A Sirene Ed.38 (Maio/2019)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 4 - Edição nº 38 - Maio de 2019 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

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Aconteceu na reunião ATINGIDAS LEVAM DENÚNCIAS PARA ONU 19 e 20 de março, Genebra, Suíça

Atingidas pelos crimes das mineradoras (Samarco, Vale e BHP Billiton) participaram das reuniões da 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça. Elas denunciaram violações de direitos humanos no processo de mineração no Brasil. A reunião foi organizada pela Cáritas Brasileira e pela Cáritas Internacional, paralelamente ao evento da ONU, e contou com a participação de Mônica Santos, membro da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão, em Mariana (CABF), de Izabel André, moradora de Brumadinho, e também de membros de instituições parceiras, como o Movimento dos Pequenos Agricultores, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração e a Cáritas Brasileira e Internacional. Mônica dos Santos (moradora de Bento Rodrigues e membro da CABF): É sempre bom estar nesses eventos para mostrar para o mundo o que não está sendo feito e, ao mesmo tempo, para pedir ajuda, porque o nosso governo é coni-

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

vente com as empresas e a nossa justiça é falha. São 3 anos e 4 meses e nenhuma comunidade foi reassentada. Vários direitos são violados todos os dias. É muito importante falar para o mundo para não se esquecer. CONFERÊNCIA LIVRE DE SAÚDE DE ATINGIDOS(AS) 6 de abril, em Barra Longa; e 12 de abril, em Brumadinho

Durante o mês de abril foram realizados encontros entre atingidos(as) para elaborar propostas de leis que levem em conta a sua realidade e que possam ser aplicadas no Sistema Único de Saúde (SUS). No dia 6 de abril, o encontro reuniu atingidos(as) da Bacia do rio Doce, de Minas Gerais, e foi realizado em Barra Longa, com o apoio da AEDAS, da Cáritas e do MAB. Já no dia 12 de abril, o evento reuniu atingidos(as) de Minas Gerais e Espírito Santo, em Brumadinho. Nos encontros foram levantadas propostas, como a garantia do acesso a exames toxicológicos por meio do SUS, para detectar contaminação por metais pesados; a criação de atendimentos especializados que considerem os problemas causados pela mineração; a realização de análise das

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águas consumidas pelas comunidades atingidas - nesse caso, os estudos devem ser realizados por entidades independentes indicadas pelos(as) atingidos(as) e custeadas pelas empresas -, entre outras.

Esclarecimentos sobre auxílio emergencial A Assessoria Técnica da Cáritas esclarece que o pagamento do auxílio emergencial, feito pela Fundação Renova/empresas, não depende da finalização do processo de cadastro e da entrega dos dossiês. Esses documentos só serão utilizados na etapa de negociação das indenizações entre atingidos(as) e as empresas. O Ministério Público de Minas Gerais também esclarece que o auxílio financeiro emergencial (cartão) não poderá ser tributado na declaração do Imposto de Renda dos(as) atingidos(as). As dúvidas sobre o assunto poderão ser esclarecidas pelo telefone (31) 3557-2488 (Escritório da Assessoria Técnica da Cáritas).

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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Larissa Pinto | Edição de Texto: Matheus Effgen | Editor Visual: Rafael Franscisco | Reportagem e Fotografia: Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wigde Arcangelo | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Charles Murta (Comissão Municipal de Defesa Civil de Ouro Preto), Giulia Matteoli e José Flávio Júnior (Defesa Civil de Barão de Cocais) | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Larissa Pinto | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Foto: larissa Pinto

Querem fechar outra porta Opinião:

Por Simone Silva Com apoio de Wigde Arcangelo

No dia 8 de março, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, enviou ao Ministério do Meio Ambiente um ofício que exige análise, adequação ou extinção de órgãos que envolvem a participação da população na elaboração de políticas públicas. O Comitê Interfederativo (CIF), composto também por atingidos(as) pelo rompimento da Barragem de Fundão, é um dos grupos que podem ser extintos por esta medida. Oficialmente, O CIF ainda existe, mas há uma insatisfação com a última reunião do comitê. O CIF é o espaço para resolver as pautas dos(as) atingidos(as), mas isso não está acontecendo mais. A gente teme que ele seja extinto. Essa última reunião foi assustadora, as pessoas que são defensoras dos direitos humanos voltaram preocupadas. Só duas das onze Câmaras Técnicas (CT’s) conseguiram levar a pauta até o final. E, quando essas pautas não são deliberadas nesse espaço, quando não se chega em um acordo com a Renova, as pautas vão para o juiz da 12ª vara. Nessa instância, as reivindicações dos(as) atingidos(as) não costumam ser acatadas. Nós sofremos um golpe com o governo atual porque há um silenciamento dos(as) atingidos(as) que participam do CIF. Outros(as) atingidos(as) não sabem o que é CIF e nem o que acontece nele. Tem alguns que nem sabem que o CIF existe e a vida deles está sendo decidida lá. É importante que os(as) atingidos(as) entendam a existência do comitê onde são deliberadas as pautas. Nós precisamos nos organizar, garantir a participação dos(as) atingidos(as) nesses espaços e entender o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e o TAC Governança - mecanismos legais envolvendo várias partes em busca de resolver conflitos, sem a necessidade processos mais longos. As CT’s são espaços que as pessoas devem ocupar para entender e propor pautas que vão trazer soluções para as comunidades atingidas. A antiga presidente do CIF faz falta, pois ela conseguia ouvir as pautas e conseguia deliberar ações em cima daquilo que era levado. Essa segurança de termos propostas aceitas, agora não é algo certo. Por exemplo, foi apresentado o resultado dos estudos sobre a contaminação dos rios Gualaxo e Carmo. A contaminação em todos os pontos do rio foi provada. A pesca deveria ser interrompida imediatamente nesses rios, mas nós não saímos de lá com solução nenhuma. Enquanto isso, as pessoas vão continuar tomando a água e comendo os peixes contaminados. A situação dos(as) atingidos(as) está cada vez pior. Há uma proposta que o CIF seja realizado a cada dois meses, e não mensalmente. Além de existir uma linguagem no comitê que não é mais para os(as) atingidos(as) entenderem, eles só estão complicando a nossa situação. Estamos vendo que chegará um ponto em que nós não poderemos participar. Corre o risco de que em algum momento as pautas sejam enviadas e deliberadas sem discussão porque não haverá mais esse elo. As Câmaras Técnicas já não conversam mais entre si. Isso, como a gente sabe, é mais um golpe na vida dos(as) atingidos(as). Cada vez mais vamos perdendo os espaços onde buscamos a justiça.


