A Sirene - Ed. 31 (Outubro/2018)

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A SIRENE EDIÇÃO ESPECIAL | PARA NÃO ESQUECER Ano 3 - Edição nº 31 - Outubro de 2018 | Distribuição gratuita


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Gesteira e Rio Doce recebem Oficina de Repórteres Por Carolina Coelho, Luísa Campos e Matheus Effgen Com o apoio de Kely Cristina dos Santos (moradora de Gesteira, distrito de Barra Longa) Foto: Carolina Coelho

A Oficina de Repórteres Populares, organizada pelo Jornal A SIRENE, foi realizada em mais duas cidades atingidas. Nos dias 15 e 16 de setembro, os moradores da comunidade de Gesteira, em Barra Longa, receberam a formação. Já em Rio Doce, nos dias 29 e 30 de setembro, alunos e funcionários da Escola Estadual Maria Amélia puderam participar da oficina. O projeto é realizado em parceria com o coletivo MICA e a Brazil Foundation, e tem o objetivo de ampliar o direito à comunicação nos territórios atingidos ao incentivar os participantes a conhecerem e executarem técnicas do Jornalismo. “Achei a oficina muito legal, aprendi várias coisas diferentes. Aprendi a tirar foto, a olhar e a pensar o que posso falar sobre ela. Me ajudou a entender que, quando eu estiver lendo o jornal, devo não só olhar as imagens, mas também o que está escrito.” Cleiton Silva, 15 anos, morador da comunidade de Gesteira “Aqui, na oficina, nós aprendemos que o Jornalismo não é uma coisa que está lá para retratar apenas acidentes e política. Está também para mostrar que existem muitas histórias legais no mundo. Às vezes, até mesmo os problemas podem ser retratados de formas interessantes e cativar as pessoas.” Amanda Borlini, 14 anos, moradora de Rio Doce “Eu gostei muito das oficinas porque mostrou que o Jornalismo não fala apenas sobre coisas ruins. O Jornalismo também é uma maneira de expor diversas opiniões e de contar o que está acontecendo de uma forma bem legal e diferente.” Marcos Junior, 14 anos, morador de Rio Doce

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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Lucimar Aparecida Muniz dos Santos, Manoel Marcos Muniz, Pe. Geraldo Martins, Rafael Drumond, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Francielle de Souza | Editora Audiovisual: Larissa Pinto | Diagramação: Daniela Ebner | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Antonio Junior (Alicate), Brazil Foundation, E. M. Bento Rodrigues e E. M. Paracatu de Baixo, MICA (Coletivo Mídia, Identidade e Comunicação e Arte), Gustavo Nolasco, João Francisco Brittes, Projeito "Sujeitos e Suas Histórias" (UFOP) e Voal Fotografia| Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Lucas de Godoy | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Foto: Wandeir Campos

Papo de cumadres:

a infância no rio Gualaxo

Consebida e Clemilda lembram, com saudades, da intimidade que tinham com o rio nos tempos de criança. por Sérgio Papagaio

- Cumadre, cê lembra quandu nós era criança, as brincadera e u trabalhio no rio de nossa infância? - Intão num lembru? Nois nu rio nadava, pescava e também trabaiava. Cê lembra que eu tinha apenas 10 anu e u tamanhu dus pexe que eu vinha peganu? - Eu num sei se ocê recorda da promessa que nós fizemu, sentadas naquela pedra que nós duas sempre ficava. - Cumade, minina de Deus, então eu num haverá de lembrá o que eu disse: “U meu primeiru fio era ocê que tinha que batizá”. - E eu da mesma forma, continuanu aquela prosa, prumiti pra sinhuria que ocê seria a madrinha de minha primeira fia. - Cumade, me dá tanta agunia de lembrá daquele dia que a lama sem coração levou a pedra que nós sentava, que os nossos fio e netu levava pra brincá nu rio que nois tudu banhava, pescava, e ainda oru tirava pra ajudá tratá da mininada. - Cumadre, eu tinha só nove anu. Pra acudi Lucianu que já ia se afoganu, eu entrei nu rio rezanu, mas a água também foi me levanu. Uma senhora negra com uma roupa azú sarvô eu e Lucianu daquela morte marvada. Quandu cheguei em casa, minha santinha Aparicida tava com a capa toda moiada. - Eu tenhu tanta vontade de vê a mininada sentada na pedra que foi levada com as brincadera e aligria que ainda fazia a gente ser criança hoje em dia. - Eu tenhu sardade de tudu mas minha maió firida é da minha casa tê idu na lama, levandu juntu com tudu minha Senhora Aparicida. Todu 12 de outubru, na festa que pras criança fizemu, num tem a pedra que pela lama foi cumida nem a Senhora Aparicida.


