A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 9 - Edição nº 93 - Fevereiro de 2024 | Distribuição gratuita
Edição Comemorativa de 8 Anos
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Fevereiro de 2024 Mariana - MG
8 ANOS DO JORNAL A SIRENE No dia 5 de fevereiro de 2024, completam-se oito anos de persistência deste veículo de comunicação. Apesar de sua condição financeira precária, ele sempre foi rico em seus propósitos de informação e comunicação popular entre as pessoas atingidas e todas que, de alguma forma, também são atingidas pelo método usado pelas empresas mineradoras. Essas empresas fingem reparação, mas, na verdade, mantêm vivo esse rompimento, irmão do rompimento de Brumadinho e de outros mais, filhos da mesma Vale, que promove a morte em outros vales, seja por rompimento, acidente de trabalho ou “terrorismo de barragem”. Por esses tão penosos oito anos de existência, saúdo a todas as pessoas que estiveram na valiosa colaboração para que esta façanha pudesse acontecer. Nestes oito anos do jornal, digo “parabéns” para todas e todos nós. Obrigado pela companhia nesta caminhada. Sérgio Papagaio, Editor-chefe do Jornal A Sirene
REPASSES Seminário reuniu vítimas de Brumadinho, Mariana, Boate Kiss e da Braskem em Minas Gerais
22 de janeiro Um seminário que faz parte das ações que marcam os 5 anos do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, que matou 272 pessoas em 2019 na cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, reuniu no dia 22 de janeiro, representantes das vítimas das maiores tragédias do Brasil. O seminário faz parte de uma série de ações desenvolvidas pela Associação dos familiares das vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho-MG (Avabrum), para relembrar os 5 anos do desastre-crime da Vale, com programação que terminou no dia 25 de janeiro com o grande ato realizado no letreiro da cidade de Brumadinho.
Justiça condena Vale, Samarco e BHP a pagamento de R$ 47,6 bilhões 25 de janeiro A Justiça Federal condenou Vale, BHP e Samarco a pagar R$ 47,6 bilhões como indenização pelos danos morais coletivos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. O valor deve ser corrigido monetariamente desde a data da decisão, assinada em 25 de janeiro, e com juros de mora que considerem a data do desastre-crime, ocorrido em 5 de novembro de 2015. O juiz federal substituto Vinicius Cobucci, da 4ª Vara Federal Cível e Agrária de Belo Horizonte, determinou que o montante seja destinado a um fundo administrado pelo Governo Federal e aplicado exclusivamente nas áreas atingidas. Cabe recurso.
AGRADECIMENTO ESPECIAL Agradecemos a todas e todos que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Clara Costa Amaral, Maria Eunice Souza, Estefania Momm, Cristina de Oliveira Maia, Gislene Aparecida dos Santos, Claudia Neubern, Ana Paula Silva de Assis, Natália, Isadora Pimenta, Bruno Milanez, Vitória Bas, Caíque Pinheiro, Wilson da Costa, Stephanie Nogueira Bollmann, Denize Nogueira, Virgínia Buarque, Eduardo, Jussara Jéssica Pereira, Geraldo Martins e Raquel Giffoni Pinto. Agradecemos também a todas as pessoas que contribuem anonimamente com nossa luta. Para ajudar a manter o jornal, acesse: evoe.cc/jornalasirene
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EXPEDIENTE Realização: Associação dos Atingidos pela Barragem de Fundão para Comunicação, Arte e Cultura | Conselho editorial: Ellen Barros (Instituto Guaicuy), Expedito Lucas da Silva (Caé), Luanna Gerusa do Carmo Ferreira (Cáritas MG), Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editor-chefe: Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Crislen Machado | Reportagem e fotografia: Crislen Machado, Expedito Lucas da Silva (Caé), Ellen Barros, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Diagramação: Silmara Filgueiras | Foto de capa: Sérgio Papagaio | Apoio administrativo: Pâmella Magalhães | Apoio institucional: Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), Cáritas MG, Instituto Guaicuy | Fontes de recursos: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A SIRENE. ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP. Doações. Pogust Goodhead. Mandato da Deputada Estadual Beatriz Cerqueira.
