A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 3 - Edição nº 27 - Junho de 2018 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Junho de 2018
Aconteceu na reunião GT DE MORADIA (DIRETRIZES) 09 de Maio, Mariana Os(as) atingidos(as) se reuniram com a Fundação Renova/Samarco, Assessoria Técnica Cáritas e Ministério Público para discutirem sobre os itens ainda não-acordados das diretrizes de reassentamento das comunidades. No total, sete diretrizes pautadas na assembleia ainda tiveram que ser encaminhadas para que a fundação/empresa se posicione. Dentre elas, a que discute a reconstituição dos modos de vida, o acesso a água e saneamento básico nos territórios e a manutenção no pós reassentamento. No dia 22 de maio, um grupo de atingidos se reuniu com sua assessoria e algumas questões dessas diretrizes foram redefinidas e enviadas novamente para a Renova/Samarco. Até a data desta publicação nenhuma resposta havia sido enviada. Assim, a discussão deve ser retomada nos próximos GT’s de moradia. Mirella Sant’anna (moradora de Ponte do Gama): É inevitável pensar que nossas vidas não estarão atreladas ao dia 5. Se não quisessem ter isso agora, não matassem o rio que tínhamos antes. Estamos tratando de vidas, a empresa deve ter o mínimo de respeito com todos nós atingidos.
ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
EXPEDIENTE
Luzia Queiroz (moradora de Paracatu de Baixo): Eu entendi que teríamos resposta hoje. Acreditávamos que era 22 nascentes, mas percebemos que não será isso mesmo. Agora, os poços artesianos, para quem ficará a conta da manutenção deles? É isso que queremos saber. REUNIÃO: REASSENTAMENTO FAMILIAR 17 de maio, Zona Rural de Mariana
Atingidos(as), Assessoria técnica da Cáritas, representantes do Mab (Movimento dos atingidos por Barragens), Prefeitura Municipal de Mariana e da Fundação Renova/Samarco estiveram presentes na casa do Zé Baio, em Paracatu de Cima, onde os moradores teriam retorno da fundação/empresa sobre a proposta de reassentamento elaborada por eles. Também seria discutido o cronograma do reassentamento familiar e como estava caminhando o processo do reassentamento. A Renova/Samarco pediu um prazo de 60 dias para compra dos terrenos urbanos e 90 para os rurais, depois da escolha e do processo de vistoria de cada terreno/imóvel. Entendendo que isso atrasaria ainda mais o processo final de compra das casas, os moradores não concordaram com a
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proposta e pediram que esse prazo fosse cumprido em 45 dias. Letícia Oliveira (Coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens): O terreno que o atingido indicar tem que ser o prioritário para a Renova comprar. A pessoa não tem que indicar um terreno igual ao que ela tinha antes, porque isso não vai nem existir. Então, ela tem direito de indicar um terreno com a casa diferente, com tamanho diferente, inclusive porque as condições vão ser diferentes. Edital De Convocação Assembleia de Fundação da Associação de Atingidos Pela Barragem de Fundão para a Comunicação, Arte e Cultura CONVOCAÇÃO DE ASSEMBLEIA DE FUNDAÇÃO A comissão provisória constituída para viabilizar a fundação da Assembleia de Fundação da Associação de Atingidos Pela Barragem de Fundão para a Comunicação, Arte E Cultura FAZ SABER, através deste Edital, a quem o vir ou dele conhecimento tiver, que no dia 16 de Junho de 2018, às 9h00, no Centro Pastoral da Arquidiocese de Mariana, localizado na Rua Dom Silvério, 51, Bairro Centro, Mariana, Minas Gerais realizará a ASSEMBLÉIA GERAL DE FUNDAÇÃO, a fim de serem deliberados os seguintes itens, conforme ordem do dia: a) Leitura, discussão e votação do estatuto; b) Fundação da Associação de Atingidos Pela Barragem de Fundão para a Comunicação, Arte e Cultura; c) Eleição e posse da diretoria; d) Outros assuntos que a assembleia deliberar. Mariana, 5 de junho de 2018 Genival Pascoal Representante da Comissão provisória
Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Rafael Drumond, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Papagaio | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editor de Vídeo: Eduardo Moreira | Editora Visual: Larissa Pinto | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Madalena Santos, Sérgio Papagaio, Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Erasmo Ballot (VEIAS Workshop), Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Luiz Felipe (Gordu Films) | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Larissa Pinto | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Foto: Lucas de Godoy
O que eles querem ver? Por Mauro da Silva Com apoio de Miriã Bonifácio
Em Mariana, o “casarão” da Fundação Renova/Samarco, localizado na Praça Gomes Freire, está continuamente servindo como ponto turístico da cidade, onde são expostas maquetes referentes ao local de reassentamento de Bento Rodrigues e repassados conhecimentos sobre o processo de reparação das comunidades atingidas a partir do ponto de vista da fundação/empresa. Também foi iniciado o programa VimVer, vinculado à área de atuação de “Diálogo Social” da Renova/Samarco, em que são oferecidas visitas monitoradas com especialistas dessa fundação/ empresa nas áreas atingidas de Bento, Paracatu e Gesteira. Tendo em vista isso, foi encaminhada uma carta da Comissão dos(as) Atingidos(as) de Mariana à Renova/Samarco solicitando o transporte e a alocação das maquetes para a Casa dos Saberes. Isso porque se entende que, com tais medidas, a empresa usa ações obrigatórias de reparação para fazer propaganda de si mesma. E, ainda, utiliza recursos e espaços em desigualdade com o dos(as) atingidos(as) para criar a sua versão da história. Diante disso, reafirma-se que toda e qualquer informação que diz respeito a estes territórios deve ter o consentimento das pessoas proprietárias destas terras (e memórias).
