A Sirene - Ed. 19 (Outubro)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição 19 - Outubro de 2017 | Distribuição gratuita


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A SIRENE

Outubro de 2017

PARA NÃO ESQUECER

Jornal mural A SIRENINHA

Mariana - MG

Manchetes do futuro Imagine um mundo em que os desejos das crianças se tornassem realidade. Nesta edição, o Jornal A SIRENE foi até as escolas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e de Gesteira (em Barra Longa) para saber quais são as notícias que os alunos gostariam de ler um dia. Foram alguns momentos em que pudemos ouvir, registrar e acompanhar o dia a dia de muitos deles que, apesar de sentirem falta do lugar de onde vieram, conseguem seguir em frente nos contando sobre um mundo melhor. Soa, Sireninha!

E. M. Gustavo Capanema só ensina conta de divisão na aula de matemática De acordo com João Vitor, 11 anos, a escola de Gesteira tomou uma decisão muito pertinente e que deveria servir de exemplo para as demais escolas. Afinal, para que aprender outras operações se o que mais importa na vida é saber dividir?

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. EXPEDIENTE

EDUCAÇÃO

Escola de Bento Rodrigues aprova educação física todos os dias

A hora da Educação Física e do recreio são sempre as mais esperadas pelos alunos. É muito bom colocar o corpo em exercício, pois diverte e alivia a mente para o resto do dia. Silvany, 9 anos, do 4º ano, acredita nisso e espera gastar sua energia assim num futuro muito próximo. MEIO AMBIENTE

Brasil não registra casos de desmatamento em suas florestas UUm lugar em que não há ações prejudiciais para a fauna e a flora. Esse é o sonho de Ana Flávia, 11 anos. SAÚDE

Crianças não têm mais piolhos Pesquisa realizada no último mês por Ana Clara Alves de Paula, 10 anos, indica que o inseto parasita que adora habitar o couro cabeludo não pode mais ser encontrado e foi erradicado de vez da vida das crianças. COTIDIANO

POLÍTICA

Prefeito afirma: “fazer caridade não é tão ruim” Com o projeto de doação de cachorros de rua em funcionamento na cidade, o prefeito afirmou que ações como essa podem ajudar a salvar o mundo. Para Ketellyn, 10 anos, do 4º ano, é assim que construímos um mundo melhor. Não compre, adote!

Pesquisas indicam que não haverá mais guerras no mundo De acordo com os dados apresentados, o nível de bem-estar e amor entre as pessoas nos últimos tempos está altíssimo. Além disso, os registros de brigas, discussões e “metidezas” caíram drasticamente. Desse modo, as cientistas Lavynia Beatriz Silva, 9 anos, Júlia dos Santos, 11 anos e Ketelly Nately Santos, 10 anos, afirmam que será muito difícil acontecerem novas guerras e que, seguramente, o mundo está em estado de paz.

Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Kleverson Lima, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editora de fotografia: Larissa Helena | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana), Thamira Bastos (Coletivo MICA) | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Larissa Helena | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Publico de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Essa escola já não é mais a mesma Por Antonia Aparecida de Araújo, Eliene Almeida, Elisete Aparecida e Geralda Caetano Araújo Com o apoio de Carlos Paranhos, Daniela Felix, Flávio Ribeiro, Genival Pascoal, Larissa Helena, Madalena Santos, Miriã Bonifácio, Rafael Drumond, Thamira Bastos Wandeir Campos

Para as crianças das comunidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e de Gesteira, a escola era um pedaço de casa. Um espaço que promovia não só o pensar, mas o encontro contínuo, a socialização entre os pares. Era como se a aula não terminasse com o tocar do sinal, porque, no caminho de volta, juntos, todos continuavam aprendendo alguma coisa. Hoje, depois de um processo de adaptação difícil na cidade de Mariana, as escolas de Bento e Paracatu ganharam espaço próprio. No caso de Bento, pequenas coisas, como a grama na quadra, ainda fazem falta. Em Paracatu, é a distância do centro de Mariana até o Morro de Santana - onde está localizado o colégio -, que incomoda alunos e deixa pais preocupados, principalmente nos dias de chuva. Gesteira Velho, atingido pela lama, também perdeu sua escola, que precisou ser reconstruída no Gesteira Novo. Localizado na parte central do distrito, com suas paredes de PVC (plástico), a construção lembra pouco a antiga Escola Municipal Gustavo Capanema, onde as professoras Geralda e Antonia educavam para o futuro. A sensação de perda da escola-morada marca, profundamente, as novas relações, que precisaram ser construídas dentro e fora da sala de aula. Também por isso nem os alunos nem os professores estão em condições de oferecer respostas gerais sobre a educação dos lugares atingidos. Tudo parece estar ligado e fragmentado ao mesmo tempo. O mesmo evento que os separou como conjunto e os dispersou pelas cidades pode ter sido aquele que os uniu no pensamento de que a única forma de reparar uma tragédia como essa é educando as crianças para se tornarem cidadãs críticas e responsáveis por um mundo sem toda essa destruição. “Quando eu peço para eles fazerem um desenho, eles sempre relembram a Gesteira Velha, desenhando a Igreja e a escola antiga. Eles não esqueceram, nem irão esquecer.” Geralda Caetano (professora do turno da manhã na escola de Gesteira) "O papel da escola, nesse momento, é de apoiar, orientar os alunos e deixar eles falarem, falarem, falarem. Promover essa interação, essa necessidade de falar. Eu não sei se, em casa, eles têm esse espaço, por isso, é importante promover esse encontro aqui." Elisete Aparecida (professora do 1º, 2º e 3º ano da escola de Paracatu)

Foto: Larissa Helena

Oficina realizada pelo jornal na escola de Bento Foto: Larissa Helena

Fachada da escola provisória de Paracatu, no Morro Santana

Foto: Carlos Paranhos

“Vivemos diariamente o sofrimento de nossos alunos. Estamos trabalhando a perspectiva do futuro. Falar do futuro faz um bem enorme.” Eliene Almeida (diretora da escola de Bento Rodrigues)

Mural estampado na fachada da escola de Gesteira


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Ser criança: ontem, hoje, amanhã Por Antonia Aparecida de Araújo, Eliene Almeida, Elisete Aparecida e Geralda Caetano Araújo Com o apoio de de Carlos Paranhos, Daniela Felix, Flávio Ribeiro, Genival Pascoal, Larissa Helena, Madalena Santos, Miriã Bonifácio, Rafael Drumond, Thamira Bastos Wandeir Campos Ilustrações: alunos e alunas dos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º anos das escolas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e de Gesteira