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Mãos da esperança Por alunos da Escolas Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo Com apoio de Wandeir campos

O Direito das Crianças Toda criança no mundo Deve ser bem protegida Contra os rigores do tempo Contra os rigores da vida. Criança tem que ter nome Criança tem que ter lar Ter saúde e não ter fome Ter segurança e estudar. Não é questão de querer Nem questão de concordar Os direitos das crianças Todos têm de respeitar. Tem direito à atenção Direito de não ter medos Direito a livros e a pão Direito de ter brinquedos. Mas criança também tem O direito de sorrir. Correr na beira do mar, Ter lápis de colorir… [Trecho do poema “O Direito das Crianças”, de Ruth Rocha]

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Fotos: Lucas de Godoy/ Voal Fotografia e wanderir campos


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Ilustração: Antonio Junior (Alicate)

Como era ser criança lá Relembrar é preservar a memória coletiva e permitir que outras gerações conheçam nossas histórias. Por isso, no especial desta edição, trazemos relatos dos(as) moradores(as) sobre como era a infância nas comunidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Nelas, crescemos, construímos nossas vidas e criamos nossos filhos. A cada história contada, voltamos no tempo e lembramos as brincadeiras que aprendemos, os costumes que tínhamos e a vida que levávamos.

Por Andreia Sales, Beatriz Helena, Divino dos Passos, José Carlos da Silva, Kelly dos Santos Com apoio de Tainara Torres e Wandeir Campos


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Lá na roça era assim - Nós íamos jogar futebol lá embaixo no campo, né, Divino? - Tinha uns 60 menino: 30 de um lado, 30 pro outro, Zé. - O que eu gostava era futebol. Único divertimento que tinha. - Mas não era todo dia, não. Tinha que trabalhar e estudar também. “Cê vai pra escola amanhã?”, o pai perguntava “Vou!” “Chegou da aula e não capinou? Só entra em casa se capinar”, o pai falava. - Com sete anos, eu tava na pedra, lá em cima, com a enxada. - Antigamente, era bom. Todo mundo era saudável. Tinha valor e não sabia, né? Tem diferença do que é plantado na roça e do que é plantado na cidade. Por quê? Por conta do agrotóxico. - Tinha feijão, cuscuz, fubá que a gente moía na hora, rapadura. A vida era difícil na nossa época, mas, se for olhar pela alimentação, nós tínhamos o melhor. O que se come hoje é “porcariada”. - A nossa comida era diferente da comida dos jovens de hoje. Tinha fartura demais. - Tudo que o Zé tá falando é a mesma coisa que vivi. A gente ficava tudo ocupado, trabalhando. O que os mais velhos ensinavam pra gente era manter as coisas em ordem e nunca desrespeitar ninguém. - Eram os irmãos mais velhos que ajudavam a criar os mais novos. Sinto saudade da amizade e união que a gente tinha, né? Pela idade que a gente tem, nem temos contato mais. - A juventude vai crescendo e desenvolvendo. É igual tecnologia: se você não acompanhar, acaba ficando pra trás. - Tem pra onde correr mais não, né, Zé?! José Carlos da Silva e Divino dos Passos, moradores de Paracatu de Baixo

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Das coisas que aprendi A infância no Bento foi a melhor parte da minha vida. E, hoje, com tudo o que aconteceu, tenho mais certeza disso. Nossos pais não tinham dinheiro para comprar brinquedos caros para nós, mas nos virávamos para arrumar uma maneira de brincar. Muitas vezes, eles nos ensinavam o que sabiam, faziam nossos brinquedos. Guardo na lembrança um que meu pai fez pra mim e meu irmão com pedaços de caixote. Era tipo um macaquinho todo detalhado e amarrado com linha. Dependendo da maneira que mexíamos, ele virava cambalhotas. Era uma festa pra nós. Outra coisa também passada dos nossos pais para os meninos era fazer caminhão. Lembro que, em um pedaço de tábua, eles colocavam a cabine e a báscula de lata. Na cabine faziam até janelas. As rodas eram feitas com pedaço de chinelos velhos. As crianças adoravam. E o mais interessante é que a maioria deles, hoje em dia, trabalha na profissão. Lembro que nos juntávamos na horta do nosso vizinho, debaixo de um pé de manga que tinha lá: eu, meus irmãos, os filhos e as filhas do meu vizinho e outros amigos. As meninas faziam casinha e os meninos, estradas para brincar com o caminhão. “Passar o anel”, “Caiu no poço”, “Pular corda”, “Vôlei na praça”, “Bola no campinho”, “Pique-esconde”, “Pique-pega”, “Bandeirinha” e “Queimada” eram algumas das nossas brincadeiras. Outras vezes, juntávamos um grupo e ficávamos só conversando até que nossos pais nos chamavam para ir pra casa. Não podia ficar na rua depois das 21 horas. Andreia Sales, moradora de Bento Rodrigues