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Opinião
Oito anos do jornal A Sirene a informar, e o rejeito a contaminar Concebida e Clemilda lembram com exatidão o aniversário de oito anos do jornal a informar que o rejeito das mineradoras continua a contaminar. — Cumadre Clemilda, ocê istá a se alembrá que agora em fevereiro, u jorná A Sirene está há 8 anos produzindo nuticia pamode u povu informá? — Ora pois, comu eu ia dexá de alembrá deste jorná que aos trancus e barrancus sempre teve a nus infolmá, lembrando também de uma nutícia que veiu reafilmá u que nois tava careca de sabê e nuca dexemus de falá da brabeza com que esse rejeitu esteve nu ambiente a lhe contaminá. — É o istudu da Aecom foi só mais um istudu dus tantus que foram feitus pra reafilmá a quantidade de metá misturadu neste rejeitu, confirmanu u que ês sempre tava neganu com muita mardade. Agora ficou firmado o tar nexu de carsualidade, oia que tentação pra num adimiti u erru expuseru todas as pessoas atingidas a contaminação, e a justiça brasileira enrolada desta maneira sem fazer fouça pra resorvê esta daneira, expondu a população as maselas da contaminação. — Então, minha cumade du coração, no aniversário du jorná, eu vou cunveusá com cumpadre Alixandre que a banda Nossa Senhora Du Carmu possa pra nus acalentá, uma malcha fúnebre nesta data tocá, relembrandu us que por carsa du rompimentu ou pela danação da contaminação partiu desta vida sufrida sem podê fazer a dipidida. Foto: Ananda Martins
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Fotos: Rosilene Alves
Arquivo Pessoal - Bento Rodrigues de origem.
A vida no Novo Bento O relato de uma família expõe a dualidade do reassentamento. A construção de um lar no Novo Bento representa uma oportunidade, porém a saudade de Bento Rodrigues, o Bento de Origem, permanece. A resistência em meio às perdas é uma marca na vida dessas pessoas, enquanto cada família se esforça para encontrar um equilíbrio entre o passado e o presente. Elas carregam o peso da reconstrução física e a carga emocional de inúmeros rompimentos. Essas histórias destacam a complexidade da reconstrução, que envolve tijolos, argamassa e também a reconstrução do espírito comunitário e da identidade. O Novo Bento surge como um símbolo de esperança e como um desafio para preservar a essência de um lugar que, mesmo fragmentado, permanece vivo nas memórias e nas reivindicações políticas de suas moradoras e seus moradores. Por Geralda da Conceição Gonçalves Alves (Neizica) e Rosilene C. Alves Com o apoio de Ellen Barros, e Crislen Machado
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“A minha vida era tranquila. Uma vida de dona de casa. Só cuidar do lar, trabalhar na associação e na horta. Quando cheguei em Mariana, eu quis pedir para o pessoal alugar um lugar para a gente trabalhar, porque a gente estava muito desorientada, todo mundo longe, a gente era acostumado a encontrar todo dia. Então a gente fez uma reunião e resolveu seguir com o Ahobero [Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues] lá em Mariana também. Aí eles alugaram um espaço para a gente e a gente seguiu pelas nossas próprias pernas. A gente mesmo compra os nossos insumos, tudo que a gente precisa. Não tem auxílio da Renova, foi só mesmo para pagar o aluguel. O resto tudo é por nossa conta. Os insumos tudo a gente compra por nossa conta mesmo. E a gente está aí, continua trabalhando. E ela já está pronta aqui também, no Novo Bento. Ficou um prédio muito bonito. E é isso. A gente só não tá trabalhando ainda porque ainda não foi entregue, mas, assim que entregar, a gente volta a trabalhar. Quanto à expectativa do Novo Bento, eu não sei. Assim, eu espero que seja boa, né? Já está bom e eu espero que melhore cada vez mais. Que vai mudando mais pessoas, as pessoas venham morar no Novo Bento. A gente já tá tendo missa na igreja. Eu espero que sim, porque eu sou católica, né? A gente