Pensar o hoje, não se esquecer do ontem e sonhar com o amanhã. Essa é a a rotina das escolas atingidas desde o rompimento da Barragem de Fundão. Vir para um espaço novo exigiu esforço e crença. Acreditar que, apesar do que perdemos, tínhamos um território com outras e diferentes possibilidades foi e é preciso para conseguirmos ir adiante. A gente não é tartaruga, que só consegue olhar para frente, mas também não é caranguejo, que anda para trás. Somos e queremos ser um futuro melhor do que esse passado triste que marcou as nossas vidas. Tudo mudou e, para quem está lidando com os pequenos, o que se pode fazer é ouvi-los. Seja desenhando, pintando, brincando, mas, sobretudo, os escutando. Não vamos dizer que os nossos dias não variam entre altos e baixos e que os nossos traumas, às vezes, se confundem com os deles. Mas, acima disso, o pensamento de que outros professores e professoras - que não foram atingidos nesse processo todo - pudessem não entender completamente a realidade desses alunos é o que mais nos dá razões para permanecer. Para quem viveu o antes e o depois do desastre fica mais tranquilo entender o que eles eram, o que são e o que ainda podem se tornar.

Brincadeira é uma necessidade para o desenvolvimento infantil. Também é uma forma de se conhecer o comportamento das crianças. Para brincar, é preciso explorar o território, ser inventivo, sonhar. Nossas crianças tiveram que se adaptar aos espaços da cidade para poderem brincar de novo. Nessas brincadeiras, percebemos o quanto da nossa cultura está presente ali, mesmo que reinventada. A diversão, para eles, é uma maneira muito concreta de nos mostrar que, apesar de tudo, sempre é possível ser criança.

Brincar lá

Corrida atrás do boi Guerra de tortinha de barro Futebol na grama Subir na árvore Pique-pega Pique-esconde Pique-cola-americano Mexer na horta Bilisca Andar de bicicleta Boneca Peteca Corre-cotia

Brincar aqui

Lego Futebol O que é? O que é? Boneca Esconde-esconde Bilisca Baralho Pega-pega Peteca Queimada Amarelinha Rouba-bandeira Batata-quente


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Aos mestres, com carinho! Com o rompimento da Barragem e a separação de muitos dos núcleos de amizade, os professores se tornaram pessoas muito especiais na vida das crianças atingidas. O amor que os alunos sentem, diversas vezes, vem em forma de abraços apertados, beijos intermináveis e pequenos gestos de lembrança. “Até o que eles jantam, eles querem trazer pra gente.” As ilustrações desta página e as frases abaixo são a nossa homenagem para esses profissionais que merecem todos os dias o reconhecimento pelo seu trabalho.

Obrigada por cuidar de todos nós na aula. Aguentar a nós todos no dia a dia. Beijos. Rayssa

Tia Naná, você é bonita. Alexsandro

Tia Carminha, eu te amo. Você é a melhor professora. Te amo. Assinado, Isadora, 2º ano

Sem vocês a escola não seria nada. Vocês são muito importantes para nós. Obrigada por tudo. João Vitor da Silva, 5º ano

Obrigada por tudo o que vocês me ensinaram. Miguel

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Foto: Larissa Helena

Papo de cumadres: escola Por Sérgio Papagaio

Consebida e Clemilda lamentando a perda do espaço coletivo da escola do Gesteira Velho. - Na escola nova, perderu espaçu também. - Ué, qui ispaçu? - Cê tá meio abobada, num fizeru a iscola nova du ladu da antiga quadra, isbirrada naquele cantu, toda apertada? - Clemilda, cê lembra da mulecada correnu pra tudu quanto era ladu na escola que a lama matô? - Então, num lembru?! Dus mininus coitadin, soltus iguar pintin, nadandu nesse gramadu, aprendenu a lê e como é tão bão vivê! - Era, cumadre, a minha esperança nus pés daquelas criança, a juventude correndu pra abraçá essa pobre véia de trança. - Também sintu dimais a farta quês mi faz. Tão tudu crescenu, num demora vira rapaz. Meu medu é quês fique presu na sardade du passadu, amargandu essa paixão da iscola veia dentru da iscola nova, que fizeru nu mutirão. - Presu, como assim? - Lá du outru ladu onde a iscola sumiu nu barru, ês tinha ispaço de montão, aqui onde a Samarcu cometeu o segundu crime com a educação, ês num têm lugar direitu, pois tudu ficou istreitu. - Nissu eu tenhu que te dá razão. A iscola parece de brincadeira, num tem a cara du Gesteira, perdeu graça e emoção, essa istranha construção. - Uma coisa eu gostei, nus desenho da parede teve um que me chamou atenção. Um pedaçu de palavra fez brotá na minha cara uma gota de emoção. - Que palavra é essa que, mesmo fartanu pedaçu, te faz sonhar como criança? - É a única capaz de mi fazer sonhar e acalentar meus anseio de criança. - Criança? Cê é veia, Clemilda. - Sô não! Todu mundu vira criança tendu nu coração um pedaçu de ESPERANÇA. - Então, cumadi, ainda tem um pedaçu de isperança que tragu como alentu, de ter uma escola nova nu reassentamentu. - Cumadre, a esperança, mesmu partida, ainda é pega pra fazer uma iscola iguar era. Us mininu sortu correnu com as perna que nós num temu. - U pedaçu que farta da palavra isperança, na parede daquela iscola, nós intera com as criança, que, por si só, já é maior que a isperança.


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Foto: Larissa Helena

Vamos conversar sobre preconceito Por Lêda, Emerson, Joana, Lêda e Lindalva Com o apoio de Carlos Paranhos, Débora Rosa, Flávio Ribeiro, Genival Pascoal, Maíra Carvalho, Miriã Bonifácio e Rafael Drumond

A vivência da tragédia em nossas vidas é algo cotidiano desde que a barragem rompeu. Muitas têm sido as dificuldades e as dores que têm nos acompanhado. Quem diria que nós, que vivíamos lá no nosso cantinho, agora, estaríamos fora de nossas casas, tão longe de tudo aquilo de que gostávamos, sofrendo com as dúvidas de um futuro incerto, e ainda sendo discriminados.