- Tínhamos medo do “homem do saco”, dele chegar e levar a gente embora. - E do gato branco na ponte. Tem a história dos antigos de que, na ponte, aparecia um gato branco, o Xodó. A gente ia para a igreja ou reza e, na volta, ficava todo mundo com medo de passar na ponte por causa do gato. - A gente era terrível naquela época. Pegávamos matinho e ficávamos no escuro passando na perna das mulheres pra fazer medo. A gente pegava o mamão, furava e, dentro dele, fazia desenho de olhos, nariz e boca. Colocávamos uma vela e íamos para a igreja. Quando as mulheres vinham, corríamos na frente, entrávamos no meio do bambu e ficávamos lá segurando a vela com o mamão. Elas ficavam com medo. Tudo pra assustar. - Era muito bom, né, Kelly?! Hoje, a gente não vê esse tipo de coisa mais não. Hoje, vemos muitas coisas perigosas. As crianças brincam de bicicleta, querem fazer uma rampa, levantar de uma roda só. Às vezes, eles conseguem controlar mas, às vezes, não conseguem, aí caem e se machucam. Antes, a gente nem brincar de bicicleta não brincava, porque não tinha. Beatriz Helena e Kelly dos Santos, moradoras de Gesteira


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O que fazíamos para as crianças Em Gesteira, o Doze de Outubro era comemorado graças à união dos(as) moradores(as), que doavam alimentos para a realização de um almoço festivo. Com mais de uma década de tradição, o evento contava com música, brincadeiras e comidas típicas. Hoje, os(as) atingidos(as) lutam para manter a festa, mesmo com as dificuldades enfrentadas pela comunidade após o rompimento.

- Mãe, semana que vem é o Dia das Crianças. Tá faltando uma semana. Se eu passar de porta em porta pedindo um quilo de alimento, eu consigo fazer um almoço pra elas? - Se você estiver com essa intenção de fazer de coração, você consegue. Criei a ideia de comemorar esse dia, porque, na Semana das Crianças, a prefeitura dava alguns kits pra fazer um almoço para os(as) meninos(as) da creche e da escola. As crianças que não estavam na creche queriam participar, mas não podiam, porque era só para creche. - “Nossa! Eu achei tão bonita a sua forma de pensar. Vamos te ajudar sim”, os vizinhos me falavam. Uma amiga minha que faz bolo me disse: - Olha, se você conseguir as coisas do bolo, eu faço de graça. - Pois eu vou conseguir!

Como a gente brincava Bolinha de sabão: Pegar canudo de mamona, copo d’água, sabão. Misturar a água e o sabão, colocar o canudo e assoprar. Guerrinha de mamona: Pegar um cacho de mamona, arrancar os caroços e jogar no adversário. Tamanco: Pegar lata de óleo ou de leite em pó e barbante. Fazer um furo na lata, passar o barbante por ele e amarrar nos pés. Depois, equilibrar-se em cima das latas. Peteca: Pegar penas de galinhas soltas pelo galinheiro e envolvê-las em uma palha de milho ou de bananeira, usando um pedaço de chinelo velho para servir de base. “Birosca”: Fazer uma meia-lua com as bolinhas de gude, afastar-se e tentar acertá-las. “Bilisca”: Juntar cinco pedras na mão e jogá-las para cima. Pegar as que caíram no chão ao mesmo tempo em que joga as outras para o alto. Mais conhecida como “Cinco Marias”. “Maré”: Riscar quadrados com um pedaço de telha no chão e pular, sem encostar nas linhas. Mais conhecido como “Amarelinha”. “Roubar bandeira”: Dividir as crianças em dois grupos. Uma bandeira de cada lado. O grupo tem que tentar pegar a bandeira do adversário. Quem pegar primeiro vence. “Pique-lata”: Uma pessoa fica contando próximo à lata, enquanto as crianças se escondem. O objetivo é achar quem estiver escondido. Quando isso acontece, a pessoa tem que correr até a lata, batê-la no chão três vezes e gritar que achou. Se não conseguir, as outras correm primeiro e se salvam. Muito parecido com o “Pique-esconde”.