faz parte da igreja católica. Então, assim, eu acho que é isso. A gente recomeçar de novo e continuar em frente.” Geralda da Conceição Gonçalves Alves (Neizica), moradora de Bento Rodrigues “Bento Rodrigues foi a comunidade onde eu nasci, onde passei parte da minha adolescência. A minha vida inteira foi ligada à Bento Rodrigues. Meus pais, meus avós nasceram e se criaram em Bento Rodrigues. Todos na comunidade se conheciam. Tínhamos, graças a Deus, um relacionamento maravilhoso, mas, até o rompimento da barragem, eu não sabia a extensão do amor, do quão importante Bento Rodrigues era para mim. E até hoje é dolorido lembrar daquele lugarzinho aconchegante onde, todo final de semana, todas as férias, eu passava. Onde o meu pai criou, constituiu família, casou, porque minha mãe também era de lá. Na medida do possível de uma comunidade do interior, era o melhor lugar do mundo. E ainda é difícil processar, apesar de oito anos, tudo que aconteceu. É como se matasse um pedaço importante da minha vida, que hoje só resta na memória, só nas lembranças. Meu pai sempre teve uma relação de filho da terra com o Bento Rodrigues. Por ele ter tido os avós, os pais nasceram naquela comunidade, ele nasceu, a família dele nasceu e foi criada lá com muita dificuldade, porque o pai do meu pai era pedreiro, e a mãe do meu pai era do lar. Quando chegou o momento de chegar à tão sonhada aposentadoria, ele voltou a morar definitivamente em Bento Rodrigues. Desde então, até o rompimento da barragem, ele esteve lá. Lá, ele tinha os amigos dele, né? Alguns amigos de infância ainda viviam lá, como Filomeno, senhor Marcolino (infelizmente, hoje já é falecido), Geraldo Inácio (também faleceu), José Sobreira (falecido), Juca (nosso vizinho de cerca), porque, na nossa casa lá, não havia muro dividindo nosso lote, era só muro na parte da frente da casa. Então, as laterais e o fundo eram cerca de arame. Juca era nosso vizinho e, graças a Deus, continua sendo. Quando aconteceu o rompimento da barragem, eu estava dando aula em Ouro Preto, e eu fiquei desesperada quando meu irmão ficou falando do rompimento. Até então, eu não
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Fotos: Expedito Lucas da Silva (Caé)
Novo Bento Rodrigues.
tinha noção da extensão da gravidade do acontecido. E o que mais me dói nesse rompimento foi a dor que meu pai sentiu ao perder tudo que ele levou uma vida inteira para construir: a nossa casa, a casa dos pais dele, a plantação da pimenta biquinho, a comunidade onde ele viveu, nasceu, cresceu e ele pretendia ficar até o fim da vida dele. E quando havia reuniões com o pessoal da Samarco, sempre era questionado a segurança da barragem, afirmavam que era seguro, que eles até morariam lá, mas nenhum deles nunca pensou em passar um final de semana lá. Então, o rompimento da barragem trouxe para a minha vida uma situação que eu não imaginei viver, porque dentro de Bento Rodrigues era o local que eu ia. Eu tinha prazer de no final de semana, feriado, passar lá. Era onde eu era feliz. Eu nunca fui tão feliz em nenhum outro lugar, e acredito que jamais serei. Nesses meus 55 anos de vida, eu acredito que o lugar que me trouxe mais felicidade foi dentro do Bento Rodrigues. Apesar das dificuldades que uma comunidade de interior enfrenta, foi lá que eu construí a minha história de vida. Foi lá que meus pais me educaram, foi naquele sistema, naquela comunidade pequenininha, mas tão amada, que eu constituí a minha vida. Ainda não consegui construir um laço forte, um laço de pertencimento. Ainda me sinto uma visitante lá.” Rosilene C. Alves, moradora de Bento Rodrigues
