A Sirene - Ed. 21 (Dezembro)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição 21 - Dezembro de 2017 | Distribuição gratuita


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Dezembro de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

Retrospectiva 2017 JANEIRO 2017 foi um ano decisivo na luta dos atingidos pela Barragem de Fundão. Por um lado, um conjunto de vitórias reafirmou a organização das vítimas em torno de seus objetivos e sinalizou a importância da mobilização coletiva. Por outro, essas mesmas vitórias se inscreveram em um contexto de sucessivas violações de direitos, ao qual os atingidos e atingidas da Bacia do Rio Doce, articulados às suas redes de apoio, precisaram estar constantemente atentos e com disposição para o enfrentamento. Assim, o que fica deste ano é, sobretudo, a certeza de que há muito chão anunciado ao caminho de uma reparação justa e possível. Por Rafael Drumond

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

Erramos

Na última edição, na reportagem “Solo perdido", páginas 22 e 23, o jornal A SIRENE errou ao afirmar que Maria da Conceição Martins, atingida de Pedras, residia em Paracatu de Baixo.

Expediente

Fim das Obras do Dique S4

Por decreto do governo do Estado e por suposta alegação de vigilância ambiental, a Samarco alagou parte das terras de Bento Rodrigues, nas quais encontram-se, inclusive, bens culturais de valor histórico. Posteriormente, proprietários das terras alagadas foram submetidos a negociações de indenização a portas fechadas, sem a presença do Ministério Público. Atualmente, representantes da empresa já anunciam, informalmente, que o prazo previsto para a desmontagem - 31 de julho de 2019 - do dique será prorrogado.

JUNHO Audiência Pública discute atuação da Fundação Renova em Mariana

Organizada pelo Ministério Público Estadual, em 20 de junho, aconteceu uma audiência pública para avaliação do trabalho da Fundação Renova/ Samarco no território de Mariana. Na ocasião, atingidos, representantes do empresariado local e diferentes atores da sociedade civil questionaram o comprometimento da Fundação com as vítimas do crime e denunciaram sua cumplicidade em relação às mineradoras que a mantém. Em 22 de novembro, em sessão realizada pela Câmara dos Vereadores de Mariana, novamente a atuação da fundação/empresa foi questionada, principalmente no que se refere a não contratação de mão de obra local.

MARÇO Oficinas para elaboração do projeto urbanístico dos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu

A primeira leva do trabalho coletiva do projeto urbanístico (realizada entre março, com as comunidades de Bento e Paracatu) veio após intervenção da Cáritas - assessoria técnica que, junto aos atingidos de Mariana, apontou para a impropriedade do projeto desenvolvido para Bento por uma terceirizada da Samarco. Atualmente, devido aos atrasos da Fundação com a compra dos terrenos para o reassentamento de Paracatu, as oficinas estão sendo realizadas apenas com a comunidade de Bento, com o objetivo de redefinir alguns conceitos do projeto, tendo em vista as necessidades de alteração colocadas por órgãos licenciadores.

Atingidos de Mariana reformulam o Cadastro

Desde 17 de março, atingidos de Mariana, junto com a Assessoria Técnica e o Ministério Público, e as comunidades atingidas da zona rural de Mariana vêm se reunindo com a empresa/fundação para propor um novo instrumento de levantamento das perdas. Hoje, o formulário está em fase de conclusão e a expectativa é a de que o cadastramento definitivo das famílias comece em fevereiro de 2018.

Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Kleverson Lima, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editora de fotografia: Larissa Helena | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Welidas Monteiro. | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Ana Elisa Novais | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Publico de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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AGOSTO

JULHO Feira Noturna é inaugurada!

A Feira Noturna, projeto da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão, realizado com o apoio da Arquidiocese de Mariana, do Ministério Público e da Prefeitura de Mariana, tornou-se um dos eventos mais bem-sucedidos da cidade. Desde o dia 6 de julho, todas às quintas, de 17 às 22 horas, os marianenses vêm se reunindo em um espaço de lazer e convivência.

Assessoria para os atingidos de Barra Longa

Em uma importante vitória dos atingidos, a Assessoria Técnica da Aedas começa a atuar na cidade de Barra Longa. A implementação do trabalho, que vinha sendo discutida desde o ano passado, se concretizou com a chegada, em julho, da coordenação; no mês seguinte, foi contratada a equipe técnica. Na cidade, a instituição enfrenta, entre outros desafios, a missão de garantir o reassentamento da comunidade de Gesteira - um caso de completa negligência e de descaso por parte da empresa.

OUTUBRO Audiências da Ação Civil Pública de Mariana

Duas audiências realizadas no Fórum de Mariana, no contexto da Ação Civil Pública, garantiram vitórias importantes aos atingidos, como a definição de que a permuta não será condição para o reassentamento (ou seja, nenhum atingido perderá o direito às propriedades atingidas), e de que o preenchimento do formulário de Cadastro de perdas e danos é um direito de qualquer pessoa que se sentiu atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão. Também ficou decidido que esses cadastramentos serão realizados por núcleo familiar (e não por propriedade) e que a Cáritas é quem conduzirá, com participação da Fundação Renova/Samarco ou de empresa por ela designada, o processo de preenchimento. 23 atingidos ainda foram reconhecidos em seus direitos.

Moradores do Parque de Exposições de Barra Longa conquistam indenização Organizados pelo atingido Sérgio Papagaio, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e pelo Ministério Público Federal, os atingidos moradores da região do Parque de Exposições conquistaram, nessa ocasião, o adiantamento de indenizações, o aluguel de casas provisórias, o pagamento de auxílio-financeiro e a reforma de suas casas após o término das obras que a empresa promove no local - que retira a lama do centro da cidade e a deposita em seus quintais.

SETEMBRO Patrimônio dos Atingidos pede atenção

No dia 20 de setembro, o Grupo de Trabalho de Referência para Área de Patrimônio das comunidades atingidas de Mariana levantou a importância de se estender as ações realizadas na área para além das medidas colocadas pelo Termo de Conduta Preliminar firmado, emergencialmente, pelo Ministério Público Federal em novembro de 2015. Esse documento, que orientava todo o trabalho da Fundação Renova/Samarco, apresentava limitações claras em relação às comunidades consideradas nos trabalhos de reparação e à noção de patrimônio (reduzido aos bens de natureza sacra).