Com cinco dias, eu já tinha arrecadado tudo pra fazer o almoço e o bolo. Todo mundo ajudando com muita boa vontade na comunidade. Conseguimos fazer o almoço e o bolo. As crianças ficaram todas felizes. Chegamos a fazer o 11º ano de festa aqui. Agora, por falta de recursos, a gente não fez. Tem de três a quatro anos que não fazemos algo grande. Era uma festa boa. Ela estava virando tradição aqui em Gesteira. As crianças não deixam de me perguntar: - Ah, tá chegando a Festa das Crianças. Vai ter? - Vai ter um almoço, vai ter um bolo, mas não tem aquelas brincadeiras. Hoje, a gente consegue pouco, mas não deixamos passar em branco, porque as crianças também têm vontade de brincar. Beatriz Helena, moradora de Gesteira


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O que as crianças nos ensinam

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Já são quase três anos desde que nossas vidas mudaram completamente. O tempo passa, a lama continua no rio, nenhum responsável pelo crime da Samarco é punido, nossa nova casa não sai do papel e ainda tem atingido(a) que não foi reconhecido(a). Nessa vida de luta, quem nos dá força, esperança e inspiração, com sua alegria e amor, são as crianças, os heróis e heroínas de nossas histórias.

Por Hiata Meiriane Salgado, José Augusto Delazari, José Barbosa dos Santos, Maria Carneiro (Lilica) e Simone Silva Com apoio de Amanda Gonçalves, Flávio Ribeiro e Larissa Pinto

O Jornal A SIRENE te convida a colorir e dar vida aos desenhos abaixo

“A Bruna é uma menina muito calma. Ela é a ‘Estelar’ do Jovens Titans, porque ela é doce, carinhosa, gentil, responsável e meiga. Ela me ajuda bastante, graças a Deus, porque ela é muito tranquila. Tudo o que nós duas passamos juntas, olhando pra ela, me deu força. Eu sempre quis que ela crescesse com tranquilidade, desde que ela era pequena. O mundo, hoje, é muito bagunçado e, se a pessoa se misturar no mundo, nos transtornos do mundo, não consegue sobreviver. A gente tem que ver as coisas, mas levar tudo com tranquilidade. As crianças são muito inocentes, né? Elas passam isso pra gente: ter um pouco de inocência do que é o mundo. Eu fiz uma tatuagem com o nome dela, já deve ter uns sete anos. Eu decidi fazer porque ela é minha vidinha, né? Então, tenho que andar com o nome dela, porque aí ela anda comigo o tempo todo. Eu fico a semana inteira longe, mas a gente tá sempre juntas em pensamento. O superpoder dela é o sorriso, a alegria. Por mais difícil que seja a vida, ela segue sempre sorrindo, alegre, brincando. Ela consegue passar pelas dificuldades sorrindo, igual a mim.” Lilica, moradora de Ponte do Gama “Sofya é minha ‘princesa Moana’, é minha guerreira. Sofya é gigante, porque ela é a luz dos meus dias, ela me fortalece nos momentos em que eu me sinto fraca. Mesmo com tantos problemas, ela continua forte, alegre, extrovertida. Ela é minha heroína, minha guerreira, sempre me dá esperança e me fortalece. Apesar de tudo o que tem acontecido nesses quase três anos, ela resiste, persiste. Sofya é de luta.” Simone Silva, moradora de Barra Longa


