PARA NÃO ESQUECER | Ano 3 - Edição nº 24 - Março de 2018 | Distribuição gratuita
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Março de 2018 Mariana - MG
Agenda de Março
AVISO PLANTÃO DE ATENDIMENTO PARA O CADASTRO DE MARIANA Segunda a sexta: Horário: 8h - 12h / 14h - 18h Sábado Horário: 8h - 12h
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GB de Paracatu de Baixo: Diretrizes de reassentamento às 18h, no Escritório da Cáritas.
Rua Wenceslau Brás, nº 110 - Centro, Mariana Contato pelo telefone: (31) 3557-4382
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Reunião aberta: Lista de bens apresentada pela Fundação Renova/Samarco às 18h, no Escritório da Comissão.
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GB de Bento Rodrigues: Diretrizes de reassentamento às 18h, na Igreja Colina.
“QUERO PEDIR A AJUDA DE VOCÊS”
Foto: Ana Elisa Novais
Na última edição do Jornal A Sirene, na matéria “Dois anos de muitas histórias”, contei um pouco mais sobre como estamos conseguindo tocar os trabalhos da Folia de Reis aqui em Barra Longa, depois do rompimento de Fundão. Agora, com a ajuda deste jornal, quero fazer um pedido a todos vocês. Por toda a vida procurei a minha mãe. Ela nasceu em 30 de julho de 1930 e casou-se em 30 de julho de 1950, em Barra Longa. Quando eu tinha dois meses de idade ela foi embora daqui para Belo Horizonte. Desde então, nunca mais a vi. Tive notícias de que ela mora em Muriaé (MG) e tenho esperanças de encontrá-la. Não estou procurando um amor de mãe, já que não fomos criados juntos. Mas queria saber como ela é, se é parecida comigo, se tenho outros irmãos ou sobrinhos. O nome dela é Conceição Marra, e estaria hoje com 88 anos.
José Mauro Marra, morador de Barra Longa
Curso: "Direitos" Formação: Como garantir direitos? às 13h30, na Igreja Colina.
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Reunião: Diretrizes de Reassentamento de Mariana, no Ministério Público de BH.
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Audiência Judicial: Diretrizes de Reassentamento de Mariana, no Fórum de Mariana.
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GT de Reparação Fundação Renova/Samarco às 17h. (local a definir)
Agenda sujeita a alterações * As reuniões da comissão deixaram de ser realizadas semanalmente e passaram a ocorrer de maneira quinzenal
Erramos Na última edição, número 23, o Jornal A Sirene errou. Na matéria “Dois anos de muitas histórias”, localizada nas páginas 4 e 5, afirmamos que o atingido José Mauro Marra era morador do subdistrito de Gesteira, na verdade ele é residente de Barra Longa (sede). Ainda, na matéria “Não é só reassentamento, é para que não sejam irresponsáveis… de novo”, publicada nas páginas 10 e 11, informamos que a compra assistida é um formato a ser oferecido, entretanto, ela se refere a uma etapa do reassentamento. Assim como incluímos a palavra “reconstruídos”, quando o correto é “realizados”.
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ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
EXPEDIENTE Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Rafael Drumond, Sergio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Diagramação: Matheus Buranelli | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana) | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Daniela Felix | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Foto: Cátia Aparecida/Paracatu de Baixo
• Repasses
Escola de Paracatu No dia 22 de fevereiro, a pedido da comunidade, a Fundação Renova/ Samarco apresentou o projeto da nova escola de Paracatu. Na presença da Assessoria Técnica da Cáritas, da Secretaria de Educação de Mariana, dos funcionários da escola e da comissão de pais, ficou decidido que a fundação/empresa deve fazer as alterações apontadas pelos atingidos e, no prazo de 15 dias, entregar o cronograma de obras. A previsão é de que os alunos iniciem o segundo semestre letivo no novo prédio, que está localizado no centro de Mariana e precisa passar por adequações.
Como está o Cadastro dos atingidos(as) de Mariana Até o dia 24 de fevereiro, cerca de 300 núcleos familiares concluíram a primeira etapa do Cadastro dos Atingidos e Atingidas de Mariana pela Barragem de Fundão, que ainda está em processo. No dia 19 de fevereiro, começou a 2ª etapa desse processo. Trata-se de instrumentos complementares aos eixos 1 e 2 do formulário, em que será levantado informações sobre as perdas e danos relacionados às atividades econômicas e aos bens materiais de uso ou propriedade de cada família. Um dos métodos utilizados nesta segunda etapa é a cartografia social, que permite aos atingidos(as) desenhar, com ajuda de profissionais da Cáritas, mapas dos terrenos/lotes que ocupavam, indicando os modos de vida e as suas relações sociais e territoriais.
Capela de Santo Antonio/ Paracatu de Baixo.
Também atingidos O município de Barcarena, nordeste do estado do Pará, sofreu uma contaminação de alcance ainda desconhecido provocado pelo vazamento de rejeitos de bauxita vindos da barragem da mineradora Hydro, empresa norueguesa instalada na região. Mesmo com a população denunciando o transbordamento de rejeitos, a mineradora e a fiscalização da Secretaria de Meio Ambiente do Pará negavam o fato. Um laudo do Instituto Evandro Chagas constatou o vazamento e a presença de diversos metais pesados, inclusive de chumbo, em comunidades ribeirinhas. O procurador da República, Bruno Valente, afirmou em entrevista ao portal G1, que a empresa tem histórico de crimes ambientais na região e nunca pagou indenizações às famílias atingidas.
Diretrizes do reassentamento Depois de um processo trabalhoso, em que os(as) atingidos(as) precisaram elaborar diretrizes para garantir todos os direitos na reconstrução de suas moradias, na audiência do dia 06 de fevereiro, que aconteceu no Fórum de Mariana, as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton concordaram com cerca de 40 das mais de 80 orientações propostas pelos os(as) atingidos(as) com o auxílio da Cáritas. As diretrizes restantes, que não entraram em consenso para homologação, serão discutidas em nova audiência, marcada para o dia 16 de março.
