do assédio. Do assobio até casos mais graves, mas que estão naturalizados e geram essa invisibilidade. Achamos normal uma mulher ser assediada na rua, ser constrangida. Não fomos ensinadas a questionar, estamos começando a fazer isso agora, com o feminismo. Ainda assim, o assédio continua sendo visto como algo comum. Existem vários casos de meninas que estão namorando homens das terceirizadas que não são daqui e são muito mais velhos. São meninas de 14 anos namorando homens de 29. As pessoas vêem isso como natural e dizem que não tem assédio. Só que um homem mais velho tem mais facilidade em convencer e até em iludir e, por isso, pode manipular a menina nessa relação. Não é saudável. É preciso discutir e questionar isso para que as próprias pessoas consigam entender essa situação de violência. Estamos trabalhando com uma questão que faz parte da estrutura da nossa sociedade. A gente passa, nossa mãe passou, nossa avó, e quebrar esse ciclo não é simples.” Laís Oliveira, assessora técnica da Aedas Eu sempre venho na rua no horário de almoço porque é a hora que meus filhos vão pra escola. Já cansei de não passar por algum lugar porque tinha muito homem. O centro fica cheio, você tem que ficar desviando deles ou até nem vir

na rua. Eu evito até de sentar na praça. Quando eles passam de ônibus, mexem, assobiam, uns chegam até a cabeça na janela. Isso deixa a gente constrangida. Se a gente olhar, eles acham que a gente tá dando confiança e já vêm meter a cara, já vão caçar passar a mão, essas coisas. Pode chegar uma hora que eles vão cercar, violentar, a gente nunca sabe. Aí eu passo de cabeça baixa pra evitar, pra depois não falarem: “Ah, Fulana deu confiança, Fulana quis”. Se acontece alguma coisa, depois eles falam: “Ah, mas eu sou de outra cidade, eu não fiz isso”. Quem sai perdendo sempre é a mulher. Nessa hora, somos sempre culpadas. Beatriz As mulheres estão na linha de frente da luta. Elas sempre foram as responsáveis pelo cuidado da casa, da família. Às vezes, ela trabalha fora e ainda está presente nas reuniões, trazendo uma pauta que não é só dela, que não é só sobre o cartão dela, mas é a pauta da família que está com a moradia trincada e precisa sair porque está em situação de risco. Ela traz a pauta da saúde porque os filhos estão com alergia, porque a família está com problema respiratório. As mulheres estão na linha de frente, mas também é preciso entender que isso é um processo de responsabilização que existe há muito tempo e que recai sobre os nossos ombros. Laís Oliveira, assessora técnica da Aedas “Foi depois que as empresas vieram pra cá que isso começou. Só que aqui, por ser uma cidade tranquila, até um pouco pacata, se acontecer alguma coisa, eles preferem nem falar nada, porque isso pode prejudicar a imagem do lugar. Se alguém falar: “Aqui não tem nada disso”, então, minha filha, vamos chamar todas as mulheres pra acampar aqui dentro que elas vão ser muito felizes. Viviane


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Segundo pesquisa realizada pelo coletivo Think Olga, na campanha Chega de Fiufiu, 81% das mulheres já deixaram de fazer alguma coisa (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) por medo de sofrer assédio. Das mais de 7000 entrevistadas, 90% já trocaram de roupa pensando no lugar em que iriam.

Solicitamos informações à Renova sobre a contratação e o treinamento de funcionários terceirizados pela Fundação, bem como as medidas das empresas em relação à prevenção e à responsabilização em casos de assédio. Até o fechamento desta edição, não obtivemos resposta.