No ponto do ônibus, Lêda, atingida de Paracatu de Baixo, ouve a conversa de duas mulheres. Em um dado momento, percebe que, sem saber, falavam dela: - Esse povo da barragem é tudo folgado, aproveitador. Enquanto pôde, Lêda permaneceu quieta. Quando não pôde mais, desabafou: - Licença. Meu nome é Lêda, sou atingida de Paracatu de Baixo. Desde o dia 15 de novembro de 2015, quando ainda estava no hotel com os meus filhos, saí pra procurar emprego. Não sou folgada, nem aproveitadora… - Desculpa, não estávamos falando da senhora. – disse uma delas. - Desculpa eu, mas estavam, sim. Estavam falando dos atingidos. Eu sou atingida. Eu, meu marido e minha filha mais velha trabalhamos e não merecemos ouvir esse tipo de coisa. Quando vocês falam de barragem, não importa a comunidade, dói na gente. Não pedi para sair da minha casa. “É difícil demais ser atingido”, conclui Lêda, após relatar a conversa do ponto de ônibus à nossa equipe de reportagem.

Assim como ela, Emerson, atingido de Bento Rodrigues, sabe como é delicado ser reconhecido como atingido na sede de Mariana. Certa vez, enquanto esperava na fila do SINE, à procura de emprego, ouviu um morador relatar que queria ter sido vítima da lama da mineradora. “Esse pessoal tá com a vida feita. Tudo sustentado pela Samarco.” Emerson acabou relevando o que escutou: “Ele não fazia ideia do que estava dizendo”. Joana, atingida de Paracatu de Cima, fica nervosa ao ouvir que os atingidos se beneficiaram com o rompimento. “Quero minha vida de volta e nunca precisei da Samarco pra nada, não. Tudo o que a gente conquistou foi com o poder dos nossos braços aqui na roça. Com dificuldade, mas com alegria. A gente fica aborrecido com tudo isso, porque, antes, a gente vivia a vida da gente com os nossos amigos e, hoje, acabou. Foi todo mundo embora. É difícil da gente se ver.” Também de Paracatu de Baixo, Lindalva viu, do ponto mais alto do distrito, sua casa ser destruída pela lama. Lá, residiam só ela e a filha. Uma vez, ao ir à padaria, escutou de alguém que nem conhecia: “Essa é uma daquelas que me fez perder o emprego”.

Frase escrita por Kaé, atingido de Bento Rodrigues, em uma das paredes do jornal A SIRENE

Essas palavras e acusações machucam, fazem com que a gente reviva toda a dor da tragédia, mais uma vez. Talvez quem faça isso não saiba a dor que esteja causando, por isso, queremos contar sobre o quanto isso nos entristece, que muitas vezes deixamos de ir a alguns lugares com medo da hostilização, deixamos de falar de onde somos. Imagine só você, tendo que esconder sua origem para não ser identificado como atingido, como se isso fosse um crime. Isso nos dói, e contamos esses fatos para que essas atitudes sejam repensadas. Bem sabemos que muitas pessoas da cidade perderam o emprego e queremos dizer que somos solidários, que precisamos nos olhar mais de perto, sem julgamentos e, quem sabe, nos reconhecer mais em nossos medos, nossas dores e nossas lutas.


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- Uai, mas foram vocês q

Embora o termo descaso não seja amparado juridicamente, os constantes problemas vivenciados pelos atingidos, de acordo com nossas consultas a especialistas, podem ser classificados como:

NEGLIGÊNCIA: demonstra desleixo, descaso, omissão ou inobservância em tomar as precauções necessárias. Também se relaciona à culpa.

DOLO EVENTUAL:

o agente assume o risco de produzir, com sua conduta, um resultado diferente daquele esperado por ele.

Por Egberto Francisco de Sousa, Geraldo de Paula e Marta Peixoto Com o apoio de Carlos Paranhos, Caromi Oseas, Flávio Ribeiro, Isabella Walter e Letícia Aleixo

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INDÍCIOS DE

NEGLIGÊNCIA

INDÍCIOS DE

NEGLIGÊNCIA DOLO EVENTUAL

SOA COMO DESCASO

Foto: flávio ribeiro

A barragem estourou no dia 5 de novembro. A Defesa Civil notificou que minha casa estava em área de risco só no dia 7 de janeiro. Pra mim, isso é um erro. Dessa época pra cá, eu só tive prejuízo. No dia do desastre, com o choque da lama, surgiram umas trincas na casa. Foi um abalo muito grande. Eles tinham que ter falado que lá era área de risco e ter colocado a sirene antes da barragem estourar. Tinham que ter nos prevenido, a comunidade num todo, do risco que nós estávamos correndo quando a barragem estava funcionando. Além do reparo na minha casa, eu quero que a Renova/Samarco reconheça o prejuízo que eu tive e que estou tendo. Quero que me forneçam o cartão reparação. Sabe o que eles alegaram de último, agora? Que eu não recebi o cartão porque eu era funcionário público, mas isso foi só para justificar a perda de um direito que eu tenho. Minha aposentadoria é salário mínimo, então essa renda da colheita era um complementar, já que a Prefeitura me exonerou em novembro. Não reconheceram nada do que eu tinha: a minha horta, minhas árvores de fruta, 40 galinhas, seis patos, um casal de cachorro pastor alemão - que eu não vendia por preço nenhum -, um casal de perus, e outras criações. Eu perdi boa parte da produção. A manga, por exemplo, eu ia colher em janeiro, quando a casa já estava interditada. Eu já até comecei a plantar e vender, não tenho problema em começar do zero. Eu prefiro ficar em Paracatu porque lá eu sou feliz. Aqui em Mariana, eu fico porque não tem outra alternativa. Em Paracatu, eu vivia. Aqui, eu vegeto. Lá, tem minhas plantações, minhas criações, que, pra mim, é terapia, nem considero como trabalho. Penso que eles não me reconheceram como atingido, reconheceram só na hora de notificar a minha casa. Estão me tratando como indigente. Eu não quero ir para o reassentamento, porque eu não gostei de lá. Só tem mato braquiária. Eu gostei da opção de compra assistida. Eu e minha esposa Tereza tínhamos até olhado um terreno em Padre Viegas, mas a Renova não deu nenhuma garantia. Disseram que ainda estavam estudando a possibilidade e só iriam resolver em seis meses. Fiquei desacreditado. E é assim que me sinto hoje. Geraldo de Paulo, 63 anos, atingido de Paracatu de Baixo

O diálogo que dá título a esta matéria ocorreu durante uma audiência, com a participação de dos advogados da Vale sobre a responsabilidade da empresa no desastre. O desdém diante da quando a Justiça decide suspender o processo que julga 21 denunciados pelo rompimento da B bro, ganhou um cargo de prestígio como assessor da Federação das Indústrias do Estado do Es Coelho, ministro de Minas e Energia, alegou que o maior crime socioambiental do país era, n para os atingidos, a sensação de injustiça e negligência por parte das empresas responsáveis, qu temente, aos seus modos de vida.

