A Sirene - Ed. 73 (Maio/2022)

Page 1

A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 7 - Edição nº 73 - Maio de 2022 | Distribuição gratuita


2

A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

EQUIPE DISCUTE JORNAL A SIRENE EM EVENTO ACADÊMICO 25 de abril O editor-chefe do Jornal A SIRENE, Sérgio Papagaio, participou do evento em comemoração aos 50 anos do jornallaboratório Marco, do curso de Jornalismo da PUC Minas, em Belo Horizonte, na mesa “A SIRENE: vislumbres de um outro jornalismo possível”. Na ocasião, Papagaio falou sobre a história e a importância do veículo nas lutas das pessoas atingidas por reparação. A jornalista responsável pela publicação, Karina Gomes Barbosa, também participou da mesa e ressaltou as dificuldades de manter o jornalismo independente praticado pelo Jornal A SIRENE.

AGRADECIMENTO ESPECIAL Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Bruno Milanez, Camila, Daniel Rondinelli, Elke Beatriz Felix Pena, Geraldo Martins, Imaculada Galvão, Jussara Jéssica Pereira, Priscila Santos e Virgínia Buarque. Para ajudar a manter o jornal, acesse: www.evoe.com/jornalasirene.

Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: @jornalasirene www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene Para reproduzir qualquer conteúdo deste jornal, entre em contato e faça uma solicitação.

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

EXPEDIENTE Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho Editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Eduardo Salles Filho | Reportagem e Fotografia: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Joice Valverde, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Maria Eduarda Alves Valgas, Stephanie Locker, Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Eduardo Salles Filho e Greisso Anderson | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Cáritas MG | Foto de capa: André Luís Carvalho | Fonte de recurso: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A SIRENE. Apoio da ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP.


Maio de 2022 Mariana - MG

APARASIRENE NÃO ESQUECER

3

Papo de Cumadres: Opinião:

Dia das Mães

Consebida e Clemilda estão felizes, e um tanto quanto tristes, com a proximidade do dia das mães.

Por Sérgio Papagaio

– Cumadre, eu ficu aqui pensandu comigu mesma, sô muitu grata pelus fius que Deus me deu, issu me traz muita aligria com a chegada do dia das mães, ave Maria, mas num cantu du meu peitu corre lágrima a riviria, olha que aligria duida sabê que meus fius vem passá u dia comigu, mas pru outru ladu, num tenhu mais minha mãe, que pudia tá aqui viva, se num fosse a mardita lama que tirô ela de casa, nunca mais teve aligria, até parti desta agunia. – Eu sei issu tudu que ocê tá sintinu, minha mãe foi morá com o Divino quandu eu tinha 9 anos, dexanu meu irmão Justinu com poucu mais de 3 anos, ainda mininu, eu cumade, oia que vida sufrida, daque mininu virei mãe, antes mesmu de acabá de cê fia, foi Maria, sua mãe, minha dindinha, que eu adotei como minha manhinha, eu num tive fiu, mas fui mãe de ocê, de Justinu e de fihinha, quandu ocês duas nasceram, a vida sufrida já tinha feitu dus meus quinze ano uma muiê vivida. – Cumadre, issu lá é veldade, ocê sempre ajudou mainha a cuida lá da turminha. – Cumadre, eu além de cê mãe de ocês, eu fui mãe daquela nossa terrinha que eu sempre cuidei como se fosse minha filinha, cuidei dus bichu, das vaca, das galinha, dus porcu e da cachora bolinha, agente oia pra trás e vê tudu debaixo da lama, nesse dia das mãe é um presente marditu que agente ganha. – Agora a pocu fiquei sabenu, lá na igreja du Geteira veiu, onde nós tudu foi batizadu, já tinha caidu a torre, agora acabô de cai u teiadu, e a nossa mãe, Nossa Senhora da Conceição padrueira daque mansão, e todus us santus, coitadus, também tão tudu disabrigadu. – Dispois daquele rompimentu du diabu, a cada dia das mãe a Samaucu e a renova sempre nus dá um presente macabru.