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Santa Rita Durão: comunidade convive com insegurança e falta de informação No dia 10 de novembro de 2023, a Agência Nacional de Mineração (ANM) emitiu um alerta de risco, em que interditou três pilhas de rejeitos da Mina de Fábrica Nova, sob responsabilidade da Vale. Diante dessa situação, as moradoras e os moradores de Santa Rita Durão (distrito de Mariana) enfrentam o desafio de recuperar a tranquilidade, especialmente diante da falta de diálogo da mineradora e por conhecerem as experiências de dor e injustiça vividas pela comunidade vizinha, Bento Rodrigues. A sirene que não tocou em Bento Rodrigues reverbera até hoje a postura das mineradoras em negligenciar, sobretudo, a responsabilidade com as pessoas e comunidades que vivem ao redor das áreas de extração do minério. Como prova disso, no dia 4 de dezembro de 2023, as moradoras e os moradores de Santa Rita Durão participaram de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em que questionaram a falta de transparência da Vale, após tomarem conhecimento do risco pela mídia. Por Renato Flavinho Pereira e Marco Antônio Com o apoio de Sérgio Papagaio e Silmara Filgueiras
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APARASIRENE NÃO ESQUECER “A Globo deu uma notícia de que já tinha até tirado o pessoal de Santa Rita, falaram que era umas 280 e poucas pessoas, eu acho, porque tava no risco de rompimento do dique...” Renato Flavinho Pereira, morador de Santa Rita Durão “A gente fica apreensivo com o risco, com essa história, pelo que a gente já viu com Bento Rodrigues, Brumadinho... A gente sabe o que acontece quando uma barragem rompe. Qualquer barulho que dá já acha que é um troço. Pouco tempo atrás, uma sirene deles disparou aí e ninguém conseguiu especificar qual o motivo, aí foi motivo de pânico. Então a gente fica apreensivo com isso, de certa forma a gente acaba sendo prejudicado porque realmente a Vale é irresponsável sobre isso aí, não responde muita coisa. Diálogo com a Vale é o de menos, aqui falta tudo.” Marco Antônio, morador de Santa Rita Durão “Tem uma moradora aqui de Santa Rita que dorme com a porta aberta por medo de acontecer alguma coisa e ela não ter tempo de sair. Ela ficou traumatizada, pois estava no ônibus que passou em Bento no dia do rompimento lá.” Renato Flavinho Pereira, morador de Santa Rita Durão
De acordo com o laudo geotécnico entregue à Vale em 2020, já estava constatada a instabilidade das pilhas de rejeito. Somente no final do ano de 2023, após a fiscalização da ANM, o documento foi exigido e, logo após verificarem a urgência, comunicaram a interdição. Ainda hoje, a comunidade de Santa Rita Durão convive com o assédio da mineração ao redor, com as negligências do acesso à informação esclarecida e segura e com medo de um novo rompimento atingir suas casas.
Fotos: Silmara Filgueiras
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Retrospectiva: as mentiras que a Vale e a BHP contaram em 2023 sobre o rompimento da barragem de Fundão Mineradoras responsáveis pelo desastre de Mariana insistem que o Rio Doce está recuperado e que pessoas atingidas foram compensadas, mas milhares ainda lutam por justiça A vida das moradoras e dos moradores de Mariana e de toda a bacia do Rio Doce mudou para sempre no dia 5 de novembro de 2015. O rompimento da barragem de Fundão, operada pelas empresas Samarco, Vale e BHP, matou 19 pessoas, despejou um mar de lama tóxica na natureza, contaminou o Rio Doce e afetou a vida de milhões de pessoas. O rompimento é considerado até hoje o maior desastre ambiental da história do Brasil. Apesar dos danos profundos à natureza e da destruição de dezenas de casas, comércios e vidas, as mineradoras responsáveis pela tragédia insistem em dizer que todas as famílias foram indenizadas, reassentadas e que o Rio Doce está recuperado. Quem vive nas regiões atingidas sabe que a realidade é outra. Confira o que a Vale e a BHP falaram em 2023 sobre a situação dos rios e dos atingidos. Rio Doce poluído No dia 1º de novembro de 2023, durante a Assembleia Geral Anual dos acionistas da BHP em Adelaide, na Austrália, o porta-voz da empresa, Ken MacKenzie, disse que a lama tóxica não afetava mais o Rio Doce.