O pessoal da Samarco queria levar a nossa mília pra Mariana, mas eu falei que não ia, p que, se meu marido fosse morar lá, ele ia morr Ele não consegue viver na cidade e ainda tinha animais dele pra cuidar. Eu expliquei pra Sam co que um moço tinha emprestado uma casa p gente ficar morando e que, se eles quisessem, p diam reformar ela para a nossa família se abrig por lá. Mas a empresa ficou enrolando, só ti va foto da casa e nada de arrumar ela pra nós dono da casa foi quem trocou as janelas e deix ela pronta. Depois de um tempo, a Samarco c locou uns azulejos. Nos mudamos no dia 24 dezembro de 2015. O cimento ainda estava fr co. Minha filha Tatiane estava com o neném a da novo e teve que ficar em Mariana, ainda m porque ela ficou muito aborrecida com aqu tudo e perdeu a boneca que tinha como lembra ça da avó. Quando percebeu tudo destruído, nem conseguia olhar. De lá pra cá, nunca m tivemos um fim de semana juntos como ant Não pescamos mais no lago e não andamos m a cavalo. Quase não saio mais. Eu não durm


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Diagramaão: Carlos paranhos

que causaram o desastre!

-E daí?

e atingidos, em agosto deste ano, quando o promotor Guilherme Meneghin indagou para um a gravidade do crime não acontece somente em falas como essa, mas também, por exemplo, Barragem de Fundão. Entre esses, Ricardo Vescovi, ex-presidente da Samarco, que, em setemspírito Santo (Findes). Também no mesmo mês, durante um evento em Nova York, Fernando na verdade, uma “fatalidade”. Essa sequência de acontecimentos deixa ainda mais evidente, ue ainda causam constantes danos às suas moradias, bens materiais e imateriais e, consequen-

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direito e tenho pesadelo com isso. De tudo que construímos nos 28 anos em Paracatu, só conseguimos salvar os animais, o álbum de formatura do Darley e as minhas fotografias de casamento. Até hoje, a Fundação Renova não garantiu nada pra gente. Eles dizem que a minha casa depende do cadastro. Eu já apresentei para eles dois terrenos para compra assistida, mas, cada vez que eles vêm aqui, começa tudo do zero. Sempre as mesmas perguntas. Sempre trazem alguém diferente. A única resposta que eu tenho, até agora, é que eles querem fazer uma casa dentro do mesmo terreno que foi atingido, mas em um local mais pra cima. Não querem comprar um outro. O meu desejo e o do meu marido é o de que eles comprem um lugar que fique perto do nosso antigo, que meu marido tem como herança da família dele. Nessa demora toda, estou com 46 anos. Não sei se vou ver o pé de jabuticaba brotando. Marta Peixoto, 46 anos, atingida de Paracatu de Cima

Foto: Daniela Felix

Foto: flávio ribeiro

faporrer. a os marpra pogar iras. O xou code resainmais uilo anela mais tes. mais mo

O cavalo Menino apresentava diversas falhas na pelagem, além de pouca movimentação na baia.

INDÍCIOS DE

NEGLIGÊNCIA SOA COMO DESCASO

Em uma manhã de sexta, eu saí de casa para ir ao povoado do Pimenta, na zona rural de Barra Longa, com o intuito de visitar a minha mãe. Quando estava na comunidade do São João, que é caminho, um senhor me pediu para ajudar a égua dele que estava com problemas no parto. Ajudei a fazer o nascimento do potro que o senhor queria sacrificar por acreditar ser muito prematuro. Eu, sem coragem, amarrei o umbigo do animal com uma corda de mariazinha e segui viagem. Na volta, torci pro potrinho estar morto e eu não precisar de sacrificar, mas, para a minha surpresa, estava no mesmo lugar, vivo e andando. Tratei de colocar ele dentro do carro e o trouxe para casa, onde criei na mamadeira. Dei o potrinho de presente para o meu filho Leonardo, que tinha quatro anos. Na hora, tive a certeza de que aquele era o melhor presente da sua vida pela emoção que senti em seus olhos. Eu posso dizer que eles cresceram juntos, pois sempre tratei o Dominó, como o batizei, igual a um filho. Depois do crime, a Samarco transportou a lama de rejeitos da praça de Barra Longa para o Parque de Exposições, lugar onde eu moro. Daí, todos os meus animais perderam a liberdade. Fui obrigado a colocar o Dominó dentro de um curral apertado, privando ele do espaço que tinha antes. A silagem, também fornecida pela Samarco, vinha cheia de pedras e imprópria para o consumo. Com dois anos e quatro meses, Dominó faleceu. Meu filho ficou muito triste. Para ver ele alegre de novo, comprei outro cavalo, o Menino, que também veio a falecer quatro meses depois. Ele sempre passava mal depois de comer esse tipo de silagem. Mais uma vez, a minha família sofreu com toda essa tristeza e com a dor da perda. Egberto Francisco de Sousa, 34 anos, atingido de Barra Longa


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Andanças de um repórter Sérgio Papagaio, atingido de Barra Longa, é repórter e distribuidor do Jornal A SIRENE. É ele quem entrega o jornal na casa de moradores de Barra Longa e de seus distritos - Gesteira e Barretos -, além de outros municípios da região, como Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce. Nessas andanças, Papagaio ouve histórias de muitos atingidos, pessoas que tiveram suas rotinas drasticamente alteradas e que lamentam o dia que a lama chegou em suas vidas.

Por Sérgio Papagaio Com apoio de Rafael Drumond

José mostra as rachaduras causadas pelo tráfego de caminhões da empresa.

