A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição 18 - Setembro de 2017
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A SIRENE
Setembro de 2017 Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER
POR QUE DIZEMOS NÃO AO
jornal da Renova A Fundação Renova/Samarco criou um veículo de comunicação impresso, no qual espera legitimar, entre outras coisas, ações de reparação que retratam um lado da história, com um discurso que seria mais fácil de engolir. Posterior à isso, no dia 14 de agosto, a Renova compareceu à Comissão dos Atingidos para fazer um convite de “participação”. Agora, trazemos os depoimentos dos atingidos que manifestam os motivos pelos quais a maioria deles se recusou a fazer parte do “jornal da Renova”.
NOSSA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ESTÁ AQUI
Seja qual for a mídia e, principalmente a que está em questão, o jornal da Renova, percebemos que, ao longo do tempo, ela pode ser interpretada de várias formas. Então, decidimos de comum acordo com a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão que já temos o jornal A SIRENE, que é o veículo que nos dá liberdade para contar as nossas histórias, passar as informações e fazer os esclarecimentos. Nós sabemos que a Renova não tem essa preocupação. A nossa luta está registrada em documentos que podem ser acessados por todos. Portanto, qual a necessidade de se fazer um outro jornal? Já que eles vão fazer, que façam os esclarecimentos sobre suas ações em seu próprio jornal, pois todos desejam saber sobre eles, inclusive nós. Luzia Queiroz, da Comissão de Paracatu de Baixo NÃO FAZ SENTIDO DIVULGAR O QUE NÃO FAZ
Eu não escreveria no jornal da Renova porque ela criou ele simplesmente para divulgar as coisas que são do interesse dela. Os atingidos já têm um jornal, que pertence a gente. Então, não faz sentido eu compartilhar desse jornal que a Renova está criando e ajudar a divulgar as coisas que ela não faz. Acho que, ao invés da Renova criar um jornal, ela deveria olhar mais pelos atingidos, tomar uma providência séria com relação ao reassentamento e com as pessoas que estão sendo prejudicadas aqui na roça. Marino D’Angelo, da Comissão de Paracatu de Cima NOSSO JORNAL É O A SIRENE
ATENÇÃO! Não assine nada
Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
Não vamos escrever com eles porque já temos o nosso próprio jornal, e que nos representa muito bem. Por isso, não vejo a necessidade de se ter outro. Mônica dos Santos, da Comissão de Bento Rodrigues QUEREM MUDAR DE ASSUNTO
Não vou escrever no jornal da Renova porque eu sei que eles querem mudar o foco da situação. Tem muita coisa para ser feita e agora eles vêm com essa ideia de fazer um jornal. Só sei que à toa é que não é. Conceição Santos, atingida de Ponte do Gama NÃO PODEMOS COMPACTUAR COM ELES
Eu não escreveria no jornal da Renova porque seria mais uma maneira de levar a mentira ao povo. Falar que ela está fazendo, mas na realidade, não acontece. Além disso, seria mais uma forma de promover injustiças. Eu, como atingida, jamais poderia compactuar com a Renova, por vivenciar todos os dias as injustiças e a crueldade da qual eles fazem com os atingidos, tanto por mim quanto por minha filha. Simone Silva, atingida de Barra Longa NÃO SE DEIXE DESMOBILIZAR!
Atingido/a: Nos últimos meses, a Renova/Samarco passou a investir em visitas individuais às famílias, feitas casa a casa. Não deixe que a estratégia da empresa o afaste dos espaços de decisões e reflexões coletivas. É muito importante que as comunidades busquem estar próximas, tendo em vista a garantia de direitos que são coletivos. Em caso de dúvidas, procure a Comissão dos Atingidos da sua cidade (Mariana ou Barra Longa). Endereço da Comissão de Mariana: Rua Wenceslau Braz, 738, Centro.
Expediente Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Kleverson Lima, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Genival Pascoal, Larissa Helena, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana)| Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Flávio Ribeiro | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Publico de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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DIAGRAMAÇÃO: FLÁVIO RIBEIRO
O que a mídia (não) diz... Por diversas vezes os atingidos não se reconhecem nas reportagens produzidas sobre eles, principalmente porque boa parte dos fatos noticiados não condizem com a realidade vivenciada. Sendo assim, nesta edição, o Jornal A SIRENE prôpos a alguns dos atingidos corrigir títulos de matérias publicadas por diferentes veículos de comunicação.
Por Genival Pascoal, Mauro Marcos, Mônica dos Santos e Zezinho do Bento Com o apoio de Flávio Ribeiro e Wandeir Campos
...nós dizemos
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de en Direito
tender
REASSENTAMENTO: ASPECTOS JURÍDICOS DOS PROBLEMAS CAUSADOS PELA SAMARCO/ FUNDAÇÃO RENOVA De medição errada dos terrenos à falta de discussão com os interessados, passando pelo não registro dos imóveis, entenda os motivos do atraso no reassentamento das comunidades atingidas pela lama da barragem do Fundão em Mariana – todos de responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP
Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça
Após 22 meses do rompimento da Barragem, estrutura das novas comunidades ainda não sairam do papel. Na foto, tereno de Lavoura.