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O crime se repete Mais uma vez, as sirenes não tocaram. E as mineradoras nunca sofrem as consequências, mas, sim, as comunidades atingidas. Hoje, parte de Córrego do Feijão, zona rural de Brumadinho, está enterrada debaixo da lama de rejeitos da Vale, e outra parte precisa lidar com a perda de familiares e amigos, e com um cotidiano que, antes, não era cercado por lama. No dia 25 de janeiro, 233 pessoas foram mortas e outras 37 ainda permanecem desaparecidas, segundo dados da Defesa Civil de Minas Gerais até o fechamento desta edição. Essas vidas se somam a outras perdas: o sustento foi abalado e o rio não é mais o mesmo. Por Artila Conceição de Souza, Fabio Vasconcelos (Fabinho), Jefferson Custódio, Mara Rafaela Clemente, Marisalva Isoni Oliveira Com apoio de Larissa Pinto, Sérgio Papagaio, Tainara Torres e Wigde Arcangelo Fotos: Larissa Pinto

“Nós ficávamos aqui na porta esperando minha avó chegar do serviço”, Jefferson Custódio, bisneto de Artila Conceição, que aparece na foto.

Eu não gosto nem de lembrar, me dá um trem por dentro e eu fico querendo tremer. Ficar recordando é triste. Foi muita gente minha que morreu. Eu perdi minha filha mais velha, Diomar, a neta que tava comigo, Jussara, e muitos conhecidos meus, sobrinha, afilhada... Eu morava na roça, em Brumadinho, numa comunidade chamada Escontendas. Lá casei, criei minha família. Depois veio uma barragem de água para Brumadinho, deu muito prejuízo para o povo e eu tava lá. Meu filho, neto, eles que me trouxeram para cá. Fui desapropriada lá e agora vem mais uma barragem. Tá aprontando pra vir outra barragem. Deve ser para terminar de limpar o povo daqui. Eu peço: “Jesus, me dá força e coragem pra eu acabar de criar meus netos, porque eles não têm pai nem mãe, é tudo aqui, fica tudo comigo”. Eu já sou bisavó. Meu primeiro bisneto, o Jefferson, tá com 20 anos. Artila Conceição de Souza, moradora de Córrego do Feijão A Barragem do Sistema do Rio Manso, da Copasa, alagou as terras dos meus bisavós. Eles sempre trabalharam no campo. Isso foi entre 1980 e 1983 porque a represa foi construída gradativamente, foi alagando a comunidade. Minha bisavó, Artila, perdeu as terras que eram da família há mais de cem anos. Recebeu uma indenização, mas, para a época, era um

valor insignificante. A comunidade deixou de existir porque as pessoas se separaram. Eles queriam comprar os terrenos, mas as pessoas não queriam sair, eles pressionaram até a pessoas venderem. Naquela época, não existia o MAB, até porque movimentos sociais eram proibidos. Foi no finalzinho da Ditadura. Minha bisavó sente falta de lá até hoje. Ela nasceu em Escontendas, casou e tem parentes enterrados lá. É toda uma história que você tem que largar para trás. Quase o que aconteceu com a gente aqui, porque, aqui em cima, a lama não chegou, mas, quando a gente olha lá pra baixo, eram lugares que a gente passava. É uma parte da história que não volta mais. Ano passado, minha avó, Diomar, queria ir, pela última vez, a Escontendas, lugar em que ela cresceu. Ela foi lá para ver, mas não conseguiu chegar perto porque, igual a Vale, a Copasa não deixa as pessoas chegarem onde ficava a comunidade. Ela foi vítima de barragem duas vezes: primeiro, perdeu as terras e, agora, perdeu a vida. Jefferson Custódio, morador de Córrego do Feijão Acabou com a nossa cidade, com o nosso rio. Agora, a gente vê nosso rio completamente morto por causa dessa lama. É muito triste. Levou embora muita gente conhecida. Eu não perdi parente, mas perdi amigos. Fabio Vasconcelos (Fabinho), morador de Brumadinho


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Marisalva, à esquerda, toma conta do comércio da família com seu marido, filhos e a nora, Mara, à direita.