Foto: Isabella Walter


4

A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

Lucro recorde da Vale mascara violência contra populações atingidas por desastres causados pela empresa Por Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV)

A Vale fechou 2021 com o maior lucro da história de uma empresa aberta no Brasil: R$ 121,2 bilhões. Com o resultado, mais de 300% superior a 2020, a Vale vai distribuir US$ 3,5 bilhões em dividendos aos acionistas, além dos US$ 7,4 bilhões pelo desempenho no primeiro trimestre. No balanço, a empresa elenca esforços contínuos para a reparação de danos causados pelo rompimento de barragens. A Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV) questiona a transparência e a honestidade do relatório anual publicado pela empresa, que omite e mascara informações relevantes sobre a atuação da mineradora nos territórios e junto aos trabalhadores, às comunidades e à natureza. A Vale afirma manter uma “abordagem de engajamento proativa com as comunidades, criando oportunidades para um diálogo amplo e construtivo com foco no relacionamento de longo prazo e na construção de um legado para a sociedade”. Em Minas Gerais, no entanto, a Frente de Luta pelas Atingidas e Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG) denuncia a perseguição de mulheres que expõem os danos no distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto. Já na comunidade de Socorro, em Barão de Cocais, moradores estão sendo processados pela Vale por terem regressado momentaneamente às casas que foram obrigados a deixar em 2019, para recuperar pertences e animais. Ana Rita Souza Rodrigues, atingida, espera por reparação. “Sonhar em voltar, a gente sonha, mas, a cada dia, vai ficando mais difícil. A gente só quer justiça.” Um relatório do Ministério Público (MP) de março de 2022 feito em Barão de Cocais mostra que, de 783 entrevistados, 74,3% afirmaram ter tido a saúde mental prejudicada e 70,1% relataram ter sido obrigados a alterar hábitos ou costumes por causa da barragem. A estrutura está em nível 3 de emergência e a previsão da Vale é que seja descaracterizada até 2035. Em julho de 2020, moradores de Socorro, Tabuleiro, Piteiras e Vila do Gongo denunciaram que a Vale dificulta o pagamento das compensações e chega a exigir de proprietários dos imóveis documentos inexistentes, além de não cumprir os prazos de pagamento quando há reconhecimento da necessidade de indenização. A Vale tem feito enorme pressão psicológica sobre essas comunidades, que, além do risco da perda de suas vidas e de conviverem com o

medo de um novo desastre, ficam expostas à ameaça de que os benefícios (que são direitos) concedidos sejam cortados. Em setembro de 2020 moradores dessas comunidades invadiram a área isolada pela Vale e pela Defesa Civil Municipal para retornarem às suas casas. Dentre os auxílios que a mineradora buscava parar de pagar na Justiça, estão moradia (aluguel, água, energia elétrica, IPTU e TV a cabo), vale gás e cartão refeição. “Depois do fato acontecido, das primeiras sirenes, tive problema psicológico e faço tratamento até hoje. Durmo à base de remédio. Então, a gente fica assim: ‘qualquer hora pode estourar [a barragem], qualquer hora pode acontecer uma fatalidade e não ter como sair’. Eu entrei até o ponto de me mutilar e não lembrar como”, diz uma pessoa atingida. Nos últimos anos, a Vale descaracterizou sete das 30 barragens construídas à montante, como em Brumadinho. No entanto, a Lei Mar de Lama Nunca Mais (Lei n.o 23.291/2019) proibia a operação e ampliação desse tipo de barragens com limite até fevereiro de 2022. Diante do descumprimento do prazo, a Vale teve de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que prevê o pagamento de uma indenização de R$ 236,7 milhões por dano moral coletivo. O valor deve ser destinado a projetos que visem a segurança de barragens em Minas. A Vale afirma que a reparação de Mariana, liderada pela Renova, teve seus programas acelerados, especialmente os de indenizações e reassentamentos. Apesar disso, centenas de famílias seguem sem ter os direitos reconhecidos, sem acesso a qualquer compensação e convivendo com um Rio Doce altamente poluído, que coloca em risco sua saúde e lhes nega o direito ao trabalho. Em 2019, a Justiça homologou uma petição conjunta assinada pelo Ministério Público Federal e por Vale, Samarco e BHP referente à escolha das assessorias técnicas independentes para a reparação do crime na bacia do Rio Doce. Um ano depois, as empresas se negaram a custear os planos de trabalho elaborados pelas comunidades e passaram a questionar o tipo de assessoria que seria dada às populações atingidas. A Justiça Federal ainda não tomou providências quanto ao impasse. Em Moçambique, desde 2007, a Vale é objeto de inúmeras denúncias de violações de direitos sobre a operação da mina de Moatize e do