Foto: Lucas de Godoy Diagramação: Flávio Ribeiro
Praticamente aniquiladas pela lama formada por rejeitos de minério de ferro oriundos do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu aguardam, até hoje – passados praticamente dois anos do crime – a reconstrução de suas casas e o regresso das famílias aos seus locais de origem. Para garantir mais este direito dos atingidos, o Ministério Público de Minas Gerais, por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana, ajuizou ação civil pública contra as empresas Samarco, Vale e BHP exigindo, dentre outros direitos, o reassentamento das comunidades (processo n. 0400.15.004335-6). Apesar da relutância inicial, na audiência do dia 28/11/2016, as empresas responsáveis pelo desastre assumiram a obrigação de realizar o reassentamento das comunidades destruídas. Para tanto, criaram a Fundação Renova, que ficou responsável por executar as obras. Todavia, o processo de reassentamento é complexo, pois exige, antes de iniciar as construções, uma “autorização” do Estado de Minas Gerais, que é obtida com o licenciamento ambiental executado na Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD). Assim, para instaurar o licenciamento a Fundação Renova precisa encaminhar diversos documentos, especialmente relativos à propriedade dos terrenos ondem serão realizadas as construções, os projetos urbanísticos pretendidos e a comprovação de que as áreas observam o Plano Diretor Municipal. Lamentavelmente, foi justamente em tais pontos que a Fundação Renova falhou, frustrando as expectativas dos atingidos. Inicialmente, constatou-se que a Fundação Renova não registrou os imóveis comprados para os reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu. Quanto aos terrenos para reassentar Paracatu, verificou-se também que a entidade ainda não adquiriu todos
os imóveis necessários. Em segundo lugar, o projeto da poligonal urbanística de Bento Rodrigues, elaborado pela “equipe técnica” da Fundação Renova, invadiu áreas de alta declividade e de Mata Atlântica, o que é vedado pela normatização brasileira. Logo, será necessário reajustar esse projeto, de forma participativa, para que possa ser encaminhado à SEMAD. Além disso, as áreas almejadas para os reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu ainda não foram incluídas no vetor de crescimento urbano do Plano Diretor do Município de Mariana. Isso significa que as áreas rurais devem ser convertidas em urbanas, para que possam ser edificadas casas, ruas e demais construções. E por fim, por mais absurdo que pareça, a Fundação Renova fez medições equivocadas dos terrenos – um erro primário, que vem atrasando ainda mais o processo de reassentamento. De acordo com o Estatuto da Cidade, a mudança das características de um terreno exige a promulgação de uma lei municipal, que deve ser precedida da realização de audiência pública. Há uma responsabilidade compartilhada: cabe à Fundação Renova apresentar os limites geográficos das áreas destinadas aos reassentamentos e ao Município de Mariana alterar a legislação municipal baseado nos dados fornecidos pela Fundação Renova. Nesse sentido, os problemas no processo de licenciamento ambiental e no reassentamento são de responsabilidade exclusiva das empresas responsáveis (Samarco, Vale e BHP) e da Fundação Renova, que devem adotar as medidas para corrigir os equívocos descritos. Vale dizer que, no intuito de contribuir para compreensão e solução desses impasses, o Ministério Público coordenou a audiência pública realizada no dia 01/06/2017, com a participação de todos os envolvidos: Atingidos, Cáritas, SEMAD, Município de Mariana, Cartório de Imóveis, Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP. Espera-se que os órgãos púbicos e as empresas responsáveis cumpram as deliberações da audiência, para evitar outros transtornos, sem prejuízo de novas ações judiciais e extrajudiciais a serem desencadeadas pelo Ministério Público.
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EM BUSCA DE BEM ESTAR
Para os atingidos de Fundão, a vida se tornou muito difícil desde o rompimento da barragem. A tristeza com as perdas deixadas pela lama soma-se à ansiedade causada pelos desafios do presente e às incertezas do futuro. Nesse contexto, muitas pessoas acabam interiorizando os problemas vividos, o que tem gerado quadros de saúde fragilizados. No caso da saúde mental, os problemas são, muitas vezes, diminuídos ou ignorados em sua importância, o que faz com que muitos pacientes não busquem o devido suporte clínico-terapêutico. Para esclarecer alguns pontos ligados à essa assistência em Mariana, o Jornal A SIRENE conversou com a equipe responsável pelo acompanhamento em saúde mental e apoio psicossocial dos atingidos: o Conviver, uma iniciativa ligada à Secretaria de Saúde do município.
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Por Equipe Conviver Com o apoio de Rafael Drumond
Como diferenciar a tristeza da depressão? Como saber quando devo procurar ajuda profissional?
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Tristeza é um sentimento comum. Todo mundo sente tristeza. Faz parte das nossas emoções. A tristeza é vivida e sentida desde situações comuns, como uma discussão com um amigo ou familiar, até momentos mais graves, como a perda de um ente querido. Já a depressão é uma doença. É uma alteração do humor que compromete de forma global a rotina de vida da pessoa enferma. Alguém com depressão apresenta sintomas, como perda de energia e interesse, alteração problemática de sono e apetite, diminuição da autoestima e autoconfiança, oscilações de humor (episódios depressivos ou de ansiedade), isolamento (as pessoas que não saem de casa ou estão sem convívio social mínimo), uso abusivo de álcool e outras drogas, uso abusivo de medicação (aqui estão incluídas as pessoas que fazem automedicação). A procura por ajuda deve ocorrer sempre que, pelo menos, dois desses sintomas estiverem presentes e por um tempo prolongado, e a própria pessoa, algum familiar ou alguém próximo identifique prejuízos na rotina de vida desse indivíduo.
Como lidar com pessoas próximas – amigos e familiares – que estão precisando dessa ajuda, e se negam a qualquer tipo de tratamento? Ao contrário de outros problemas de saúde, as pessoas têm muita resistência em procurar ajuda ou atendimento quando se trata de um adoecimento psíquico. Infelizmente, um número grande pessoas associa as questões de saúde mental à fraqueza e à falta de força de vontade por parte de quem está sofrendo. Assim como qualquer outro adoecimento, o sofrimento mental precisa de acompanhamento e tratamento adequado. Em primeiro lugar, a família e os amigos devem entender isso. Em um segundo momento, é importante sensibilizar a pessoa que está sofrendo de que buscar ajuda vai fazer com que ela tenha o suporte adequado para lidar com seu sofrimento. Por fim, é importante que todo esse processo seja feito sem nenhum tipo de julgamento sobre a pessoa que está sofrendo.
Quais são os meios de atendimento disponibilizados aos atingidos? Como faço para buscá-los? Toda uma estratégia de cuidado e apoio em saúde foi organizada para os atingidos. Essa estratégia foi organizada a partir da rede de saúde do SUS no município, que oferece um atendimento integral (em todas as necessidades de saúde dos atingidos) e contínuo. Para os atendimentos específicos em saúde mental, os atingidos contam com ações organizadas pela equipe do CONVIVER - Centro de Atenção Psicossocial e também da Unidade Básica de Saúde (UBS) de Bento/Paracatu. A UBS, por meio da Estratégia de Saúde da Família, é a responsável por fazer o acompanhamento contínuo e constante dos atingidos e encaminhá-los para qualquer atendimento especializado quando houver necessidade.
NOTA CONVIVER - ACOLHIMENTO SAÚDE MENTAL A equipe CONVIVER oferta cuidados em saúde mental aos atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão. É formada por psicólogos, assistente social, psiquiatra, terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais que trabalham para o acolhimento dos atingidos em atendimentos individuais e em grupos. Realizamos trabalhos com crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Para conhecer nosso trabalho, venha para o nosso acolhimento! Todas as sextas-feiras Horário: 8h às 12h Local: Unidade Básica de Saúde Bento/Paracatu (Rua Wenceslau Braz, 451, centro).