Coletiva de Imprensa dos atingidos em Belo Horizonte

Atingidos de Mariana denunciaram, para mais de 20 veículos de imprensa da região, diferentes problemas enfrentados pelas comunidades em relação ao atraso nos reassentamentos, às dificuldades de negociação com a empresa na reelaboração do Cadastro e ao descaso com os moradores que continuam vivendo na zona rural atingida. A iniciativa se repetiu em novembro, dessa vez na cidade de Mariana, no contexto dos dois anos do rompimento da barragem

NOVEMBRO Dois anos do rompimento de Fundão

Exposição de trabalhos, missas, sessão de cinema, atos e passeata marcaram os dois anos do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana e Barra Longa. Por trás de todas as manifestações, o sentimento de indignação com a situação dos atingidos em vista da insuficiência e da morosidade das obras de reparação. No Espírito Santo, atingidos, pesquisadores, ativistas e outros atores ligados ao desastre realizaram evento de balanço. Ao final do encontro, foi lançada a Carta do Rio Doce (leia na íntegra em nosso site).

Foto: Carlos Paranhos

Foto: Daniela Felix

Bloqueio dos R$ 300 milhões da Samarco para garantia da reparação dos atingidos

Após decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, os R$ 300 milhões da Samarco, Vale e BHP - utilizados como garantia às reparações dos atingidos de Mariana - seguem bloqueados. A vitória foi celebrada pelos atingidos, que marcaram presença em todas as três sessões de julgamento. (ver matéria página 4).

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Bloqueio Mantido Por Genival Pascoal e Rafael Drumond

A cada dia, a necessidade da luta traz novos aprendizados aos atingidos da Barragem de Fundão. No mês de novembro, um grupo de 30 moradores de Bento, Paracatu e das comunidades rurais acompanharam três sessões da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) e puderam entender um pouco mais sobre o complexo sistema jurídico do Brasil. Na pauta, o julgamento de um agravo um tipo de recurso - no qual a Samarco solicitava à Justiça a liberação do montante de R$ 300 milhões das mineradoras bloqueado pelo Ministério Público Estadual como garantia à reparação das vítimas de Mariana. A caravana que, por três semanas consecutivas, saiu do município em direção à Belo Horizonte, percorreu, em um cansativo regime de “bate e volta”, os 120 km que separavam a primeira e a segunda instância do processo. Foram três terças-feiras voltadas para o julgamento - uma dedicação de todo um dia para se fazer presente nos 20 minutos em que a pauta se tornava objeto de discussão dos desembargadores. Organizados por sua Assessoria Técnica, realizada pela Cáritas, acompanhados pelo Ministério Público Estadual, os atingidos

aguardavam, ansiosos, o desfecho da ação. Dois pedidos de vista do processo estenderam a decisão final, o que causou ansiedade e expectativa em relação ao futuro das reparações no município de Mariana. Antes de cada sessão, atingidos e redes de apoio fizeram orações no saguão do prédio do Tribunal de Justiça do Estado, localizado na Avenida Afonso Pena. Numa prece de diferentes credos, deram-se as mãos para alimentar a causa que dividem e a esperança de que o Poder Público tomaria uma decisão favorável à justa reparação das vítimas do desastre. Ao final da terceira sessão de julgamento, o veredito a favor dos atingidos foi celebrado com o gosto de mais uma vitória. A estratégia da empresa de enfraquecer a luta e a organização dos atingidos de Mariana reforçou, mais uma vez, a importância do trabalho coletivo e do constante estado de atenção em relação aos direitos já garantidos. Afinal, é na conquista das pequenas batalhas que o enfrentamento da guerra se mostra possível.

O que eu vi Por Genival Paschoal

Muitos pensam que ir pra BH é uma coisa boa, mas não necessariamente. No caso das audiências de novembro no TJ, as viagens foram feitas com muita garra e esperança de que ganharíamos a causa. No ônibus, todos estavam ansiosos para que o caso fosse resolvido logo, para que pudéssemos continuar nossa luta em Mariana. Mesmo com todos os adiamentos, não desistimos. Fomos todos os dias. Mostramos que nós, atingidos, somos unidos e que não vamos deixar as empresas fazerem o que quiserem conosco. O que vale é a nossa força. Tivemos três dias de julgamento e o último, decisivo, com a graça de Deus e de São Bento, trouxe os votos favoráveis à nossa causa. Um absurdo a empresa querer desbloquear R$ 300 milhões - pouco dinheiro quando


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comparado aos lucros que ela teve ao longo de anos explorando minério em nossa região, sem contar o que suas mantenedoras ainda lucram. Acho que as mineradoras só fazem isso para chamar atenção ou para fugir de suas responsabilidades com os nossos reassentamentos e com a reparação dos danos causados. Querem que a sociedade acredite que a Renova dá conta desse recado, o que, infelizmente, sabemos não ser verdade. Sobre o bloqueio dos R$300 milhões O bloqueio dos R$ 300 milhões da mineradora Samarco foi solicitado pelo Ministério Público Estadual, através de Ação Cautelar movida em 10 de novembro de 2015, visando ao atendimento exclusivo das vítimas de Mariana. Com o recurso, foram e serão pagas as antecipações de indenização, a contratação da assessoria técnica independente aos atingidos e parte dos terrenos comprados para o reassentamento das comunidades. Voto do Desembargador Raimundo Messias Júnior “Considerando que o presente feito teve no escopo o ressarcimento de mais de 500 vítimas afetadas diretamente pelo desastre, por aquilo que perderam e por aquilo que, razoavelmente, deixaram de ganhar, sem prejuízo de outros danos, não perdendo de vista a situação do reassentamento [...], tais valores conscritos não se mostram exagerados. Pontuo que os esforços da agravante [Samarco] no sentido de mitigar as consequências do desastre não esgotam o objeto da ação, no sentido de ressarcir as vítimas.”