Foto: Felipe Werneck-Ibama

Corredor de Nacala. Em 2021, a Vale anunciou a venda de seus ativos no país. Até hoje, cerca de 1.365 famílias reassentadas na área da mina, comunidades inteiras reassentadas ao longo da ferrovia, fabricantes de tijolos e comunidades vizinhas que sofrem com a poluição da mina, aguardam compensação e o respeito a seus direitos. No ano passado, acionistas críticos denunciaram que a Vale Moçambique vinha negando acesso a documentos públicos sobre o empreendimento (relatórios de impacto ambiental, relatórios de monitoramento ambiental e relatório sobre a composição do pó emitido pela mina e que coloca em risco a saúde das comunidades vizinhas). Na assembleia, a diretoria da Vale afirmou que os documentos eram públicos e garantiu que os encaminharia, mas nunca o fez. Os relatórios e as compensações seguem sendo negados pela empresa. O relatório financeiro da Vale foi apresentado na Assembleia-geral de acionistas da empresa, no dia 29 de abril. Pela primeira vez em 10 anos, parte dos acionistas não esteve presente, em rechaço à falta de transparência do balanço. Trata-se do grupo de acionistas críticos, integrantes da AIAAV, que priorizam seu direito de voz para denunciar violações de direitos humanos e ambientais cometidos pela empresa. A estratégia deste ano se dá em ações externas à reunião, para fortalecer iniciativas locais daqueles que foram vítimas da insustentabilidade da empresa brasileira que mais lucrou no último ano às custas de sofrimento humano e ambiental. A AIAAV é uma rede que reúne, desde 2009, comunidades, trabalhadores, pesquisadores, movimentos sociais, sindicatos, entre outros engajados no enfrentamento dos impactos socioambientais resultantes da atividade da Vale.


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

5

O “emergencial” da Renova segue em atraso Passados mais de seis anos do rompimento da barragem de Fundão, as comunidades atingidas ao longo da bacia do rio Doce ainda sofrem com os reflexos causados pelos rejeitos da Samarco, Vale e BHP. Famílias que tinham sua fonte de renda com o plantio e a pesca em seus quintais lutam para receber o cartão de Auxílio Emergencial, um direito que, em muitos casos, está sendo negado. Por Clara Alves Pereira Ribeiro, Márcia Mary Silva e Odete Cassiano Com o apoio de Joice Valverde e Maria Eduarda Alves Valgas

A respeito dos cartões, a Renova só voltou com aqueles que eles tinham cortado a metade, como foi no meu caso. Os que eles cortaram de uma vez não voltaram ainda não. E já que os cartões só poderiam ser cortados quando os nossos quintais estivessem produzindo, então fica mais difícil ainda deles cortarem, porque nossos quintais não estão produzindo. E como o rio está assoreado com rejeito da Samarco, em qualquer chuva, entra água nos nossos quintais e com rejeito. No meu quintal, por exemplo, foi retirada a lama e agora o rejeito está todo no quintal de novo. Odete Cassiano, moradora de Barra Longa

A maioria do povo de Santana do Deserto, município de Rio Doce, ainda não pegou nada. Não pegaram nem um centavo da Renova. Os que pegaram aqui foram mixarias, mas mais da metade da população ainda não pegou. Clara Alves Pereira Ribeiro, moradora de Santana do Deserto Pra gente, foi bom ter voltado o cartão integral porque deu um desfalque muito grande, a gente chegou a contrair até dívida, agora deu pra quitar, graças a Deus. E eu espero que o Ministério Público não deixe eles cortarem nosso cartão enquanto eles não compram outro lugar pra gente produzir, porque na beira do rio não tem como mais não. Qualquer chuva que dá e que o rio entra no quintal, a primeira coisa que vem é lama, rejeito e muito rejeito. Tá aqui no meu quintal. A prova disso tá para qualquer um ver, pode vim ver. E deveria voltar os cartões também de quem foi cortado totalmente. Odete Cassiano, moradora de Barra Longa