Descaso Desde abril de 2017, os moradores de Paracatu de Baixo reclamam do empoçamento que se forma em frente a Capela de Santo Antônio, localizada na área atingida. Além disso, a praça e o muro da igreja também estão sofrendo com a falta de cuidados por parte da Fundação Renova/Samarco. No domingo, 25 de fevereiro, alguns moradores fotografaram o espaço e encaminharam novamente a reivindicação para a fundação/empresa. Agora, aguardam, preocupados com o período de chuvas, uma solução efetiva para que a proteção dos bens da comunidade seja feita.
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O que é lazer para nós A perda dos espaços de lazer nas comunidades atingidas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo ocasionou a privação das diversas formas de distração dos seus moradores. Os lugares de descanso, de folia, de comemorações, de brincadeiras estão na memória e nas fotos de quem viveu esses momentos. Nesta matéria, trazemos depoimentos de alguns atingidos que nos deixam claro a importância de se pensar a reconstrução do lazer nas futuras comunidades, e também de revisar os programas provisórios de lazer que são oferecidos pela Fundação Renova/Samarco. por Cátia Aparecida da Silva, Luzia Queiroz, Marcos Manoel Muniz, Raiane de Oliveira com o apoio de Wandeir Campos
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Isso para mim era lazer “Quando era criança e estudava em Bento, tinha a praça que jogávamos “pelada”. Só podíamos jogar depois de fazer as obrigações de casa e de ajudar os pais no trabalho da roça. O dedo chegava a ficar esfolado de jogar futebol descalço. Mas aí me tornei adulto e ficou difícil, porque trabalhava de turno e só tinha tempo para jogar no campo, quando tinha folga aos domingos. Aos sábados depois da missa, sempre ficávamos conversando na porta da igreja, isso para mim era lazer. Nas festas religiosas todos usavam a Praça São Bento para diversão com os amigos e familiares. Antes do rompimento da barragem era assim. Não participo de nenhum programa que a Renova/ Samarco oferece porque não é a mesma coisa. Quando Bento for reconstruído, espero que eles façam dessas áreas melhores do que as que tínhamos lá em Bento Rodrigues.” Marcos Manoel Muniz, morador de Bento Rodrigues
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Como ter isso de volta? “Morava em Paracatu de Baixo desde que nasci. Era tão gostoso o lazer lá. Chegava umas cinco horas da tarde reunia um tanto de gente para jogar bola e as mães Do Carmo, Isolina e a minha mãe ficavam gritando a gente. Nos sábados e domingos, a nossa turminha sempre fazia um churrasquinho no Carlim, no Jairinho ou no Banana. Tínhamos nossa liberdade! A rua era nossa e ficávamos até tarde nela. Esquentávamos com o fogo na época de frio. Pegávamos bambu. Chegava época de calor e nós íamos para a cachoeira. Hoje se sentimos calor, bebemos água, porque não tem mais onde ir. Brincávamos de pique-esconde e polícia-ladrão à noite. Mexíamos com Duquinha e Nicanor. Era todo mundo conhecido. Éramos unidos. Hoje não, o meu povo de Paracatu está distante. Não tem lazer para os adultos e nem diversão para as crianças. As mães, antes, sabiam onde seus filhos estavam: no campo ou na rua. Em Mariana (sede) é complicado, nós temos que deixar os nossos filhos dentro de casa.” Raiane Rosa de Oliveira, moradora de Paracatu de Baixo
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O meu lazer era “Lazer pra mim era sinônimo de liberdade. Me sentia livre vendo um jogo no campo de futebol ou mesmo um jogo de futsal na quadra. Era sair com as minhas amigas e perder a noção da hora. Era sair sozinha e minha mãe ficar despreocupada, porque ela sabia como era o lugar onde a gente morava. Era ir na cachoeira mesmo tendo medo, mas sabendo que as pessoas que estavam lá jamais deixariam algo me acontecer. Era ir pra casa das minhas amigas a hora que eu quisesse, sem me preocupar se tenho que pegar ônibus ou se dá pra ir a pé, pois a distância era a menor possível. Era sentar na rua da minha casa e ficar horas conversando, até com as pessoas mais velhas, que contavam histórias antigas pra nós que éramos mais novos. Era acender uma fogueira no caminho em época de frio e ficar com a turma da rua até tarde conversando. Hoje saio com as minhas amigas raramente, conversamos mais por telefone. Não participo dos programas da Renova/Samarco, mas acho importante para tentar juntar a galera. Sei que é difícil.” Cátia Aparecida da Silva, moradora de Paracatu de Baixo
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Arte: Miriã Bonifácio
“Era na água santa” Por Andreia Sales, Marinalda Muniz e Genival Pascoal Com o apoio de Miriã Bonifácio
Bem na beira da estrada e subindo um pouco, no meio da mata, havia duas lagoas. Uma menor, que a gente chamava de “poço”, e a outra, “lagoa santa”, que era formada pelas águas que vinham das nascentes. A gente chamava de lagoa santa por causa do que contam, que lá existia uma igreja que afundou. No meio dessa água, tinha umas plantas verdes, que boiavam, e, às vezes, escutávamos um barulho, do tipo quando você joga a pedra na água e ela desce para o fundo. Fascinante! Tinha gente que dizia que era mal assombrada. Nessas lendas da água santa, até contavam que ela fervia. Sabe quando a água ferve e dá bolhas? Quanto à questão da igreja, ninguém sabe se é verdade. Seu Filomeno e alguns amigos, quando estavam ajudando no trabalho do diagnóstico sobre o patrimônio das comunidades atingidas, disseram que nem os pais dele sabiam se isso de ter uma igreja ali era certeza mesmo. Mas, depois, nesse mesmo relatório, conseguiram descobrir que, pelo levantamento, estava faltando uma capela. Usávamos o poço para nadar, e as pessoas que moravam no "cascalho" (à beira rio) também iam lavar roupa. Aos domingos, quando tinha futebol, o pessoal até ia beber daquela água. Se ela era santa, no sentido milagroso do termo, eu acho que era. Ela reunia as pessoas do Bento. De alguma forma, a água pura juntava a gente. Quem era de cima, quem era de baixo. E também tinha música lá, dos sons de carros, dos cantores e cantoras de beira de lagoa. Era um ritmo, da água, do som, era o nosso ritmo. Então é isso, a "água santa" é apenas um dos tantos lugares importantes, e com muita história para nós, que não vão poder ser reconstruídos por ninguém. Este texto é para deixar registrado que, em Bento Rodrigues, existiu um lugar chamado água santa, e que ele era útil para gente. Ao redor daquele mato que crescia alto nas pontas da lagoa, o nosso povo também crescia. Isso, nós nunca vamos esquecer.