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Fotos: Luiza Geoffroy e Lucas de Godoy
Papo de cumadres Por Sérgio papagaio
- Cumadre, veja só que dor mais duída, num consigui durmi uma Ave Maria de tanta agunia, lembrei du meu taxu de cobre e de minhas duas bacia. - Pois é, parece telepatia, nós duas sofre da mesma tristeza, se ocê num drumiu nada, eu também passei essa noite numa peleja. - Mas pru quê num drumiu? Cê parece tão avechada, olhandu pra lá da istrada. - Lembrei du meu casamentu, casei nu mês da inchente, a cheia levô du meu marido todo us mantimentu, num sobrô nem pro sustentu. - Mais pru quê lembrá dissu nesse momentu? - Num tive dinheru pra festa, u tiquin que possuía, eu guardei pra ajudá na dispesa e garrei uma micharia pra pagá o retratista que o meu casamento, com o retratu, eternizaria. - Ainda num tô entendenu essa sua agunia! - Cumadi, minha fia, a lama da Samarcu levô minha fotografia, levô também o caxote de guardá mercaduria. - Aqueli que ocê herdô da sua tia Maria? - Aquele mesmo, tava lá dentro o mais precioso bem que possuía, o meu retrato, enrolado num panu onde vó Beija tinha bordadu a Santa Famía, e me presentiou nu dia em que eu e meu falecidu Antônio a nossa famía começaria, que, ao longu de 50 anu, só foi eu, Antônio e a fotografia. - Ocê num teve fio né, cumadre? - Tive uma única fia, que era minha fotografia. - No caixote, tinha mais arguma coisa de valor além du retratu e o panu que sua vó bordô? - Tinha uma Bíblia Sagrada que tinha sidu abençoada pelo Santu Padre José, lá de Barra Longa, cinco fita das Fia de Maria, a minha, de vovó, de Lúcia, minha irmã mais minina, de tia Francisca e madrinha Felícia, todas elas falecidas. - Pois é, cumadre, o zôto pensa que perdê é só coisa de valô materiá, ês num pensa nu sentimentá. É faci construí ponte e até fazê otru arraiá, mais us trem que nós amava, as rupinha das minha menina, principalmente a da Catarina, que Deus a tenha du lado de lá, quandu nós vai recuperá?
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Diagramação: Carlos Paranhos
Bens únicos
(que se foram)
As pessoas que moravam no caminho percorrido pela lama perderam incontáveis bens materiais. Desde aquisições possibilitadas pelo trabalho diário - eletrodomésticos, animais, toda uma casa - até aqueles pequenos objetos que, com carinho, foram guardados ao longo de uma vida. Em Mariana, com a reelaboração do “Cadastro Integrado”, esses pequenos bens, de preço inestimável e impossível substituição, serão considerados para a indenização dos atingidos: um ressarcimento mínimo que não poderá repor a importância daquilo que lhes foi tirado. Por Andréia Aparecida Sales, Jucele Frade, Marinalva dos Santos Salgado e Manoel Marcus Muniz Com o apoio de Carlos Paranhos e Wandeir Campos
Na sala da casa da minha família, lá no Bento, tinha um retrato da minha avó materna. Era a única memória que eu, Andréia, tinha dela, já que, quando nasci, ela já tinha falecido. Eu lembro direitinho: a moldura era marrom e cheia de detalhes. Por trás do vidro, estava a imagem ampliada dela, em preto e branco. Eu e minha mãe tínhamos o maior cuidado com o retrato. Fazíamos questão de mantê-lo pendurado bem alto pra todo mundo ver. Era a única foto que tinha dela lá em casa. Agora, não tenho mais nenhuma, nem na casa dos meus outros parentes. Nenhum valor vai suprir isso, é uma coisa muito pessoal. Como alguém vai poder pagar a única lembrança de alguém tão importante para mim? Comecei a treinar com os cavalos desde criança. Que eu me lembre, foi aos sete anos de idade, quando meu pai comprou uma égua para mim, Jucele, e para minha irmã. Depois disso, minha mãe comprou uma casa em Paracatu de Baixo, onde eu treinava livremente. Disputei na categoria mirim até me tornar uma amazona. Já são mais de vinte anos na cavalgada. Como todo competidor, juntei os troféus que ganhei em uma prateleira na casa da minha mãe. O número certo de troféus não sei
dizer, mas eram mais de 150. Nunca imaginamos que a casa onde a gente morava ia ser soterrada por lama, por isso, nem foto tiramos da prateleira. Pelo visto, isso não é contado como perda para a empresa. Mas deveria ser. Três dias antes do meu marido morrer, ele fez questão de escrever em uma agenda diversos recados para mim, Marinalva. Ele já sabia que poderia falecer a qualquer hora por conta de um problema saúde, então quis deixar alguns relatos sobre os 22 anos que estivemos casados. Eu nem gostava muito de ler a agenda porque ela me lembrava de momentos delicados, mas gostava de mante-la sempre perto de mim, para eu ter uma recordação dele. Fiz questão, também, de guardar a camisa que ele vestia no dia do seu falecimento: era cinza com o nome da companhia onde trabalhava escrito. Esses objetos eram muito importantes, por isso, pretendo colocar eles de alguma forma no novo cadastro. Preciso ter esse direito assegurado. Eu, Marquinhos, tinha uma coleção de notas e moedas antigas. Tinha réis, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, e outras tantas. Juntava todas em um estojo velho que tinha desde a época de colégio. Ele estava tão cheio que a fechadura estava até emperrada.
Lá no Bento, quando capinava as minhas terras, sempre encontrava umas pratinhas. Creio que, no total, tinha mais de cem. As notas eram umas trinta. Guardava elas separadas, em outro pacote. Olha, como já achei alguns pertences meus no Bento, quem sabe um dia eu não encontro o estojo com as moedas dentro? Elas não acabam tão fácil. LUTANDO PELOS SEUS DIREITOS Andréia, Jucele, Marinalva e Marquinhos, assim como outros atingidos, reivindicam respostas da Samarco para que as questões acerca dos bens únicos sejam, de fato, contempladas no novo Formulário do Cadastro Integrado - instrumento que levantará as perdas ocasionadas pelo rompimento de Fundão -. Desde abril, eles estão em diálogo com a Assessoria Técnica dos Atingidos de Mariana para tratar, entre outros eixos de indenização, dos bens imateriais que se perderam com o rompimento. No primeiro formulário que a empresa tentou aplicar em Mariana - e que vem sendo utilizado em outras regiões da Bacia do Rio Doce -, esses bens não eram considerados em sua “totalidade”, mas sim excluídos no valor afetivo e importância na trajetória de vida de cada atingido.