Eu trabalhei em uma das terceirizadas limpando os alojamentos. Uma vez, um funcionário dessa empresa chegou onde eu limpava e colocou um filme pornográfico na TV a cabo. Não era hora do almoço dele nem nada, não era pra ele estar na casa. Depois, ele foi pro banheiro e ficou me chamando, querendo que eu fosse levar papel higiênico pra ele. Eu não fui e falei que não ia ficar dentro da casa com ele ali. Depois, ele saiu e foi embora. Quando eu fui limpar, tinha camisinha, o banheiro tava todo sujo com aquela “porcariada”. Eu reclamei e me trocaram para outro alojamento. Só que começou tudo de novo. Um outro lá conseguiu meu WhatsApp com alguém e ficou mandando mensagem e perguntando se eu queria ficar com ele, me chamando de gostosa, falando que meu marido não ia saber. Perguntava se eu não traía meu marido. Falava que eu tinha uma boca boa pra... Tem hora que eu até falo que eu não queria ter esse tipo de boca. Tem uma coisa que eu não esqueço nunca mais, uma cena que foi horrível. Tinha um homem que trabalhava em outra empresa, era conhecido nosso. O cara bateu lá em casa perguntando do meu marido. Eu falei: “Ele foi ali embaixo comprar uma coisa e já tá voltando, se quiser esperar”. Sabe assim, sem maldade? A pessoa já foi na sua casa. Você não vai imaginar. Ele tentou me agarrar à força, chegou a colocar o ‘negócio pra fora’. Eu até machuquei o braço brigando pra tentar me defender. Eu fiquei naquele choque porque você jamais vai imaginar que uma pessoa que você conhece vai entrar na sua casa pra tentar abusar de você. Eu nunca tive paz desde que as empresas chegaram, desde que comecei a trabalhar lá. Foi horrível. Eu fiquei um mês sem aparecer na empresa. Pedi pra me

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mandarem embora, mas eles não queriam. Eles transferiram esses meninos, só que ainda tinham outros caras. Eu já não estava aguentando mais. Depois que eu saí da empresa, eu comecei a entrar em depressão. Só queria ficar no escuro. Sabe quando cê tem trauma de homem? Eu comecei a fazer tratamento, a tomar três tipos de calmantes. Só que não estava fazendo efeito porque eu não estava conseguindo dormir. Eu quase não vou muito na rua. Porque, se eu for, corro o risco de ver algum dos caras. Eu já vi dois. Na hora que eu vejo algum deles, meu coração dispara, eu fico gelada. Fico doida pra achar alguém pra ficar perto. É só eu pisar na rua que eu fico nervosa, não consigo nem conversar, fico doida pra ir embora, brigo até com o meu marido. A minha menina mesmo tá traumatizada. Vira e mexe, ela fala comigo: “Calma, mãe. Cê não vai morrer não”. Mexeu com o psicológico dela, porque ela me vê brigando, chorando. Uns tempos pra trás, eu surtei comigo mesma, deu vontade de me matar. Meu marido teve que me segurar, esconder as facas. Eu me ‘unhei’, me machuquei. Antes, eu era mais tranquila, alegre, brincalhona. Saía, andava a cavalo. Hoje, se meu marido não for comigo, eu nem saio. Eu não tenho mais vontade de trabalhar fichada. O pessoal fala comigo: “Deixa o currículo em tal lugar”. Não tenho coragem. É a primeira vez que fico sem trabalhar, mas não consigo. A gente começou a passar necessidade aqui dentro de casa, mas a Samarco falou que não ia ajudar porque não éramos atingidos diretamente, porque, como nós não tínhamos terreno, não tínhamos direito de receber nada. Rafaela

A violência contra a mulher é responsabilidade de todos(as). Em caso de assédio e/ou violência, denuncie pela central Ligue 180. O serviço é gratuito, funciona 24 horas e o anonimato é garantido. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, mesmo que ela não seja a vítima. As mulheres da região de Barra Longa, Rio Doce e Mariana podem procurar também a Delegacia da Mulher de Ponte Nova. A denúncia pode ser feita presencialmente, no endereço Rua Felisberto Leopoldo, 252, Bairro Santa Teresa, e pelos números: 180 (Central de Atendimento à Mulher) e 100 (Direitos Humanos). Em Ouro Preto, existe o Serviço de Atendimento à Mulher (Siame), que funciona no endereço Praça Reinaldo Alves de Brito, 13, Centro. Também é possível entrar em contato pelo número (31) 3551 6245. A instituição oferece atendimento social, psicológico e jurídico, além de ofertar cursos como crochê, tricô e pintura de tecidos. Para assessoria jurídica, em especial, o Siame pede que a mulher tenha um boletim de ocorrência com o registro do caso.