“VimVer o quê?” O que a Renova ou a Samarco estão fazendo? Esse é um projeto muito audacioso por parte da fundação/empresa, de entrar em um território que, embora ela tenha todo um interesse, não lhe pertence, nem à Vale ou à BHP Billiton, e sim ao povo, no caso de Bento, um povo sofrido que, durante três séculos, lutou para ter o seu lugar. Eu sou de uma geração que vem dos fundadores de Bento Rodrigues. Portanto, sou testemunha de que a Samarco sempre pleiteou esse espaço. Agora, por meio desse programa, a gente vê que ela se sente dona do que diz respeito à nossa comunidade, e está querendo se sentir dona também de Paracatu e das demais áreas que foram atingidas por essa tragédia-crime. Então, esse Projeto VimVer é uma afronta à nossa dignidade, uma falta de respeito com o sentimento daqueles que perderam tudo, que perderam seus entes queridos. E ainda é um projeto que visa criar uma cortina de fumaça sobre aquilo que foi feito até agora em se tratando da nossa reparação. A Renova/Samarco, ao invés de reparar os danos que sofremos, vem causando violações ainda maiores. Eu, então, pergunto, como tive a oportunidade de questionar o Roberto Waack (Presidente da Fundação Renova) durante reunião realizada no dia 4 de maio, em que ele nos disse que esse não é um projeto voltado inteiramente para o turismo, que é um programa que vai levar estudantes, pesquisadores e aquela conversa de sempre, mas que, na verdade, vemos como algo que estou batizando de “turismo da desgraça”. Assim, somos enfáticos em dizer que nada que diz respeito às nossas comunidades pode ser feito sem a participação direta dos(das) atingidos(as). Isso que estão fazendo está nos ferindo de morte. Estamos resistindo e lutando pelo tombamento dos nossos espaços, porque acreditamos que é isso que vai resguardar que esse território continue pertencendo a quem é de direito. E que não se enganem, pois, na versão do bandido, ele sempre é a vítima.
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Foto: Flávio Ribeiro
Recriar as esperanças em um novo passo Com a instalação do canteiro de obras no terreno de Lavoura e com a futura liberação para as obras do reassentamento de Bento, cresce a necessidade da comunidade se aproximar cada vez mais do lugar que escolheram para morar, ainda na tentativa de planejar moradias adequadas aos seus modos de vida. Por Espedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal e José das Graças Caetano (Zezinho Café) Com o apoio de Flávio Ribeiro, Guilherme Meneghin e Assessoria Técnica da Cáritas
“Trabalhei 25 anos no terreno de Lavoura, fui o primeiro que pisou naquele lugar quando o Bento foi atingido. Tinha que indicar um novo terreno e, como eu já conhecia lá, pensei que podia ser ele. Graças a Deus, toda a comunidade aprovou na votação e eu fico muito orgulhoso por isso. A gente fica preocupado com a demora, porque nesse Brasil tem tanta coisa errada que a gente não sabe o que pode fazer. Estamos com esperança, mas também com o pé atrás.” Zezinho Café, morador de Bento Rodrigues As palavras de Zezinho contam parte do caminho percorrido pela comunidade desde a decisão onde o lar será reconstruído 11 de abril deste ano, quando o canteiro de obras começou a ser implantado em Lavoura. Esse canteiro é uma área onde estará toda a mão de obra para o reassentamento de Bento, abrigando desde as ferramentas até o suporte para os trabalhadores, como os ambulatórios e os vestiários. No entanto, para que as obras do reassentamento tenham início, ainda é necessário que as secretarias de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e a de Cidades e de Integração Regional (Secir) analisem os documentos apresentados pela Renova/Samarco e vejam se todos os critérios para o projeto foram atendidos e, somente assim, aprovem o licenciamento ambiental e o parcelamento do solo, que é a divisão dos lotes. Também será preciso que a Prefeitura de Mariana entregue o alvará para a construção. Esse pedido para o licenciamento foi enviado pela Renova/ Samarco no dia 23 de maio. E é por isso que o canteiro de obras é um passo importante para o reassentamento, mas não é o único. Enquanto o canteiro é construído e o Ministério Público entra com uma ação solicitando o cronograma para as obras, sob pena de 20 milhões de reais em multa por dia de atraso, a comunidade caminha a cada sopro de esperança lutando por um reassentamento que seja entregue no prazo previsto, em março de 2019, e que garanta o direito a uma moradia digna.
“Parece mais uma efetividade de marketing da Renova do que efetividade no sentido de mostrar que ela está fazendo o necessário. Esse canteiro de obras é como se você comprasse a tinta para a sua casa, mas essa casa ainda não estivesse pronta.” Guilherme Meneghin, Promotor de Justiça da Comarca de Mariana “É difícil falar quando a gente não entende muito bem, mas só de ter o canteiro de obras já dá uma esperança pra gente.” Kaé, morador de Bento Rodrigues Desde o dia 29 de maio, a Renova/Samarco vem convocando as famílias em grupos para conhecer os 20 arquitetos contratados pela fundação/empresa, para, a partir disso, iniciar o processo do desenho de cada casa. A Assessoria Técnica da Cáritas tem acompanhado essa dinâmica e aponta para a necessidade de envolver cada atingido(a) com o terreno e não somente com os arquitetos. “A preocupação é de que os moradores projetem suas casas sem conhecer seus próprios lotes. Nesse sentido, os grupos de famílias que se dividiram e os(as) atingidos(as) que expressaram o desejo de ter a moradia em lotes diferentes (por possuírem mais de um terreno no reassentamento) não têm clareza de como serão tratados. Isso aconteceu na primeira oficina de projetos da Renova/ Samarco e os técnicos presentes não souberam indicar soluções. Os(as) atingidos(as) correm o risco de desenharem projetos imaginários, distantes do terreno real.” Juliano Scarpelin, assessor técnico da Cáritas Acima de tudo, é direito da comunidade acompanhar e decidir sobre todas as etapas do seu reassentamento, incluindo o cumprimento dos prazos, a definição dos projetos e dos materiais utilizados, tendo liberdade para visitar as obras, conforme as diretrizes conquistadas na Justiça.