Eu acho que o pessoal de Córrego do Feijão nunca imaginou a proporção do que podia acontecer. Se alguém imaginasse que ia ser assim, podia ter reunido antes e feito alguma coisa. O pessoal ouve de Palhano e acha que estamos debaixo de lama também, porque o povo fala de Brumadinho e as pessoas pensam que a lama passou aqui também, mas a distância daqui até a cidade é de uns 30 km. A lama não chegou aqui, mas nós fomos atingidos de outra maneira. Só quem passa por todo esse tempo de luta e não vê retorno é que sabe a dificuldade que vem agora. Mara Rafaela Clemente, moradora de Palhano

Esse comércio era do pai do Bininho, meu esposo. Ele toma conta até hoje. Os filhos estão aqui ajudando e eu também. A ideia é passar pros meninos, eles sempre trabalharam aqui e não querem sair. Eu tô aqui desde quando casamos, vai fazer 35 anos. O movimento caiu muito por causa da barragem. Ficamos sem ponte até dia 10 de abril. O povo fica receoso de vir aqui porque fala: “Brumadinho? Não, não vamos”. Eu perdi uns 80% de venda de peixe aqui na Semana Santa. Eu mesma não sabia da barragem. Depois que aconteceu que ficamos preocupados, perdemos muitos amigos nossos que vinham aqui pescar. Marisalva Isoni Oliveira, moradora de Palhano

“O comércio da nossa cidade foi muito abalado, caiu muito”, Fabio Vasconcelos (Fabinho).

A vale da morte, nos Vales dos horrores Por Sérgio Papagaio

A vale vai fazer um vale de cem mil reais do que te deve, por ter acabado com o Vale, e com tudo o que pra você vale, mais o que realmente vale, isso a vale não paga, pois nem todo dinheiro vale, a vida que ela tirou do Vale, mesmo que ela nos dê outro Vale, de nada vale. Quanto vale uma vida, no Vale? Debaixo da lama, por cima da lama, para nós tudo vale. E pra vale? Debaixo da lama, 100.000 é o que vale. Minha vó, que dó, quanto a vida dela debaixo da lama Vale? 100.000, igual a do seu avô, vovô tá vivo, só está sumido. Debaixo da lama, para de chorar, pois é lá que seu avô foi morar. 200.000 é tudo que eu vou te pagar, já estavam velhos não iam demorar, pois lá em Bento, por um rebento, olha que faz tempo, foi o mesmo tanto que pagamos pela vida noutra bacia. Onde é Bento? É outro Vale que a mesma vale, do

mesmo jeito, cobriu com rejeito a vida por lá. E lá neste Vale, quanto uma vida vale? 100.000, minha comadre fala, de lá pra cá a vida carecia de uma carestia. Pra vale, muito mais vale a morte em qualquer Vale do que a vida que restou no Vale. E para nós, quanto a vale vale? Não sei. Só sei que foi vendida por 3.3 bilhões*. Não vale mais? Sim, mas Fernando é um cara muito humano, eles pediram um desconto e ele foi logo descontando. Quem é Fernando? Era um presidente que a nossa vale foi privatizando. * Valor referente à venda da mineradora Vale em 1997, na época, a estatal Vale do Rio Doce, quando somente as suas reservas minerais eram calculadas em mais de 100 bilhões de reais.


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Foto: Larissa Pinto

Papo de Cumadres: Opinião:

por que a sirene não tocou onde as barragens estouraram?

Consebida e Clemilda, estão um tanto confusas com o fato das sirenes que não tocaram onde as barragens romperam e de as sirenes tocarem onde as barragens não romperam. Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda, num consigu intendê, purque a sirene toca onde as barrage num rebenta e onde num tocô as barrage rebentô. - Parece que nós é um brinquedu, e ês um bandu de muleques, que com nós qué brincá, sem se importá se istu vai nus matá. - A cumadre tem razão. Não é só as barrage da Samarcu em Mariana, nem a da Vale em Brumadinho que romperau não, ocê preste atenção, a primera que eu tenho noção foi em 1986: a barrage da Itaminas em Itabiritu, rompeu levandu sete vidas, quase sem repercussão, um! Carsanu poca comoção. - Dispois rompeu mais uma purção, mais sete barrage de mineração, levandu da vida mais oito. Que judiação! A ultima destas oitu que eu tava falanu, foi em Itabiritu, a barrage de Herculanu, nu anu de 2014 que mais três foi matanu. - Quandu já tinhão isquicidu, rompe a barrage da Samarcu em Mariana, 19 pessoa matanu e um aborto carsanu, levandu contaminação e rejeitu, até u ocianu. - Pocu mais de três ano, otra barragem da Vale já foi istoranu, desta vez, com maior danu humanu, mais de tresentus inocente matanu. - Se ajente fô comparanu us danus da barrage da Samarcu com a barrage da Vale vamu vê u que us cabiçudu num tão incherganu, todas as duas mato gente e ainda tão matanu e também a natureza mataram cotaminaru e continuam matanu e contaminanu. - Cumade, o estado das Minas Gerais, que tantu ouru e outros metais, por 300 anos isportaru, hoje isporta dor, morte, contaminação e também duença ta isportanu.