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O futuro da reparação Em coletiva de imprensa realizada no último dia 17, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público Estadual (MPMG) anunciaram aditivo ao Termo de Ajuste Preliminar (TAP) que regula os trabalhos de reparação implicados ao rompimento de Fundão na Bacia do Rio Doce. O documento foi assinado no dia anterior entre os órgãos e as empresas Samarco, Vale e BHP. No anúncio, foi tornada pública a conquista de assessorias técnicas aos atingidos de toda a Bacia. Até então, apenas os municípios de Mariana e Barra Longa contavam com suporte especializado e independente em favor das vítimas. Além disso, os procuradores informaram que duas fundações serão contratadas para atuar na reparação do desastre: o Fundo Brasil de Direitos Humanos, responsável pela mobilização dos atingidos e pela implementação das assessorias, e a Fundação Getúlio Vargas, encarregada de avaliar os danos socioeconômicos provocados pelo desastre. Estão previstas, para o ano que vem, a realização de audiências públicas em 15 diferentes localidades de Minas Gerais e do Espírito Santo. Os promotores afirmaram, mais uma vez, a insuficiência dos trabalhos da Renova/Samarco e anunciaram que, no prazo de 150 dias, será apresentado novo termo de regulação à governança da Fundação. Apesar da vitória representada pela conquista das Assessorias Técnicas, o processo de formulação do acordo esteve envolvido em controvérsias. Em setembro, diferentes grupos de pesquisa (Gesta-UFMG, Gepsa-UFOP, Homa-UFJF, Organon-UFES, Poemas-UFJF, Polos de Cidadania-UFMG) comunicaram desistência em relação às tratativas, por discordarem do poder de mando das mineradoras nesses espaços de negociação, particularmente, no que se refere à escolha de quais fundações poderiam acompanhar e subsidiar os trabalhos de reparação. Foto: Francielli Oliveira/Assessoria de Comunicação Cáritas Brasileira regional


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Um lugar para Paracatu Desde que foram tirados de seu lugar, os atingidos da comunidade de Paracatu de Baixo enfrentam dificuldades para encontrarem um novo espaço no qual possam retomar parte da vida levada pela lama. Recentemente, as incertezas a respeito da qualidade e da quantidade de água nos terrenos para o reassentamento e a procura por um novo espaço para acomodar a escola do subdistrito reacenderam nos moradores a necessidade de engajamento na busca por condições de vida dignas no futuro. Isso, é claro, sem nunca esquecerem o lugar de onde vieram. Assim como nas demais comunidades atingidas, a força dessa história, que vira até cinema, não está só na avalanche destruidora de lama, mas, principalmente, na luta de um povo para se manter forte e unido. Por Rosária Frade, Tcharle do Carmo e Caetano da Silva Com o apoio de Assessoria Técnica - Cáritas Brasileira, Carlos Paranhos, Miriã Bonifácio e Wandeir Campos

Água para o nosso lugar

"Ninguém consegue recomeçar a vida sem saber de onde. A questão do lugar é algo que [as empresas/fundação] não resolvem. Acham que vão solucionar o problema da água de qualquer jeito e deixar. Para eles, a melhor forma possível de resolver um problema é qualquer hipótese que atenda a empresa, e não aos moradores. Eles veem como facilidade a ideia do poço artesiano, mas eu não vejo assim, porque não tínhamos isso em Paracatu. E ainda vão ver se existe a possibilidade de fazer esses poços no terreno, porque não tem nenhum estudo sobre isso até agora. Então, não vejo nada de concreto pra gente. E a preocupação disso tudo foi nossa mesmo, partiu de nós, porque temos o entendimento de que o município não tem condições de arcar com altos custos para o fornecimento de água e tratamento de esgoto, e a tendência da empresa é querer deixar isso por conta da Prefeitura. Uma solução que eu vejo é pegar água do córrego de Lavras Velhas na ponte das Crioulas, porque lá a água atinge uma altura que pode chegar até o terreno por gravidade. O lugar para Paracatu foi escolhido e não vejo possibilidades de mudança. Agora, falta eles [Samarco/Fundação Renova] finalizarem a compra." Rosária Frade (moradora de Paracatu de Baixo)

"Nunca faltava água em Paracatu. A captação se dava das nascentes, onde a água era canalizada e enviada para as caixas d’água. O próprio povo realizava a manutenção necessária. Se desse algum problema, como um cano que estourava ou a boca que ficava entupida por conta do barro, por exemplo, Leco ia lá arrumar. E mesmo assim, era muita abundante. Sempre usamos água pura em Paracatu, nunca precisamos de tratamento. Já em Lucila não tem água para o povo. Na realidade, a empresa está jogando sujo com a gente, porque eles vão no terreno, esperam chover pra dizer que tem água, mas sabem que não tem, ficam nos enrolando. Nós conhecemos muito bem o terreno, não tem água nem para o núcleo urbano. Da onde vão tirar água? De poço artesiano? Nunca precisamos disso. Então, a empresa vai ter que se virar para arranjar água de qualidade, buscando no lugar que tiver." Caetano da Silva (morador de Paracatu de Baixo)

Olhar técnico

"Os atingidos correram atrás de averiguar a insuficiência de água no terreno de Lucila, através das próprias visitas aos terrenos. É importante destacar o protagonismo deles nesse processo de se preocuparem com os seus direitos de uma condição de vida digna a longo prazo. O maior receio, então, está na própria duração de um poço artesiano e também nos

custos que sua manutenção gera. E nós sabemos que eles têm uma validade, que vai de 10 a 15 anos. A Fundação Renova/Samarco alega que, nos primeiros relatórios, havia estudos que confirmavam o abastecimento de água para o reassentamento. Mas, na verdade, essa avaliação dizia respeito apenas ao terreno de Lucila e contemplava um número de moradores que não condizia com a realidade do local atingido - tanto que os sitiantes tiveram que ser incluídos e outros terrenos precisaram ser comprados para atender o aumento de demanda. Muitos atingidos são produtores rurais, criadores de gado, o que consome muitos litros de água. Por isso, é desejo da comunidade que o abastecimento seja feito como era antes, e as alternativas para que isso aconteça não estão em afluentes tão próximos, mas acreditamos serem possíveis. Inclusive, os moradores se organizaram em uma saída de campo onde mostraram para representantes da empresa alguns pontos de água que eles consideram bons. O que a empresa precisa fazer é o cálculo da demanda de água, considerando as áreas de APP (Área de Preservação Permanente) e os períodos de seca. Porém, a fala dela tem sido no sentido de que não seria uma obrigação entregar as formas de captação. O que nós acreditamos é que, se houver boa vontade, os problemas podem ser solucionados atendendo ao desejo da comunidade." Assessoria Técnica Cáritas Brasileira (dos atingidos de Mariana)