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Foto: Wandeir Campos
Benzedeiras da alma, corpo e coração Nas comunidades atingidas, a benzedura era uma prática comum exercida, em sua maioria, pelas mulheres. Através da fé e da conexão com a natureza, elas, que nasceram com o dom da cura, eram procuradas frequentemente por amigos, familiares e até por quem vinha de “fora”. Após o rompimento de Fundão, as benzedeiras atingidas encontram dificuldades para manterem vivo esse costume. Por Diomar Melo (Dona Doca), Maria do Carmo e Lourdemira Ferreira (Dona Lourdes) Com o apoio de Amanda Gonçalves e Daniela Felix
“É reportagem? Cadê o papel pra vocês escreverem? Tem que ter muita fé, viu? Tanto quem benze, quanto quem recebe a oração. Já curei espinhela caída e ventre virado, já cosi joelho.Tem gente até de São Paulo me procurando. Minhas filhas e as amigas delas me ligam de lá, e eu ensino a fazer alguns chás, intercedo por elas.” Dona Lourdes, moradora de Barra Longa Na cidade de Barra Longa, Dona Lourdes preserva uma tradição. Através de plantas medicinais e orações, ajuda a curar crianças, adultos e idosos que a procuram. Aprendeu os ofícios da benzedura aos 30 anos, com uma “dona lá de Sem Peixe”. Hoje, aos 87 anos, ainda exerce a atividade que, segundo ela, é a mesma coisa que reza. A devoção de Dona Lourdes pode ser notada pela presença de imagens de santos em todos os cômodos de sua casa. Em seu quarto, há um altar com a Nossa Senhora, o São Judas Tadeu, a Santa Terezinha e o Menino Jesus, além de um quadro do Divino Pai Eterno, a quem confiou o parto de seu 11º filho. “Tive o Milton sozinha, sem a ajuda de ninguém. Prometi pro Divino que, se o bebê viesse com saúde, costuraria uma roupa pra alguma família sem condições de comprar vestes pros filhos.” Dona Lourdes, moradora de Barra Longa Ela se preocupa em passar seus conhecimentos adiante. Viu que a lama de rejeitos destruiu o centro de sua cidade e contaminou o rio. Assim, ensinou uma colega a benzer, porque “se os velhos morrem, as pessoas que ficam têm que saber como fazer pra ajudar”.
Essa preocupação também é compartilhada por Dona Doca e por Maria do Carmo, moradoras de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo, que, devido ao rompimento de Fundão, não benzem como antigamente. Contra “mau olho”, “cobreiro”, “destroncado” e pra curar “sentimento”. Dona Doca, 89, relembra os tempos de benzeção com a ajuda de sua filha, Keila. Acredita em Deus e é devota de Nossa Senhora. Começou a benzer aos 23, após o falecimento do marido Joel, que também era benzedor. Em Bento, sua casa vivia “cheia dos povo e das crianças”. Usava brasa, talo de mamona, crucifixo e água para curar pessoas da comunidade e de outros lugares. Desde que teve que se mudar para a sede de Mariana, Dona Doca não benze mais. O antigo crucifixo do marido e o caderninho com os ensinamentos se perderam na lama. Por causa da distância, já não vê mais seus vizinhos e amigos com frequência. Repete, três ou quatro vezes, que a vida era outra, que, “agora, a gente fica diferente”. Às vezes, sente vontade de dormir para esquecer o que passou, mas se conforta por, ao longo do tempo, ter ajudado tantas pessoas. “O que eu podia fazer pras minhas crianças e pro povo, eu fazia.” Dona Doca, moradora de Bento Rodrigues Em Paracatu de Baixo, a benzedeira Maria do Carmo, 56 anos, trabalhava na roça, cuidava da casa e das criações durante o dia. À noite, ia para Águas Claras, onde concluiu o terceiro ano e obteve o certificado do Ensino Médio. Apesar de gostar de estudar, Ma-
ria não acredita que a ciência cura tudo. Ela conta que a benzedura é um dom, e que não existe uma única forma de benzer, pois cada benzedeira tem sua própria reza. As dela, aprendeu “de cabeça”, com o tio. Apegada à Nossa Senhora de Fátima, Maria passa grande parte do tempo dentro da moradia provisória em Mariana. Acompanha a missa na TV Aparecida e cuida de suas plantinhas, amontoadas no chão e na sacada do apartamento - diferente de Paracatu, onde frequentava a Capela de Santo Antônio e tinha uma horta abundante. Maria conta que, desde o rompimento de Fundão, nunca mais benzeu ninguém de Paracatu. Sem as folhas de assa-peixe no quintal, a brasa de fogão, a lenha e o caderno onde anotava as orações, ficou difícil. Mas ela não deixa que isso a impeça de ajudar os novos vizinhos em Mariana. “Se aparecer alguém procurando, dou um jeito. Ainda guardo tudo aqui na memória.” Maria do Carmo, moradora de Paracatu Lourdes, Doca e Maria são símbolos de sabedoria e resistência da mulher. Carregam consigo saberes passados de geração a geração. Antes, ocupavam um lugar de referência em suas comunidades. Agora, refletem as particularidades dos territórios atingidos, e nos mostram como a tragédia-crime provocada pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton segue implicando na mudança dos laços comunitários e no modo de vida dos atingidos e atingidas.