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Tradição em risco Por Anna Benedita Coelho, Antônio Maria Claret do Prado, José Lazarini Filho e José Márcio Lazarini Com apoio de Francielle de Souza e Rafael Francisco Fotos: Larissa Pinto e Francielle de Souza

Muitos(as) moradores(as) de Rio Doce aprenderam a garimpar e a pescar ainda jovens. Era ali, na beira do rio, que os(as) garimpeiros(as) e pescadores(as) mais velhos(as) ensinavam o ofício e perpetuavam o seu legado. Hoje, o costume que era naturalmente passado de geração a geração corre o perigo de ser extinto, já que a contaminação das águas fez com que os(as) atingidos(as) buscassem outras alternativas de trabalho e abandonassem as idas ao rio.

De pai para filho Toda vida morei em beira-rio. Antes, morava em um município na divisa de Barra Longa com Ponte Nova. E aí tinha uns colegas que moravam lá na roça e já tiravam ouro. Eles ficavam mostrando pra gente. Eu era menino. Depois que vim pra Rio Doce, eu ia para o rio em todas as minhas férias pra tirar ouro. A gente ganhava pouco: um salário mínimo pra tratar de três, quatro meninos não dá não. Então, tem que pular no rio mesmo. Eram 30 dias dentro d’água. Aos poucos, fui ensinando meus filhos a trabalharem com isso também, porque serviço era difícil aqui, né?! José Lazarini Filho, garimpeiro e pescador de Rio Doce

Como os netos vão garimpar se não aprenderam? Enquanto a própria natureza não limpar o rio, não tem jeito de ensinar. E só olhando não aprende, tem que ensinar mesmo. Eu, quando aprendi, nem sabia o que era ouro. Era pequeno, saí com meu pai e Zé de Cocota pra garimpar. Ficamos 30 dias no rio e eu vi como é que era. Foi aí que eu aprendi. José Márcio Lazarini, garimpeiro de Rio Doce

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Trabalho perdido Comecei com 17 anos, por curiosidade, em um tempo em que o ouro tinha valor. Em um dia de garimpo, você tirava quase um mês de serviço. Depois do rompimento da barragem, fui fazer curso para trabalhar de segurança. Trabalhei um ano e meio, mais ou menos, e me dispensaram. Agora faço umas hortas aí pra ver o que dá, né? Não pode parar. Mas nunca mais voltei na beira do rio. Vou fazer o quê lá? Antônio Claret, garimpeiro e pescador de Rio Doce

Eu pesco desde os 12 anos. Aprendi com meus pais. Antes, a pesca servia para complementar a minha renda. Eu trabalhava, chegava em casa lá pelas duas, três horas da tarde e ia para o rio. Quando faltava um açúcar, um óleo, um arroz, eu pegava um pouco [dos peixes] pra comer e vendia o resto. Agora não pode mais, porque as águas estão sujas e os peixes estão contaminados. Ainda pesco em outros lugares, mas só para comer. Não dá para vender mais. Anna Benedita Coelho, pescadora de Rio Doce

José Lazarini ainda guarda os instrumentos que utilizava durante o garimpo.