As poucas árvores do quintal de Odete estão contaminadas e os frutos amadurecem sem qualidade. Foto: Greisso Anderson

Eles cortaram meu cartão, ficou um ano sem pagar, porque falou que era auxílio de subsistência, só que, agora, depois que deu a sentença, aí voltou e voltou o retroativo. Mas o do meu irmão, Sebastião da Fonseca Silva, cortou de uma vez e não voltou. Ele está fazendo tratamento psicológico e o dele não voltou. Só voltou esses que falou que é de subsistência. Esse cartão tem que voltar de todo mundo até a pessoa receber indenização. Meu irmão faz tratamento e eles cortaram o auxílio dele mesmo com o laudo, e não avisou hora nenhuma que ia cortar o cartão. Esse auxílio é tudo na vida do pessoal atingido, porque, até hoje, eles não arrumaram nada. Aqui em Barra Longa, não tem uma fonte de renda, as coisas estão muito caras e muita gente vai passar dificuldade. Márcia Mary Silva, moradora de Barra Longa

O Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) é um direito garantido por meio da Ação Civil Pública (ACP) ajuizada em dezembro de 2015, pouco depois do rompimento da barragem de Fundão. A ACP prevê que o auxílio seja destinado individualmente a toda pessoa que teve sua fonte de renda afetada em decorrência do rompimento, como agricultores(as), trabalhadores(as) rurais, pescadores(as) e marisqueiros(as), ou seja, pessoas que dependiam da terra e do rio para garantir sua subsistência. Esse direito, no entanto, vem sendo constantemente desrespeitado pela Renova, que, além de dificultar o reconhecimento das pessoas a serem reparadas, ameaça o corte de quem recebe o auxílio. Os problemas surgiram já no início do cumprimento da ordem judicial, quando a Renova passou a distribuir apenas um cartão por núcleo familiar, o que obrigou as pessoas atingidas a judicializar o pedido individual do auxílio emergencial. O primeiro corte coletivo de cartões ocorreu em 2019, quando a Renova cancelou o auxílio de 141 famílias, sob o argumento de não preenchimento dos critérios estabelecidos. A violência se repetiu em 2020, quando 7.681 auxílios foram cancelados por, segundo a Renova, não corresponderem aos requisitos do Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC). Na ocasião, a empresa afirmou ainda que se tratavam de pessoas que já haviam recuperado as condições para retomar sua atividade econômica, sem considerar, porém, o rejeito ainda depositado no solo e na água dos territórios atingidos. Após intervenção da Advocacia-Geral da União (AGU), o juiz da 12ª Vara Federal determinou o restabelecimento do pagamento do AFE e sua prorrogação até o final daquele ano. A decisão do juiz estabelecia ainda a categorização de “pescadores(as) de subsistência” e “agricultores(as) de subsistência”, ou seja, pessoas que exerciam tais atividades apenas para consumo próprio ou familiar. Para essas pessoas, ficou determinada a redução de 50% do valor do auxílio de janeiro até junho de 2021. Após essa data, os(as) agricultores(as) e pescadores(as) passaram a receber apenas cestas básicas, os denominados Kit Proteína e Kit Alimentação.

A obra da casa de Márcia, iniciada após demolição da casa atingida no rompimento da barragem, segue paralisada devido a um erro no projeto. Foto: Márcia Mary Silva

Agora, em abril de 2022, o auxílio foi restabelecido, porém, com a Renova mantendo sua falta de transparência quanto aos critérios, apenas algumas pessoas receberam o pagamento.