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Fotos: Larissa Pinto e Tainara Torres

Atingidos(as) antes do rompimento Nesta edição, o Jornal A SIRENE foi até as comunidades que sofrem com o risco de rompimento de barragens e o descaso da mineradora Vale. Em Barão de Cocais, a Barragem Sul Superior da Mina de Gongo Soco, localizada a cerca de 11 km da cidade, está em nível 3, o que representa alto risco de rompimento. No dia 8 de fevereiro, as comunidades de Socorro, Tabuleiro, Piteira e Vila Gongo Soco foram evacuadas. Hoje, parte da população está em hotéis e os(as) demais moradores(as) em casas alugadas pela mineradora, em Barão de Cocais. Desde então, os(as) moradores(as) foram impedidos de retornar às suas casas. A comunidade de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, teme o rompimento da Barragem do Doutor, parte do Complexo de Timbopeba, também da mineradora Vale. Nessas comunidades, a empresa atua de forma irresponsável ao deixar os(as) moradores(as) desinformados(as). Essas comunidades são atingidas antes de qualquer rompimento porque as principais preocupações são causadas pela Vale. Por Adriana Duarte, Célia Gomes de Araújo, Eustáquio Luzia, Fernanda Rodrigues, Gercina dos Santos Silva (China), Joicelane Lorrayne, Lucimara Estevão, Maria Anunciação Luzia, Maria Carolina Gonçalves, Maria do Carmo de Pádua, Rosa Luzia, Roziny Santos Silva e Terezinha Quintão* Com apoio de Larissa Pinto, Letícia Oliveira (MAB), Tainara Torres e Wigde Arcangelo * Algumas pessoas não aparecerão ao longo do texto porque o diálogo com os(as) atingidos(as) das comunidades de Tabuleiro,Vila do Congo, Socorro e Estrada do Gongo foi feito em roda de conversa. Mas esta reportagem foi feita com a participação de todos(as).


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Não temos mais sossego Tem muita gente que tá adoecendo. Um alarde, qualquer coisa, um carro toca e já fica achando que é sirene. Em fevereiro que começou isso. Minha neta falou: “Vó, parece que vai estourar uma barragem lá no Gongo”. Alguns dias depois desse sufoco, estava fazendo almoço e pensando: “Se essa lama vier pra cá agora, essas panelas vão pra longe”. Fico pensando: “Meu Deus, e se estourar lá agora?”. O caso é sério demais, eu não vou dar conta de correr. Eu vou fazer 80 anos. Queríamos ter uma resposta mais certa pra termos um pouco de sossego. Gercina dos Santos Silva (China), moradora de Barão de Cocais Eu tenho problema de pressão alta, fico nervosa e com medo de estar dormindo e a barragem estourar. Ela não tem hora. Sou moradora há pouco tempo, mas me preocupo porque não sou só eu, tem muitas pessoas, famílias. Trabalho perto da barragem, na Vila Samarco. Fico com medo, ainda mais porque falaram que lá é um dos primeiros pontos que vão ser atingidos. Não podemos deixar de trabalhar nem de dormir, mas a gente fica com essa preocupação no dia a dia. Célia Gomes de Araújo, moradora de Antônio Pereira No dia em que aconteceu isso em Brumadinho, minha sobrinha estava comigo e ficou transtornada. Nós estávamos

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vendo televisão. Quando vi, ela estava perto da imagem de Nossa Senhora que eu tenho, e falei: “O que é isso, Ana Amélia?”, ela disse: “Nossa, tia Tê, estou rezando para Mamãe do Céu. Estou pedindo para ajudar aquele povo lá, igual a nós”. A menina tem só seis anos. A empresa acaba com a vida da criança, acaba com a vida dos idosos, acaba com tudo. Eles não estão nem aí, falam: “É 100 mil reais!”. E é isso, isso paga uma vida? Não paga. Terezinha Quintão, moradora de Bento Rodrigues De uma forma geral, a Vale tenta te comprar, a ideia é que o dinheiro compra tudo. É muito fácil, pra ela, colocar todo mundo dentro de hotéis, encaixotar todo mundo como se fossem objetos e, depois que passar, ver o que faz. O negócio deles é o dinheiro. É indenização e pronto, acabou. Roziny Santos Silva, moradora de Rio Doce e natural de Barão de Cocais Esse estado de medo já é uma forma de ser atingido, mesmo que a barragem não rompa. A empresa tem que pagar esse transtorno causado à população dessas regiões. Em Barão de Cocais, famílias das comunidades rurais foram evacuadas, mas não as do centro da cidade, assim como é o caso de Itabirito. Isso gera muito medo, as pessoas pensam: se retiraram alguém é porque há perigo, e eu continuo na área

“Nós crescemos na casa da minha mãe. Aí eu te pergunto, como que você se desfaz dessa história?” Roziny. Da esquerda para direita: Rosemare, China e Roziny.