“Até minha mãe, eles tiraram de mim” Numa madrugada de sexta-feira, a lama da Samarco chegava, para ficar, em Barra Longa. Agora, há quase dois anos, ouvi de Gilmar José dos Santos, atingido do Gesteira: “Sou evangélico. A reza serve para aliviar a cabeça da gente, dar conforto à alma. Fico pensando no que a Samarco fez com meus irmãos católicos, tirando o lugar deles se encontrarem com Deus. A casa de Deus é tão importante pra quem tem fé quanto a moradia de qualquer família. Eles [as mineradoras e seus proprietários] nos atingem de todas as formas. Veja só: eu e meus irmãos trabalhávamos em frente à casa de mãe, com vacas de leite e cavalos. Tiraram tudo de mim. Minha mãe, Geralda, perdeu duas casas e foi morar em Barra Longa. Meu irmão Reginaldo está em Acaiaca; eu, em Mariana, onde fico meses sem ver minha mãe. Até minha mãe eles tiraram de mim. Não tenho como cuidar dos meus cavalos, um até já morreu. Tive que vender as novilhas e as vacas que eu criava. Tive que vender barato, inclusive. Meus sonhos de me restabelecer em minha terra, Gesteira, foram mortos. Mudaram meu projeto de vida para uma página em branco. E, como se não bastasse, estou com um processo judicial por não pagar o arrendamento de um terreno, pois fiquei sem condições financeiras. Eu me pergunto todos os dias: sou atingido ou réu?” "Fui atingido outra vez" José dos Santos Pinto mora na Rodovia Edmundo Mariano da Costa Lana. Em visita à sua casa, percebi que o tráfego de caminhões pesados havia enchido suas paredes de rachaduras. Tudo por conta dos caminhões que andavam por ali com a lama retirada da praça de Barra Longa. “Fui atingido outra vez. Já fui garimpeiro e morador de ‘Suberbo’, lá em Santa Cruz [do Escalvado]. Lá, a Vale fez a barragem [para construção da hidrelétrica da Risoleta Neves] e expulsou a gente de lá. Aqui em Barra Longa destrói minha casa e não quer me pagar nada. Sou um pai temendo por minha família. Vão esperar a casa cair e matar a todos nós para tomarem uma atitude?”.

Gilmar, atingido que ainda não foi reconhecido. Fotos: Sérgio Papagaio

Como Milton não pode mais pescar, as varas servem para escorar as plantações.

Atingido sim, assistido não Lá na cidade de Santa Cruz, José dos Santos deixou um amigo: Milton de Carvalho Martins, também garimpeiro, hoje, morador do distrito Novo Soberbo - local onde a comunidade teve que ser reassentada após a construção da barragem pelo Consórcio Candonga, administrado pela Vale e pela Novelis, em 2004. Como o amigo José, Milton também se sente duas vezes atingido. Hoje, seu gado não pode mais beber água no reservatório da hidrelétrica, que foi esvaziado para retirada do excesso de lama da Samarco. Reclama, ainda, da falta de critério da empresa no reconhecimento dos atingidos, pois divide a propriedade do seu terreno com dois irmãos, sendo que estes foram assistidos pela empresa e ele não. Sem ter condições de garimpar, sem poder alugar seu terreno e sem poder pescar para ajudar no sustento da família, Milton, com os olhos lacrimejados, mostra a tralha de pesca apodrecendo. “Minhas varas de pesca só servem para escorar os pés de couve”. Nessas andanças de repórter, entregando o jornal em um monte de canto da Bacia desse Rio Doce, me deparo com fatos que me levam a crer: estamos abandonados pelos causadores do crime; um crime que está vivo e cresce a cada dia.


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Um gualaxo de patrimônio

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Fotos: Kleverson Lima

Por atingidos do Gualaxo do Norte Com o apoio de Mauro Lúcio Pinto, Luanna Ferreira, Kleverson Lima e Rafael Drumond

Imagine-se entrando em uma casa suja. Lá dentro, você se depara com uma pessoa que está varrendo apenas parte de um quarto. Você retorna à casa quase dois anos depois e encontra a mesma cena. Curioso, pergunta porque ela varre apenas esta parte do imóvel: “Me pediram para limpar só essa área, é o que estou fazendo”, responde. Essa imagem ilustra as ações de reparação referentes ao patrimônio cultural atingido em Mariana pelo rejeito da Samarco. Essa é uma das conclusões do diagnóstico preliminar produzido pela empresa Pólen Consultoria a pedido da Comissão dos Atingidos e da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais. O diagnóstico da Pólen analisou os projetos e relatórios feitos pela Samarco S.A. e pela Fundação Renova entre 2015 e 2017 e percebeu que as ações de reparação se ancoravam exclusivamente no TCP (Termo de Compromisso Preliminar), assinado no início da tragédia. Esse documento, elaborado emergencialmente pelo Ministério Público Estadual e assinado pela Samarco, previa apenas ações para o patrimônio religioso das localidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, e de Gesteira, em Barra Longa. Esse limite geográfico e temático é pouco ante o conjunto dos bens culturais atingidos direta e indiretamente no território do Gualaxo do Norte. O diagnóstico feito pela Pólen demonstrou essa realidade a partir de um levantamento amostral do patrimônio material e imaterial existente nessa região, como as ruínas de mineração de ouro, residências antigas, trabalhos artesanais e lugares tradicionais de banho. Verificou ainda que os moradores circulavam pelas localidades que formam esse território, onde compartilhavam suas experiências em dias de festejos religiosos e nas práticas da pesca e do futebol. Essas duas últimas foram praticamente eliminadas da paisagem do Gualaxo do Norte após a passagem do rejeito. O diagnóstico apontou para duas certezas: a necessidade de revisão do TCP e de produção de um diagnóstico feito com profundidade sobre os bens culturais do território do Gualaxo do Norte. Essas questões foram debatidas na última reunião do Grupo Técnico de Referência, realizada no mês passado. Esse grupo foi criado em maio deste ano para discutir a situação do patrimônio atingido em Mariana pelo rejeito, e conta com representantes dos Atingidos e sua Assessoria Técnica, da Fundação Renova, dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, e dos órgãos de preservação do patrimônio nos âmbitos municipal, estadual e federal. A Arquidiocese foi convidada para integrar o grupo, mas os seus representantes ainda não compareceram às reuniões.