Dentre os bens citados, apenas dois troféus, pertencentes a Jucele, foram resgatados. Na imagem, eles ainda estão sujos pela lama que destruiu os outros muitos objetos de suas conquistas. A prateleira, também encontrada em Paracatu pós desastre, hoje sustenta o vazio.
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Não te ver ...
A vida dos atingidos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo na sede de Mariana é uma sequência de rupturas. A primeira delas, e a mais sentida, já no 5 de novembro de 2015, foi a adaptação forçada a um cotidiano sem a convivência com os vizinhos de sempre. Relações tão importantes a ponto de serem ine ciáveis no processos de reconstrução das comunidades: “Tem que manter a vizinhança”. É o caso de Servulo, que ficava a uma porteira de distância de Antô O de Cecília, que vivia próxima à Efigênia. Manuel Pereira morando lado a lado com Kaé. E, ainda, de Maria do Carmo, que criava os filhos meio a meio c os pais. Depois de 22 meses, vários deles continuam sem se ver ou, ao menos, ter notícias um do outro. E mais um rompimento logo surgirá no retorno às no moradias. Além de terem o desafio de retomar uma amizade interrompida, os atingidos terão que se afastar das relações que conseguiram estabelecer na cid para, assim, tentar começar tudo de novo, de novo. Por Eva da Paixão Gonçalves, Joana D’Arc, Judite Souza Caetano, Maria da Cruz Com o apoio de Luzia Queiroz e Miriã Bonifácio
Judite Souza
Fotos: Daniela Felix e Larissa Hel
Endereço no Bento: Rua Conde Veloso, nº 237 Endereço em Mariana: Vila Maquiné
Joana D’Arc
Endereço no Bento: Rua das Mercês, nº. 30 Endereço em Mariana: Colina Passou ano e agora que consegui ir lá na dona Irene. Para saber dela só indo lá, porque não tem nem telefone. Aí é descer no ponto final do Cabanas, passar por um bar/mercearia e perguntar onde que ela mora. Achei ela bem abatida. Tinha costume de brincar com a gente, mas agora não tá a mesma coisa. Era uma pessoa que eu via por cima do muro da minha casa todo santo dia. Era assim, um contato bem chegado mesmo o que a gente tinha. Muito boa essa amizade. Quando vinha para Mariana, ela falava: “Ô Joana, tô indo pra Mariana, precisa passar lá em casa não”. Muito gente boa mesmo, não deixava de me avisar. A única pessoa que sabia tudo o que eu ia fazer era ela. E aqui? Se eu sair, vou falar com quem? Não esqueço que meu menino era pequeno e não comia sem feijão. O marido dela chegava na minha porta e perguntava se ele já tinha almoçado, eu respondia que não porque não tinha feijão, aí ele pegava ele e levava pra lá [casa da Irene]. Eu devo muita obrigação a eles. E, se a gente for contar todo mundo que ajudava, é muita gente. Hermínia, Geralda, Nedina, Helenice, gente com quem eu podia contar. Mandei um recado pra Helenice no Facebook pra ela vir aqui. Mas ela não veio e nem eu fui.
Vai fazer mais de dois anos agora que eu não vejo a Glória. Ela era a dona pra quem eu trabalhava em Camargos. Eu mexia com abelha lá, sabe? Tirava mel pra ela. Desde que saí do Bento, não vi mais. Ainda quando vivia por lá, fiquei sabendo que ela foi para Belo Horizonte. Eu mando um abraço pra ela, porque agora sei que é mais difícil ter notícias. Quem morava perto de mim era minha irmã, Maria Luísa. Ficava do meu lado, uma amiz muito boa. Também tinha meus filhos, criados perto. Hoje, só o Edno que é solteiro que vive com Os outros eu estou distante. Não vejo essa relação de vizinhos como algo necessário se ela for cau mais impedimentos pra gente voltar pra casa [reassentamento]. Eu já me conformei que isso p não acontecer.
Eva da Paixão
Endereço em Paracatu: Praça Santo Antônio Endereço em Mariana: Jardim Santana
Morava no meio, entre a Maria da Cruz e a Maria da Conceição. Eu falo mais com a Maria Cruz, semana passada encontrei com ela. A Maria da Conceição só veio aqui uma vez bem no iní aí ficou difícil manter o contato que a gente tinha. Eu não posso sair e deixar meu marido [Star sozinho depois que ele adoeceu, então elas vêm mais do que eu vou. A gente se dava muito bem era tranquilo. A dona Efigênia era outra que morava perto e era que nem uma mãe pra mim. Cec filha dela, era que nem irmã. Fiquei sabendo que Efigênia estava doente, mas agora é assim, né machuca, se acontece alguma coisa, é difícil da gente ajudar. Eva e Maria da Cruz, por telefone:
Eva: - Maria, o que eu falar aqui sobre nós duas tá tudo b né? Maria: - É mesmo, pode falar aí que ela já vai entender. Eva: - Pois é, já falei aqui que a gente era igual irmã, qu gente era vizinha uma da outra. Maria: - Aham. Tá tudo bem aí? Eva: - Graças a Deus tá. Maria: - E Geraldo? Eva: - Geraldo diz que ele tá recuperando bem, conseg abrir o olho. Outro dia, Jorge foi lá, ele abriu o olho. Come até a chorar. Maria: - Graças a Deus. Eva: - Ele tá reagindo. Vão ver, né? Hoje, Maria vai ver se lá. Maria: - E o queijo? Até hoje Cecília não pegou, hein? Eva: - Pois é, hoje eu tô em casa. Amanhã, só depois das t Maria: - Então tá bom. Fica com Deus então. Eva: - Com Deus também. Um beijo.