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Placa instalada e Área de Autossalvamento (AS) na comunidade de Antônio Pereira, em Ouro Preto.

de risco. Esse medo vai continuar sendo gerado enquanto o procedimento de emergência das barragens for retirar apenas as famílias que se localizam na área de autossalvamento e deixar as demais em risco. É preciso elaborar procedimentos de emergência mais sérios e eficientes, e que sejam pensados a partir dos desejos das comunidades que estão sob ameaça de um rompimento. Letícia Oliveira, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Em Bento, estávamos debaixo de uma bomba, mas a gente não sabia que tinha mais pelo mundo afora. Nesse lugar que fomos morar, na Vila Samarco, tinha outra barragem! Quando eles pararam o serviço nessa barragem, pensei: se paralisou é porque tem problema. Minha menina ficou meio cismada: “Vamos embora, mãe, não vamos ficar aqui. Já que eles pararam as obras, tem algum risco”. Terezinha Quintão, moradora de Bento Rodrigues As empresas escondem tudo de nós Eles não dizem: “Vamos te tirar porque você está em risco”. Na primeira reunião mostraram alguns pontos que a lama pode atingir, alguns deles são a minha casa e a da minha sogra. Quando vieram colocar placas nas ruas, nós pedimos para eles mostrarem no mapa e perguntamos: “E esses pontos?”. O rapaz disse: “Não, esses pontos são só onde vão colocar rota de fuga”. Em uma das reuniões, eu falei o que eles tinham dito: essa parte das nossas casas seria atingida. Agora, eles mudaram, disseram que não atinge. A gente fica sem entender. Depois que estourar, acabou, vai levar tudo. Disseram que era

para gente correr se estourasse, mas, e se for à noite, que tá todo mundo dormindo? Eles vêm para fazer todas as famílias chorarem, só querem gastar depois que já acabou com tudo. Querem o minério que tem dentro de Antônio Pereira. Joicelane Lorrayne, moradora de Antônio Pereira A sirene tocou por volta de uma da madrugada. Estávamos na Estrada do Gongo Soco e, quando ouvimos, não sabíamos o que fazer porque não teve treinamento nenhum. Colocaram a sirene, mas ninguém sabia que ela funcionava e nem para o que era aquilo. Adriana Duarte, moradora da Estrada do Gongo Soco A Vale não instruiu ninguém. Agora eu tô afastada, mas trabalho em monitoramento de barragens. O dia que passei na estrada de terra, eu perguntei para Adriana: “Você sabe o que é essa sirene aqui?”, ela falou: “Sei não”. Eu disse: “Isso significa que tem uma barragem perigosa por aí que pode romper a qualquer momento”. Depois, já tocou a sirene para evacuar o local. Aí eu perguntei: “Eles foram lá na fazenda dar treinamento para vocês, Adriana?”. Ela falou: “Não teve treinamento de nada”, e ficou bem nervosa de saber que aquilo era uma sirene de barragem. Maria Carolina Gonçalves, moradora da Estrada do Gongo Soco As empresas não falam dos riscos das barragens. Em Bento Rodrigues, por diversas vezes, funcionários da Samarco disseram que estava tudo sob controle e que a barragem não romperia. Em Brumadinho, a mesma coisa. E algumas famílias


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José Flávio Júnior, Coordenador Municipal da Defesa Civil de Barão de Cocais, indica o local onde a Vale pretende construir o muro de contenção de rejeitos da mina de Gongo Soco.

Se eles tinham o interesse de minerar, tinham que tratar bem o pessoal e nos treinar. O que a Vale faz para o pessoal de Socorro, de Tabuleiro e de Piteira? Não faz nada. Agora simplesmente joga para fora, feito cachorro. Maria Carolina Gonçalves, moradora da Estrada do Gongo Soco

“Do que adianta treinamento? Brumadinho tinha e matou gente”, Maria Carolina.

acreditam no que as empresas dizem, porque imaginam que são elas que detêm a engenharia para garantir a segurança das barragens e avaliá-las. Algumas pessoas preferem acreditar nas empresas, mas isso tem ficado cada vez mais difícil com os dois rompimentos recentes e com as diversas evacuações realizadas depois do rompimento em Brumadinho. Letícia Oliveira, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Quando tocou a sirene, eu tremia tanto, não sabia se ia ou se ficava. Não conseguimos pegar nada. Ninguém tinha cabeça, largamos tudo para trás. Nem sabíamos onde estavam os nossos documentos. Está tudo lá, muitas coisas ficaram. Fernanda Rodrigues e Eustáquio Luzia, moradores de Tabuleiro