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“Sofia tem sete anos, ela é a ‘Super Melindrosa’. É muito meiga e passa isso pra gente, sabe? Ela chega, fala ‘Mamãe, eu te amo’, abraça, dá carinho. Ana Clara é a mesma coisa, ela tem quatro anos e é mais carinhosa ainda. Quando gruda, então, não quer soltar. Ela é a ‘Super Pirraça’. Pedrinho é o galã da família e tem um ano e meio. Ele também é muito carinhoso. O Pedro é o ‘Super Bagunça.’ Meus filhos têm me ensinado a ter muita paciência, tenho que ter com todos eles, né? Eles me ensinam a amar também, porque, a cada dia, o amor só aumenta; a disciplinar, porque criança tem que ter disciplina; a olhar pro futuro, porque, hoje, eu só vejo o futuro pra eles, não me vejo pensando em mim, só neles. Desde que eu virei mãe, mudou tudo. Hoje, eu sou mais responsável, tudo o que eu faço, eu penso neles primeiro, se vai prejudicá-los. Eu fico o tempo todo ligada neles, porque são tudo o que eu tenho. A única certeza na minha vida, hoje, são meus filhos.” Hiata Meiriane Salgado, moradora de Bento Rodrigues “A gente aprende muita coisa sendo pai, avô. A responsabilidade tem que ser outra. Quando meus meninos eram pequenos, eu vivia sempre trabalhando. Eles só me viam mais à noite, mas, na época, era assim mesmo. Graças a Deus, todos estão criados. A gente pelejava pra educar. Tem hora que as crianças fazem alegria na gente, tem hora que fazem raiva também, mas é muito amor.” José Barbosa dos Santos, morador de Bento Rodrigues

“A gente faz as coisas de uma forma diferente quando é pai, né? Tudo muda muito, a gente cria mais responsabilidade. A mais velha, Kaylaine, tá com sete anos, e a Krislayne tem um ano e nove meses. Nossa, eu tenho aprendido tanta coisa com elas. A Kaylaine é uma menina muito estudiosa, inteligente, carismática. Essas são coisas que ela vai levar pra vida toda. No início do ano, a Kaylaine ganhou honra ao mérito por tirar notas muito boas e, agora, nesse bimestre, ela ganhou novamente. A gente aprende isso com ela. A super heroína que ela quer ser é a ‘Mulher Invisível’ para salvar as pessoas sem ninguém vê-la. E a Krislayne é pequena, mas também é inteligente, é muito esperta, carinhosa, gosta de fazer carinho na gente, dá beijinho. Se elas continuarem desse jeito, elas ainda vão me dar muita alegria.” José Augusto Delazari, morador de Rio Doce


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Brincar e lutar por direitos Por Miguel Francisco, Ingrid Cristine, Caique Junior e Waslan Kelven Com apoio de Aline Pacheco e Lina Anchieta

“Lá vai o menino rodando e cantando, Cantigas que façam o mundo mais manso, Cantigas que façam a vida mais justa, Cantigas que façam os homens mais crianças.” (Thiago de Melo)

Fotos: Leandro Raggi

É necessário reconhecer as crianças como sujeitos no mundo, como sujeitos que sentem e vivenciam, à sua maneira, o que acontece ao seu redor. O crime que ocorreu no dia 5 de novembro de 2015, e que continua na vida dos(as) atingidos(as) ao longo da Bacia, não deixou de fora as crianças. Elas sentem os impactos de tudo isso e absorvem as dores e os sofrimentos causados pelos danos. Portanto, é importante acompanhar e entender de que forma elas foram atingidas. A pauta de “Reivindicações de Barra Longa” deixa bem claro que são consideradas atingidas as crianças que estão em fase de formação e que vivenciam as consequências do crime. Por isso, com suas experiências de vida, seu jeito de lidar com o mundo e seus olhos ainda inocentes, elas já estão participando da organização e da luta por direitos. Elas já produzem mudanças no mundo em que vivem e influenciam outras pessoas. Para que as crianças não fiquem de fora de toda a luta dos atingidos e atingidas de Barra Longa, são organizadas cirandas dentro dos grupos de base. A ciranda se propõe a ser um espaço para garantir a participação dos(as) atingidos(as), principalmente das mulheres, pois sabemos que, na sociedade em que vivemos, são elas que, na maioria das vezes, ficam responsáveis pela tarefa do cuidado com as crianças e também com a casa, com os doentes e com os idosos. São as mulheres que mais participam dos espaços de luta e de reivindicação. Garantir as atividades da ciranda significa assegurar a participação das mulheres. E isso é fundamental para o funcionamento dos espaços organizativos e para seguir com a luta. Além de ser um lugar de “cuidado” com as crianças enquanto seus pais, mães, cuidadores estão participando das “coisas de adulto”, ou seja, das reuniões dos grupos de base, assembleias e dos encontros, as cirandas são espaços educativos. Na ciranda, as crianças atingidas podem, de maneira lúdica, por meio de brincadeiras, canções e histórias, pensar sobre diversas temáticas que estão sendo trabalhadas pelos adultos. É um espaço de promoção e de constituição de valores solidários e coletivos, pois elas podem compartilhar suas experiências de vida e construir laços de solidariedade. “Quando não tem ciranda, a gente fica fazendo bagunça porque não temos paciência para as reuniões de ‘gente grande’. Tem que ter ciranda. Aí os pais não precisam se preocupar em olhar a gente, podem ficar prestando atenção às reuniões. A ciranda é muito legal. Lá, a gente desenha a igreja que tinha em Gesteira antes da lama e faz brincadeiras. Na ciranda, a gente tenta entender o que nossos pais estão conversando na reunião através de desenho, porque assim temos mais paciência e fica mais legal.” Miguel, Ingrid, Caique e Waslan, crianças atingidas de Gesteira