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... dá uma saudade
o dia egoônio. com ovas dade
lena
Júlia, eu não esqueci de você, das nossas brincadeiras (pique-pega, pique-esconde, guerra de tortinha de barro). Logo logo, nós vamos ficar perto de novo. Um grande beijo da sua amiga, Kamilly Victoria. (Bento Rodrigues)
Antonio, todos nós temos saudades da nossa vizinhança. Nossos vizinhos também são nossa família. Grande abraço, Soraia. (Paracatu)
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a da ício, rlin] m lá, cília, é, se
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três.
Dona Henriqueta, muitas saudades de ir na sua casa pela manhã para saber como tinha passado. Às vezes, com aquele café e rosquinha que a senhora adora, e, lá, encontrar com todas as cunhadas e vizinhas. Assinado: Zaia. (Paracatu)
Alessandra e Luis, meus vizinhos, eu tenho vontade de ver vocês todos os dias. Aqui [em Mariana] é mais difícil, então fica pra quando der certo. Abraço, José Marques. (Bento Rodrigues)
Vó Efigênia, sonhei que Paracatu estava todo limpo igual era antes, você sentada no banco perto da casa de Viviane de Nilton. Ah, se fosse verdade. Saudades, Maria filha de Luciene.(Paracatu)
Para Reginaldo. Temos que voltar em Paracatu para poder comer cuscuz com rapadura e ver quem chega primeiro para catar o queijo. Luzia (Paracatu) Antônio, Heleno e Paulo, sinto falta de chegar em casa, ligar o som do carro e gritar vocês. Reginaldo. (Paracatu) É muita saudade. Quero aproveitar e mandar um grande abraço a todos de Paracatu. Em especial para minha comadre Zaia e também para Nununha, que me tolerou muito tempo como vizinho. Antonio (Paracatu)
Dona Laura, vontade de comer aquele pastel. Abraço, Reginaldo. (Paracatu) Maria (minha vizinha) e Maria de Souza (minha irmã), sinto falta de vocês. Tenho esperança que Deus possa nos reunir. Eu, Judite Souza, mando um abraço. (Bento Rodrigues) Soraia de Zaia, já estou sentindo falta de te chamar de feiosa e pedir a Diogo para chutar sua canela. O tempo tá passando e ele não vai aprender. Pelo Facebook não é a mesma coisa. Saudades, muié. Luzia.(Paracatu)
João Leôncio, a gente se via todo dia. É, João, todo dia. Hoje, a gente passa muito tempo sem ver um ao outro. Fico muito sentido com isso. Não pega bem, né? Uma vez ou outra. A gente não fica legal mais, aquela coisa etc. Um abraço, Zé Barbosa. (Bento Rodrigues)
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À velha Gesteira
Arte: Carlos Paranhos
Por Antônio Marcos e Jouberto Macário de Castro (Betinho) Com o apoio de Carlos Paranhos Larissa Helena
Mariana, 24 de Agosto de 2017.
Gesteira fica, aproximadamente, a 60 quilômetros de Mariana. Essa é também a distância que separa Antônio Marcos e Betinho, amigos que, antes do rompimento, viviam em Gesteira Velha - lugar, hoje, destruído pela enxurrada de lama. Agora, como Antônio ainda mora no local atingido e Betinho em Mariana, os dois sentem a perda dos antigos laços de vizinhança e da relação de encontros quase diários. A amizade entre Antônio e Betinho vem de tempos: “Crescemos como irmãos”, afirma Betinho. Desde os 11 anos de idade, Antônio fazia “bicos de moleque” na mercearia da família do amigo. Mais tarde, a dupla passou a trabalhar entregando mantimentos por toda a região, incluindo o povoado de Mandioca e a cidade de Acaiaca. “A gente sente falta, né?!”, lamenta Antônio. Na tentativa de restabelecer a conexão entre esses moradores de Velha Gesteira, o Jornal A SIRENE propôs a Antônio e a Betinho uma troca de cartas escritas de próprio punho. Betinho, com a ajuda da esposa, Maria Izabel Tete Castro, e Antônio Marco aceitaram a ideia e, em algumas palavras, redigiram suas saudades. SITUAÇÃO ATUAL A situação de Gesteira Velha segue incerta e negligenciada. Mesmo tendo sido atingida pela lama, a localidade, distrito do município de Barra Longa, segue como coadjuvante nos planos de reparação da Fundação Renova/ Samarco, sobretudo quando o assunto é reassentamento. A comunidade, por meio de voto popular, elegeu o terreno Macacos para a construção das novas casas. No entanto, até o momento, nenhuma propriedade foi adquirida e nada se fez para dar andamento à elaboração do projeto de reassentamento da comunidade. Além disso, a indenização Foto: Daniela Felix também é uma dúvida: quando e quanto sairá? “Eles acham que só dar u m cartão no valor de salário mínimo todo mês é o suficiente. Antes, eu tinha meu próprio negócio, conseguia m e u sustento de forma independente. Como vou conseguir sustentar meus dois filhos com tão pouco?”, questiona Betinho, que está desempregado e possui dois filhos adolescentes.
Caro amigo Antônio Marcos, como está passando? Espero que estejam todos bem. Apesar das correrias do dia a dia, sinto saudades dos nossos tempos, juntos na venda. Trabalhando, brincando, é uma pena que tudo acabou… Espero quem sabe no futuro ainda podemos conviver juntos novamente, eu ainda me lembro dos momentos das reuniões juntos na porta da venda, com os companheiros Amador, Toninho, Reginaldo, Claudinho, Joel, Jair, Dirceu e muitos outros que tinhamos um bom relacionamento. Que Deus te abençoe sempre pelo seu caráter e companheirismo. Vamos aguardar né? Quem sabe um dia voltamos a nos reencontrar todos novamente. Muito obrigado por tudo. Fique com Deus. ass.: Betinho e Maria Izabel Tete Castro
Gesteira, 25 de Agosto de 2017. Querido Betinho e família, como vocês estão? Espero que bem! Por aqui anda a mesma coisa.. Fiquei feliz em receber essa carta, eu também sinto saudade da vizinhança que a gente tinha e da nossa boa relação. Sinto muita falta de como tudo era antes, espero e peço a Deus que as coisas se resolvem logo e com mais urgência, tenho medo que essas nossas antigas relações de amizades se percam com o tempo. Assim que der vou ai visitar vocês, mas fica o convite sempre aberto para virem pra cá! Abraços, até breve. ass.: Antônio Marcos
revendo juntos, em Maria Izabel e Betinho esc até Gesteira. Mariana, a carta levada
Foto: Lariss a
Helena
Antônio Marco s na frente do ba r que toca de maneira indepe ndente na Geste ira Nova.