“A qualidade da água voltou à condição anterior ao rompimento. Um dos problemas reais [no Rio Doce] são os 270 milhões de metros cúbicos de esgoto não tratado lançados todos os anos no rio”, afirmou o representante da mineradora. Apesar do discurso, não é isso o que as pessoas atingidas veem na bacia do Rio Doce. Um estudo produzido em 2020 pela Câmara Técnica de Conservação e Biodiversidade (CTBio) – ligada ao Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e ao Comitê Interfederativo (CIF) – mostrou que as águas do Rio Doce ainda estavam contaminadas por metais
pesados e rejeitos tóxicos. Espécies de peixes desapareceram, animais não podem mais se alimentar à beira do Rio Doce e a água ainda não pode ser consumida. Comida contaminada Também em novembro de 2023, uma nota técnica produzida pelo Ministério da Saúde confirmou que a lama com rejeitos tóxicos da barragem de Fundão contaminou diversos alimentos produzidos ao longo da bacia do Rio Doce. Peixes, frutas, legumes, café, leite, ovos, carnes e vísceras foram contaminados com metais pesados, como bário, boro, chumbo,
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cianeto, cobre, ferro, níquel, titânio e zinco, de acordo com o estudo. São alimentos que estão diariamente nas mesas dos milhares de moradoras e moradores das regiões atingidas, que os consomem sem terem conhecimento dos problemas de saúde que podem desenvolver no futuro. Onde está a reparação justa? Após mais um longo ano de discussões com órgãos de Justiça, com os governos de Minas Gerais e de Espírito Santo, as negociações para repactuar o acordo de Mariana mais uma vez terminaram sem resultados e, novamente, sem a participação das pessoas atingidas. A Advocacia-Geral da União (AGU) e os participantes da negociação apresentaram uma proposta de R$ 126 bilhões para que Samarco, Vale e BHP compensassem os danos causados pelo rompimento. Entretanto, as empresas ofereceram pagar apenas um terço desse valor: cerca de R$ 42 bilhões. O advogado-adjunto da AGU, Junior Fideles, disse que “a contraproposta que as mineradoras apresentaram é, de fato, vergonhosa e desrespeitosa com o poder público”. A Vale informou, em nota, que “continua comprometida com a repactuação e tem como prioridade as pessoas atingidas, representadas desde o início das negociações por diversas instituições de Justiça como as defensorias e os ministérios públicos”, e que as negociações seguem em andamento. Apesar da fala, a mineradora não parece estar comprometida. Vítimas não reconhecidas Embora a Fundação Renova afirme, em propagandas, que a maioria das pessoas atingidas já recebeu casas novas e indenizações, milhares de moradoras e moradores sequer foram reconhecidos como pessoas atingidas. De acordo com Mônica dos Santos, moradora do distrito de Bento Rodrigues que protestou contra a BHP em novembro na Austrália, 107 pessoas já morreram desde o rompimento da barragem de Fundão – 58 delas eram de Bento Rodrigues. Edertony José da Silva, um empresário minerador de areia de Governador Valadares, criticou a demora da BHP em compensar as vítimas durante a Assembleia Geral Anual dos acionistas. “Não está tudo bem. Tive que viajar metade do mundo para que minha voz fosse ouvida pela BHP. Os executivos e a diretoria da BHP cometeram dois crimes: primeiro, sua negligência no colapso da barragem em si, mas agora são
cúmplices do segundo crime de negar a mim e a todas as outras vítimas do desastre da barragem de Mariana uma indenização justa. Levei minha luta por justiça contra a BHP ao tribunal na Inglaterra e dedicarei o resto da minha vida, se for necessário, a deter estes criminosos responsáveis”, declarou. Tom Goodhead, sócio-administrador e diretor executivo global do escritório de advocacia Pogust Goodhead, reforçou seu comprometimento na luta por justiça às vítimas do rompimento. O escritório representa cerca de 700 mil clientes em uma ação contra a BHP e a Vale na Justiça do Reino Unido. Indivíduos, empresas, municípios, comunidades indígenas e quilombolas, além de concessionárias de serviços públicos e igrejas, se uniram
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na busca por indenizações. O início do julgamento está marcado para outubro de 2024 na corte de Londres. “Enquanto as mineradoras se negam a compensar de maneira justa os atingidos por essa tragédia, milhares de pessoas continuam a sofrer diariamente na bacia do Rio Doce. Já são oito anos sem seus entes queridos que faleceram, sem suas casas, sem poder usar o Rio Doce, sem poder manter suas tradições vivas e muitas pessoas continuam com suas fontes de renda afetadas. Os responsáveis pela barragem deram prioridade ao lucro ao invés da segurança. Já passou da hora das mineradoras fazerem a coisa certa e compensarem de forma justa nossos clientes”, ressaltou Tom Goodhead.