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Direito de entender:

Direito de imagem: Notas jurídicas sobre as impressões da mídia

Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor de Justiça

¹ Fonte: TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 101.

No século XXI, com o crescimento da mídia e à medida que foram se desenvolvendo os meios de comunicação e transmissão das informações, a imagem das pessoas ganhou contornos inesperados. De fato, a internet possibilitou a exposição em massa a milhões de pessoas que passariam despercebidas no passado, para o bem ou para o mal. Contudo, a imagem não é livre de proteção jurídica. A Constituição da República prevê, no artigo 5º, inciso X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Por sua vez, o Código Civil de 2002 inseriu o direito à imagem na classe dos “direitos da personalidade”. Segundo o jurista Flávio Tartuce, a imagem é “classificada em imagem-retrato – reprodução corpórea da imagem, representada pela fisionomia de alguém; e imagem-atributo – soma de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem”.¹ Portanto, a imagem deve ser compreendida em sentido amplo, não só a fisionomia do indivíduo. No contexto do desastre da Samarco, em Mariana, muitos(as) atingidos(as) são procurados(as) por pesquisadores, repórteres, cineastas e até mesmo curiosos para que relatem suas experiências anteriores e posteriores ao crime, por meio de entrevistas audiovisuais ou sonoras. Toda exposição da imagem deve ser previamente autorizada pelo indivíduo, independentemente do meio de divulgação (televisão, rádio, internet, revistas e jornais impressos etc.). A entrevista de crianças, adolescentes ou adultos incapazes deve ser concedida após a autorização do responsável legal. Assim, cada atingido(a) é livre para expor ou não sua imagem. No entanto, aquele(a) que espontaneamente permite a entrevista concorda implicitamente com a divulgação. Após uma entrevista, em caso de dúvida, o(a) atingido(a) deve comunicar de imediato ao(à) entrevistador(a) que não autoriza a divulgação de sua imagem, sob pena de não poder impedir a veiculação posteriormente. No caso de violação do direito de imagem – uso não autorizado, uso indevido, uso para fins comerciais, uso para finalidade publicitária –, o indivíduo pode proibir a veiculação das imagens e pedir indenização pelos danos morais e materiais causados. É o que diz o artigo 20 do Código Civil: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Desse modo, o(a) atingido(a) deve ter cuidado ao conceder entrevistas, ficar atento(a) às intenções de qualquer pessoa que pretenda lhe expor e analisar se as imagens foram veiculadas de maneira a não ofenderem sua honra, intimidade e privacidade.

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Brincar com arte A arte nos faz olhar para o cotidiano e ver além do que as aparências mostram. Cada artista retrata o que vive de acordo com a forma com a qual é tocado pela realidade. Nós também podemos ser artistas, contar nossa própria história, expressar o que vemos e vivemos do nosso jeito. Nesta edição, trazemos uma página interativa para estimular a criatividade e soltar o artista que há na gente. Por João Francisco Brittes

Poça de água - Xilogravura, 1952 Mauritis Cornelis Escher foi um artista holandês que gostava de trabalhar com a imaginação e a ilusão de ótica, usando imagens que confundem a visão humana. Mas, para isso, ele não fazia pinturas e, sim, xilogravuras, que são imagens feitas em um molde de madeira que, depois, são transferidas para o papel. Essa é uma técnica muito antiga porque, antes de inventarem as máquinas impressoras, as gravuras tinham a função de reproduzir uma imagem ou um texto. Nesta xilogravura, Escher usou uma imagem na qual é possível ver duas perspectivas: a lama e o reflexo da água. O que esta imagem traz para você? Quais sentimentos ou lembranças vem à sua mente?