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Fotos: Lucas de Godoy

Ilustração: Welidas Monteiro

Um novo lugar para nossa escola

"As mães e os pais dos alunos estavam insatisfeitos há algum tempo, mas, até então, ninguém tinha procurado a gente. As reclamações apareciam, principalmente, por conta da distância da escola até o centro [localizada no bairro Morro do Gogô]. Para alguns, é muito complicado levar os filhos. Neste novembro, em um domingo, houve uma chuva muito forte, que danificou parte da parede da escola que era construída em PVC. Na segunda seguinte, estava tudo um caos, sem nenhuma possibilidade de ter aula. Foi então que nós falamos: “Se todo mundo está insatisfeito, vamos mobilizar os outros pais pra gente pensar nisso juntos”. Chegamos no nosso limite. Sônia, a diretora, marcou uma reunião com a Cáritas, Renova/Samarco, pais e representantes da Comissão dos Atingidos de Paracatu para formar uma comissão que pensaria nesse novo lugar. Se a gente for sair de lá, temos que pensar em um lugar melhor. Não vamos mudar para algo inferior. Essa necessidade de sair partiu dos pais, então, nós estamos escutando. Eles têm o direito de escolher onde querem que os filhos estudem. A Renova/Samarco precisa arcar com essa casa, porque não foi uma escolha nossa ir para lá. Eles falaram que ia ser provisório, mas esse provisório já tem dois anos." Elisete Aparecida Tavares (moradora e professora de Paracatu de Baixo) "Eu sou mãe da Alícia. Estou contente com a mudança de escola, porque fomos nós, pais, que decidimos juntos. Onde estamos é bom? Sim. Porém o acesso é difícil, o lugar é fora de mão. Com muito empenho da equipe da comissão, achamos um lugar acessível, com espaço e jeitinho que lembra a Escola de Paracatu. A casa precisa passar por reformas para se adaptar, mas o local é ótimo. Os outros pais vão ver a casa para fecharmos o contrato. A Renova acompanhou essa comissão e estou confiante de que dará certo. " Olívia Gonçalves (moradora de Paracatu de Baixo)

O nosso lugar virou cinema

"Fui chamado para auxiliar na limpeza do terreno e, depois, na figuração de um curta. Só fomos entender quem era Walter Salles [diretor de cinema - “Central do Brasil ” (1998)] bem depois. Pedimos a Fundação Renova/Samarco para não colocar máquinas, mas eles jogaram vários caminhões de pedras em Paracatu naquele dia. Senti que estavam com medo do que iria aparecer no filme. Com muito custo, chegamos ao final. O Walter, um cara muito simples, me chamou um dia e me perguntou qual tipo de música eu gostava. Falei que era sertanejo, Gusttavo Lima. Tem uma cena em que a moça fala “esse radinho era do Tcharle, o Romeu brigava muito com ele porque ele ouvia música alta...”, e tava tocando o som que eu escolhi. Só isso de terem falado meu nome já foi muito importante pra mim, porque trabalhamos duro vários dias, em que vivenciei muita coisa que a gente passou no 5 do rompimento. Acho que, de tudo o que aconteceu nesses dois anos, isso foi uma coisa muito

boa para nós. A comunidade se sentiu representada de alguma forma e a divulgação desse filme também é a divulgação do nosso lugar. Tivemos a oportunidade de ver como é feito um filme. Se me chamassem de novo, para continuar trabalhando com cinema, eu iria. Exibimos o documentário produzido com o Lucas de Godoy, “Vozes de Paracatu e Bento”, na Igreja no último dia 5, que marcava os dois anos do rompimento de Fundão. Quando minha irmã entrou, chorou muito, porque foi ali que ela batizou, crismou e formou. Minha avó me disse: que horror! E eu entendi a reação dela. Entrar na nossa igreja e não ver nada dentro é chocante. Vi várias pessoas se emocionando. E foi forte ver o documentário ali, com a igreja toda vedada para ficar escura. Ao mesmo tempo, foi muito importante porque as pessoas precisavam deste momento. Quando aparecia alguém que a gente conhecia, o pessoal ria, comentava. Eles também estavam se reconhecendo." Tcharle do Carmo (morador de Paracatu de Baixo)


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O nosso Nat

As festas de final de ano, particularmente o Natal, são, para grande parte das famílias, enfrentar, na expectativa dos encontros, a dura realidade das perdas. Para os atingidos misturam-se a uma tristeza que não se deixa mascarar. Dói chegar a ceia de Natal e nã ano. Dói a ausência daqueles que partiram desse mundo e daqueles que, nele, se perder não é exatamente sua. Mas, no Natal, uma luz parece se acender. Há um abraço de pai a oração ganha mais força. É ali que as energias são recarregadas, que a expectativa de estar junto que resiste à mais forte e destruidora lama.

O Natal era uma data em que filhos, pais, amigos e família ficavam eufóricos com os preparativos. Quando todos chegavam, Paracatu de Baixo ficava pequeno. Antes, o ritual do nosso Natal era passar de casa em casa; hoje, não mais. As famílias moram longe umas das outras e quase não se veem. Além das casas serem pequenas, se quisermos fazer as felicitações, temos que dividir o tempo, porque as casas são distantes e, se dá um desencontro, vem a frustração. Estamos neste lugar estranho onde nem todos entendem nosso modo feliz de viver. Também tinha a folia, que não chega mais nas residências com música. O que eu desejo a todas as famílias são boas festas e muita paz para enfrentarmos as intempéries da vida. Luzia Queiroz (moradora de Paracatu de Baixo)

Eu não desmontava minha árvore, ela ficava no canto da minha sala o ano inteiro. Minha decoração é do Cruzeiro e, assim que ia chegando o Natal, eu ligava para fazer inveja aos atleticanos. Como perdi isso tudo, quando a gente veio pra cá, a minha sobrinha Leila achou as mesmas bolinhas do Cruzeiro e trouxe pra mim, só que elas são poucas e difíceis de achar. Agora mudou tudo, né? A gente montava a árvore, tinha o nosso Natal. Nossas casas eram todas juntas, do meu irmão, da minha irmã. Fazíamos a festa e o amigo oculto no terreiro mesmo. Tinha uma piscina de Olívia que todos adoravam entrar para brincar. Do primeiro Natal fora de Bento até hoje, o terceiro, mudou muito. Falta o Bento. Falta o nosso lugar. Esse ano já estamos nos organizando para passar o Natal lá. Mesmo destruído, lá é o melhor lugar do mundo pra mim, e temos que adquirir forças para reivindicar nossos direitos. Não gosto de falar “Novo Bento”, nem “Bento antigo”. Existe o Bento e existe a Lavoura, que vai ser um braço de Bento, mas nunca será o Bento Rodrigues. Simaria Quintão (moradora de Bento Rodrigues) Já faz dois anos que a gente não passa o natal igual a gente passava lá na roça. Antes tinha espaço, o campo, o terreiro. Hoje a gente não fica à vontade. Lembro que os meninos subiam no pé de goiaba, pé de manga e catavam ameixa. Época de manga verde, a gente apanhava demais. O natal aqui em Mariana é diferente, não é mais o mesmo. Todo mundo fala que sente falta do antes. A casa de vó é que era gostoso. Marlene Agostinha (atingida de Pedras)