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Fotos: Daniela Felix e Wandeir Campos
Dicionário da Benzedura Espinhela caída: quando você fica com o estômago doendo, indisposto. Ventre virado: quando a criança toma um susto e tem diarreia. Coser joelho: benzedura para nervo “destroncado”, torcido ou machucado. Cobreiro: doença de pele. Mau olho: mau-olhado, olho gordo, quando alguém é alvo de inveja. Doente de sentimento: quando a pessoa tá magra e afunda a nuca, perde o apetite, toma remédio e não adianta; fica “desandado”. Dicas da Dona Lourdes Arruda: para banhar olho inflamado Hortelã: para diminuir a febre Sálvia: para quando estiver agitado Oração para ventre virado: “Padre sobe ao altar, veste e reveste. Vira o Santíssimo pro povo. Como São Clemente não falha, nem mente, esse ventre virado não vai adiante.” Repetir três vezes. Dicas da Maria Folha de assa-peixe: para curar cobreiro Oração para dor de dente: “São Pedro estava sentado, Jesus perguntou: - Que tem, Pedro? Dor de dente, senhor. Se for inflamado, sara; se nevralgia, sara; se for dor, melhora?” Repetir a última frase três vezes.
Na foto, Dona Doca. Acima, Dona Lourdes.
Dicas da Dona Doca Para curar sentimento: mergulhar o crucifixo na água, antes do sol se pôr. Banhar a pessoa três vezes.
Imagens e plantas de Maria do Carmo.
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Para uma indenização justa, um processo justo O cadastro começou a ser aplicado logo depois do rompimento, em dezembro de 2015. No início, a Samarco usou os próprios funcionários para cadastrar os moradores. Para vocês terem ideia, tinha até mecânico fazendo aplicação. No final de 2016, a Renova/Synergia veio com um cadastro um pouco mais completo, mas ele não tinha nada a ver com a realidade do atingido de Barra Longa e estava cheio de pegadinhas. Por exemplo, primeiro, eles perguntavam quanto era o consumo de água e luz em 2016 e, depois, vinham questionando quanto a gente pagava em 2015. É como se eles quisessem fazer uma média. Nós tentamos, via Ministério Público, fazer com que a aplicação do cadastro fosse interrompida, até termos o auxílio de uma assessoria técnica que nos ajudaria avaliar o formulário e exigir que ele fosse reformulado. Mas a empresa não respeitou o nosso pedido. Os moradores ficaram com medo de não responder as perguntas e perderem o direito a indenização. Depois que a assessoria da AEDAS chegou, em 28 de agosto de 2017, ela está com a demanda de revisar o cadastro. Porém, a fundação/ empresa já começou com o processo do Programa de Indenização Mediada (PIM), antes que essa análise esteja concluída. Antes de começar a fazer as propostas de indenização, a Fundação Renova/Samarco apresentou a matriz de danos, mas os atingidos não tiveram efetiva participação na construção dela. Uma coisa que identifiquei que estava faltando lá, só para dar alguns exemplos, foi a questão da saúde e dos trabalhadores que cortavam cana - eles não foram reconhecidos. Ainda ficaram faltando muitas coisas. Diante disso, o cadastro que foi planejado para validar as indenizações, agora, está servindo para fazer injustiça. Simone Silva, moradora de Barra Longa
Em Barra Longa, propostas de indenização estão sendo apresentadas pela Fundação Renova/Samarco através do Programa de Indenização Mediada (PIM). Essas ofertas revelam as falhas do processo de reparação feito na cidade, e que começaram já na aplicação do cadastro para levantamento das perdas e danos. A família de Dorinha, Bilu e Epifânio são um exemplo do modo como a fundação/empresa conduz, de maneira desrespeitosa, suas responsabilidades e obrigações. Por Air Martins da Costa (Bilu), João Epifânio de Macedo, Maria Macedo Costa (Dorinha), Sérgio Papagaio e Simone Silva Com apoio de Silmara Filgueiras
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Fotos: Daniela felix
A casa de Bilu, Dorinha e Epifânio, moradores de Guerra, subdistrito de Barra Longa, não foi atingida pela lama, mas o quintal onde eles criavam os animais, cultivavam as plantações e as árvores frutíferas foi levado pelo rompimento da Barragem de Fundão. Lá, o terreno é banhado pelas águas do Rio Gualaxo, num ponto onde o som da cachoeira tem presença forte e constante, transmitindo uma beleza que, às vezes, nos faz esquecer, por um momento, que um rastro de destruição foi deixado ali pela Samarco. Agora, esse espaço está sendo reerguido por eles mesmos. “Antes da lama da Samarco, eu colhia uns 90 quilos de feijão. Tinha de tudo: milho, abóbora, quiabo, mandioca, inhame, batata, capineira, limão, abacate, goiaba, manga, banana. Tinha horta, galinha, pato, minhas ferramentas de trabalho. Tudo foi embora, o galinheiro, a lenha, o esterco e as várias coisas de usar em casa, como mangueira e bacia. Agora, a terra não dá mais nada. Eu até plantei o feijão igual plantei o milho. O feijão não deu nada. O milho deu umas espigas só.” Bilu, morador de Barra Longa A proposta de indenização “Tudo o que lembrava que tinha perdido coloquei na folha. No dia 5 de fevereiro de 2018, eles [Fundação Renova] me chamaram pra ir lá em Barra Longa e pediram pra eu levar duas testemunhas. Apresentaram a proposta de indenização. Pediram para confirmar as coisas que estavam no cadastro. Não explicaram direito as coisas que estão na proposta de indenização. A conta do papel é a que eles fizeram lá, sem estar comigo, sem nada. Disse o homem que iam fazer o acerto e, depois, iam cortar o cartão, lá pra março ou abril de 2018. Aí eu fiquei calado porque eu não sei nada. A gente não entende nada disso.” Bilu, morador de Barra Longa