Querem autorização para inundar nossas comunidades No dia 25 de março, a mineradora Vale apresentou propostas que buscam solucionar o risco de rompimento da Barragem Sul Superior, da Mina Gongo Soco, que se encontra em nível de emergência 3, desde o dia 22 de março. A proposta que está sendo colocada em pauta para os(as) atingidos(as) da comunidade é a construção de um muro de contenção que, supostamente, seguraria 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério em caso de rompimento. O muro seria construído a seis quilômetros de distância da barragem e, futuramente, com o processo que a empresa chama de descomissionamento, as comunidades de Socorro, Piteira e Tabuleiro seriam inundadas pelo rejeito. A Vale defende que levaria um ano para construir o muro e três anos para descomissionar a Barragem Sul Superior. Após o descomissionamento, a empresa afirma que demoliria o muro de contenção e, só então, começaria o reassentamento, intitulado, por eles, de “revitalização”, um processo que deve demorar mais três anos e que, até o momento, não está sendo discutido com as comunidades. Segundo eles, não podem mexer na estrutura da barragem porque ela tá abalada. Vão construir um muro que vai conter essa barragem. Vão construir outra barragem em cima do pessoal. Lá em Brumadinho nem viaduto, nem máquina de ferro conteve, um muro vai? Eu não acredito. Você vai gastar 500 milhões para, depois, jogar ele no chão? Empresa joga para perder, gente? Ela só visa lucro. Essa Vale mente demais. Maria Carolina Gonçalves, moradora da Estrada do Gongo Soco


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“Moro eu e meus filhos, somos só nós três dentro de casa. Se estourar, como é que eu faço?”, Joicelane Lorrayne.

Construir diques abaixo das barragens foi a saída que a Samarco encontrou em Mariana para barrar a descida de rejeitos para os rios. Essa é a justificativa que ela apresenta, mas os rejeitos continuam descendo, contaminando o meio ambiente e o ser humano. Os diques S3 e S4 alagaram as terras e as áreas dos atingidos. Em Mariana, a experiência é essa, os diques não resolvem o problema e são formas de domínio do território por parte da empresa. São construídos mais para a empresa do que para proteger e trazer garantias à população. Em Barão de Cocais, esse pode ser o mesmo objetivo. É preciso que as famílias tenham informação de confiança e independente para opinar. São elas que devem dizer o que querem que seja feito ou não em suas terras. Letícia Oliveira, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) A impunidade permite que o crime se repita No dia do rompimento, fui a uma reunião em Itabirito, depois, eu seguiria para Brumadinho, para encontrar com outra técnica de segurança que foi trabalhar no meu lugar. Eu estava a caminho de lá quando rompeu. Minha equipe toda morreu, só teve um sobrevivente. Eu não estava lá na hora, mas o trauma psicológico que eu fiquei não desejo para ninguém. A Vale me colocou de férias para eu poder descansar. A sirene tocou na mesma noite, no dia em que eu cheguei em casa. Ela é tão assustadora que eu pensei: se eu não tinha morrido em Brumadinho, é nessa aqui que eu vou. Maria Carolina Gonçalves, moradora da Estrada do Gongo Soco

“A Vale quer dividir o pessoal para que eles briguem”, Fernanda Rodrigues.

A gente, de Minas Gerais, vai estar sempre com essa marca de barragem e, agora, com esses crimes. Eles falam tragédia, mas não, é crime. Minha mãe falava que, no fim dos tempos, teria muitas pragas, na Bíblia fala. Pelo que eu entendi, as pragas são as mineradoras. Elas estão acabando com tudo, com a natureza, o ser humano, os animais. Matam tudo e não dá nada para eles, só dá para a gente. Terezinha Quintão, moradora de Bento Rodrigues “Eu moro de aluguel. Eles vão arrumar um lugar pra gente ficar?”, Célia Gomes.


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Fotos: Tainara Torres

Maria do Carmo tem seis filhos, cinco são mulheres. Larissa é uma delas.

Mães atingidas No mês de maio comemoramos o Dia das Mães. Para marcar esta data, o Jornal A SIRENE traz as histórias dessas mulheres que precisam encarar os desafios da maternidade e que, ao mesmo tempo, lidam com as dificuldades de serem atingidas, desde 2015, pelo crime da Samarco (Vale e BHP Billiton). Além delas, ouvimos suas filhas, que lutam e que desejam compartilhar mensagens de gratidão com todas as mães. Por Luzia Queiroz, Maria do Carmo Sena, Mirella Lino, Olívia do Carmo Gonçalves, Roziny Santos Silva Com apoio de Larissa Pinto, Matheus Effgen e Tainara Torres

Na minha trajetória, abracei várias situações: já fui tia, mãe, madrinha e avó de várias pessoas que passaram pela minha vida. Conquistei estes títulos aos 14 anos, quando minha mãe faleceu. Desde então, me vi orientando e cuidando de todos que se achegam a mim. Hoje, tenho filhos, afilhados, netos de sangue e de coração. Meu sobrinho é meu neto e ninguém me tira isso. Confundimos a cabeça dos outros, mas o que importa é sermos felizes e trazer felicidade para aqueles que nos adotam. Luzia Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo Tinha 22 anos quando a maternidade me encontrou sozinha, sem emprego e quase desamparada, não fosse a minha mãe que nunca me abandonou. Em meio aos desafios da época, defini a maternidade como sinônimo de responsabilidade. Não queria decepcionar a “tal sociedade”, que tanto me cobrou uma postura. Meu filho teria caráter acima de tudo. E tem, graças a Deus.