Fotos: MATTHEW POVER
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Comunidades atingidas se reúnem com Instituições de Justiça Foto: Quel Satto| ATI Mariana
No dia 16 de janeiro, a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), acompanhada por representantes da Cáritas MG | ATI Mariana, conforme solicitado, se reuniu com o juiz federal Vinicius Cobucci, responsável pelo caso do rompimento da barragem de Fundão, na 4ª Vara Cível e Agrária da Subseção Judiciária de Belo Horizonte. Além do juiz, estiveram presentes na reunião diversos representantes das Instituições de Justiça (IJs), como membros da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e Mônica Sifuentes, presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 6ª Região. Na ocasião, as pessoas atingi-
das contaram como está o processo de reparação no território. Lideranças das comunidades da zona rural, de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo falaram sobre as pendências na retomada dos modos de vida, a situação dessas comunidades, o processo de empobrecimento forçado e as dificuldades encontradas para a autossuficiência. Comentaram sobre a situação preocupante dos reassentamentos coletivos e familiares e as diferentes formas como as vidas foram modificadas e interrompidas também foram contextualizadas. Também destacaram a necessidade de abrir mais canais de diálogo das vítimas do desastre-crime com os representantes das IJs. Ao longo da atividade, representantes das IJs, da CABF e da Cáritas MG | ATI
Mariana estiveram em Bento Rodrigues para que pudessem verificar a situação das áreas de origem, o manejo de rejeitos nas comunidades de Mariana, assim como as possibilidades de manutenção e cuidado do território. Os presentes visitaram a casa de uma família no reassentamento coletivo de Bento Rodrigues, tendo em vista que, mesmo depois das entregas das chaves, ainda há muitas demandas relacionadas à transição da comunidade e ao pós-morar - tanto questões construtivas e estruturais, quanto das diretrizes que estabelecem padrões coletivos para restituição e reparação dos danos sofridos. Durante todo o encontro, as pessoas atingidas ressaltaram a importância da continuidade da ATI para o acompanhamento técnico do processo de reparação que, segundo a Comissão, ainda está longe do término. Os representantes das comunidades também fizeram uma rememoração da atuação coletiva da CABF e das comunidades atingidas junto à ATI, como a Matriz de Danos e a reformulação do cadastro dos atingidos. Diante disso, os representantes das IJs pontuaram a necessidade de que a realidade e a vivência das comunidades atingidas cheguem às esferas judiciais mais distantes, que não têm contato direto com o dia a dia da reparação. Reconheceram a necessidade de liberação dos valores bloqueados judicialmente e sua utilização para as comunidades, a importância da manutenção e a garantia do direito à ATI no território.
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25 de Janeiro de 2024: 5 anos de Crime da VALE sem Punição 25 de janeiro de 2019, sexta-feira, às 12h28, poderia ser mais uma data comum não fosse um dos maiores crimes ambientais, humanitários e trabalhistas do mundo causado pela mineradora Vale S.A na cidade mineira de Brumadinho. Uma barragem de rejeitos de minério se rompeu e matou 272 pessoas, além de rios, animais, plantações, plantas e Mata Atlântica.