Por Ângela Lino, Gilmar José da Silva, Joelma Souza, Luzia Queiroz, Marlene Agostinha, Mirella Sant'Ana, Simaria Quintão e Sandra Quintão Com o apoio de Larissa Helena e Wandeir Campos

O nosso Natal era muito bacana. A gente conseguia tar toda a família porque tínhamos lugar para morar. A disso, a gente tinha uma união diferente, porque vin família de São Paulo, de Pouso Alegre, de Belo Horizo de todo lado, e que tinha o prazer de se unir ali em G teira. Hoje, tudo acabou porque nós não temos mais lugar para onde ir. Aliás, temos sim, casas alugadas. H as pessoas deixam de vir aqui em casa porque sabem não estamos com a estabilidade muito boa. A gente lem do Natal de Luz com muito carinho, eram muitas luzes Gesteira, mas como que faz isso estando na casa dos tros? Eu me pergunto, como enfeitar um lugar que é da gente? Eu gostaria que alguém me respondesse há felicidade nisso, se há alegria no Natal? Nós não te casa, não temos apoio e a família não dá pra agrupar m É muito triste o que acontece com a gente. Gilmar José da Silva (morador de Geste

No Natal de antes, as pessoas eram mais unid irmãs, nossa família... Hoje, não. Faz três semanas qu elas. Vamos tentar, neste ano, reunir todo mundo. Agor morando em um canto fica difícil de se falar. Lá em sa época, estaríamos juntos e nos programando para o legal abrir as caixas e enfeitar. Íamos para o mato bus Tinha a Missa do Galo e a ceia era depois dela. Arroz do pão, pernil assado são alguns dos pratos que fazíamos. gostava de montar o presépio da igreja. Os bichinhos e antigos: as vaquinhas, as ovelhas, o Menino Jesus e as im a gente colocava. As peças eram todas de madeira bem hoje, não tem mais esse tipo, são tudo de plástico. Aq nhos tinham história. Sandra Quintão (moradora de Bento R


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Fotos: Larissa Helena e Wandeir Lucas

tal improvisado

momentos de alegria e comunhão. Contudo, podem ser também dias difíceis para aqueles que são obrigados a s e atingidas, essa mistura de emoções é ainda mais difícil. Afinal, nesses dias, a gratidão, a força e a esperança ão ter, à mesa, as mesmas pessoas que, antes de 2015, reuniam-se com facilidade, nesta ou em qualquer data do ram; de quem, mesmo presente, não está ali da mesma forma que antes. Dói porque a mesa, assim como a casa, i que conforta, um carinho de vó que alimenta, uma estripulia de criança que faz rir. Com o futuro em aberto, e dias melhores ganha horizonte, que a provisoriedade do agora mostra-se, de fato, passageira. O que fica é esse

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A gente não tem mais Natal. Como era um lugar muito pequeno - Ponte do Gama tem, aproximadamente, 54 pessoas -, éramos praticamente uma única família. Todos se reuniam. Minha avó tem enteadas que moram fora do estado e do país e elas vinham só para o Natal. A cozinha da casa dela é enorme. Foi feita para isso, para a família. Desde quando viemos para Mariana, não temos mais isso. No primeiro ano, viemos dois dias antes do Natal, porque a Samarco precisava colocar as pessoas em casas [provisórias]. Não tem ônibus para chegar na casa da minha avó, então, para voltar lá, é muito difícil, ou vamos de carona ou de ônibus e caminhamos 6 quilômetros a pé. Não mudou nada do primeiro ano para o terceiro. Não conseguimos ir para roça, eles também não conseguem vir para cá [para Mariana]. A gente não sabe como resolver isso. Fazíamos a decoração no início de dezembro, os vizinhos ajudavam a colocar o pisca-pisca, a montar a árvore. Aqui não tem graça decorar. Mirella Sant'Ana e Ângela Lino (moradoras de Ponte do Gama)

Lá no Bento o nosso natal era repleto de doces e comidas caseiras, a ceia era farta. A nossa tradição era o doce de Jacatia, uma raíz que todo ano os meus tios Zé e Luiz buscavam. E só eles conheciam a época certa de pegar. Era tradição da família Souza, fazer os doces e depois dividir com a comunidade. Hoje nós perdemos esse costume. Essa raíz da jacatia a gente só acha dela lá, aqui não tem. É um doce demorado para se fazer, pois tem vários processos, é feito no fogão de lenha e demora uns três dias para ficar pronto. Já a nossa comemoração de final de ano, era passar lá na minha lanchonete.Tinha uns forrozinhos e enchia de gente. Era bom demais. Zezinho e Irene iam pra lá tocar violão. Lembro que em 2014 fizemos um festão, parece até que foi despedida. Quando foi seis horas da manhã, fomos comemorar o primeiro dia do ano tomando banho no lago que ficava na beirada da estrada.

O doce de jacatia da família Souza Ingredientes: Raiz de jacatia Açúcar (aproximadamente 5 kg) Leite (aproximadamente 5 garrafas Pet's = 10 litros) Modo de fazer: 1 - Lave e depois rale a raiz da jacatia 2- Deixe de molho em um vasilha com água de um dia para o outro. 3- Coloque a polpa no tacho e deixe cozinhando. Acrescente o açúcar conforme for secando. 4- O ponto é quando a polpa estiver sequinha igual coco em flocos. Por fim, acrescente o leite e deixe secar. Rendimento: um tacho grande. Joelma Souza (moradora de Bento Rodrigues)


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Diagramação: Carlos Paranhos

Josés e Marias Para os Josés e as Marias das comunidades atingidas, a origem de seus nomes vêm da Bíblia, da roça, do costume de uma gente antiga. Vêm também da beleza de suas palavras e por simbolizar forte proteção. São heranças transmitidas de pais e mães para filhos e filhas. Identificações que carregam em si mensagens de força e perseverança. Além do nome e da origem, muitos são os Josés e as Marias que, vítimas de um crime, passaram a compartilhar, desde novembro de 2015, uma vida de mudanças, de receios e de lutas. Neste dezembro, trazemos o desabafo de pessoas que, tal como na história bíblica, enfrentam, a seu modo, as dificuldades de tempos incertos. Por José Barbosa, José Geraldo, José Delfonso, Maria Aparecida, Maria da Conceição, Maria do Pilar, Maria Felix Com apoio de Carlos Paranhos e Daniela Felix

Barbosa

70, atingido de Bento Rodrigues Depois que vim pra Mariana, fui muito prejudicado. Operei do coração e vivo sempre doente. Lá no Bento, eu tinha cinco casas e um comércio, agora não tenho mais nada. Achava que, em um ano, a gente já teria nossas casas de volta. Já se passaram dois e parece que vai levar, pelo menos, mais dois. Se a morte não chegar pra mim até lá, quero construir meu bar pra entreter a vida, passar o tempo e não ficar muito quieto dentro de casa.