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Foto: Tainara Torres
Opinião
Papo de cumadres:
direito à moradia Consebida e Clemilda estão admiradas com os laudos das casas danificadas pelo crime da Barragem de Fundão feitos pelos próprios criminosos, sem a sua participação. Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda, eu tô mui percupada. - Apostu que sua percupação tem menção com o crime da barrage de Fundão. - Pois então, a fundação fez us laudu das casa que sofreram trepidação, disseram que as trinca, argumas delas cabe até a minha mão, que num é culpa dês não. - Cumade, se eu te contá ocê num acridita não, du meu quarto, sentada na cama, eu consigu óia o meu netu Juão e assisti, pela rachadura da parede, a nossa televisão. - Disseram, sem vergonha na cara e com muita contradição, que us probrema de nossas casas é de má construção. - Disseram também, cumade, que era mau usu e má conservação. Óia que patifaria, falaru também que foi cunstruída sem projetu de engenharia. - Pois é, em Barra Longa, tem casa de trezentus anu que num tinha trinca e que agora, apesar de rachada, ainda tá de pé. As nossas casas foram feitas pra nóis morá, num é pra guentá aquela lamaiada e nem caminhão com cinquenta tunelada. - Cumade, tô aqui pensanu, se tem casas com mais de trezentus anu que foi cunstruída com u jeito e materiá que tinha, eu num sô ingenheira mas vô afirmá, as nossas casas tão só trincanu mais e a barrage que é muitu mais nova já foi logu rombanu. - Óia que as barrage tinha engenharia e todu tipo de visturia. - Cumade minina, acá, Barra Longa guentô u tempu, as enchente, a lama, que é treis vêz mais pesada que a água, us caminhão com cinquenta tunelada e tá só trincada. Se fosse nóis de Barra Longa que tivesse cunstruído a barrage, ela num tava istorada.
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Fotos: Tainara Torres
“Minha casa não entrou lama, eu não perdi bens materiais, mas estou perdendo um bem mais precioso que é a minha saúde e a do meu filho” - Andrea Domingos.
Saúde contaminada Por Andrea Domingos e Simone Silva Com o apoio de Assessoria técnica AEDAS, Eduardo Moreira e Tainara Torres
Meu avô sempre dizia: “lá em cima tem um monstro e, se esse monstro estourar, vai acabar com tudo e com todos nós aqui”. O que ele não sabia é que, 13 anos após sua morte, a profecia se cumpriria. No dia 5 de novembro de 2015, fomos atingidos por esse monstro. Vi meu Gesteira, onde nasci e fui criada, sendo devastado pelo tsunami de lama da Samarco. E, a partir dessa data, tem sido só sofrimento. Nem nos meus piores pesadelos poderia sonhar que a sentença dos meus filhos seria também assinada naquela madrugada macabra. Simone Silva, moradora de Barra Longa
dizem pra gente sair da cidade, ir embora. Aqui, hoje, o ar é outro, totalmente diferente de antes da lama, está pesado.” Andrea Domingo, moradora de Barra Longa
Em fevereiro de 2018, 10 moradores receberam os resultados dos exames de “Quantificação de metais totais em sangue”. Em maio do mesmo ano, mais cinco pessoas tiveram os exames concluídos. Hoje, somam 15 o número de pacientes examinados e, desse total, todos tiveram os laudos positivos para contaminação por metais pesados, como, por exemplo, níquel e arsênio. A maior parte desses moradores (os 10 do início) passou pelo exame duas vezes, primeiro em março de 2017 e depois em março deste ano. No segundo resultado, em alguns casos, cresceu o nível de algumas substâncias.
“Já em novembro de 2015, comecei a denunciar que Sofya estava doente por causa da lama, mas fui chamada de louca por funcionários da empresa. Chegaram a marcar psiquiatra para mim. Quando começaram a limpar a praça de Barra Longa, para mostrar para a mídia que estavam trabalhando, deram início a mais um crime, pois levaram a lama para os morros da cidade. E, como o atingido vale menos que uma pelota de minério para a Samarco/Renova/ Vale/BHP, de nada adiantou eu pedir de joelhos, na Câmara Municipal da cidade, para que não usassem rejeitos no calçamento da minha rua, pois minha filha, na época com nove meses, já apresentava sintomas de alergias à lama tóxica. Em 2018, fui atingida mais uma vez, recebi o exame com resultado positivo para contaminação dos meus filhos, Sofya, hoje com três anos, e Davidy, de 14. Meu mundo desabou quando ouvi dos médicos que posso perder meus dois filhos contaminados por metais pesados da Samarco.” Simone Silva, moradora de Barra Longa
“Eu tinha muita diarreia, muita dor de cabeça, dor no estômago e eu ficava assim: ‘Meu Deus, o que está acontecendo?’ Eu não estava desse jeito. Cotovelo, pernas, todos começaram a coçar, devido a esses assassinos da Samarco que vieram aí com essa lama do rejeito. Todos os médicos
“Esses 15 moradores são pessoas que moram em pontos diferentes da cidade e que têm uma diferença de estilo de vida. Por exemplo, os idosos ficam só dentro de casa e as crianças brincam na rua. Esses dois tipos de pessoas estão contaminadas. O que está acontecendo é uma evidência de