“Quando a funcionária da Fundação Renova esteve aqui, falei pra ela de um bacião grandão de aço que comprei pra torcer coberta. Era grande que qualquer um tomava banho nela. Como eles não têm limite, colocaram na proposta de indenização que era bacia de plástico. E ainda ficou faltando coisas: o pasto do cavalo, a passarela que tinha pra ir na horta, o buraco que se abriu depois da lama e desviou o curso da água. Agora o buraco tá vindo pro lado aqui de casa.” Dorinha, moradora de Barra Longa Porque a proposta de indenização é insuficiente? Na proposta de indenização feita pela Fundação Renova para Dorinha, Bilu e Epifânio, o preço de um pé de limão - que foi arrancado e levado pela lama no início do período produtivo - custa R$ 4,37. O total que a família receberia pelos pés de limão é de R$ 8,74. Mas a conta está errada. Quem vai pagar pelo tempo que o pé deixou de produzir? Além disso, é um direito do atingido ser indenizado também até o início da produtividade da nova muda. E se a terra não produzir mais, com que dinheiro eles vão sobreviver? Com R$ 238,00 eles vão comprar feijão para o resto da vida? A proposta final, de R$ 29.193,55, não foi aceita pela família. É mais uma barragem que se rompe sob nossas cabeças e dessa vez o nome da barragem é PIM. Em conversa com o Senhor Bilu e sua esposa Dorinha pude constatar o tamanho da injustiça que estava para ser cometida contra eles pela empresa. Com lágrimas nos olhos, Bilu fala da cachoeira que existe ao lado da sua casa: ‘antes da lama ‘cantava’ e hoje parece ‘chorar’’. Este é o relato de um lavrador que demonstra seu amor pela natureza, hoje fragilizada pelo crime da Samarco. A família que não teve a oportunidade de estudar e assina com o polegar, deixam sua impressão digital e a expressão da tristeza que essa lama causou. Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa
Foto:silmara filgueiras
Assinatura de Bilu na ata da recusa da proposta de indenização.
Dorinha e Bilu contam que alguns patos morreram depois de beber a água contaminada pelo rejeito.
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Direito de entender "Os danos que podem ser indenizados"
Por Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça - 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana / MG
Do ponto de vista jurídico, os prejuízos às vítimas de toda a Bacia do Rio Doce pelo desastre da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco, traduzem-se em danos, que devem ser reparados pelo causador, nos termos do artigo 927 do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Os danos, porém, não são todos iguais, havendo no direito nacional uma importante classificação que auxilia na identificação dos prejuízos. Os danos patrimoniais ou materiais atingem os bens corpóreos das vítimas. Segundo o autor Flávio Tartuce, esses danos dividem-se em duas espécies: (a) Danos emergentes ou danos positivos - “o que efetivamente se perdeu. Como exemplo típico, pode ser citado o estrago do automóvel, no caso de um acidente de trânsito. [...]”; (b) Lucros cessantes ou danos negativos - “o que razoavelmente se deixou de lucrar. No caso de acidente de trânsito, poderá pleitear lucros cessantes o taxista, que deixou de receber valores com tal evento, fazendo-se o cálculo dos lucros cessantes de acordo com a tabela fornecida pelo sindicato da classe [...]”. Já os danos morais ou imateriais afetam os direitos da
personalidade, ou seja, os direitos que asseguram a dignidade da pessoa humana, como a liberdade, a intimidade, a privacidade, a honra, a tranquilidade e outros atributos inerentes ao ser humano. Por certo, a destruição da moradia é um típico caso de dano moral, que se soma ao dano patrimonial, porque as pessoas perderam sobretudo a tranquilidade do lar que desfrutavam, gerando sofrimento e tristeza intensos. Há ainda um outro tipo de dano, os chamados danos estéticos. São aqueles que provocam uma deterioração na aparência física da pessoa, causando um prejuízo distinto do dano moral como, por exemplo, uma cicatriz na face. O dano pela perda de uma chance ocorre quando o ofendido perde uma oportunidade. O caso mais famoso já julgado aconteceu em virtude do programa televisivo “Show do Milhão”, em que a participante chegou à pergunta do milhão e todas as respostas apresentadas na questão estavam erradas. Nesse caso, embora a participante não tenha respondido, ela perdeu a oportunidade sequer de tentar, o que levou o Superior Tribunal de Justiça a condenar o SBT a indenizar a participante pela “perda de uma chance”.
O mesmo raciocínio vem sendo adotado para o dano ao projeto de vida. Esse dano decorre da abrupta interrupção de objetivos de vida que estavam em andamento como, por exemplo, uma pessoa que já tinha adquirido um terreno para construir uma casa, tendo a propriedade ficado imprestável após ser coberta pela lama. Além desses danos, se destaca o dano pela perda do tempo útil, comumente aplicado nas relações de consumo. Quando para resolver um problema causado pelo fornecedor o consumidor despende excessivamente seu tempo, que poderia ser usado para outras finalidades, há um desperdício de tempo do consumidor, que deve ser indenizado. Tal hipótese também pode ser aplicada às incontáveis reuniões e assembleias de que participam os atingidos, em virtude das delongas da Samarco e da Fundação Renova. Diante disso, o formulário do cadastro de atingidos que está em andamento visa relacionar todos esses danos de natureza individual sofridos, para possibilitar posteriormente a reparação e ressarcimento. Importante ressaltar que a apuração dos danos individuais não exclui a reparação pelos danos coletivos, que serão examinados em outra oportunidade.
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Foto: Daniela felix
Papo de cumadres: quanto custa as minhas coisas que a lama estragou?