Delfonso

62, atingido de Bento Rodrigues Nasci lá na Fábrica Nova, onde hoje está a Barragem de Fundão. Mas é no Bento que fui crescendo e vendo o mundo. Minhas lembranças estão todas lá, na minha casa, que tinha seis cômodos, uma varanda. Diferente daqui, que você dá uns passos na cozinha e já está na porta da rua. O reassentamento está demorando demais. Só quero que chegue o dia em que eles [Samarco/Fundação Renova] vão me entregar a chave e falar: “É sua”. E eu quero essa casa do mesmo jeito que era antes.

Geraldo

48, atingido de Ponte do Gama Antes eu levantava às quatro e meia da manhã e já tinha serviço. Chegava em casa na parte da tarde, pegava o anzol e ia pescar, não tinha cansaço. Isso pra gente era a maior alegria. Aqui em Mariana às vezes eu acordo e não tenho nada. Dependo de remédio para seguir minha vida. Fico pensando na água, na lama, no jeito que nós saímos do Gama com água na cintura. Fiquei traumatizado.

Fotos: Daniela Felix


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Aparecida

54, atingida de Bento Rodrigues Eu e o Zé crescemos juntos lá no Bento. Começamos a namorar depois de um baile no Sobrero. Casamos, fomos morar juntos e depois engravidei do Lucas. Todas as lembranças do casamento foram embora com a lama. As coisas estão difíceis, tem dia que a minha vida é só chorar, mas Deus e São Bento me dão forças. A fé é a melhor coisa que Deus dá pra gente, Ele me fortalece e eu torno a aguentar. Quando eu tiver a minha casa, vou ver se eu consigo umas mudas de jabuticaba. Eu não vou chupar, mas meus netos vão. Vai ficar tudo pra eles.

da Conceição 76, atingida de Paracatu de Baixo

Paracatu era uma roça que todo mundo vivia feliz. Quando vejo minhas coisas lá entupidas de lama, penso: “Meu Deus, tudo que construí com muita dificuldade apanhando café, capinando e plantando foi embora”. Hoje, tô nessa casa antiga, dependendo deles [Samarco], que eu nunca vejo. Mas sou uma pobre orgulhosa, não corro atrás deles pra me mudar. Eles me colocaram aqui e daqui vão me tirar só pra minha casa pronta. Não sou egoísta, não quero um palácio, quero só o que eu tinha. Tem dia que dá vontade de sumir daqui, mas deixo pra lá.

do Pilar

30, atingida de Paracatu de Baixo Por mais que eu tenha ido morar e estudar fora, não conheci nenhuma pessoa com a mesma história que a minha. A experiência de ter morado num subdistrito, de ter brincado, plantado, de saber que o leite não vem da caixinha... Lá era muito diferente da cidade. Jamais trocaria minha infância, porque muito do que sei hoje é da essência de quando eu era criança. Só quem foi atingido, só quem perdeu sua casa, sua história, seu lar sabe o sofrimento que carrega consigo.

Felix

69, atingida de Bento Rodrigues Lá no Bento era muito bom, porque a gente considerava todo mundo uma família. Eu trabalhava com a geleia de pimenta. Era apaixonada pelo plantio e pela colheita. Aqui tenho minhas plantinhas, mas elas não crescem. Compro ouro verde pra colocar nelas de 15 em 15 dias e, mesmo assim, ficam feias. Minha varanda no Bento tinha planta de fora a fora, tínhamos até que afastar as samambaias pra conseguir passar. Lá elas eram verdinhas. Tinha também tudo quanto é tipo de fruta.

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Foto: PExels

Obrigado, mundo que nos apoiou Kaé é morador de Bento Rodrigues e, hoje, como muitos atingidos e atingidas, vive, provisoriamente, no bairro Colina, em Mariana. Pai de quatro filhos, trabalha como entregador de cargas de carvão e complementa a renda da família com o serviço de apicultor. Pelo menos duas vezes por semana, precisa viajar até Fundão (a 70 km de Mariana) para tratar das abelhas e organizar a produção do mel em 40 colmeias. Uma tarefa difícil e, como vocês podem imaginar, mantida com muito esforço após o rompimento da barragem. (Leia a reportagem “Mãos que não querem parar”, na edição número 5 - Jornal A SIRENE.) Contudo, a história de Kaé com as abelhas também é uma crônica sobre a gratidão e o espírito de coletividade dos atingidos. Como diz o próprio Kaé: “não é o eu, é a comunidade”. Por Espedito Lucas Silva (Kaé) Com o apoio de Larissa Helena e Miriã Bonifácio

Em determinado momento da minha vida, antes daquele dia 5, eu precisei encontrar um jeito para conseguir dar conta de criar meus filhos. Fui para o “tudo ou nada”, comprei um caminhão para realizar entregas de cargas de carvão com o dinheiro de um empréstimo que fiz no banco. Eram 48 prestações de 2.500 reais. Eu arrisquei e dei conta de pagar as parcelas até o dia do rompimento, quando perdi todas as minhas coisas e perspectiva financeira. Mas alguém me ajudou. Um homem bom me ligou falando que tinha me assistido no programa da Ana Maria Braga e se ofereceu para pagar as quatros parcelas do caminhão que ainda faltavam. Aceitei e disse, para ele, que iria retribuir isso algum dia, de alguma forma. Tenho, para mim, esse compromisso com a comunidade, porque sei que, quando a gente ajuda um ao outro, a vida fica mais fácil de viver. E vejo isso nas abelhas. Abelha é um bicho muito interessante. Se você mexer na casa delas, elas te picam. Quando as abelhas campeiras saem em busca do néctar das flores, elas deixam pra trás a proteção que tinham na colmeia e se arriscam aos perigos do mundo de fora. Esse é um trabalho duro, mas elas fazem isso pensando no objetivo maior de fazerem o mel. Sabem o lugar exato onde encontrar o néctar, porque têm um sentido muito bom. Quando voltam, entregam o mel para as abelhas engenheiras, que vão depositá-lo nos favos, cobrir de cera e esperar pelo menos dois dias para estar pronto. Então, uma abelha é absolutamente inútil sozinha e, na colmeia, a decisão jamais fica restrita a uma só. Todas as abelhas alimentam-se, limpam-se, comunicam-se e se reconhecem como membros de uma mesma sociedade. Quando o clima não favorece, chuva ou frio, por exemplo, elas ficam bravas e gostam de ficar juntinhas. Sabemos o quanto uma colônia de abelhas é um obstáculo temível para qualquer predador. Por isso, acredito que podemos tirar uma grande lição entendendo a vida das abelhas, inclusive, agradecendo a todo mundo que nos ajuda a ficarmos firmes na luta para termos nossa colmeia de volta. A gratidão das abelhas Para o mundo em geral que nos acolheu naquele momento em que a gente estava no chão, que a gente não sabia para onde ir, um agradecimento. Tudo o que vocês nos doaram, aquelas cartinhas que enviaram para as crianças, com mensagens de apoio dizendo “você vai vencer”, pequenas coisas que nem custam dinheiro e que nos deram forças. A todas essas pessoas que nos ajudaram, quero dizer que a gente está se levantando - aos poucos -, passando por cima das coisas ruins, tentando viver com o que há de bom. Obrigado, mundo que nos apoiou. Estamos aqui de braços abertos para que, um dia, nós possamos estender a mão a vocês também.