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risco de que a população como um todo esteja contaminada, já que ela está exposta. Porém, não podemos afirmar ainda porque a pesquisa tem uma amostra pequena. Nesse momento, é preciso fazer mais estudos com capacidade de comprovação de que a cidade está contaminada e quais são as fontes dessa contaminação. Com a comprovação, é possível já recomendar à Secretaria de Saúde da cidade que faça os exames toxicológicos e o acompanhamento.” Nathália Santos, médica da Assessoria Técnica da AEDAS Existem duas formas de contato com o arsênio, um dos metais mais tóxicos: de maneira aguda, quando em um prazo curto, por exemplo, quando se ingere água contaminada por dois dias ou mais e em grandes quantidades, pode haver sangramento de órgãos, parada cardíaca e/ou até causar a morte; e de modo crônico, que acontece quando se vive exposto a um ambiente contaminado durante muitos anos ou décadas. Ainda, o contato em pequenas quantidades pode causar náuseas, diarreia, problemas respiratórios e de pele, perda de sensibilidade das mãos, dos pés e dor de cabeça. Um grande problema é que esses sintomas são encontrados em várias outras doenças, o que dificulta um diagnóstico preciso. “Os exames feitos com a urina dos pacientes conseguem afirmar sobre a presença de metais pesados no organismo de cada um. Para detectar a acumulação deles no corpo é necessário fazer um exame com fio do cabelo. Também é importante entender que a presença dos metais pesados no organismo caracteriza a contaminação, mas para confirmar uma intoxicação por metais é necessário a avaliação dos sintomas, coleta de exames e exclusão de outras doenças que podem provocar sintomas parecidos.” Nathália Santos, médica da Assessoria Técnica da AEDAS “Saúde é algo que a Renova/Vale/Samarco/BHP não quer nem mexer. Não entra no cadastro, não entra na indenização, não entra em nada. Não existe, para a Renova, ser atingido por causa de problemas com saúde que começaram a aparecer ou se agravaram após o rompimento da barragem. Como que vai reassentar em um local que tem contaminação? Como pensar em indenização se a pessoa nem tem saúde pra gastar esse dinheiro? É preciso pensar a saúde como tema central de todas as outras
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questões. Isso tá sendo repassado em todas as reuniões com a população.” Aline Pacheco, psicóloga na Assessoria Técnica da AEDAS “Tiro dinheiro da conta de luz pra pagar água mineral. Como precisei viajar pra fazer o tratamento, meu marido perdeu o emprego, porque precisou ficar com os filhos em casa. Já não posso trabalhar por conta da minha saúde, já tive um AVC. Preciso dos remédios e, quando pedi ao prefeito, ele bateu no meu ombro e me mandou ir atrás da Samarco. Tenho que cuidar de mim também pra conseguir cuidar do Nícolas, se eu não estiver bem, quem vai cuidar dele? O Nícolas é uma criança de três anos e nem saía, nem na lama foi. Moro na parte alta e eu e o menino estamos contaminados, e eles acham que quem mora no morro não foi atingido. Eu acho que quem mora no morro foi atingido sim. A lama estava lá sim, e a poeira que nós recebemos?” Andrea Domingos, moradora de Barra Longa “Tenho a preocupação de saber de onde esse leite é. Da onde que essa verdura é. Você passa a ter toda essa preocupação que não tínhamos antes. Gera um estresse, um desgaste. Minha rua é calçada com lama e temos que molhar a porta todo dia por causa da poeira. Claro que não vai resolver, mas é o meu cuidado com meus filhos. Isso já é outro gasto. São vários banhos que você precisa tomar, os aparelhos que precisa ligar à noite para melhorar o ar. Eu que tô pagando a conta e isso não é justo. Antes da lama, minha água era 19 reais, agora é 250. Minha luz 90 reais, agora é 490. A gente não ganha isso nem por mês. Agora, meu marido também está com sintomas e ficou desempregado, por conta das dores e feridas no corpo, ele não consegue mais trabalhar. Como que fica a situação em casa? Nós não éramos ricos, mas tínhamos condições de viver.” Simone Silva, moradora de Barra Longa A Comissão dos Atingidos(as) de Barra Longa e o Coletivo de Saúde encaminharam ofícios para a Fundação Renova com pedido de quatro cartões emergenciais e água mineral para seis pessoas até que se tomem mais medidas. A solicitação, porém, mesmo que pequena, sequer foi respondida e, agora foi negada. “Algumas pessoas acham que isso é bobeira, que não está acontecendo, que não existe e que só veio pra tirar dinheiro da Fundação Renova. Ninguém quer tirar dinheiro da Renova, só queremos o tratamento adequado, um direito que é nosso.” Andrea Domingos, moradora de Barra Longa
”Gastam rios de dinheiro para maquiar a cidade, mas não reconhecem Sofya como atiginda intoxicada por metais” - Simone Silva.
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Fotos: Larissa Pinto
"Perdemos o rio, perdemos tudo"
Nesta edição, o Jornal A SIRENE abraça a cidade de Rio Doce para contar a realidade dos moradores que sofrem com as perdas causadas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Nesse lugar, muitas pessoas viviam do garimpo e da pesca, uma relação com o rio que foi completamente alterada pela chegada dos rejeitos. Após dois anos e sete meses, o que mudou?
Apesar
Por Maria da Conceição Floriano, Sidney Santana de Souza, Vanilda Aparecida de Castro, Vilma Aparecida de Castro Gonzaga Com o apoio de Larissa Pinto, Sérgio Papagaio e Silmara Filgueiras
Rio Doce era uma cidade tranquila. A gente mexia com a pesca e com o garimpo artesanal. Nossos produtos eram vendidos na cidade e também para outros lugares, como Ponte Nova. O dia a dia era ir até o rio e voltar de lá com os peixes e com o ouro que conseguíamos para ajudar nas despesas da casa. Era, ao mesmo tempo, nosso trabalho e nosso lazer. Agora, não podemos mais chegar na beiro do rio para pescar e garimpar, pois o nosso Rio Doce se tornou improdutivo. Pescar não é mais uma possibilidade, a água está contaminada pelos metais pesados. As varas de pesca e o material de garimpo guardados em casa estão estragando. A cidade não é mais a mesma. Hoje temos problemas com roubos, as nossas casas estão rachando e as ruas não aguentam o peso dos caminhões pesados que começaram a circular. O número de pessoas e transportes aumentou por conta das obras que estão sendo feitas na região.