Consebida e Clemilda se sentem roubadas com o valor da indenização proposta pela Renova para sanar a situação dos atingidos pela barragem de Fundão. Por Sérgio Papagaio
Consebida diz: -Cumadre, veja só que tentação, já vem de nouvo a Renova com a tár indenização. - E querem pagar mixaria, sem nus perguntá o que os nossos trem valia. - Cê viu que mardição, oito reá por um pé de limão, duzentus e pouco por todo tempo que a terra ia dá fêjão. - Dá pra acreditá não. - Cumadre, minha fia de Deus, o quilu de limão lá nu mercadu tava sete reá e eles querenu pagá por um pé que nunca mais vai dá, apenas o valô de um quilu e só mais um reá. - Pois agora é eu qui vô falá, pru feijão vortá a dá, vai gastá da natureza muita vontade de a terra cunsertá, dispois que a Samarcu trouxe o deserto pru ladu de cá. - Ês tão querenu pagá duzentus e pouco por todu esse tempu sem colhê fejão? - É issu u mais sufridu, todu dia nós é atingidu. - Cê passava sempre lém casa, fala veudade, num isconde não, argum dia cê viu uma praca vendê este pé de limão? Ou na roça de fejão, ô em quarquer prantação? - U que me faz muito már, parece que é outra barrage a istorá, é eles botanu preçu nu meu pomar. Foi quem qui falô qui é este u valô? - Cumadre, veja comu ês nus faz senti dor, quem tá botanu u preçu é quem u crime causô, e diz que prá pô este preçu a justiça amparô. - Cuju que tem uma coisa pur conta, e eu vô falá pro cês, a justiça muitas das vêiz é usada prá se cometê crime dentru da lei. - Issu faiz nóis atingidu outra vêiz.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Março de 2018 Mariana - MG
Foto: flávio ribeiro
Ao lado, a família de Dona Geralda.
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Ser atingida não foi uma opção Por Alcídes Graça, Aparecida Aurélio, Geralda Bartolomeu (Dona Geralda), José Ignácio, Maria Martir e Marlene Agostino Com o apoio de Flávio Ribeiro e Letícia Aleixo
2015 foi um ano bem difícil para a Dona Geralda, se é que não foi o mais difícil desses 97 anos que já se passaram em sua vida. Foi naquele ano, por exemplo, em meados de agosto, que sua saúde ficou mais frágil ao sofrer um acidente vascular cerebral (AVC), uma doença que, às vezes, prejudica a sua fala, a compreensão que tem das coisas e seu próprio andar. Foi também em 2015 que, por conta da saúde dela e da filha, Maria Silvestre, 71 anos, Dona Geralda teve que se mudar da comunidade de Campinas, em Mariana, para uma moradia alugada na sede da cidade. Deixou para trás a casa e cada canto que construiu com a família, mas as lembranças continuaran firmes e fortes. Tão fortes que, ainda hoje, após dois anos de tantas mudanças, pediu, algumas vezes, para voltar. Voltar para o lugar que ainda é seu, e que, agora, está marcado pelas consequências de uma tragédia/ crime, desenrolada na mesma semana de sua mudança para Mariana. “Não tem condições de voltar pra lá, mas ela não esquece. Ficava pedindo para voltar [para a casa em Campinas].” Aparecida Aurélio, neta de Dona Geralda Quando retorna para a casa em Campinas, agora em área de risco, onde o filho José Ignácio, 78, continua vivendo por conta de
seus animais, o que vê é o quintal atingido pela lama, muita poeira ao vento, falta de água e um vazio onde deveria estar uma passarela, que sequer reconstruíram. São essas condições que impedem, mesmo após um possível fim do tratamento, que Dona Geralda volte a morar nesse lugar, que, agora, se tornou um espaço de ausências deixadas pelos acontecimentos interrompidos. Após tantas mudanças, de novo, Dona Geralda não teve nem o direito de ser reconhecida como deveria, como uma atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão. Não tem suporte para o pagamento do aluguel, seu filho recebeu o cartão reparação quase um ano após a tragédia, e ainda teve negada, pela Fundação Renova/Samarco, parte da indenização pelos danos. Dizem, como se ela pudesse ter escolhido, que Dona Geralda já não morava mais naquela casa, embora a residência ainda pertença à ela. Hoje, 27 meses depois, a filha Maria Silvestre, o genro Alcídes Graça e as netas Aparecida Aurélio e Maria Martir se desdobram para pagar um aluguel no bairro Alto do Rosário, distante do centro, e que dificulta a mobilidade de toda a família. Para a Renova/ Samarco, Dona Geralda talvez seja apenas mais uma pessoa que não se encaixe dentro de critérios limitados estabelecidos pela própria empresa, e que costumam considerar,
apenas, se houve “deslocamento físico” de um atingido e se teve “comprometimento de renda”. Mas, para quem cuida de Dona Geralda e a vê segurando uma boneca no colo, como quem não abdica de sua força protetora, seu caso é mais do que esses critérios. É um emaranhado de acontecimentos complexos, de alguém que vive para ser o que de fato sempre foi: uma fortaleza em meio às mudanças, a “mãedindinha” da família. Quais são os meus direitos? Segundo o Ministério Público, no caso de Dona Geralda, a Renova/Samarco deveria garantir o direito ao pagamento de aluguel retroativo; a oferta de um local adequado para a criação dos animais de Seu José Ignácio; e o direito à antecipação de indenização.Caso você esteja em uma situação semelhante à de Dona Geralda, o Ministério Público recomenda que seja aberta uma solicitação na Fundação Renova/Samarco. Caso não haja solução dos problemas, os atingidos podem agendar um atendimento com a assistência social, por meio do telefone (31) 99218 0234, ou no escritório da Cáritas, na rua Monsenhor Horta, nº 76, no bairro Rosário.