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Dezembro de 2017 Mariana - MG Foto: Flávio Ribeiro

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Papo de cumadres: lama que mata Consebida e Clemilda estão as duas assustadas com o toque da sirene que causa angústia e com a lama que ainda atinge e mata. Por Sergio Papagaio

- Consebida diz: Cumadre, cê viu o ri Gualaxu, tá suju pra diachu. - Já se faz mais de dois anus, e as água continua sujanu. - É a lama da bêrada que, com a chuva, pru ri tá senu carriada. - O rompimentu foi uma facada, matô muita gente e dexô ôtras aleijada. - Essa lama da bêrada, que tá senu carriada, é ôtra facada nas nossas caras. - É mês, cumadi, na nossa cara a facada é na alma um corte. - Eu óiu pru Gualaxu du Norte e ainda sintu cheiru de morte, da natureza e das pessoa que num tiveru sorte. - Veja só u que eu tô ti contanu, quandu a genti acha que tá tudu acabanu, vem a sirene tocanu e a nós tudu angustianu. - Eu tinha até isquicidu da tar barrage de Germanu, e a Samarcu vorta com a sirene tocanu e nus crucificanu. - Comu eu tava ti falanu, todu dia dez a sirene vai tá tocanu, e issu pode acabar nus matanu. A gente vai sempre a sirene iscutanu e a triteza dentru du peitu gardanu. A psicóloga disse que podemus acabar infartanu. - Ocê consegue intendê, é mais duença que a Samarcu tá crianu, todas as ôtras duença num tá bastanu. - Agora, cumadi, ocê pode tá mi falanu, até quandu nós issu tudu vamu tá aguentanu? - Num sei, cumadre, mas eu peçu a Deus todo dia pra ficá nus guardanu. Em informações prestadas ao Jornal A SIRENE, a mineradora Samarco notificque, a partir de janeiro de 2018, todo dia 10 de cada mês, às 10h, as sirenes instaladas entre os municípios de Mariana e Barra Longa serão acionadas, simultaneamente, com o objetivo de testar o funcionamento do sistema. Cada sirene emitirá uma mensagem de voz, infomando que se trata de um teste, e logo em seguida transmitirá o som de alerta durante um minuto.


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Foto: Daniela Felix

O dia de Gesteira

Comunidade de Gesteira, em Barra Longa, se reúne para fortalecer as relações comunitárias entre os moradores do distrito. O encontro, realizado no sábado, dia 25 de novembro, foi marcado por trocas de experiências com outros atingidos, por grupos de discussão, almoço coletivo e dinâmicas de resgate de memórias da vida anterior à lama. Por atingidos de Gesteira e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Com o apoio de Assessoria Técnica da AEDAS e Rafael Drumond

Gesteira foi uma das comunidades devastadas pela lama da Samarco. Ao todo, nove casas foram destruídas e 11 lotes produtivos situados à beira do rio Gualaxo do Norte acabaram soterrados - assim como o campo de futebol, a escola, o salão comunitário e a Igreja Nossa Senhora da Conceição. Onde, um dia, esteve vivo o Velho Gesteira, hoje, encontram-se pastos e ruínas deixados pelo maior crime ambiental do Brasil. Atualmente, cerca de 60 atingidos aguardam o reassentamento prometido pela Samarco/Vale/BHP Billiton em moradias provisórias espalhadas entre Gesteira, Barra Longa, Mariana e Acaiaca. São amigos e parentes que perderam a convivência diária por causa da irresponsabilidade e da opção política das mineradoras por produzir mais minério e garantir mais lucro aos seus acionistas, ignorando condições mínimas de segurança para trabalhadores e comunidades. Em função desse distanciamento e da indignação com o descaso da Samarco - até hoje, a empresa/Fundação Renova foi incapaz de apresentar um projeto viável para reassentar as nove famílias -, os moradores do distrito, organizados no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e acompanhados pela Assessoria Técnica da Aedas, decidiram fazer o Dia de Gesteira: “Separados pela lama, unidos pela luta”. “É um momento de reunir todo mundo que está separado desde a tragédia, conversar com eles, confraternizar, discutir os problemas e pensar juntos as soluções que envolvem a construção das casas, e também acesso à água e a solução de outros problemas”, comenta Gracinha, moradora do Gesteira e militante do MAB. O encontro foi realizado na Quadra de Esporte do Mutirão, localizada na parte alta de Gesteira - que não foi destruída pela

Foto: Daniela Felix

Foto: Daniela Felix


Dezembro de 2017 Mariana - MG lama, mas, devido ao rompimento, ficou isolada por 11 dias e exposta a todos os problemas causados pelos canteiros de obras. Ali, moram cerca de 60 famílias, entre elas, as proprietárias dos 11 lotes à beira do rio que foram soterrados e que também aguardam o reassentamento. “O Dia de Gesteira foi um momento muito importante. Dia de reafirmar que a organização é o único caminho para garantir o reassentamento. Como a Samarco já fez quatro barragens abaixo de Fundão, gastou 280 milhões na barragem de Candonga e outros 44 milhões nos três reassentamentos e ainda nenhuma casa foi feita?”, questiona Thiago Alves, da coordenação estadual do MAB em Minas Gerais e morador de Barra Longa. O Dia de Gesteira foi marcado por discussões sobre os problemas enfrentados pelos moradores, especialmente aqueles relacionados ao reassentamento. Na data, toda a comunidade foi homenageada na pessoa de Dona Geralda, moradora mais velha do distrito - única remanescente da enchente que, em 1979, atingiu o local. Na confraternização, partilharam um bolo e cantaram, com sete meses de atraso, o “Parabéns” que, tradicionalmente, marcava o aniversário da atingida.