Desde que tudo aconteceu estamos correndo atrás dos nossos direitos. Já fizemos manifestações. Na última, no final de 2017, fechamos estradas e fizemos barulho para garantir os direitos para mais de 100 atingidos. Se não fosse isso, não conseguiríamos nem o pouco da reparação que a empresa tem feito. Mesmo assim, ainda somos vítimas da falta de comunicação deles com a gente, não entendemos os critérios que a empresa cria para reconhecer apenas alguns de nós como atingidos(as). Por que o(a) meu(minha) companheiro(a) de trabalho tem menos, ou mais, direitos do que eu? Por que, numa casa, apenas uma pessoa da família recebe o auxílio reparação? E o restante? Em uma casa é assim, mas em outra não é? Questionamos sobre o processo de isonomia que a empresa tanto prega. “Antes não tinha quase nada, as casinhas eram de sapé. Para construir essa casinha aqui, eu vinha lá de baixo e trazia as pedras na cabeça, amassava tijolo com o pé e trazia lenha pra queimar o barro. Eu trabalhei muitos anos no rio, peguei até uma frieira no pé e ele ficou assim. Casei com Raimundo no sábado e na segunda já estava no rio trabalhando. E eu falo pra vocês, 64 anos de casada que vai fazer, eu não falhei nem um dia. Fazia o almoço, a janta e já saia pra beirada do rio. Sou mãe de 12, criei meus filhos todos assim. Tava lubrinando (serenando), eu tava no rio; tinha sol, eu tava no rio. Vinha de lá, trazia aquelas pedrinhas de ouro pra comprar o quilinho das coisas pra casa. Hoje eu não posso mais, por causa da minha coluna mas dá uma saudade. E também não dá mais, né, o rio não pode mais. Agora não pode nem chegar na beira do rio, tá perigoso, parecendo um córrego, e ele era bem largo.” Maria da Conceição Floriano, garimpeira e moradora de Rio Doce
Vilma m
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r de Vanilda e Sidney viverem juntos, ela ainda não recebe pelos seus direitos.
mexeu com garimpo desde criança e hoje seu material de trabalho permanece guardado.
“Até o meu filho que não mora aqui e tenho que pagar pensão, eles falaram que não podia. Quando a gente foi contestar, eles disseram que é norma da empresa e meu filho tinha que depender da mãe, não de mim. Tem gente aqui na cidade com a mesma situação que conseguiu colocar os filhos como dependentes e eu não.” Sidney Santana de Souza, pescador e morador de Rio Doce “Aqui em casa só meu marido recebe o cartão. Ele fez o cadastro como pescador e colocou eu, meu filho e o filho dele como dependentes, mas quando o PIM (Programa de Indenização Mediada) veio fazer entrevista, eles deixaram a gente de fora, porque nós não somos casados no papel. Todos aqui em casa são dependentes meus e dele também porque a gente trabalhava para ajudar em casa.” Vanilda Aparecida de Castro, garimpeira e moradora de Rio Doce
Prática simples e consciente “Depois que a gente tirava o carpete do rio, bate ele dentro e vai separando o cascalho dentro da bateia com água. O material que sobrava, eu trazia aqui pra casa e terminava de apurar usando o mercúrio. Fazia isso pra não contaminar os peixes e o rio.” Vilma Aparecida de Castro Gonzaga, garimpeira e moradora de Rio Doce “Quando conversei com a Vilma, passei a ter uma ideia diferente do garimpo. Ela me contou que aprendeu a garimpar com o pai, atividade que era sua principal fonte de renda até que um mundaréu de lama intoxicou o Rio Doce. Quando ela me contou como era o processo de garimpar, fui percebendo a consciência ecológica não só dela, mas de outros garimpeiros da região. Vejam só, eles foram acusados de contaminar o rio com metal pesado, como o mercúrio, mas ela me contou que tomava cuidado para não deixar que o mercúrio contaminasse a água no momento da apuração, e nem o ar, no momento da queima do metal, modo que também faz parte da atividade.” Sérgio Papagaio, repórter do Jornal A SIRENE e morador de Barra Longa
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Fotos: Erasmo Ballot (VEIAS Workshop)
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Gualaxo por Lia Mol Carneiro Com apoio de Erasmo Ballot (VEIAS Workshop)
Uma missão forte, impactante e de muita responsabilidade: Rio Gualaxo do Norte, o condutor da lama. Um rio que já foi símbolo da vida, e que agora está quase morto. A minha ideia foi mostrar o contraste entre o antes e o depois, o passado e o presente, a vegetação e a lama. A luta da natureza em sobreviver em um ambiente poluído por rejeitos, e que em meio a isso, uma vida em volta do rio tenta aparecer. Com ela, a esperança representada pelo verde.