Mauro Lúcio Pinto, atingido da comunidade de Ponte do Gama: “Eu vejo que a gente teve uma vitória muito boa nessa reunião. Primeiro, porque o MP participou e viu a nossa necessidade de alteração desse TCP. Também a empresa, ao participar, viu que a nossa cobrança não é em apenas duas comunidades, e sim ao longo de toda a região atingida de Mariana. Ela vai ter que fazer um diagnóstico mais profundo sobre patrimônio, porque ele envolve muita coisa. Esse levantamento impacta, inclusive, nossos danos morais.” Luanna Ferreira, assessora técnica na área de Patrimônio da Cáritas: “Compreendemos que o patrimônio das comunidades foi atingido nos seus mais diversos aspectos material e imaterial. Logo, necessitam de ações de reparação e mitigação que contribuam no processo de manutenção dos modos de vida dessas comunidades que já foram profundamente alterados com o crime. Essas alterações não podem tardar ainda mais, considerando-se passados dois anos. Ressaltamos, ainda, que, sem a participação dos atingidos, nenhuma ação é efetiva e legítima.” Kleverson Lima, um dos coordenadores do diagnóstico preliminar: “O território do Gualaxo do Norte foi o palco inicial desta tragédia ocorrida a partir do rompimento da Barragem de Fundão. As ações de reparação e compensação não devolverão a vida a essa região, como era antes do desastre tecnológico, e exatamente por isso elas devem ser pensadas com empatia, inteligência e sensibilidade. O patrimônio cultural é uma dimensão importante da vida dos Atingidos, ele representa os seus bens coletivos, aquilo que, para eles, tem um valor histórico e identitário, e ele merece, de todos os envolvidos em sua discussão, esse tipo de respeito.”


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Outubro de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

Dias de festas, vidas de fé

Foto: Silmara Filgueiras

Em setembro, o atingidos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Pedras celebraram as festas religiosas típicas em suas comunidades. Nesse ano, a comunidade de Paracatu presenciou a reabertura da igreja. Por Andreia Sales, Luzia Queiroz e Cristiana Aparecida Gonçalves Com apoio de Silmara Filgueiras, Wandeir Campos, Larissa Helena

Foto: Luzia Queiroz

FESTA DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS “Para o nosso grupo [Loucos pelo Bento], é muito bom ver que está aumentando o número de atingidos que frequentam as festas lá. Muitos não querem ir ao Bento, mas existem aqueles que estão começando a se interessar, até mesmo pra passar o final de semana lá com a gente. No ano passado, na celebração de São Bento, participaram, em média, 20 pessoas, já neste ano, na celebração de Nossa Senhora das Mercês, o número aumentou bastante. No domingo de manhã, estava limpando a porta de casa enquanto conversava com Dona Doca. Ela me dizia o quanto estava contente de estar lá: “Ah! Aqui o ar é bom”. Conversei com Maria Barbosa também, ela me contou que levantou cedo pra passear, ouvir os passarinhos e, na volta, pegou lenha pra cozinhar. Esses encontros em celebrações religiosas têm nos dado a oportunidade de voltarmos a ser a família Bento Rodrigues.” Andreia Sales

DESRESPEITO

FESTA DO MENINO JESUS “A comunidade de Paracatu se reuniu mais uma vez. E, dessa vez, o Senhor Zezinho caprichou. A festa estava toda preparada para receber a comunidade em mais uma comemoração e momento de alegria. No sábado, o transporte programado não foi à cerimônia do levantamento do mastro, mas, graças à garra do povo, a bandeira chegou até o local onde aconteceu a solenidade esperada. No domingo, a comunidade estava pronta para o dia festivo. A maior conquista foi a reabertura da nossa igreja e a missa celebrada pelo Padre Alex, nosso novo pároco. Agradecemos a presença de todos nesse dia, em especial, aos companheiros e companheiras do Ministério Público, da Assistência Técnica, do MAB, do Gesta e de amigos e moradores das redondezas. Temos que manter a nossa memória, não podemos permitir que nossas tradições mudem a qualquer custo. E, como o padre disse, "a união acima de tudo". Não vamos abandonar nossas tradições. A vida segue o seu curso, mas tem que ser um curso real e não fantasioso e imaginário. Tudo vai passar, mas a memória não pode ser danificada. Que venha a festa de Nossa Senhora Aparecida!” Luzia Queiroz

Desde o rompimento criminoso da barragem, temos que dar satisfação para tudo que vamos fazer no Bento e pedir permissão para diversos órgãos, entre eles, a Renova/Samarco, que se sente dona de Bento. Quando voltamos a frequentar o local, solicitamos a limpeza não só das ruas, mas também que fosse retirado todo o rejeito. Mas a empresa insiste em fazer apenas paliativos, como o que foi feito no dia da festa das Mercês. Ao invés de tirarem a poeira, preferiram molhar. Como é um local onde a água não escoa, formou-se uma enorme poça de barro justamente onde a procissão ia passar. O pessoal da Renova/Samarco não deu solução pro problema, mas, como o povo do Bento está acostumado com desafios, Marquinhos de Marinalda, Marquinhos de Nita, Magno e Cristiano, em alguns minutos, tiraram cerca de 5 mil litros de água e lama com baldes. Mais uma vez, tivemos que solucionar mais um problema causado pela mineradora. Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Foto: Lucas Bambozzi

“A celebração da Festa do Menino Jesus acontece desde 1984. A Folia de Reis sai de Pedras e, durante duas semanas, recolhe doações nas outras comunidades, como Cuiabá, Goiabeira, Engenho Fernandes, Barretos e Campinas. O dinheiro arrecadado é guardado para realizarmos a Festa, que acontece no mês de setembro. As festividades se iniciam na sexta, quando nós, da comunidade, nos reunimos para organizarmos a igreja de Santo Antônio de Pedras. Já no sábado, o momento mais importante é quando levantamos o mastro da bandeira e encerramos a novena com as músicas da Folia de Reis. No domingo, tivemos a passeata de cavaleiros e carros, que saiu do bar do Lulu, em Águas Claras. Lá, por volta de 14h30, a imagem do Menino Jesus foi colocada na igreja e, logo em seguida, a missa foi celebrada pelo Padre Alex. Encerramos a festa com um jantar na escola, reunindo todos aqueles que participaram dessa tradicional celebração.” Cristiana Aparecida Gonçalves


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Outubro de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

Onde o coração fez morada

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Fotos: Larissa Helena

A ida para Bento Rodrigues aos finais de semana tem se tornado uma atividade cada vez mais comum para alguns moradores do subdistrito. A família de Terezinha foi a primeira a voltar a ocupar o território - quando a Samarco ainda proibia o acesso dos moradores ao local. A propriedade foi reformada e, com criatividade, soluções foram encontradas para os danos causados pela lama e pelos saques ocorridos após o desastre. Esse retorno tem se tornado cada vez mais importante, sobretudo, quando se considera a demora e a desesperança que cresce com o atraso nas obras de reassentamento da comunidade.