Como se não bastasse, percebi que o coração de mãe não tem limites: o amor transcende por cada filho. São três filhos maravilhosos, que amo incondicionalmente: cada um a seu modo e no seu tempo. Faço o impossível para vê-los felizes. Eu só não sabia que minha capacidade de amar seria tão grande, até que, um dia, ouvi alguém me chamar de “vovó”. Bem, aí já é uma outra história, de um amor maior... Roziny Santos Silva, moradora de Rio Doce A coisa mais preciosa que eu tenho na vida são meus filhos, a minha felicidade são eles. É muito bom ser mãe, principalmente pelos filhos que tenho: carinhosos, compreensivos, são bons filhos. Me orgulho de ser mãe e sou apaixonada por eles, às vezes, me acham até enjoada. É um amor que não tem preço. Fui mãe nova, aos 17 anos, e não me arrependo, nem do tanto de filhos que eu tive. Eu brigo, coloco de castigo, mas são meus. Ser mãe aos 17 foi bom, mas hoje seria difícil porque a cabeça das meninas é outra. As


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minhas filhas falam: “Eu não quero ter filho agora”. E eu concordo com elas porque é tudo diferente. Maria do Carmo Sena, moradora de Paracatu de Baixo Lá era mais fácil Eu tenho medo de acontecer alguma coisa com meus filhos. Veio uma responsabilidade muito grande pra mim depois desse crime porque me separou do pai deles. Lá em Paracatu, ele saía de manhã, mas, à tarde, já estava em casa. Estávamos, nós dois, juntos no dia a dia. Agora, a gente se separou totalmente porque ele tem de trabalhar, tem os filhos para manter. Os meninos, praticamente, só têm o pai no domingo, e eu me sinto sobrecarregada. Maria do Carmo Sena, moradora de Paracatu de Baixo Agora vem os Dias das Mães. Quando se aproximava desse dia, antes do rompimento, era euforia pura. Hoje, festejar o Dia das Mães não é mais a mesma coisa. Eu sinto falta desse tempo caloroso em que a gente fazia almoço, se preocupava com quem ia dar o quê. Agora, com essa vida dupla de ser mãe e atingida, tenho um modo de viver diferente. Luzia Queiroz, moradora de Paracatu de Baixo Para mim, como mãe, lá era muito melhor. A convivência era diferente porque ficava tudo perto, escola, igreja, campo de futebol. Aqui, quando eles saem, só consigo comunicar por telefone. A preocupação é maior, a gente não sabe o que está acontecendo. Maria do Carmo Sena, moradora de Paracatu de Baixo

Para as mães Mãe, dedico esta mensagem a você, que esteve ao meu lado nas horas em que chorei e nas horas em que sorri; nas horas em que me lamentei e nas horas de alegria. Agradeço pelo sorriso diário, sem mágoas ou rancores. Agradeço, de peito aberto, de alma exposta. Agradeço pelos meus dias de mau humor, em que me acalmou no seu colo. Hoje, quero agradecer porque você fez, faz e fará sempre parte da minha história. Você é maravilhosa, uma mãe e tanto. Obrigada pela vida! Olívia do Carmo Gonçalves, moradora de Paracatu de Baixo Quero parabenizar todas as mães que enfrentam muita coisa, às vezes sozinhas, para defender os filhos, para que nada os machuque ou magoe, mesmo ela própria estando machucada, magoada e desestruturada. Me emociono ao falar isso porque minha mãe é um belo exemplo. Estamos, há três anos e meio, aprendendo muito com a luta, nos fortalecendo como mãe e filha. Hoje, formamos uma dupla que é Mirella e sua mãe, ou Cidinha e Mirella. É difícil dizer onde uma acaba e a outra começa porque somos muito unidas. E ela tá cansada, desesperançosa, magoada, mas ela não se sente no direito de desistir porque não quer ver os filhos dela magoados, desestruturados. Mesmo estando nos piores dias, ela é capaz de se manter forte para que a família não se desestruture mais ainda. Eu quero dizer que eu amo demais essa mulher, mesmo que, às vezes, ela não acredite. A minha maior referência de heroína é a minha mãe. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama

"Não é fácil ser mãe. É um trabalho de 24 horas, que não tem folga", Maria do Carmo Sena.

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

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Acalme o seu coração No Mês das Mães, trazemos o poema escrito por Roziny, mãe, atingida, moradora de Rio Doce e nascida em Barão de Cocais. Esta é uma homenagem ao ato de ser mãe e também às mães de Brumadinho, que tiveram seus(suas) filhos(as) arrancados(as) de suas famílias por conta da ganância das empresas e que, hoje, lidam com a saudade, a ausência e a angústia. Por Roziny Santos Silva Com apoio de Tainara Torres

Ilustração: Giulia Matteoli

Acalme seu coração e Busque, mesmo com dificuldade, a razão Lembre-se que você continua sendo importante E tão querida por tanta gente. Acalme o seu coração, Olhe em sua volta, observe A cada momento, a vida se faz presente. Há sempre uma nova brisa, Um novo sopro de vida, respire. Em seu olhar, perdido no horizonte, Sei que buscas por mim, incessantemente. Me encontre apenas nas doces lembranças De um pouco daquilo que pudemos dividir. E, no seu caminhar, deixe seus passos Te conduzirem num compasso das batidas do seu coração. Acalma o seu coração. É tempo agora de seguir, reconstruir Coisas novas estão por vir E você, quero apenas vê-la sorrir.