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Ah, a relação que a gente tinha com o rio era muito forte. A vida inteira nossa foi tomando banho lá, pescando. E era o lugar onde o gado matava a sede. A gente também tinha plantação na beira do rio, plantava milho, feijão e ainda fazia telha e tijolo na nascente. Tirava a argila, amassava, colocava na fôrma e deixava secar pra por no forno. O Gualaxo significa muita coisa. A natureza traz coisa demais pra mim. A gente tem que cuidar dela porque já tá quase acabando. Agora acabou tudo. Fácil não é não. E é como se tivessem cutucando o machucado, ficar lembrando de coisa que não tem mais. Lia Mol Carneiro, moradora de Paracatu de Baixo (atualmente reside em Águas Claras)
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Nós dissemos "sim" Por Geraldina de Souza Oliveira, Geraldo Marcolino da Silva, Mônica Santos, Padre Geraldo Barbosa, Raimundo Alves Com apoio de Silmara Filgueiras
A vontade dos dois – O padre Geraldo Barbosa pediu pra vir aqui na nossa casa e achei muito bom, sabe? Ele veio trazer a comunhão para nós e conversamos sobre a possibilidade do casamento na igreja, pois eu não podia comungar. – Eu quis casar com ela no início, mas não tinha jeito. Ela não tinha documento nenhum, pois não era registrada. – Naquela época do nascimento era difícil, os pais da gente não registravam a gente igual é hoje. – Na barragem estourar, o pouco de documento que a gente tinha foi embora. Pra casar agora, o padre mandou buscar os papéis dele lá em Santa Rita e trouxe pra cá. E, nisso, eu também fui registrada. – O pessoal lá do Bento apareceu e foi muito bom, teve muita fartura, teve muito som. – O salão tava cheio, né, Geraldina? – É, o pessoal dançando, aquela alegria. Tô muito satisfeita, graças a Deus. – Antes do casamento morávamos juntos, há 37 anos. A gente pensava em casar, eu tinha vontade e ele também tinha, mas agora que deu. Os planos eram casar em Bento, mas não pudemos. – Renovou lá em cima, né? Foi Deus que mandou, não é mesmo?! Tenho mais nada que preocupar não. Não tenho mais peso na minha vida, graças a Deus. Os padrinhos – Eu conheço o Geraldo desde que eu era criança. Ele que aparava meu cabelo, sabe, então essa amizade foi continuando, nós também trabalhamos juntos em companhias durante muitos anos. Eu até fiquei muito feliz quando ele me convidou, sabe? Além de mim, a minha esposa também. Acho que é uma grande
Fotos: Gordu Films
amizade que a gente conservou. Desde quando a gente saiu de Bento e veio pra Mariana, a gente quase não se vê, às vezes, a gente se encontra na rua. O casamento foi muito bonito. Raimundo Alves, morador de Bento Rodrigues – Foi muito bom, um sinal de consideração e de amizade. Eu conheço ela desde que fui morar em Bento. Ela sempre foi muito boa, ia pra casa dela de vez em quando. Marcolino que eu via mais, pois ela não gosta de sair de casa e eu também não gosto muito de sair. Geralda da Conceição Gonçalves, moradora de Bento Rodrigues O padre – No dia 28 de abril, fizemos a celebração simples na residência do casal e, no local da recepção, houve a renovação das promessas matrimoniais, com a bênção das alianças, confraternização, e, neste ambiente de alegria e festa, os familiares e amigos puderam viver algumas horas de aconchego e paz. Padre Geraldo Barbosa Os convidados – Foi emocionante do início ao fim. Todos ficaram muito felizes em ver a felicidade dos dois, principalmente pelo fato dela poder estar comungando. Os dois também estavam emocionados em ver tanta gente da comunidade, não é sempre que a gente consegue reunir todo mundo de novo. O casamento era uma coisa que eles queriam que tivesse acontecido no nosso Bento, mas, infelizmente, a gente sabe das dificuldades de cada um. Foi muito gratificante ver que tudo foi preparado com muita dedicação e carinho. Mônica Santos, atingida de Bento Rodrigues
APARASIRENE NÃO ESQUECER
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Foto: Lucas de Godoy
Diretamente atingidos
Daniel e Juliano são cortadores de cana do município de Barra Longa e, desde o rompimento da Barragem de Fundão, perderam o lugar de onde tiravam renda. Hoje, eles lidam com as dívidas que fizeram nesse tempo em que ficaram desempregados, com os desafios de conseguirem um outro serviço e com o trabalho de tentarem ser reconhecidos pelas empresas responsáveis pelo crime. Por Daniel Marques e Juliano Marques Com o apoio de Letícia Oliveira, Simone Silva e Wandeir Campos
“Nós dois trabalhamos durante 10 anos na cachaçaria Tiara, que produz uma cachaça famosa na região de Barra Longa, Mariana e Ponte Nova. Carregávamos o caminhão que buscava a cana e levava até a cachaçaria. Éramos os últimos a sair do serviço, chegávamos em casa às 11 horas da noite. Quando pouca cana chegava ao caminhão, ajudávamos também no corte da cana, nos expondo a situações difíceis desse trabalho, como respirar a fuligem das queimadas da palha, correr o risco de queimadura, de picada de cobra. Também tinha outros trabalhadores e trabalhadoras nesses serviços na cachaçaria, cerca de 15 pessoas.” Daniel e Juliano, moradores de Barra Longa A lama de rejeitos atingiu a área de plantio de cana da cachaçaria Tiara, em Barra Longa. Como medida de reparação, a Samarco fornece a cana para a cachaçaria. Entretanto, não há mais a necessidade do corte ou do transporte da cana, pois o proprietário já recebe a matéria-prima para a produção da cachaça pela empresa. Assim, Juliano, Daniel e seus companheiros de trabalho perderam o emprego e a renda. “Com a perda do nosso trabalho, passamos a