6

A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

Decisão judicial individualiza coletiva das pessoas atingidas Por Karina Gomes Barbosa e Ellen Barros

A decisão No dia 4 de março, a juíza Marcela Decat, da Comarca de Mariana, deu uma sentença que coloca em xeque uma pauta importante da luta coletiva das pessoas atingidas, que é o direito à compensação justa. Ela decidiu que a quitação das compensações para reparar os danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão (a decisão sobre o valor ou a forma das compensações) deve ser feita individualmente, caso a caso.

Legitimidade Na visão da juíza, as possíveis diferenças são exclusivamente patrimoniais e de direitos disponíveis. Por isso, não haveria interesse social que permitisse ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) entrar com a ação coletiva. Na sentença, a Justiça acolhe o pedido das mineradoras e declara a ilegalidade do MPMG no caso. Como não haveria legitimidade do MPMG na ação, a juíza extinguiu o processo sem resolver seu mérito, quer dizer, sem resolver o problema.

As compensações são necessárias, porque as famílias atingidas têm o direito de receber imóveis com características iguais ou superiores aos que tiA proposta para as nham antes do desastre-crime, mas, compensações consem muitos casos, as diferenças dos truída pela Assessoria imóveis nos reassentamentos Técnica Independente (ATI) são para pior e, por isso, as Cáritas MG junto às pessoas famílias precisam ser atingidas e apresentada no procesSegundo a compensadas. so é fruto de muita escuta dos desejos juíza, as diree das necessidades das comunidatrizes estabelecides atingidas ao longo de mais das em 2018 abrem de cinco anos. Segundo a Na prática, isso as portas para que cada decisão, essa proposta é significa que, nas pessoa atingida cobre a unilateral. ações individuais, secompensação na Jusria necessário um perito tiça, individualjudicial, indicado pela Cormente. te, para apurar se existe, mesmo, divergência entre o dano e o que está sendo reparado. E, se houver, ele deve indicar como deve ser feita a compensação.


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

as compensações e ignora luta

7

Valores A ação Em meados de 2020, depois de muitas reuniões e audiências sobre compensação sem que houvesse acordo, pois as mineradoras não aceitavam nenhuma proposta e metodologia apresentadas pelas pessoas atingidas com ajuda da ATI, o MPMG ajuizou a ação de cumprimento de sentença (que busca garantir que as mineradoras paguem ou façam o que A ação pedia a Justiça determinou). à Justiça para definir critérios e valores das compensações financeiras pelas perO pedido de das não restituíveis decorcumprimento de rentes do rompimento sentença foi motivada barragem de do pela repetida recusa Fundão. das mineradoras Samarco, Vale e BHP em aceitar as propostas para definir critérios e valores para essas compensações.

Na ação original, o MPMG estabeleceu a causa em 1 bilhão de reais. A juíza Marcela Decat considerou o valor muito elevado e afirmou que prejudicaria o direito de defesa da Samarco, Vale e BHP. Na sentença, a juíza acolheu o pedido das mineradoras e reduziu o valor da causa para 500 mil Segundo reais. a plataforma Economatica, o valor de mercado da Vale, em abril, era de 452 bilhões Na ação, o de reais. MPMG pedia ainda multa diária de 3 milhões de reais em caso de descumprimento da sentença, além de suspensão das atividades das mineradoras, entre outras medidas.

E agora?

Na época, o MPMG No dia 11 de abril, relatou situações em que o Ministério Público de pessoas atingidas estavam Minas Gerais entrou com rerecebendo imóveis com dimencurso contra a decisão. Logo, o sões ou características inferiores às Tribunal de Justiça de Minas Gerais, propriedades destruídas pelo rejeito da 2ª Instância do Judiciário, irá decidir mineração, como terrenos menores, área o recurso e declarar se o MPMG menor de plantio, diferença de tamanho de tem ou não competência para testada (a largura da frente do terreno) ou pedir cumprimento de declives maiores (terrenos com fundos sentença (execução comais baixos que o nível da rua). Sem letiva) no caso. contar, claro, os recorrentes atrasos nos reassentamentos, mais uma violação dos direitos Para acompanhar o andamento do processo no sistema de consulta das pessoas atingidas. eletrônica do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o número é 5001070-93.2020.8.13.0400.