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As conquistas de Gesteira Há pouco mais de um ano e meio, os(as) atingidos(as) de Gesteira, distrito de Barra Longa, tinham poucas ações efetivas em relação ao reassentamento da comunidade. Em 2018, porém, os resultados da organização coletiva dos moradores se tornaram avanços mais concretos e, agora, aumentam a expectativa e o desejo pela retomada da vida em comum, no território em que escolheram e da forma como idealizaram. Por Gilmar Silva e Maria das Graças Lima (Gracinha) Com o apoio de assessoria técnica AEDAS, Francielle de Souza e Rafael Francisco

Escolha do terreno Em 2016, sem poder contar com o auxílio de uma assessoria técnica, os moradores estiveram diante do impasse de escolher o local onde aconteceria o reassentamento. As opções oferecidas pela Fundação Renova eram insatisfatórias: uma área de 1,1 hectare ou o terreno de Macacos, que contava com 6 hectares. Macacos foi escolhido em votação e, assim, as empresas ganharam a aprovação dos(as) atingidos(as) para a compra do local.

Plano popular de reassentamento Para que a comunidade reassentada se pareça o máximo possível com Gesteira, os moradores fizeram seis oficinas para levantar informações sobre os modos de vida que eram desenvolvidos ali e construir um modelo de reassentamento que conservasse as características originais. Entre os temas discutidos nesses encontros, estão: modos de produção e organização comunitária, memória e relações de trabalho e troca. Também debateram quem teria direito a uma propriedade em Macacos. “A gente reuniu a comunidade, a assessoria e fizemos oficinas de trabalho para resgatar um pouco da memória de Gesteira, pra construir uma [comunidade] mais ou menos parecida, pra ver se alivia um pouco as dores e o sofrimento das pessoas. Porque, pra nós que nascemos e crescemos ali dentro de Gesteira, é um sofrimento muito grande. Foram muitas perdas. E é uma coisa difícil de consertar.” Gilmar Silva, atingido de Gesteira Foto: Larissa Pinto

Macacos, local aonde será o reassentamento de Gesteira, foi escolhido em 2016, mas a compra só foi efetuada pela Renova/empresas em dezembro de 2018


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Janeiro de 2019 Mariana - MG

Critérios e parâmetros Durante as oficinas do plano popular, os(as) atingidos(as) chegaram a alguns critérios para definir quem teria direito de participar do processo de reassentamento. Sete deles já são direitos garantidos em outros casos de reassentamentos no Brasil. Outros três foram criados pelos(as) atingidos(as), com o apoio da assessoria técnica. Eles acrescentam à lista pessoas que não necessariamente perderam propriedades por causa do rompimento, mas que sempre se relacionaram com o território e com a história da comunidade e/ou estão em situação de risco. Dessa maneira, o número de famílias atingidas passou de 9 para 37. “Em Gesteira, sempre teve famílias que vieram de fora e a gente abraçou e segurou na mão até eles tomarem uma direção na vida. Com as oficinas, nós conseguimos resgatar isso. E, para o reassentamento, essas pessoas também estão indo, porque fazem parte de Gesteira. Isso é fruto de muito trabalho. Resgatamos aquelas pessoas que eram meeiros, arrendatários. Essas pessoas viveram o tempo todo ali nas terras e a empresa de forma alguma aceitava que fizessem parte da história. Depois de muito debate, hoje teremos ali um total de 37 famílias que vão morar no reassentamento. Para a comunidade, isso é muito importante.” Gilmar Silva, atingido de Gesteira

Aumento da área destinada ao reassentamento O terreno escolhido para acolher a comunidade era mais inclinado e tinha aptidão agrícola menor do que o antigo local, ou seja, a capacidade produtiva da terra, no novo território, era reduzida. Além disso, os seis hectares não seriam suficientes para abrigar todas as pessoas que a comunidade considerou como atingidas. Por isso, os(as) atingidos(as) passaram a contestar as condições do local escolhido e a discutir qual seria o tamanho ideal do terreno para atender as demandas de produção. Hoje, o acordo prevê aproximadamente 40 hectares para a reconstrução de Gesteira.