ter dificuldades para conseguir pagar nossas contas, o aluguel de nossas famílias e a alimentação para os nossos filhos e, ainda, precisamos lutar todos os dias para sermos reconhecidos como atingidos.” Daniel e Juliano, moradores de Barra Longa Por terem perdido a renda, Daniel e Juliano têm direito a uma reparação mensal no valor de um salário mínimo, mais 20% para cada dependente e uma outra quantia equivalente ao valor de uma cesta básica. Contudo, dois anos e sete meses após o rompimento da barragem, eles nunca receberam nada. “Fizemos reivindicações à Samarco e ouvimos apenas ‘não’ do direito à verba mensal. Eles justificaram que, apesar de termos perdido a nossa renda devido ao rompimento da barragem de Fundão, essa perda se deu de forma indireta. A Samarco elaborou seus próprios critérios para pagar direitos ou não aos atingidos, sem nenhuma participação destes na elaboração dos critérios. Para a empresa, há atingidos diretos e indiretos e apenas os diretos têm direito à verba de manutenção. Esse critério é fora da realidade. Se nós perdemos nossa renda por causa do rompimento, como que o impacto foi indireto? Outros 11 companheiros nossos, que trabalhavam no corte e transporte de cana, receberam. Por que nós não vamos receber?” Daniel e Juliano, moradores de Barra Longa
Em resposta aos cortadores de cana, o representante da Fundação Renova/Samarco justificou que é possível que alguns erros tenham sido cometidos, que algumas pessoas estejam recebendo a verba de manutenção indevidamente e que isso será corrigido. A fundação/empresa ainda afirma que, nesse caso, quem tem direito a receber o valor mensal é apenas o proprietário da cachaçaria. “Nós sabemos que temos o direito e vamos continuar lutando. Eles podiam nos pagar e resolver isso de uma vez conosco. Inclusive, o proprietário, nosso patrão, já testemunhou por nós, provando que trabalhávamos lá.” Daniel e Juliano, moradores de Barra Longa Atualmente, Daniel trabalha em uma casa de peças em Barra Longa e, há dois meses, Juliano conseguiu emprego de ajudante de pedreiro. Mesmo assim, a renda atual é bem menor do que a que eles tinham. No período em que ficaram desempregados, as dívidas foram se acumulando. Hoje, estão vendo a violação de direitos, iniciada em novembro de 2015 com o rompimento da barragem aumentando. O não reconhecimento como atingidos desrespeita mais direitos na vida dessas pessoas. Este tipo de critério de que apenas o proprietário deve ser reconhecido é usado por empresas há muito tempo e vem sendo denunciado há mais de 20 anos por atingidos(as) em todo o Brasil. Desse modo, os argumentos da Samarco demonstram uma situação de descumprimentos que só se renovam.
Foto: Simone Silva
Documento assinado pelo proprietário da cachaçaria afirmando que os irmãos trabalhavam no local.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Junho de 2018 Mariana - MG
Fotos: Larissa Pinto
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Gracinha Lima cuida da bananeira que agora já precisa de um vaso maior.
A força do Gesteira Por Maria das Graças (Gracinha) Lima, Maria das Graças (Gracinha) Costa e Vera Lúcia Aleixo Com apoio de Amanda Gonçalves, Larissa Pinto e Miriã Bonifácio
No dia 5 de novembro, Gesteira recebeu a notícia de que a Barragem de Fundão, em Mariana, havia rompido. Em 1979, a comunidade havia sofrido com uma enchente que alagou grande parte das casas. Quando souberam de Fundão, os moradores se prepararam para uma nova enchente, mas o que chegou foi uma onda de lama que surpreendeu a todos. A partir desse momento, a vida do Gesteira mudou. As mulheres que faziam parte do grupo de orações e frequentavam a Igreja Nossa Senhora da Conceição, do outro lado da ponte, já não conseguem mais, pois, desde o rompimento, o espaço está fechado. Mesmo assim, hoje, com a reconfiguração desse grupo, elas são responsáveis por conseguir manter um pouco dos costumes no local, e também são parte importante do processo de luta pelo reassentamento da comunidade. Gracinha Lima Aqui dentro de Gesteira tinha que ter alguém pra segurar a barra e as mulheres é quem chegam primeiro. No início, tinha muito empecilho, muita gente não queria participar. Até hoje tem gente que fala que isso não vai dar em nada. Mas tá todo mundo trabalhando no coletivo e o que estamos fazendo, graças a Deus, vai dar frutos. Eu sempre ajudei nos eventos da igreja, em barraquinhas. Costumava plantar do outro lado do rio, bem antes da lama, quando a gente ainda não tinha vendido o nosso lote, mas depois disso continuei plantando no quintal da creche. Quando a Renova veio reformar a creche, eles tiraram a nossa plantação sem perguntar de quem era, se eles não tivessem roçado lá, nós ainda tínhamos mandioca e quiabo. Vejo que tem muitas pessoas que foram prejudicadas pelo rompimento e que ainda não estão sabendo. Eu tô na luta junto com eles. Fiz anotações do que as pessoas tinham e que não foi reconhecido. Acompanho tudo das reuniões, fico sempre ligada. Tenho interesse em ajudar as famílias que perderam tudo. Esse meu movimento também é mais por causa da igreja, da escola que a gente tinha. Do outro lado, era a caminhada nossa. Não era a moradia, mas era o plantio nosso, era onde a gente tinha. Essa minha força vem de Deus, porque se eu fosse olhar. Fico aqui, mas largo tudo e vou. Nós, os atingidos, é que temos que lutar.
APARASIRENE NÃO ESQUECER
Junho de 2018 Mariana - MG
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Gracinha Costa recebeu esta orquídea como presente da companheira Vera (ao lado), que agora mora em Mariana.