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PARA NÃO ESQUECER
Fotos: Flávio Ribeiro
A casa de Maria Na segunda entrada do lado esquerdo do Parque de Exposições de Barra Longa, tem uma casa com paredes brancas, portas e janelas de madeira, cercada por bambus. Do lado de fora, dá pra ver um pé de mexerica, flores plantadas em latas de tinta e algumas galinhas ciscando pra lá e pra cá. Para entrar, tem que chamar por Dona Maria, Zé ou Carmelita. Se estiverem por lá, eles te convidam para tomar um café no primeiro cômodo da casa, onde um sofá confortável serve para passar horas ouvindo casos. O chão é feito de cimento queimado. A sustentação do telhado vem dos troncos de madeira roliça. No interior da casa, um rádio antigo e nenhuma televisão. Uma máquina de costura de pedal. Camas e sofás cobertos com panos floridos. Um espelho, daqueles pequenos de borda laranja. Terços e imagens de santos da Igreja Católica. Um fogão à lenha usado para preparar, entre outras delícias, feijão, angu e toucinho. Panelas grandes e areadas. Um garfeiro pendurado na parede. Um filtro de barro e animais de porcelana em cima da geladeira. Essa é a moradia de Maria das Dores, um cantinho de nostalgia que revela detalhes de uma vida típica do interior de Minas Gerais. Não são os calendários pendurados na parede da cozinha que marcam o tempo pra Dona Maria. É a tigela de sua mãe e a pintura com o marido, que possuem mais de 50 anos. São as memórias dessa grande casa, que tem sido o lar da família Oliveira por 30 anos. O terreno foi comprado com o dinheiro que ela e o marido José juntaram durante anos vendendo fumo. Construída pouco a pouco, com a ajuda dos filhos, José, Sebastião, Carmelita e Aparecida, a moradia proporciona a Dona Maria, de 92 anos, uma vida tranquila e permite a ela viver pertinho dos filhos e netos. O sossego de Dona Maria, no entanto, não é algo constante. Sua propriedade já foi invadida duas vezes. A primeira quando, no início dos anos 1990, a Prefeitura de Barra Longa tomou, sem o consentimento dos moradores que ali viviam, parte de seus terrenos para a construção de um espaço para a realização de eventos, o Parque de Exposições. E a segunda, pela mineradora Samarco, que removeu a lama responsável por destruir parte do centro da cidade e a depositou nos quintais dela e de seus vizinhos. Novamente, a Prefeitura compactuou com a invasão das terras e não consultou os moradores a respeito do manejo. Desde então, as casas de Dona Maria e de outras oito famílias são rodeadas por muita poeira, mau cheiro e barulho de maquinários. Há quase dois anos, essas pessoas vivem sem privacidade. Funcionários de terceirizadas e da Fundação Renova/Samarco transitam pela área todos os dias. Diversas vezes fazem visitas a essas famílias para convencê-las a deixarem suas casas. Dona Maria, porém, decidiu que fica: “Eles que colocaram a lama. Agora, que tirem”. Foram vários meses de pressão. Mas Dona Maria se recusa a deixar a casa, pois, naquele chão, sua bisneta começou a engatinhar. É um canto repleto de lembranças do marido José e da filha Aparecida, ambos já falecidos. Lá, ela quer continuar ouvindo música caipira, fazendo festa e chamando todo mundo para dançar um “forrozinho”.
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Por Maria das Dores Com o apoio de Daniela Felix
A Fundação Renova/Samarco, finalmente, firmou um acordo para a remoção dos moradores do Parque de Exposições. A fundação/empresa se comprometeu a pagar adiantamento de indenização, cartão de auxílio-financeiro e cestas básicas para os atingidos que vivem no local - um reconhecimento mínimo de direitos. A negociação só foi aceita após diversas reuniões, e devido à pressão realizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e ao início da atuação da Assessoria Técnica independente que começou a atuar na cidade de Barra Longa, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS). Oito famílias, portanto, deixarão o Parque e serão, temporariamente, alojadas em casas espalhadas por diversos bairros de Barra Longa. Dona Maria, seus filhos e netos continuam residindo no Parque, porém irão se revezar entre suas moradias para que as obras de reforma das propriedades sejam realizadas.
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A SIRENE
Setembro de 2017 Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER
Saberes de família Em casa, aprende-se muita coisa, inclusive, atividades que podem colaborar ou garantir renda a uma família. A lama de Fundão interrompeu várias atividades produtivas desenvolvidas pelos atingidos, algumas voltadas para o comércio, outras para o próprio consumo. Trazemos aqui histórias de atingidos que lutam para manter, na vida provisória da sede de Mariana, a relação econômica e afetiva que mantinham com práticas e saberes compartilhados em família.