8

A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

“Nada mais justo do que buscar, na casa do criminoso, a reparação pelo crime” Pela primeira vez desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, uma pessoa atingida de Bento Rodrigues, subdistrito devastado pelo rejeito de Vale/ Samarco/BHP, entrou em um tribunal para discutir uma indenização coletiva. No dia 5 de abril, quando o crime completou 6 anos e 5 meses, o Tribunal de Apelação das Cortes Reais da Justiça do Reino Unido, em Londres, recebeu

Mônica dos Santos, moradora do Bento. Se for acolhido pela Justiça do Reino Unido, este será o maior processo em número de vítimas e o segundo em valores na história da Inglaterra. Mauro da Silva, também morador do Bento, participou com Mônica de um ato em frente ao tribunal, no dia 8 de abril, contra a falta de justiça e reparação após mais de seis anos do crime da Samarco/Vale/BHP.

Por Mauro Silva e Mônica dos Santos Com o apoio de Joice Valverde e Tatiane Análio

Essa audiência ocorreu do dia 3 ao dia 8 de abril. Na realidade, foi uma audiência de recurso, uma vez que o juiz de primeira instância entendeu, diante dos argumentos da BHP, que não era o foro especial para o julgamento da causa. Foram diversos argumentos. O juiz de primeira instância não leu o processo, não entendeu a complexidade e a gravidade da situação e deferiu o direito para BHP. Foi uma semana de audiências. Então, como aconteceu, a nossa esperança agora era que os três juízes lessem todo o processo e entendessem. Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues

Mônica dos Santos e Mauro da Silva participam de manifestação por justiça climática. Foto: Rede Igrejas e Mineração

Eu e Mauro fomos convidados pelo escritório que está movendo a ação na Inglaterra para acompanhar a audiência lá em Londres. Fomos e participamos de quatro manifestações, demos entrevista para jornais e telejornais locais e do Brasil. Reunimos com representantes do governo, do parlamento, com a sociedade civil e movimentos sociais. Aproveitamos para reunir também com alguns investidores com os quais conversamos desde 2018, na nossa primeira ida. Várias pessoas das comunidades já participaram dessas conversas, o que é muito importante para dar dimensão aos acionistas das violações que acontecem no nosso território. Inclusive, desde o princípio, chamamos eles para conhecerem a região e agora está marcada para agosto uma visita desse grupo ao Brasil, que, por causa da pandemia, não pode acontecer antes, assim como a emissão de um relatório feito por eles, fruto dos nossos diálogos e com a nossa contribuição, sobre todo o processo. Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues A partir dos argumentos dos nossos advogados, que foram muito bem, a gente tem muita esperança. Os advogados ingleses são muito cautelosos em dizer que estão confiantes, mas, pelos desdobramentos e pela postura dos advogados da BHP, às vezes de maneira atabalhoada, a gente vê que eles estão mesmo em situação difícil. Talvez os juízes se apressem, mas eles têm entre 45 e 90 dias para dar o resultado final, se a Corte Inglesa de Apelações acata ou não o pleito, e aí é aguardar para ver o que há nisso tudo. Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues

Foto: Rede Igrejas e Mineração

A gente acredita que justiça nunca é demais, uma vez que a justiça brasileira não tá dando conta e não tem respostas à altura da grandiosidade que é o crime. E a gente vê, pelos recursos das empresas, principalmente da BHP que é a parte na ação, que elas temem serem submetidas à justiça internacional, uma justiça que a gente acredita ser séria, ser célere e ser imparcial. A justiça brasileira tem suas limitações e, muitas das vezes, se deixa intimidar ou se acovarda diante do poder econômico e da influência política de empresas multinacionais, das duas maiores mineradoras do mundo. A BHP é a maior delas e nada mais justo do que buscar, na casa do criminoso, a reparação pelo crime. Mauro Silva, morador de Bento Rodrigues