Vera Lúcia Aleixo No dia do rompimento, nós tiramos as coisas boas, televisão nova, máquina de lavar nova, colchão, tudo aquilo eu tirei e achei que tava prevenindo de uma enchente. Mas, quando a gente piscou, a nossa casa já tinha tombado. A gente tá no movimento de luta porque, se eu lutar sozinha, vai ser mais difícil. Se a gente se unir, vai ter mais força, né. Nós não perdemos juntos? Então temos que reconquistar juntos. Pra juntar o povo não foi difícil. Quando a Assessoria (Aedas) chegou, a gente já tava se organizando. E Gesteira era um lugar muito bom, onde produzíamos muito, desde o milho até o feijão. Era dali que tirávamos nosso sustento. E, hoje, não temos como plantar. Na nossa casa, a gente tinha horta, tinha milho, feijão, tinha banana, mandioca, inhame, abóbora e, hoje, não tem nada. No terreno que a gente colhia, agora é areia pura, aquele pó de ferro, que não dá nada. E lá no Gesteira tem muita coisa pra fazer, eles têm que reconhecer muita coisa lá. No reassentamento vai ter que ter igreja, grupo escolar, campo de futebol, fazer tudo, as casas, e ainda sobrar espaço no terreno. Enquanto eu não ver tudo no lugar, eu não vou desistir e eu tenho pressa porque minha idade não permite demora. Que Deus me dê força, mas eu não paro de lutar nunca. Gracinha Costa Parece que foi despedida. Em 2014, fizemos a festa da nossa padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Foi uma celebração que louvou tanto que eu nunca vi. Era assim: “Fala de Jesus, usando suas mãos”. E aí acabou com tudo, com a nossa alegria. As mulheres do Gesteira se reuniam, faziam as festas da igreja. A gente trabalhava nas barraquinhas, era tudo unida. Eu sinto muita falta das minhas companheiras de reza que foram para Mariana. E agora a gente quer tudo de volta no reassentamento. Estamos construindo tudo no coletivo, e aqui é assim: as mulheres mais à frente, com a iniciativa. O grupo de oração não está tão forte igual era, mas nós não paramos não, porque a igreja é nós. A gente reza as missas lá na creche, que tá vazia porque não tem menino. E a gente pega mesmo pra fazer as coisas. Eu comecei assim, um dia fui numa reunião e resolvi tomar opinião com uma moça sobre os meus direitos. Ela falou pra eu pegar o microfone e contar para todo mundo que eu tinha um lote do outro lado, na parte atingida pela lama da Samarco. Que eu plantava banana, mandioca de raiz grande, mexerica ponkan, uma horta completa. Que eu nasci e me criei no Gesteira, casei e criei meus sete filhos aqui também. Eu tinha vergonha de falar e ser criticada, mas, nela dizer que eu tinha direitos, me deu aquela força. Eu comentei assim: eu falo e depois cês falam também. Eu quero muito que, no reassentamento, eu tenha as plantações que eu tinha, para preencher o tempo, principalmente para o Pedro [marido]. A história da bananeira Na casa de Gracinha Lima encontramos uma bananeira que carrega a história dessa luta. Com a chegada da Assessoria Técnica, em um gesto simbólico, o brotinho da planta foi retirado e repartido em quatro pedaços. Um desses pedaços ficou com Maria Geralda, que depois passou o pequeno vaso para Gracinha cuidar. A bananeira é levada para as reuniões dos(as) atingidos(as) de Gesteira e o pé é repassado entre os moradores, para que seja cultivado de forma coletiva. Para essas pessoas, a planta representa a esperança de, um dia, fixarem suas raízes no terreno reassentado, e ainda serve como referência para contar o tempo que essa volta para “casa” ainda vai levar.
EDITORIAL As pessoas mais velhas, naturalmente, carregam consigo marcas de acontecimentos que ocorreram em vários momentos de suas vidas. Quando conversamos com elas, reconhecemos que essas marcas se tornam memórias, que são repassadas por meio das histórias que elas podem nos contar e que, de algum modo, elas ficam eternizadas em nós. Na capa deste mês, trazemos, como personagem, Maria da Conceição, mulher, garimpeira, nascida e criada na cidade de Rio Doce. Cuidadosa em cada detalhe, ela conta como foram construídas as primeiras casas, como era a vida de antes e a de hoje, como a perda do rio tem feito falta para todos de lá. Suas marcas/memórias/histórias simbolizam a de outros moradores da comunidade, que foram atingidos/marcados pelo rompimento de Fundão. Nesse dia 5 de junho é comemorado o Dia Mundial do Meio Ambiente, data importante para refletirmos sobre os rastros que foram deixados pelos rejeitos de minério ao longo do trajeto por onde passou. Pensando em questões como a do “ponto de vista dos rios atingidos”, trazemos o ensaio fotográfico “Gualaxo”, que mostra como a paisagem da região de Paracatu de Baixo mudou de cor e como isso tem implicado na vida de todas as pessoas que necessitavam/necessitam daquelas águas para trabalhar, para cuidar das suas plantas e de seus animais. Além daquilo que podemos ver, ainda somos vítimas das marcas invisíveis deixadas por esse crime. Sabemos que algo tem atingido diretamente a nossa saúde, algo tem nos contaminado, ou intoxicado, e, até hoje, enfrentamos a dificuldade de entender exatamente de onde isso vem e como podemos fazer para nos curar. A certeza que temos é a de que o meio ambiente em que vivemos, trabalhamos, nos criamos e que também nos nutre, deixou de ser saudável. Nesse momento de incertezas, novamente falamos de como a nossa população tem adoecido - cada vez mais. Enquanto isso, o tempo vai passando e as marcas vão ganhando espaços nas vidas de cada um de nós. As mulheres do Gesteira têm se destacado pela presença na luta da comunidade no caminho que ajudam a construir para o reassentamento. Seguimos, então, a direção de esperança delas que, em um gesto que simboliza muita coisa para muitos de nós, começaram de forma coletiva a cultivar uma bananeira para tentar perceber, no desenvolvimento dessa planta, a espera dos atingidos para “voltarem para suas casas”. Assim também se encontram os moradores de Bento Rodrigues, que tiveram o seu canteiro de obras iniciado no terreno de Lavoura e, agora, aguardam que, de fato, esse novo passo signifique um acontecimento que vá além dos investimentos em propaganda feitos pela Fundação Renova/Samarco (do qual também temos, repetidamente e necessariamente, precisado falar).