Foto: Arquivo pessoal Sandra Quintão
Por Izolina das Dores, Sandra Quintão e Vera Lúcia da Paixão Com o apoio de Laura Oliveira, Marco Antônio Teixeira, Miguel Arenas, Tânia Scher e Vanessa Quinan (pesquisadores do Observatório C.A.F.É - Observatório em Crítica, Formação e Ensino em Administração, coordenado pela Profa. Carol Maranhão), Larissa Helena e Silmara Filgueiras
Na casa de Vera Lúcia da Paixão, 62, a relação com a terra era parte da rotina. A família tinha uma plantação farta em Paracatu. Lá, cultivavam milho, arroz, feijão, hortaliças, cana de açúcar e árvores frutíferas, como banana e laranja. Vera lembra que o pai ensinou a ela e aos irmãos a cuidarem das plantações: “Trabalhávamos na atividade desde crianças. Meu pai levava a gente para a roça e ficávamos debaixo de uma torda (corbertura feita de sapé ou lona). Ali, aprendemos de tudo e fomos assumindo o compromisso de ajudar o máximo possível. A horta era conhecida na comunidade”. Quando o pai faleceu, a família continuou a cultivar o plantio, mas, com a chegada da lama, a terra se tornou improdutiva, forçando-a a interromper as atividades. A irmã de Vera, Izolina das Dores, 53, por problemas de saúde vividos ainda na infância, não seguiu a atividade do pai. Em casa, começou a fazer crochê, conhecimento que aprendeu observando as pessoas da vizinhança. “Eu me dou bem com os bordados, consigo aprender rápido”. Em Bento Rodrigues, o “Bar da Sandra” também foi estabelecido a partir de saberes e de um ofício compartilhado em família. Na comunidade, o lugar era ponto de encontro para quem não deixava de acompanhar as partidas do Cruzeiro ou do Atlético. E, claro, para aqueles que gostavam de jogar conversa fora e passar o tempo ali. Localizado próximo à praça da Igreja de São Bento, o estabelecimento ficava aberto durante a semana inteira. “As pessoas costumavam dizer que, quando o bar ficava fechado, a praça não era a mesma”, conta a proprietária Sandra Quintão, 45. Sandra diz que o bar ainda não tinha esse
título antes dos anos 2000, quando ele era apenas uma dessas portinhas que “vendiam de tudo um pouco”. A família ajudava como podia, mas o comércio passava por temporadas em que as vendas não eram suficientes, fazendo com que o pai procurasse outros serviços para complementar a renda. Por isso, nessa época, Sandra deu a sugestão para o pai expandir os negócios. “Falei pro pai instalar um fogão à lenha. Começamos a servir comida para as pessoas. Quem comia lá, geralmente, eram os trabalhadores das mineradoras”, lembra. Com o rompimento, as coisas mudaram para Vera, Izolina e Sandra. A lama levou os lugares de herança e de trabalho delas. Sandra fala sobre o difícil recomeço: “Recebi doações de alimentos ainda quando estava no hotel. Fui para a cozinha e comecei a fazer as coxinhas para vender. Hoje tenho uma banca na Feira Noturna e na feirinha de sábado”. Izolina permanece fazendo artesanato, buscando mais conhecimento na área e também, ensinando outras pessoas sobre a arte . Vera, limitada ao espaço da moradia provisória, tenta manter o contato com a terra. “Planto algumas hortaliças em vasos, uso produtos totalmente naturais, mas sinto que o clima na cidade não é muito bom para a maturação dos vegetais.” Sandra, Vera e Izolina continuam realizando, como podem, suas atividades. São mulheres que mantêm vivos os saberes que adquiriram junto com suas famílias. Quando aprenderam a administrar um ponto de comércio, a cultivar a terra e fazer artesanato, não adquiriram apenas uma possível fonte de renda, mas com afeto e apreço por seus ofícios, conseguir felicidade de se fazer o que gosta.
Fotos: Jornal A
Sirene
Setembro de 2017 Mariana - MG
A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER
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Mãos atingidas Mãos marcam o tempo. Mãos aprendem e ensinam plantam e esperam a hora de colher. Marcas de trabalho. Marcas de cuidado. Marcas de afeto. Mãos de Luzias, Madalenas e Mariannes. De Marcos, Miltons e Genivaldos. Linhas de memórias que a lama não leva. Mãos que lutam e resistem.
Fotos e Texto: Larissa Helena
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A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER
Setembro de 2017
Amigas que fiz na luta
Mariana - MG
Por Luzia Queiroz, Maria do Carmo, Marlene Agostino e Soninha Nazaré Com o apoio de Miriã Bonifácio
Ao ingressar na Comissão dos Atingidos, o intuito principal era assegurar os direitos e acompanhar o processo. Foram tantos objetivos, várias realidades e formas de pensamentos, e diferentes reações que, aos poucos, fomos nos identificando e vendo que a forma de ver as demandas era igual. Maria de “Marinim” foi na força pela luta. Marlene, no apoio, nas demandas e ideais. Lilica do “Gama” na fortaleza e superação. Formamos as mosqueteiras - uma por todas, todas por uma. Não nos unimos somente frente às demandas da luta, mas também nas pessoais, nas alegrias e tristezas. E essa amizade será para muito além, com a certeza de que a luta continuará. Essa amizade e essa luta modificaram nossas vidas, que jamais serão as mesmas. Somos uma nova família. Luzia A minha amizade com as lideranças das comunidades de Paracatu de Baixo, de Ponte do Gama e de Pedras aconteceu com o nosso envolvimento na causa grandiosa que levamos defendendo nossos companheiros; na luta para buscar os nossos direitos, sempre olhando em direção ao próximo e a quem percebemos ter mais vulnerabilidade. Fomos nos identificando a partir dessa luta. Eu, a Marlene e a Soninha de Pedras, a Luzia de Paracatu de Baixo e a Lilica de Ponte do Gama formamos essa rede. Estamos sempre muito próximas uma das outras, em busca de ficarmos juntas, firmes. Tenho confiança nessa amizade, nessa força e nos nossos ideais. Peço a Deus que a gente siga sempre no caminho do bem. Maria do Carmo Sonia é minha prima e companheira desde sempre na luta. A Lilica, eu conheci quando fui fazer um curso de cabeleireiro, mas não tinha amizade. Comecei a entendê-la, e também a Maria, depois que começamos a conviver nos mesmos espaços, a brigar pelas mesmas coisas. Luzia é de quem eu estou mais próxima agora. Tudo começou com a organização das atas das reuniões. Eu precisava guardar e, às vezes, não podia, aí era ela quem levava pra mim. Além disso, o que uma não sabe, procura saber com a outra. Assim que entrei para a Comissão, comecei a sentir uma dor passar pelo meu corpo inteiro. Era, e ainda é, muita raiva que a gente passa. Tentava explicar para as pessoas, mas ninguém sabia de verdade o que estava acontecendo, o que a gente estava vivendo. Se não fosse as amigas, uma para consolar a outra, eu não sei o que seria. Ficaria muito mais difícil. Agora eu tenho gente com quem dividir. Marlene Agradeço a Deus por nos dar forças e saúde para continuar nessa luta que tirou o nosso sossego desde o dia 5 de novembro de 2015, pela tragédia-crime da Samarco. A partir daí, tudo está sendo muito difícil para todos nós, mas teve uma parte boa: conhecer pessoas tão especiais, como essas da amizade que eu fiz. Passei a fazer parte da Comissão para poder lutar pelos nossos direitos. Falando de cada uma, posso dizer que Maria é um amor de pessoa, sempre verdadeira. O que quer falar, ela fala mesmo, e eu gosto de pessoas assim. A Lilica é sempre mais caladinha, mas, na hora que é pra falar, ninguém segura. A Luzia, além de ser inteligente e sábia, é uma mulher que luta por todos, admiro muito ela. Muito justa e verdadeira, sabe falar as palavras a todo momento e tem resposta para tudo. Por último, Marlene, minha prima, é até engraçado, porque nós duas não nos bicávamos de jeito nenhum. Começamos a conversar porque ficamos apavoradas, sem ter notícias da nossa família, já que meu pai e a mãe dela moravam perto um do outro [em Pedras]. Depois daí, fiquei admirada, porque o que ela fez para minha família só Deus pode pagar. No começo, por causa do meu trabalho, tinha pouco tempo, então, tadinha, ela teve que lutar sozinha para nos ajudar. Queria poder contribuir mais, mas o tempo é curto. Mesmo assim, vou continuar nessa luta até o fim, porque o que queremos é apenas os nossos direitos. Quero agradecer as meninas por essa amizade. Amo vocês, as mosqueteiras sempre prontas para entrar em ação. Soninha Foto: Larissa Helena
Da esquerda para direita: Luzia Queiroz, Soninha (fundo), Marlene Agostino e Lilica (fundo).