Participe! Escreva e envie um pequeno texto para o Jornal A SIRENE através do e-mail: jornalasirene@gmail.com ou entregue na nossa sede, localizada na Rua Wenceslau Braz, 738 ap 2.


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O quarto de van Gogh em Arles pintura a óleo, 1889 O pintor holandês Vincent Willem van Gogh é considerado uma das figuras mais influentes da história da arte. Ele gostava de pintar cenas do cotidiano, como sua cidade, seus vizinhos e conhecidos. Nesta pintura, van Gogh retratou o quarto em que dormia em Arles, na França, no ano de 1889. Com base na pintura de van Gogh, preencha a cruzadinha: 1. Van Gogh tinha muitas delas penduradas na sua parede 2. O piso do quarto 3. Móvel usado ao lado da cama, onde se coloca todo tipo de coisas 4. Lugar em que se dorme 5. Para usar em dias frios 6. Usado para se cobrir durante a noite 7. Onde se olha para fora de casa 8. Quem fez essa pintura? 9. Aquilo que reflete a imagem 10. Lugar retratado por van Gogh nesta pintura 11. Aquilo que serve para sentar 12. Objeto feito de espuma ou penas de ganso RESPOSTAS: 1. PINTURAS 2. ASSOALHO DE MADEIRA 3. MESINHA DE CABECEIRA 4. CAMA 5. CASACO 6. COBERTOR 7. JANELA 8. VAN GOGH 9. ESPELHO 10. QUARTO 11. CADEIRA 12. TRAVESSEIRO


EDITORIAL O que nós, adultos, podemos aprender com as crianças? O que será que aqueles pequeninos e pequeninas podem nos ensinar com suas experiências e descobertas vividas cotidianamente? Será que, mesmo na correria do dia a dia, temos parado para observar como eles(as) têm vivido e conhecido coisas novas? E nós, o que temos aprendido com os mais jovens? Neste mês, o Jornal A SIRENE traz uma edição especial para o Dia das Crianças, momento em que paramos nossas "coisas de adultos" para refletir sobre as consequências trazidas pelo desastre-crime na perspectiva da infância. Ao resgatar memórias e registrar as histórias de como era ser criança lá, nas comunidades atingidas, reafirmamos que a lama trouxe consequências irreparáveis para nós e que nenhuma quantia é capaz de compensar. Mas, para conquistar uma reparação justa, sabemos que a luta exige tempo, que tem sido gasto com inúmeras reuniões, audiências e assembleias. Nesse processo, é um desafio nos adaptar à nova rotina sem perder o cuidado e a atenção com as nossas crianças. Por isso, temos buscado incluí-las nas discussões, por meio de atividades educativas, como as cirandas, para ouvi-las e entender como foram atingidas, além de incentivá-las, desde já, a reivindicar seus direitos. Nesse sentido, priorizando a luta coletiva, trouxemos também, como ensaio fotográfico, o resultado da experiência de alguns(as) alunos(as) das escolas de Paracatu de Baixo e de Bento Rodrigues que sujaram suas mãos de tinta e deixaram suas marcas em uma folha em branco. De alguma forma, o exercício simboliza nosso período de infância e, ao mesmo tempo, nos motiva a caminhar coletivamente. A imagem da folha que, aos poucos, é preenchida com as mãos coloridas das crianças é reflexo de nossa trajetória, pois temos, há dois anos e 11 meses, "pintado" novas páginas das nossas histórias, mesmo que seja um processo doloroso para nós. É assim, inspirados pelos mais novos, que, muitas vezes, abastecemos nossas forças para lutar, encontrando, nos “superpoderes” que eles nos transmitem, o apoio para reconstruir as nossas vidas. Mesmo com as dificuldades encontradas ao longo do caminho, temos carregado conosco a esperança de um futuro melhor para nós e para as nossas crianças. E é essa esperança que tem nos ajudado a alcançar nossos direitos. Entre eles, a mais nova conquista de Paracatu: a aprovação do projeto de lei que permite avançar as obras de reconstrução da comunidade. Assim, pouco a pouco, sem importar a idade que temos, estamos aprendendo a lutar por nossos direitos e a mirar o futuro com o olhar de uma criança que cai, pode até se machucar, mas sempre se levanta.


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