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

A feira voltou! Por Sérgio Papagaio

A Feira Noturna de Mariana, que sempre acontecia toda quinta-feira e teve a realização interrompida por causa da pandemia, garantiu seu retorno na quinta-feira, dia 28 de abril. A Praça dos Ferroviários ficou cheia de jovens e famílias marianenses. As barraquinhas ofereciam pratos, como cuscuz, tropeiro, churrasquinho, pastel, salgadinhos, além de artesanato e quitutes. As tradicionais atrações do evento também retornaram para as crianças brincarem e para todos e todas curtirem com a música do Barroco Jazz e de Erika Curtiss. Em conversa com Milton Manoel de Sena, administrador e idealizador desse projeto de integração da sociedade de Mariana com outras pessoas atingidas, ele me disse que a Feira Noturna tem como princípio básico promover a igualdade social entre as pessoas atingidas de Mariana. Seu Milton, como é conhecido na cidade, disse também que, ao seu ver, toda Mariana foi atingida pelo rompimento da barragem de Fundão. “Eu vejo a feira como um espaço onde todos são iguais e que, além de criar perspectiva de trabalho e renda, promove aquilo que acho mais importante, que é um movimento social, realizando o encontro e integralização das pessoas de diversas comunidades atingidas do município com os moradores da sede do município de Mariana, sem diferenciação ou discriminação”. Seu Milton disse também que a feira foi criada para atender às necessidades de trabalho das pessoas atingidas das comunidades com as da sede do município. Segundo seu Milton, semanalmente, a feira gera renda para 35 famílias do município e em torno de 115 empregos. Ele relata que, para esse recomeço, contou com uma forte colaboração da Prefeitura de Mariana, que vem custeando despesas que eles não teriam como arcar neste momento. Seu Milton relatou ainda que, até agosto deste ano, a administração da feira será devidamente repassada para a Associação Feira Noturna de Mariana. A Feira Noturna acontece às quintasfeiras, a partir das 17h, na Praça dos Ferroviários. Acompanhe a programação pelo Instagram: @feiranoturna e pelo Facebook: /feiranoturnademarianaoficial.

9

Fotos: André Carvalho


10

A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Maio de 2022 Mariana - MG

Cronologia de uma destruição Por Sérgio Papagaio

Eles pensam que é só um monumento, espere um momento, ela tem dor e sentimento, a casa da mãe Conceição também tem coração. Ali, a rezar eu aprendi, o beabá da fé foi ensinado,

Foto da Igreja de Gesteira tirada antes do rompimento da barragem de Fundão. Foto: Simone Silva

lá, a primeira comunhão, meu batizado, tantos outros sacramentos realizados. Meu pai e minha mãe, naquela antiga capela, uma tarde de primavera, entraram os dois solteiros e saíram de lá casados, não é mentira, é verdade, tinham muitas testemunhas desta veracidade. Quantos outros casais ali começaram suas famílias, e seus filhinhos se livraram do pecado original na Pia Batismal, quantos corpos encomendados, aqui foram passados da vida para uma outra vida, ao lado, sementes plantadas lá onde vivem os mortos,

Igreja de Gesteira em 2020, 5 anos depois de ser atingida pela barragem de Fundão. Foto: Simone Silva

irrigados pelo chafariz de São Francisco de Assis. Agora eu olho para aquela modesta casa de orações e os meus olhos não querem ver, a capela nua totalmente descoberta, A Samarco aplicou a pena, e a Renova, num projeto de lei esculpido no rejeito, quer transformar a casa da mãe Conceição e toda a reparação, neste ato, num templo amaldiçoado a Baco. Mas eu sei que, mesmo que caiam as paredes, o Pai Eterno, assessorado pela Nossa Mãe, jamais vai sancionar algo de diferente naquele solo consagrado à minha gente.