A SIRENE
Setembro de 2017 Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER
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AGENDA DE AGOSTO 14 - Manifestação BH. Protesto ocorrido contra a suspensão do processo judicial que acusa 22 funcionários e ex-diretores das empresas pelo crime do rompimento.
15 - Assembleia de Paracatu de Baixo convocada pelos atingidos da comunidade
para que a Fundação Renova/Samarco prestasse esclarecimento sobre a ausência e o cancelamento do GT e sobre as visitas realizadas nas casas de cada atingido sem o consenso da Comissão.
22 - Atingidos de Barra Longa e do Rio Doce, organizados pelo MAB, participaram de um ato de repúdio em frente à Justiça Federal em Ponte Nova-MG. O ato foi chamado de “Injustiça que se renova”.
23 - Audiência de Bento Rodrigues sobre o acesso ao distrito: o que ficou decidido é
que a Samarco e seus controladores têm 30 dias para responder e apresentar as soluções feitas. O Corpo de Bombeiros também apresentará um laudo sobre a segurança do acesso ao distrito.
25 - Reunião Fórum Acolher
Foto: Sergio Papagaio
AGENDA DE SETEMBRO
6 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
16 Curso de Direito Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo Horário: 08h - 17h Local: Centro da Pastoral
20 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos Coletiva de Imprensa dos atingidos de Mariana Horário: 14h Local: Sindicato dos Jornalistas de Belo Horizonte
26 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
11 Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
17 Festa do Menino Jesus em Paracatu de Baixo Local: Paracatu de Baixo
12 Assembleia de Paracatu de Baixo para debater sobre a Escola Municipal de Paracatu de Baixo Horário: 18h Local: Centro de Convenções
18 Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
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Reunião do Fórum Acolher Horário: 18h30 Local: Salão da Igreja Católica do Bairro Colina
Curso de Direito Zona Rural Horário: 09h - 17h Local: Casa do Zé Baio
GT de Patrimônio Horário: 18h Local: Salão da Igreja Católica do Bairro Colina
27 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
Oficina de Cartografia do Gesta Horário: 09h - 17h Local: Centro da Pastoral
13 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
19 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
25 Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos
Editorial “A saudade é nossa alma dizendo pra onde ela quer voltar.” Rubem Alves “Acho que esse é o sentimento que todos estamos tendo: saudades...” O comentário foi feito por Soraia, lá de Paracatu. Mas o sentimento, de fato, é de todos os atingidos. Desde que este Jornal começou a ser publicado, estamos falando sobre isso: o que a lama levou da gente não foi sentido só naquele dia 5. Desde o rompimento, perdemos, todos os dias, as coisas que amamos. Afinal, que sentimento é esse chamado saudade? Saudade é sentir falta de algo ou de alguém que nos é importante. É um sentimento que nos faz lembrar de momentos valiosos da vida. Pessoas, objetos, ocasiões e lugares que estão distantes da nossa visão física, mas que permanecem firmes e presentes em nossas recordações e afetos. Saudade é o que sentimos de muitas das pessoas que viviam em nossa comunidade. É algo tão forte que entristece, mas também fortalece. A saudade faz a gente se sentir mais disposto para continuar lutando. É ela que nos lembra, diariamente, aquilo que perdemos e a importância de lutarmos para reconquistar o que, dessas coisas, for possível a recuperação. Vivemos às sombras das saudades que temos das comidas, dos doces e das guloseimas caseiras. Em nossa mente, ainda podemos sentir o calor do fogão à lenha e ouvir o barulho dos sapos quando a noite cai. Saudades de nossas comunidades sem lama, da casa de vó, do banco de praça, da prima, do amigo que morava logo ali e que, hoje, vive longe. Separados pelas distâncias, nossos vizinhos adquirem outras amizades. Talvez, esqueçam até um pouquinho da gente, pois a rotina na cidade traz novos hábitos, atitudes e companhias. E agora? E quando formos para o reassentamento? Será que teremos nossos vizinhos de volta? Quando viermos para a cidade, teremos com quem deixar nossos filhos? “Impressionante como a gente se pega nos pensamentos [e aí ] que vem a saudade”, também disse Soraia, a moradora de Paracatu citada no início do texto. “A saudade das coisas tão simples que só percebemos quando não existem mais.” Tem razão. Saudade é uma forma de parar o tempo num momento feliz e, por isso, no nosso caso, dói tanto. Esperamos conseguir nos reunir de novo e poder fazer, pelo menos, um pouco do que a gente fazia quando estávamos pisando no nosso chão, sem medo de sermos felizes. Sabemos que temos lá nossas dificuldades, mas não podemos desistir. Somos capazes. Precisamos erguer a cabeça e seguir rumo à reconquista daquilo que perdemos. Nesta edição, contamos algumas histórias de saudades vividas por moradores das comunidades atingidas, sobretudo, aqueles que pouco se veem nas rotinas distantes impostas pela vida na sede de Mariana. Na capa deste mês, trazemos Dona Maria - moradora de Barra Longa que se recusou a sentir saudades de sua casa. Aos 92 anos, a senhora luta para continuar morando em sua residência de mais de três décadas. Buscamos ainda, junto a profissionais da área da saúde mental, orientações a respeito do atendimento e cuidado psicossocial ofertado aos atingidos pelo município de Mariana. Que nossas saudades sejam passageiras e que o futuro seja bom. Apesar.