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Por que voltar?

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Andar por Bento Rodrigues é encarar o efeito do descaso e da crueldade das grandes empresas. A marca do rejeito de minério, que devastou a comunidade há três anos e cinco meses, ainda permanece no que restou de Bento. Apesar disso, o retorno dos(as) atingidos(as) à comunidade significa mais que experimentar o trauma iniciado naquele mês de novembro de 2015. Voltar a Bento Rodrigues se tornou um ato de luta e resistência. Por Marinalda Aparecida Silva Muniz e Marcos Muniz (Marquinhos) Com apoio de Larissa Pinto e Rafael Francisco

Foto: Lar

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Para nós é difícil voltar, mas é uma forma de manter a nossa fé aqui. Até porque é muito difícil conviver em outra comunidade e participar de festividades, como a da Semana Santa, em outros lugares. Fora daqui somos meros espectadores. Nós voltamos para relembrar, para viver aqueles momentos que nós vivíamos aqui. Bento não vai ser uma página virada e nunca vai ser substituído. Temos o objetivo de manter as atividades aqui, principalmente as religiosas. É em Bento Rodrigues que estão as nossas memórias. Eu, por exemplo, nasci aqui. Os meus pais e os pais deles também nasceram nesse lugar. Bento Rodrigues é único. Despedir de Bento, depois que passamos esses dias de celebração, é viver a angústia, a espera, mais uma vez. Marinalda Aparecida Silva Muniz, moradora de Bento Rodrigues

Voltar significa resistência, além de demonstrar que gostamos daqui. Bento Rodrigues é o lugar onde planejamos viver. Eu peço a Deus para viver muitos dias depois que o reassentamento acontecer. Quero ver onde vamos chegar. Bento Rodrigues é um patrimônio e não podemos perder esse lugar. Dentro dos diques têm currais de pedras, tem história. Os meus pais e meus avós estão sepultados aqui. É o lugar onde vivemos. Se não frequentássemos aqui, desde o início, eles teriam feito o que quisessem com o lugar. O Ministério Público e até as empresas sabem que tem um número significativo de pessoas que não desejam que Bento seja deixado de lado. Então, a nossa permanência e a nossa volta são para mostrar resistência. Vamos continuar celebrando as festividades em Bento Rodrigues. Marcos Muniz (Marquinhos), morador de Bento Rodrigues


EDITORIAL Por Luzia Queiroz, Paracatu de Baixo

Hoje temos treinamentos para correr da lama de rejeitos caso uma barragem rompa. Mas, quando as empresas tinham que ter se preocupado com isso, não se preocuparam. Fazemos o treinamento com uma sirene que toca sem haver rompimento. Tem gente que corre porque rompeu, outras correm à toa porque a sirene tocou errado, e eles dizem que foi um “pequeno” problema. Tem horas que ficamos com aquela coisa na cabeça: será que a barragem vai chegar de novo onde estamos? Teremos tempo de correr? Quem já teve que correr, tem o temor da sirene, quem não correu, tem o temor dela tocar, e quem não acredita, um dia, vai ver o terror da sirene chegar. Com isso, vamos adoecendo aos poucos. Quantos(as) mais terão que ser mártires para poder provar que esse sistema é errado? Que a vida não é só dinheiro? Quantos(as) mais vão chorar a morte dos seus(suas) filhos(as), de familiares? A mineração deve existir, mas com consciência e respeito às comunidades. O crime da Vale, em Brumadinho, foi uma catástrofe, matou muita gente. A senhora da capa desta edição, dona Artila, é moradora de Córrego do Feijão e foi atingida duas vezes. Nos anos 1980, perdeu sua comunidade inteira, Escontendas, em Brumadinho, para a construção da barragem de água da Copasa. Em 2019, perdeu sua filha, sua neta e parte significativa de sua comunidade. É por isso que precisamos ocupar os nossos territórios. Hoje, Artila não pode mais voltar à sua terra porque, graças à ganância, Escontendas não existe mais. Para aqueles que conseguem, a volta ao território atingido tem que ser maciça. Temos que cultuar esse espaço porque é nele que está o nosso álbum de fotografia, a nossa memória. Então, sejamos guerreiros que resistem e retornam ao território porque é lá que a gente se sente bem, é assim que buscamos energia para sobreviver e enfrentar o desconhecido. Temos, sim, que preservar a natureza e as ruínas de nossas comunidades. Temos que continuar preservando a cultura, tombar e fazer dessas ruínas um importante marco, um lugar onde as pessoas venham e entendam que ali tinha uma cultura, uma arte, uma preservação e um povo muito feliz. E esse povo vai continuar, enquanto puder, assim como sua descendência, cultuando e falando sobre aquele lugar maravilhoso que, um dia, existiu e, hoje, não existe mais, mas que não pode ser enterrado de vez pela ganância e por aqueles que acham que dinheiro é tudo na vida. Nem tudo é dinheiro.


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