Compra do terreno Apesar da escolha por Macacos ter acontecido há mais de dois anos, a efetuação da compra só aconteceu em dezembro de 2018. Durante esse período, a Renova justificava a demora com uma suposta recusa de venda do proprietário. Entretanto, o dono das terras já havia deixado pública a intenção de negociar a compra do local. “Sobre a compra do terreno, eu me sinto mais feliz, não por completo. Mas ficamos felizes, porque pelo menos resolveu uma parte da coisa. Antes não tinha uma direção, hoje, pelos menos, sabemos que aquelas terras ali são nossas e vamos tomar posse delas, se Deus quiser.” Gilmar Silva, atingido de Gesteira

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Quem tem direito?

- Proprietários(as) de terras - Arrendatários(as) - Meeiros(as) - Posseiros(as) - Assalariados(as) rurais ou diaristas - Filhos(as) que tinham relação produtiva, maiores de 18 anos - Herdeiros que tem relação com a terra

- Garantia de convivência familiar e ampliação da comunidade - Moradores que estão em área de risco - Pessoas que participam e possuem relação com a terra no sentido de garantir a continuidade da comunidade

Direitos garantidos históricamente pelos reassentados do Brasil

Direitos estabelecidos pelos(as) atingidos(as) de Gesteira

Fonte: Assessoria Técnica AEDAS

Acolhimento Eu saí de Gesteira em 1979, quando teve uma enchente lá. Mas eu sempre ajudei a comunidade. Depois que a lama veio, a Renova veio reconstruir a creche aqui onde eu moro e acabou com a minha plantação. Meu marido e eu, a gente plantava mandioca, quiabo, milho. Acabou com a minha horta. Como eu sempre estava em Gesteira, acompanha tudo e ajudava no que podia, o pessoal que morava lá achou que eu merecia ser reassentada também. Conversaram com a assessoria e entenderam que eu também era atingida porque tinha relação com a continuidade da comunidade. Eu não tenho mais onde plantar, então aceitei de coração. Só agora a Renova reconheceu que também tenho direito. A luta foi grande. Tivemos que lutar muito pra conseguir comprar esse terreno. Agora, estamos esperando a construção porque cada um está num lugar e a gente quer estar todo mundo junto. Gracinha Lima, atingida de Gesteira


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Janeiro de 2019 Mariana - MG

Pelas janelas de Areal Por Ana Paula Barcelos De Santos, Cenira de Barcelos (Joinha), Elson Ribeiro da Silva, Helena Costa, Jane dos Santos, Nilcilene Martins, Marcelo Augusto Com o apoio de Daniela Ebner e Wandeir Campos

Assim como uma ponte que liga uma cidade à outra, nas janelas de Areal-ES existe uma força que une, uma paisagem em comum. Em cada janela quadrada presente nas fachadas destas moradias, avistam-se as motos, as bicicletas, os(as) moradores(as), as águas do rio Doce e os tubos de gás da empresa Petrobrás. E é também por essas janelas que se observam as mudanças na cidade capixaba, mais uma das comunidades que enfrentam dificuldades após os três anos do rompimento da Barragem de Fundão.

Antes tinha um peixe pra gente pegar, pra comer, tinha um serviço pra trabalhar. Agora não tem nada. Não tem um serviço aqui. É uma luta danada, passamos até necessidade com o negócio de comida. E a água... Agora eles estão dando água pra gente. Aqui em casa até que dá, porque eu só faço a comida e [uso] pra beber. Agora, em muitas casas, não dá, porque eles usam pra mais coisa. Quando chega o fim do dia, eles estão sem água. Nilcilene Martins, moradora de Areal - ES

Eu fui atingido, a lama veio até próximo a minha casa, num posto de peixe que eu tinha aqui. Até hoje não recebemos nada. Eles falam alguma coisa pra gente e depois desconversam. A gente dependia muito do rio pra pescar, fazer as atividades e, hoje em dia, não pode fazer isso. Elson Ribeiro da Silva, morador de Areal - ES

Tem 30 anos que estou aqui. Vim de São Paulo para morar com meu marido, o Zé Barcelos. Ele trabalhava no "cacau" e depois perdeu o emprego por causa da enchente, da “água” de Mariana que desabou lá. A maior dificuldade aqui, hoje, é ele estar desempregado. E eu vivo do salário mínimo, porque sou encostada [aposentada] pela idade. Helena Costa, moradora de Areal - ES