Por Maria das Graças Quintão e Terezinha Custódio Quintão Com o apoio de Larissa Helena Na foto: Sandro, Simaria, Mônica, Dona Maria, Genival e Olivia

“Quando a gente vai para o Bento até o semblante nosso muda, a gente fica feliz. É só ver que tá chegando e o coração nosso até bate mais depressa.” – Terezinha, sobre o sentimento de retornar. Era um domingo de sol, daqueles que saem depois de uma madrugada inteira de chuva. Quando chegamos à casa de Terezinha Custódio Quintão Silva, 51, em Bento Rodrigues, ela não estava, mas fomos recebidos por Dona Maria, irmã dela, que logo gritou da cozinha: “Venham tomar café”. E fomos. Uma garrafa térmica cor de rosa e um pão de queijo saboroso, daqueles que você começa a comer e não quer mais parar. No mesmo ano do rompimento da Barragem de Fundão, Terezinha ia completar 28 anos morando nessa casa. Diferentemente do que enfrenta hoje, nunca havia morado de aluguel. Foi a família e os amigos de Terezinha que iniciaram a ocupação em Bento Rodrigues como símbolo de luta, resistência e direito à preservação da memória. Nas primeiras vezes que voltaram ao Bento para dormir, ficaram acampados na rua, sem infraestrutura, mas, aos poucos, foram reformando e levando mantimentos. Hoje, a casa tem condições de os acolher. Neta de Dona Maria, Olívia, 9 anos, é quem alegra a família toda. Foi com ela que saímos da casa e fomos em direção à antiga quadra. No caminho, a menina ia dizendo de quem era cada casa, mostrando os fragmentos de memória que permaneciam ali naquela lama. As

fortes lembranças também saem nas palavras dela: “Eu brincava aqui, tá vendo? Meu lugar preferido agora só tem lama, lama e mais lama”. Quando vemos a casa pelo lado de fora, a impressão que se tem é de um espaço em reforma. As janelas acabaram de ser colocadas e o cimento está aparente, junto com os tijolinhos coloridos que mostram o que precisou ser refeito. O que antes era a sala, com sofá e televisão, agora é preenchido por um banco comprido de madeira. Os lençóis coloridos imitam a porta que já não existe e escondem o íntimo que ainda vive ali. Camas, malas, tralhas. O banheiro é improvisado. Por sorte, a única coisa que não saquearam da casa foi o vaso sanitário. O chuveiro adaptado é a nova invenção da família. Sentir-se em casa é o que acontece quando se vai para o terreiro. Os restos da noite anterior ainda estão por lá: pratos e panelas vazias da casa. Dona Maria nos disse que fez canjiquinha para a janta e que estava tão gostosa que não sobrou nada. A vivência que agora só acontece aos finais de semana e feriados é a maneira como Terezinha, Dona Maria e os demais que foram chegando encontraram para sobreviver ao caos de uma nova rotina: as reuniões, a cidade, o preconceito, o estranhamento, a adaptação. “Eles não podem derrubar aquilo lá, é nossa história, nossa memória.” – Dona Maria Ao se despedir, Dona Maria sorriu e fez o convite: “Voltem mais vezes aqui pra casa da gente”.

Chuveiro improvisado na casa de Dona Terezinha.

Olívia brincando no espaço onde era a praça.


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PARA NÃO ESQUECER

Vai, Paraca! Por Luzia Queiroz, Nilton César, Romeu Geraldo e Paracatu de Baixo Futebol Clube Com o apoio de Daniela Felix e Wandeir Campos

Depois que a lama passou e estragou tudo, o Paracatu F.C. ficou sem campo, sem uniforme, sem torcida e somente os poucos troféus e medalhas que resgataram. O time conseguiu autorização para treinar no campo do Marianense F.C., em Mariana, mas, como a turma só chega do trabalho por volta das 18 horas e o lugar não possui iluminação, o treino não acontece. É diferente de Paracatu, onde os jogadores se encontravam às quartas e quintas-feiras e, às vezes, aos sábados. Agora, só se vêem em campo no dia do jogo. O time solicitou à Fundação Renova/Samarco o uniforme oficial que foi perdido, mas não foi atendido. Hoje, jogam com roupas emprestadas de um dos jogadores. A torcida também diminuiu porque o transporte não é disponibilizado pela fundação/empresa em todos os jogos, apenas quando o mando de campo é da comunidade. Antes, com o campo perto, um número maior de moradores de Paracatu conseguia assistir aos jogos, inclusive pelas janelas de casa. Mesmo diante de todos os obstáculos, Paracatu resiste. No último domingo, o time jogou contra o Unidos de Santa Rita. Na torcida, estavam Isolina, André, Adriano, Isaías, Amanda, Rafaela, Bodão, Fabricio, Felipe, Heriberto, Caetano, Luzia, Soraia, Diogo, Fotos: Daniela Felix

Paulo, Sauá, Dirceu, Poliana, Dona Efigênia e seus netos, entre outros. Moradores do distrito que foram até Passagem de Mariana para ver o Paraca jogar no campeonato da segunda divisão distrital. O presidente do time, Nilton, cobrava: “A saída de bola! Bola no ar não adianta não, gente! Tem que ser bola no chão. Rápido! Cabeçada de bola não é pra trás, é pra frente!”. Moisés, camisa 17, se machucou no primeiro tempo. O massagista, Seu Roberto Carlos, correu para ajudá-lo. De longe, dava para escutar o nervosismo dos torcedores: “Nó, gente! Tá doido, sô?”. O time de Santa Rita marcou o primeiro gol. Enquanto isso, Daniel e Heleno comentavam: “A gente aqui fora sofre mais do que quem tá lá jogando”. “Salva, Marcelo. Rebate o time de Paracatu. Nilo toca pra Ricardo. Tocou bonito!”narrava Romeu. No segundo tempo, Weverley marcou o primeiro gol do Paraca. O resultado do jogo foi 2x1 para o time de Santa Rita, mas o mais triste não foi a derrota e sim ver todo mundo voltando para uma casa que não é sua, para uma realidade que não convém. Cadê o bate-papo após o jogo sobre os acertos e erros, reunidos no bar do Machadão, do Carlinhos,

Em sua sétima edição, o Jornal A SIRENE publicou a matéria “Paracatu: Memórias da Bola”, que relatava as dificuldades enfrentadas pelos times de futebol da comunidade após o rompimento da Barragem de Fundão. Passados um ano da publicação e quase dois do desastre, o Paracatu F.C. continua sem local apropriado para treino, sem uniforme e sem o suporte dos responsáveis pelo crime e pela reparação de danos. do Jairo e do Banana? Isso é o que dói. A cada partida, esperamos o coração pegar no tranco. Apesar de toda a saudade do campo do Paraca, a expectativa é grande para o jogo de volta, que acontece no dia 8 de outubro, no campo do Santa Rita.