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Fotos: Leandro Raggi

“A casa da minha vó era ponto de referência de todo mundo que passava no Gesteira. Na casa dela, sempre tinha merendas, bolo, rosca, biscoito, café, queijo - ela era uma mãe pra qualquer um que chegasse. E, todos os anos, a gente fazia uma festa de aniversário pra ela, pra toda a comunidade, com almoço, churrasco, dois bolos. A gente passava a madrugada acordado, cantando, fazendo bagunça. Era a coisa mais linda do mundo. E, depois da lama, a gente não conseguiu mais fazer isso. Por isso, a ideia de reviver um pouquinho desse passado no Dia de Gesteira.” Simone Silva, neta de Dona Geralda.

Situação do reassentamento de Gesteira e das Comunidades Rurais de Mariana

No dia 28 de novembro, a Samarco apresentou aos atingidos de Gesteira uma proposta de terreno insuficiente para o reassentamento da comunidade - contrariando decisão tomada pelos próprios moradores em reunião realizada em junho deste ano. De forma autoritária, a empresa queria que os moradores fizessem as marcações de seus lotes dentro do terreno proposto. A comunidade, organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e acompanhada pela Assessoria Técnica independente da AEDAS, não aceitou as condições e exigiu a paralisação das negociações até que os atingidos façam uma demarcação orientada de suas propriedades, considerando critérios importantes como acesso à água e produtividade das terras. A Samarco assinou ata assumindo os compromissos e saiu da reunião sem impor sua proposta de reassentamento. Em Mariana, as comunidades rurais (Paracatu de Cima, Pedras e Campinas) também vêm pressionando as empresas para garantir os reassentamentos familiares. Em reunião realizada por atingidos organizados pelo MAB no dia 30 de novembro, a Fundação Renova/Samarco se comprometeu a adquirir os terrenos indicados pelos moradores que tiveram casas destruídas ou interditadas pela Defesa Civil. Até o momento, 20 famílias já indicaram novos terrenos, sendo que outras ainda estudam possibilidades para o reassentamento familiar. A reunião foi uma vitória para os atingidos da região, considerando que, até então, essa não era alternativa oferecida pelas empresas/fundação, que insistem em reconstruir as casas em áreas de insegurança. Contudo, a luta continua para garantir que esta conquista seja estendida às famílias cujas moradias, mesmo não tendo sido atravessadas pela lama, continuam vivendo nos limites do dam break de Germano - isto é, na área que seria atingida em caso de rompimento da maior barragem desse complexo de mineração. Também no último dia 28, foi cancelada, no contexto da Ação Civil Pública que tramita na comarca de Mariana, audiência de conciliação na qual seria discutido um valor de multa sancionado às empresas no caso de atraso da entrega dos reassentamentos das comunidades e das famílias atingidas no município. O motivo do cancelamento foi a recusa da empresa BHP Billiton em participar da audiência.


Editorial Mais um dia 5 chega para marcar o desastre criminoso de Fundão. Entraremos no terceiro ano de tragédia atravessados pelo sentimento de injustiça e por um estado de sofrimento que se renova a cada violação de direito. Para alguns, “nada novo” nas denúncias que fazemos - apenas “mais do mesmo”. Duro é perceber que não estão, de todo, equivocados. Para as empresas mineradoras e seus braços de atuação, nossa dor continua sendo usada como recurso para a desmobilização e estratégia de enfraquecimento, pessoal e coletivo. Como podem, após diversas reportagens darem conta da atestada insuficiência do trabalho da Fundação Renova, pretenderem o desbloqueio dos R$ 300 milhões, que, para os atingidos de Mariana, oferecem uma segurança mínima em relação às reparações? Se, nesse caso, os atingidos saíram vitoriosos - uma conquista coletiva, organizada e fortalecedora! -, em relação ao reassentamento, a luta não apresenta horizontes fáceis para a resolução dos conflitos. Percebemos, mais uma vez, que as mineradoras usam o tempo como estratégia para diminuir a força das comunidades - que, sem espaço físico, resistem no coração de sua gente. Enquanto os moradores de Bento se lançam em mais uma rodada de oficinas para a discussão de seu projeto urbanístico, Paracatu luta para encontrar um caminho coletivo em meio às dificuldades do reassentamento - ausência que também se materializa na busca por um lugar que possa abrigar, temporariamente, a escola do subdistrito. Após meses de indiferença por parte da Fundação Renova, os moradores de Gesteira, distrito de Barra Longa, fortalecem espaços coletivos de troca e retomam a pressão para que o reassentamento da comunidade ganhe prioridade nas agendas de reparação. Fazendo um balanço do ano, encerramos 2017 divididos entre a certeza da continuidade da luta e a expectativa pelas conquistas do futuro. Com todos os desafios, derrotas e cansaços, o saldo não deixa de ser, por um lado, positivo. Estamos distantes no espaço, porém, mais alinhados em relação ao futuro que queremos. Descobrimos, nas histórias de nossa gente, uma força que desconhecíamos, e que, hoje, sustenta novas formas de ser comunidade. Em casas que não são nossas, celebramos, na forma do Natal, a esperança que nasce de Marias e Josés, com a força e o otimismo de todos os atingidos e atingidas com os quais dividimos nossa causa. Como tantas famílias, encerramos este ano em estado de oração e agradecimento. Nossa situação não é, definitivamente, boa ou confortável - inclusive, é pelas mudanças necessárias que dedicamos nossas preces. Contudo, através desses agradecimentos, fortalecemos nossas redes de apoio e solidariedade, nutrimos sentimentos positivos em nossa alma e refazemos nossas esperanças sobre o ano que está por vir. Como na metáfora que, neste mês, nos é capa, buscamos inspirações na sabedoria do pensamento coletivo das abelhas, para nunca nos esquecermos que estar junto é um bom caminho para recordar o que havia de doce na vida que tínhamos, em nossas tradições e nos lugares onde estão nossas origens. Talvez, um dos maiores desafios em ser atingido, em conviver com um estado de constante violação de direitos, seja o de não se deixar envenenar pelo sofrimento e pela revolta. No fundo, como qualquer pessoa, queremos apenas chegar no limite do dia 31 para poder desejar e esperar, para todos e para nós mesmos, um “feliz ano novo”.


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