APARASIRENE NÃO ESQUECER
Março de 2018 Mariana - MG
Foto: Miriã Bonifácio
Cortam-se os fios, ficam os afetos
No dia 14 de janeiro de 2018, os moradores de Bento Rodrigues (da turma Loucos pelo Bento) perceberam o corte nos fios dos postes que forneciam rede elétrica para a parte alta da comunidade, mais especificamente para o entorno da casa de Teresinha - umas das residências que permaneceu de pé após o rompimento da barragem e onde eles costumam ficar aos finais de semana. Os fios foram enrolados nos postes, ou seja, nada foi realmente subtraído, apenas romperam os pontos estratégicos que serviam para fazer a ligação. Um boletim de ocorrência foi registrado e uma solicitação de religação foi encaminhada para a empresa responsável pela manutenção de energia do município. Como resposta, os moradores foram informados de que para que o dano Será que estão se senseja reparado, será preciso da “autorização” tindo ameaçados pela nossa por parte da Defesa Civil de Mariana, da presença aqui? Será que o nosso Prefeitura Municipal, da Samarco e da direito de ir, vir e permanecer os Fundação Renova, nesta ordem. amedronta? Foi a mando de quem? A quem interessa subir em um poste de Até o momento, ainda falta luz. oito metros de altura para cortar a fonte de energia que oferece pouca luz para uma casa de esquina, com janelas recolocadas à mão, portas de cortina e telhado metade lona, metade telha? Para que servem alguns metros de fio sem valor comercial? Não temos mais o direito de ter luz aqui? Por quê? Por que a Fundação Renova/Samarco precisa autorizar a religação da nossa energia? Essas terras são delas ou esse espaço ainda é nosso? É porque somos aqueles que sobreviveram e fazemos parte desse milagre que é ainda estar aqui? É porque, como foi naquele dia 5, se acontecer algo de novo, a gente sabe que caminho vamos tomar, para onde devemos correr, mesmo sem preparo nenhum? É por isso? É porque, com a energia, a gente teria um pouco mais de conforto na comunidade, dependeríamos menos da empresa para realizar as nossas festas religiosas e não precisaríamos dela para mais nada? É por causa dessa nossa felicidade em estar em Bento Rodrigues, e aqui ser o lugar que a gente gosta e se sente bem, mesmo depois de tudo o que aconteceu? É pela gente, mesmo com o reassentamento, querer frequentar o que é nosso? É porque a gente ainda resiste? A moradia deve ser o território que propicia acesso aos direitos, e não o contrário. Mais do que ter casa própria ou viver de aluguel, o que as pessoas necessitam é da segurança de um lar e dos afetos que ele proporciona. Afetos capazes de transcender a ideia de lugar como pontos fixos no chão (muito mais do que paredes e estruturas), e revelar quem a gente é, e o que ainda podemos ser. Permanecer também é escolher o próprio destino. Por Cristiano Sales, Mônica dos Santos e Simária Quintão Com o apoio de Genival Pascoal, Maria Ludmilla Silva e Miriã Bonifácio
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Março de 2018 Mariana - MG
Foto: Tainara Torres
Nós, por uma saúde digna A falta de informação e o número crescente de reclamações sobre os problemas de saúde logo após o rompimento da Barragem de Fundão fizeram com que, em pouco tempo, membros do Movimento Atingidos por Barragens (MAB), em união com os moradores de Barra Longa, dessem início ao “Coletivo da Saúde" na cidade. Desde então, o objetivo da equipe que compõe o coletivo é informar sobre as questões referentes à saúde física e mental dos atingidos, e também conscientizá-los e politizá-los sobre o tema. Por Odete Cassiano e Rosana Aparecida Pinto Com o apoio da Assessoria Técnica AEDAS e Tainara Torres
O número crescente de atingidos que tiveram que iniciar ou intensificar tratamentos relativos à saúde, com a chegada do rejeito de minério, mudou a rotina de toda comunidade. O coletivo surgiu como um modo de pensar a saúde dos barralonguenses e de discutir as ações do Sistema Único de Saúde (SUS) na região. Na comunidade, a atuação do coletivo se dá a partir das reivindicações feitas dentro dos grupos de base - que são fundamentais na organização dos atingidos e responsáveis por construir, juntos, reflexões sobre a realidade de cada região e, principalmente, por pautar as demandas feitas pelos atingidos e atingidas. Os grupos de base são equipes formadas por, aproximadamente, 15 famílias e, dentro de cada uma dessas equipes, os atingidos têm um morador como seu representante para fazer parte das reuniões e levar as demandas até o coletivo. Atu-
almente, 10 membros integram o grupo na cidade e as reuniões são feitas a cada 15 dias. A falta de informação e divulgação dos dados por parte dos órgãos públicos de saúde, como Secretaria Municipal, Estadual e Ministério da Saúde, impedem, a curto prazo, que o trabalho do coletivo tenha uma abrangência ainda maior na cidade. Em busca disso, a equipe se uniu na elaboração de pedidos específicos para a saúde, que constam dentro da Pauta de Reivindicações dos Atingidos e Atingidas de Barra Longa, elaborada junto à Comissão dos Atingidos da cidade e Assessoria Técnica da AEDAS. “Fizemos um mapeamento através do coletivo, porque não temos dados oficiais, mas temos pessoas que estão adoecendo. Elaboramos um levantamento dos casos mais graves para definirmos quais estratégias vão ser tomadas. Tudo também no sentido de fortalecer o SUS, para
não ficar um trabalho paralelo, como a Renova quer fazer.” Aline Pacheco e Isabel Gonçalves - Assessoras técnicas da AEDAS e membros do Coletivo da Saúde No documento, o coletivo requer, dentre outras solicitações, acesso aos dados relativos à saúde de antes e depois do rompimento da Barragem de Fundão, divulgação dos estudos toxicológicos sobre água, ar, plantas e peixes do Rio Gualaxo e do Rio do Carmo, e suporte financeiro da Renova/Samarco para a gestão dos serviços de saúde, de acordo com a demanda da comunidade. “O que a gente tem percebido dentro do coletivo é isso, a gente não sabe nem a proporção dos problemas relacionados à saúde, ainda é um enigma. Na cidade em que o rejeito faz parte do nosso cotidiano - está no ar, na água, na terra em que pisamos -, a gente não sabe o que isso vai
causar. Dois anos depois, ainda não conseguiram fazer um estudo [sobre as consequências], e as pessoas seguem adoecendo nesse meio tempo.” Aline Pacheco - Assessora técnica e membro do Coletivo da Saúde O trabalho do coletivo é voltado para a saúde da cidade, algo que vai além do rompimento da barragem, mas que é impulsionado pela quantidade de casos e pessoas com necessidade de atendimento e que foram atingidas direta e indiretamente pelo crime. Sentir na pele Há mais de dois anos, a vida de Odete tem sido bem diferente. Dela, e de grande parte dos mais de 5 mil moradores da cidade de Barra Longa. Hoje, com o braço engessado, com os comprimidos que precisa tomar e as dores a mais, Odete sabe que a saúde na cidade não é mais a
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Março de 2018 Mariana - MG
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Foto: Isabel Gonçalves/Assessoria Técnica AEDAS
O coletivo é aberto a participação de todos da comunidade rural e urbana de Barra Longa que tenham interesse em discutir melhorias para a saúde dos moradores.