Paracatu vs Unidos de Santa Rita Campeonato da Segunda Divisão Distrital Oitavas de Final

Escalação 1 Rafael - goleiro 3 Ícaro - centro avante 6 Eberton - lateral esquerdo 7 Moisés - meio de campo 11 Heleno - atacante 13 Bilico - meio de campo 16 Lidson - meio de campo 17 Dodô - zagueiro 19 Tetê - ponta direita 20 Marcelo - lateral direito 23 Jacir - zagueiro

Reservas Samuel, Dado, Gerson, Alexandre, Webert, Weverley, Vitor, Vavá, Gilbert


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PARA NÃO ESQUECER

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AGENDA DE SETEMBRO

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Evento GESTA - Territóiio/Mineração na UFMG - BH

Festa do Menino Jesus em Paracatu

Fórum Brasileiro de Educação Ambiental O que é? As atingidas Rosária Frade e Luzia Queiroz participaram do 13º Festival Cultural em Santa Catarina que discutiram sobre questões ambientais com a participação da Professora da UFOP Dulce Maria Pereira.

20

Coletiva de Imprensa com jornalistas de Belo Horizonte Local: Casa dos Jornalistas (BH)

21 a 24 24

Foto: Wandeir Campos

Tríduo e Festa de Nossa Senhora das Mercês em Bento Rodrigues

Festa do Menino Jesus em Pedras

AGENDA DE OUTUBRO

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9

Audiência Pública Horário: 9h Local: Fórum de Mariana

Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Festa de Nossa Senhora Aparecida Horário: Confira com as comunidades Local: Bento Rodrgues, Paracatu de Baixo e Ponte do Gama

24 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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10 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

31 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

Agenda sujeita à alterações


Editorial Lançamos este jornal todo dia 5 - data que, desde novembro de 2015, tornou-se marcante em nossas vidas. Neste mês, esse lançamento coincide com uma importante audiência pública, na qual serão discutidas as principais frentes da nossa luta: o reconhecimento de atingidos por parte da Fundação Renova/Samarco, as discordâncias da empresa em relação às reivindicações que levamos para reconstrução do Cadastro e aspectos importantes do reassentamento das comunidades. Dessa vez, esperamos sair do encontro sem ouvir nenhum advogado das empresas dizer “e daí?” para nosso sofrimento. Sim, isso aconteceu na última audiência da qual participamos, realizada no dia 23 de agosto. Ali, o descaso das mineradoras em relação aos atingidos foi colocado em palavras, mas, a verdade é que escutamos todos os dias, de muitas formas, esse “e daí”. Infelizmente, trazemos, mais uma vez, casos de negligência da empresa em relação aos problemas causados por ela à vida de diferentes atingidos. Contudo, apesar da lentidão dos processos e de todas as dificuldades - que, somadas, tanto pensam - propusemo-nos, nesta edição, um olhar diferente para nossa luta. Sem esquecermos dos desafios diários que nos cabem, o Jornal A SIRENE se fez criança e buscou, neste mês de outubro, um olhar de esperança e otimismo em relação ao futuro incerto das comunidades atingidas. As sireninhas das escolas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira se somaram e encheram as páginas do nosso jornal de combustível para o futuro. Juntas, escreveram as manchetes que gostaríamos de noticiar: comunidades reassentadas, pagamento de indenizações justas, o fim dos piolhos e estrogonofe na merenda escolar! Enquanto as manchetes do futuro não se realizam, as boas notícias - agora, reais - chegaram para o patrimônio das comunidades atingidas de Mariana. Em setembro, foi encaminhado, dentro do Grupo Técnico de Referência, a necessidade de revisão do TCP (Termo de Conduta Preliminar) que orientava os trabalhos da Renova/Samarco na área, bem como o indicativo da necessidade de um diagnóstico mais profundo em relação aos bens culturais materiais e imateriais do território cortado pelo Rio Gualaxo do Norte. Uma grande vitória, afinal, é importante lembrarmos que patrimônio não é só uma capela ou uma igreja, mas também as bonitas festas que os moradores de Bento e Paracatu, respectivamente, dedicaram a Nossa Senhora das Mercês e ao Menino Jesus no mês passado. Ele é formado por nossos costumes, pelos lazeres que tínhamos e que perdemos, pelas cachoeiras, grutas e cavernas que compunham a paisagem de nossos territórios. Por isso tudo, nosso patrimônio é rico, diverso, secular. Ele está nos festejos, nos saberes, nos ofícios e em nossos hábitos. Está no campeonato de truco e nas partidas de futebol que não abrimos mão de disputar. Está no valor de nossas terras, no prazer inexplicável de estarmos no lugar onde passamos toda a vida e onde estão nossas referências. Que o diga Dona Teresinha e sua casa, em Bento Rodrigues - espaço que, todo final de semana, reúne alguns moradores da comunidade. Vamos para lá aos fins de semana para renovar as energias e sentir o gostinho bom de voltar pra casa, de dormir sob o céu de Bento e acordar com um frescor de dia que a gente só sente por lá. Sim, somos loucos pelo Bento, assim como somos loucos por Paracatu de Baixo e Paracatu de Cima, loucos por Camargos, Ponte do Gama, Pedras, Borba, Campinas, Barretos, Gesteira, Barra Longa. E por aí vai, rio adentro. Somos loucos pela terra que é nossa e que, ao contrário que a empresa quer, não poderá ser comprada com lama. Nossas vidas não estão à venda e, por isso, dizemos NÃO a qualquer proposta de venda ou permuta de nossas propriedades. Não há dinheiro que pague a memória que cultivamos nas terras da gente. Lutamos, hoje, por um futuro promissor, visto com os olhos e com as expectativas de uma criança, erguido a partir da sabedoria e da substância do tempo. Temos história que nos precede, história que há de nos suceder.


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