O descaso levou ao destelhamento da Igreja de Gesteira. Foto: Sérgio Papagaio

Foto: Sérgio Papagaio


Maio de 2022 Mariana - MG

APARASIRENE NÃO ESQUECER

11

Mariana, território atingido Por Laís Jabace, Paula Zanardi e Ellen Barros

Ilustração: Elisa A. Smania

Neste mês de maio de 2022, a Cáritas MG faz o lançamento do Museu Virtual Mariana Território Atingido, desenvolvido em parceria com a Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e o Jornal A SIRENE. O site, que estará disponível para acesso tanto pelo computador quanto por celular, é um produto criado a partir de uma leitura ampla e sistemática das informações obtidas ao longo do processo de Cadastramento das Pessoas Atingidas pelo Rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana. Iniciado em fevereiro de 2018, o cadastro foi reformulado com a participação das comunidades atingidas e aplicado pela Assessoria Técnica Independente. Trata-se de uma grande conquista do direito de dizer sobre as próprias perdas. O museu virtual dá a ver a grandeza desse povo, que tanto sofre e luta por reparação justa e integral. O Museu Virtual Mariana Território Atingido é a consolidação desses quatro anos de incansável trabalho em escutar o indizível e registrar todo o irrestituível. A equipe da Cáritas MG buscou, em centenas de oficinas de cartografias sociais familiares e relatos de tomadas de termo dos danos imateriais, sentidos de comunidade e as importâncias para as mais de 5 mil pessoas atingidas cadastradas – ainda que atravessadas pela lama de rejeitos da mineração.

Após mais de seis anos do crime-desastre de grandes proporções que colocou essas comunidades em evidência justamente pela devastação, representá-las nesse museu virtual não é repetir as violências impostas a essas pessoas. A partir do que foi construído em intenso diálogo com as pessoas atingidas, o Mariana Território Atingido é, antes de tudo, uma forma de contar os aspectos da vida – da luta e do luto – dessas comunidades. São tecidos fragmentos, que compõem um museu virtual que conta a história da dor, das vivências e da luta com imagens, textos, vídeos e outros formatos. A composição é marcada pela interdisciplinaridade do cadastro e pelo processo de reflexão das trabalhadoras e dos trabalhadores que se dedicaram a elaborar e produzir a partir do experienciado cotidianamente junto às pessoas que são protagonistas dessas histórias. Como orientado em cada ida a campo, repetimos: percorramos o Mariana Território Atingido com respeito e cuidado. Tudo ali pertence aos atingidos e às atingidas. Mais informações sobre o lançamento do museu virtual serão divulgadas em breve. Acompanhe as nossas redes sociais: @CáritasMG.


EDITORIAL É doloroso perceber que, mais de seis anos após o crime da Samarco, Vale e BHP, a esperança das pessoas atingidas por alguma reparação pode vir da Inglaterra. Enquanto o processo começa a andar nas cortes inglesas, aqui no Brasil cada nova sentença tem significado adiamentos, paralisações, entendimentos jurídicos diferentes. Ou seja, os avanços têm sido difíceis, muito difíceis, e tudo contribui para que as mineradoras não sejam responsabilizadas, não respondam por seus crimes, nem paguem o que é devido. A repactuação amplifica a sensação de descrença, pois, novamente, quem foi atingido ou atingida não está na mesa para renegociar seus direitos. É, mesmo, inacreditável. A impressão é de uma insensibilidade de parte do Poder Judiciário com o sofrimento cotidiano de quem perdeu tudo: o sono, as memórias, o modo de vida, a saúde, a família, o sustento, a perspectiva. Muita gente parece incapaz de imaginar essa dor, de se colocar no lugar desses outros e dessas outras que, há mais de seis anos, vêm tentando se fazer escutar e fazer valer seus direitos. Além das indefinições no campo judicial, a briga parece, sempre, de milhares de Davis contra alguns Golias: cada pessoa atingida, cada grupo, cada território, cada associação lutando de um lado; do outro, os bilhões de lucros da Vale, a intransigência da Renova. Mas se todo dia é de luta, é também de esperança num futuro que, aos poucos, vai chegando. A volta da feira, uma retomada ainda parcial de benefícios. Alegrias que se misturam à tristeza pela destruição dos territórios que prossegue até hoje. Com um momento mais controlado da pandemia de COVID-19, nós, do Jornal A SIRENE, também retomamos, aos poucos, a conversa cara a cara, o contato próximo com os protagonistas e as protagonistas dessas narrativas. É com satisfação que registramos e narramos esses encontros.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.