Reivindicações mesma, menos ainda as formas de ter acesso a ela. Só da infecção no braço foram mais de 10 meses tratando. Além dela, os pais, de 89 anos, e o filho precisaram também fazer uso de remédios contínuos e ainda lidar com a falta de informação. “Eu estou sob grande quantidade de medicamento antidepressivo. Medicação essa que a gente não tem acesso nem pela prefeitura, nem pelo SUS. Aqui em casa, a gente tem que cortar gastos, procurar coisas mais baratas para alimentação, a cidade toda tá deprimida e a farmácia da prefeitura não tem remédio para depressão. A prefeitura empurra, diz que a Samarco que deveria nos fornecer a medicação, a Samarco fala que passa o dinheiro pra prefeitura e ela que tem que nos dar. Nisso, a gente fica sem. E os remédios são caros.” Odete Cassiano, moradora de Barra Longa As dificuldades de se ter informações precisas sobre como ter acesso aos medicamentos faz com que muitos moradores fiquem confusos sobre como podem agir quando precisam dos remédios, e também em dúvida sobre quem devem procurar quando necessitam desse e de outros tipos de atendimento. “Às vezes, a gente vai na prefeitura e, na prefeitura, mandam a gente pra Renova, aí mandam na prefeitura de novo. Ficam empurrando. Eu tomava um remédio, agora, eu tomo nove, e, se eu não tomar, não sou ninguém. Minha família que me ajuda a comprar, porque, aqui em casa, ou a gente come ou toma remédio. A empresa chegou a prometer os remédios pra mim, mas não deram. Entreguei meus documentos [para Renova/Samarco], laudo médico, e os papéis sumiram.” Rosana Aparecida Pinto, moradora de Barra Longa
Algumas solicitações destinadas às empresas responsáveis pelo crime, ao Poder Público e ao Ministério Público: 1- Realização e divulgação de estudos sistemáticos e de monitoramento a curto, médio e longo prazo, sobre as consequências da exposição diária ao rejeito no município de Barra Longa. 2- Estudos confiáveis, autônomos e independentes sobre os alimentos que são produzidos e consumidos na região atingida. 3- Realização, por parte da Renova/Samarco, junto com atingidos e atingidas, de estudos sobre a melhor forma de diminuir a poeira no município de Barra Longa e apresentação para a comunidade. 4- Fortalecimento do Conselho Municipal de Saúde e criação de Conselhos Locais de Saúde (em comunidades do município) para a Participação Popular no Planejamento da Saúde, com a elaboração democrática das ações, dos serviços, projetos e programas, e no processo de contratação de profissionais. 5- Reconhecimento da importância das manifestações populares em saúde, através de projetos locais de medicina não convencional baseadas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saúde, como exemplo, suporte financeiro para iniciativas populares de centros de terapias naturais.
EDITORIAL Antes de começar a ler estas palavras, com certeza, você já olhou para a capa que escolhemos para esta edição. Se ainda não o fez, vire o jornal e observe antes de continuar a leitura. Nela, trazemos Bilu e Dorinha, moradores de Guerra, subdistrito de Barra Longa. A naturalidade com a qual eles aparecem nessa fotografia - pés descalços, de chinelos, vestindo roupas que comprovam as marcas do cotidiano vivido na roça - revela também como essa família não se importa de ser o que é: simples. Ao juntar as palavras, os atingidos que viviam entre pés de limão, cachoeira e animais soltos pelo quintal vão relatando o modo como a Fundação Renova/Samarco vem conduzindo o processo de reparação em sua cidade. Ao preencherem o tal cadastro aplicado em Barra Longa, já perceberam que muitos de seus direitos tinham sido violados. Agora, com a proposta de indenização feita pela fundação/empresa, através do Programa de Indenização Mediada (PIM), entendem tal violação (ou melhor, não entendem direito), mas sentem que seguem sendo desrespeitados. E não são só eles. O corte dos fios da “rede elétrica” na parte alta de Bento Rodrigues nos enche de questionamentos. Por que continuam querendo diminuir nossos direitos? Por que querem nos fazer esquecer do lugar de onde viemos e que nos faz tão bem? É em busca de permanecer com nossas lembranças que contamos as histórias das benzedeiras das nossas comunidades, que, por meio da fé e da sabedoria, ajudavam a cuidar do nossos corpos, das nossas almas e dos nossos corações. São elas que apontam para a importância de nos mantermos unidos pela tradição, que, agora, está fragilizada por este desastre-crime. E seguimos nessa ideia de compartilhar nossos momentos juntos ao contarmos sobre a “água Santa”, espaço em que a comunidade do Bento se reunia, e com a diversão interrompida por ouvirem barulhos estranhos que vinham da água, logo começavam a espalhar burburinhos e confabular as melhores lendas sobre o local. Ainda, falamos sobre os nossos lugares de lazer: a rua, a praça, os campos de futebol. Quanta recordação! Tudo isso para dizer que estamos atentos a todas as coisas que acontecem com o nosso povo e em nossas comunidades. Não aceitamos nada menos do que nos foi tirado. Queremos participar de todos os processos que determinam o nosso futuro. Queremos um diálogo esclarecido, pois informação é um direito nosso. Nada disso deveria estar sendo cobrado por nós.