O impacto do crime se espalhou pela bacia do Rio Paraopeba. A realidade cinco anos depois é avassaladora: além da mineração predatória seguir avançando em Minas através da política do Governo Zema, nenhum responsável pelo Crime da Vale em Brumadinho foi punido e a população atingida continua em busca dos seus direitos. Foto: Luiz Santana/ALMG
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Brumadinho após o rompimento de Barragens de Rejeitos da Mina do Feijão, da Vale S.A
Desde 2019, nosso mandato atua ao lado das pessoas atingidas para garantir os seus direitos. Apresentamos na Assembleia de Minas 282 requerimentos, dos quais muitos geraram audiências públicas ou visitas técnicas, visando o fortalecimento de todas áreas e garantia de direitos das comunidades atingidas, fiscalização e acesso à informação. Fui uma das autoras da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia de Minas para investigar o Crime da Vale S.A em Brumadinho. Fui efetiva da CPI que, de março a setembro de 2019, realizou 35 reuniões, duas visitas e ouviu 149 depoimentos. A Assembleia aprovou o relatório final, responsabilizando a Vale pelo crime e pedindo o indiciamento de 11 de seus dirigentes e funcionários, além de dois auditores da empresa Tüv Süd. Também atuamos para garantir a transparência dos recursos provenientes do acordo da Vale S.A, Governo do Estado e instituições de justiça. Provocamos o Tribunal de Contas do Estado (TCE) em março de 2023, solicitando acompanhamento e fiscalização dos
Para a Vale a vida não vale nada. Ela se importa com o seu lucro, mesmo que barragens se rompam a B e a tr iz C e r q u e ir
Foto: William Dias/ALMG
recursos. Já através do requerimento 5.585/23 solicitamos ao Governo do Estado e instituições de justiça a elaboração da matriz de danos sofridos pelas pessoas atingidas. Fui uma das autoras do Projeto de Lei 1.418/20, que deu origem à Lei 23.591/20, que cria o direito à memória das vítimas fatais do crime da Vale em Brumadinho e Mariana. Nosso mandato também é um dos autores do Projeto de Lei 1.417/20, que criou a Lei 23.590/20, que institui o Dia de Luto em Memória das Vítimas do Rompimento da Barragem do Córrego do Feijão. Durante estes cinco anos do crime da Vale em Brumadinho eu estive em várias comunidades atingidas e em escolas públicas. É de entristecer e revoltar a alma o cotidiano de violações de direitos que essas pessoas vivem permanentemente. Eu vi comunidades com modos de vida serem destruídos. Vi o adoecimento, a desesperança e o desencanto chegarem nas comunidades em que isso antes não existia. 25 de janeiro de 2019 é todo dia. Vamos continuar lutando para que os responsáveis sejam punidos e que outros crimes não aconteçam.
Foto: Henrique Chendes/ALMG
Debatemos na Assembleia a necessidade de assessoria técnica independente para as pessoas atingidas
Mandato da deputada estadual e titular da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Beatriz Cerqueira (PT)
EDITORIAL: OITO ANOS DE COMPROMISSO COM AS COMUNIDADES Nossa edição zero, lançada 90 dias após o desastre-crime da Samarco, Vale e BHP, em Mariana, estabeleceu um compromisso claro: promover a autonomia da comunidade por meio da comunicação, ao servir como instrumento de apoio para preservar a memória coletiva, ecoar suas lutas e denunciar as injustiças sucessivas. Desde então, A SIRENE tem cumprido essa missão e proporcionado um espaço para reflexão, expressão e mobilização. Ao longo desses oito anos, as matérias veiculadas têm sido testemunhas das emoções, dores e esperanças que permeiam a vida das comunidades atingidas. As histórias compartilhadas rememoram o passado e também lançam um olhar para o futuro, ao abordarem os desejos, os projetos, as inseguranças e os medos e, acima de tudo, ao destacarem a resistência que, às vezes, vai contra o esgotamento de quem luta por justiça e reparação integral há quase nove anos. Nesses oito anos, o jornal evoluiu, ganhamos um prêmio de Direitos Humanos, contribuímos para a formação de novos jornalistas, somos o único jornal feito por, com e para pessoas atingidas em todo o país, nossos exemplares já foram distribuídos em vários lugares do mundo e trabalhamos ininterruptamente desde nossa criação. Mais uma vez, reafirmamos nosso compromisso com as comunidades atingidas. Continuaremos a ser uma voz forte, um canal de expressão e um guardião das memórias. Agradecemos a cada leitora e a cada leitor, parceiros de trabalho, luta e vida, por possibilitarem que o Jornal A SIRENE continue existindo, apesar de tantos desafios.