Janeiro de 2019

Mariana - MG

APARASIRENE NÃO ESQUECER

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Fotos: Wandeir Campos

A água aqui é muito horrível. Fede quando o rio enche. Até quando a gente toma banho, ela fede o corpo da gente. Pra beber também não presta. Ana Paula Barcelos de Santos e Marcelo Augusto, moradores de Areal - ES

Hoje, depois de três anos, nós temos dificuldade de emprego e nossa água não é mais como era antes. Nossas crianças não têm mais um rio pra tomar banho, se divertir, fazer o que sempre faziam no domingo. Depois dessa lama aí que chegou, acabaram nossas plantações. Não temos mais água de qualidade, acabou o emprego e a lavoura cacaueira. A lama estragou tudo. Cenira de Barcelos (Joinha) - moradora de Areal - ES

Sou mãe de cinco filhos e vivo de um salário só. Pra mim, é uma batalha. Tudo que eu tenho é essa casa, que é onde o dinheiro do trabalho do meu marido foi implantado. Hoje, eu não tenho marido, ele morreu depois do rompimento. Vivia da roça e da pesca. Tenho a hortinha aqui em casa, mas não colhe mais nada. Tudo que você planta só dá pra trás. Eu também pegava um peixinho e hoje não pego mais. São muitas dificuldades, porque, como dizem: todo mundo sofre tudo igual, sofre todo mundo junto. Jane dos Santos, moradora de Areal - ES


EDITORIAL Nesta primeira edição publicada em 2019, o Jornal A SIRENE traz, como capa, a imagem de uma cadeira vazia e enferrujada. As marcas do tempo manifestadas nela e o vazio que ela representa, simbolicamente, é um convite que fazemos aos nossos leitores para que “se assentem” e reflitam a respeito de um tema velho, mas que permanece recorrente em nossas comunidades: o assédio. Por isso, reservamos uma reportagem especial para denunciar as situações constrangedoras que as mulheres têm sofrido por causa da intensa circulação de homens nas comunidades atingidas após o rompimento. Tomamos consciência dos casos de assédio que constantemente estão ocorrendo nas regiões em que o jornal tem área de cobertura (Mariana, Barra Longa e Rio Doce) e, pelo nosso compromisso com o direito à comunicação, decidimos não nos calar diante de mais essa violência, que é comum na sociedade brasileira, mas que foi agravada, nessas cidades, pelo crime. Quando afirmamos que o rompimento da Barragem de Fundão continua se renovando dia após dia, a três anos e dois meses, estamos apontando para uma sucessão de muitos outros danos que são consequência do crime, na tentativa de visibilizá-los para que sejam reparados. De fato, a vida das pessoas e das comunidades sofreram mudanças bruscas, não só devido à passagem da lama, mas também com a chegada dos funcionários das empresas terceirizadas pela Fundação Renova/Samarco. Na matéria "Chega de sofrer calada”, as mulheres atingidas relatam o constrangimento que sentem ao andar pelas ruas e serem assediadas, situação que também encontram em alguns dos seus ambientes de trabalho, somada ao abuso de poder e à diferença de gênero. São mulheres que também não se sentem mais à vontade em ficarem sozinhas em suas próprias casas. São mulheres que, mesmo com medo e muitas vezes silenciadas por conta das consequências negativas que podem sofrer, compreendem a importância da denúncia. Estamos em um contexto de desigualdades e conflitos. Mas, como veículo de comunicação empenhado em estar ao lado dos mais frágeis, não devemos nos calar diante de mais esse dano. Pelo contrário, o que queremos é ecoar as vozes das vítimas. Se ainda houver alguma dúvida sobre o porquê de falar sobre assédio, uma das mulheres entrevistadas nos responde: “Porque chega de sofrer em silêncio”.


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