A Sirene - Ed. 78 (Outubro/2022)

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PARA NÃO ESQUECER | Ano 7 - Edição nº 78 - Outubro de 2022 | Distribuição gratuita A SIRENE

AUDIÊNCIA PÚBLICA EM MARIANA

de setembro

No dia 2 de setembro ocorreu, em MarianaMG, no Centro de Convenções, uma audiência pública puxada pelo grupo dos Garimpeiros Tradicionais do Alto Rio Doce. O evento contou com a participação de Emmanuel Duarte Almada, doutor em Ambiente e Sociedade e coordenador do Kaipora - Laboratórios de Estudos Bioculturais, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). O Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA) foi representado pela professora Karine Carneiro. A professora Kathiuça Bertollo representou a Associação dos Docentes da UFOP (ADUFOP) e a Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMaMG). O sindicato Metabase de Mariana foi representado por Sérgio Alvarenga; o MAB, por Lina Anchieta; os garimpeiros tradicionais de Antônio Pereira foram representados por Wilson Nunes; as mulheres de Antônio Pereira foram representadas por Maria Helena Ferreira. Também esteve presente Aida Anacleto, que representou o deputado federal Rogério Correia (PT-MG). A ausência do deputado federal Padre João (PT-MG) e do suplente de deputado estadual Leleco Pimentel (PT), pelos quais os garimpeiros ansiavam, foi preenchida por Cristiano Vilas Boas. Foi registrada também a presença do presidente da Câmara da cidade de Rio Doce, Fernando César de Jesus, e do vereador de Barra Longa, Greiço Anderson. A sessão foi presidida pelo vereador da Câmara Municipal de Mariana, Manoel Douglas (Preto). Também houve a participação de Antônio Áureo, membro suplente da Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais, e de Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), coordenador do grupo dos garimpeiros tradicionais do Alto Rio Doce. O companheiro Hermínio Amaro do Nascimento se ausentou por motivo de doença. O fator de maior relevância foi, sem dúvida, a participação massiva de aproximadamente 100 garimpeiros e garimpeiras de Rio Doce, Barra Longa, Acaiaca, Mariana e Ouro Preto. Isso mostra a força da união.

EXPEDIENTE

FAMÍLIAS TUPINIKIM OCUPAM TRILHOS DA VALE

1º de setembro

Há mais de um mês, cerca de 100 indígenas da etnia Tupinikim ocupam trilhos da mineradora que atravessam a aldeia Córrego do Ouro, em Aracruz-ES. Eles reivindicam a revisão do acordo de compensação e reparação dos danos provocados nas comunidades pelo crime da Samarco/Vale/BHP, em 2015, apresentado pela Renova. A Vale, em vez de ouvir as demandas, utilizou a estratégia de sempre e tentou expulsar os manifestantes pela via judicial. No último dia 3, a Justiça Estadual suspendeu a reintegração de posse que havia sido concedida à mineradora e o caso deve ser decidido pela Justiça Federal. No dia 4 de outubro, uma comitiva dos Tupinikim foi recebida em Brasília, no Ministério Público Federal (MPF). Eles exigem escuta de reivindicações que vão além de indenizações e discutam as perdas dos modos de vida há quase sete anos.

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8ª CARREATA N. S. APARECIDA 12 de outubro

A comunidade de Paracatu de Baixo vai realizar, no feriado da padroeira do Brasil, mais uma edição do evento. Às 9h, acontece a celebração com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e, em seguida, tem início a carreata. O trajeto sai de Paracatu de Baixo, segue por Pedras, Águas Claras, Cláudio Manoel e retorna a Paracatu, onde haverá um almoço. A organização é dos(as) familiares e amigos(as) de Antônio José.

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AGRADECIMENTO ESPECIAL

Papo de Cumadres: o barulho do Gualaxo

Consebida e Clemilda foram convidadas para participar do colóquio Patrimônios-sonoros do Gualaxo do Norte, mas só Consebida pode ir.

– Cumadre Clemilda, eu sei que ocê tá bem evoluída e por isso te mandei o link do Coló quio pamode ocê vê.

– Cumadi, minina de Deus, ixplica issu direi tu pra eu podê intendê, depois que tive covi di, tô isquecendu até de cumê, eu vô te falá, tô com medu de isquecê até de respirá.

– Ô chente, cumadre, istu de esquecê num é minha novidade, cê num viu a renova com esta esquecessão num lembram nem de fa zer reparação, mas presti atenção na minha explicação, o colóquio é um eventu sobre os som do Gualaxo du Norte, que nois chama de barulhu du Gualaxu.

– Ah sim, tô recordanu agora, foi u eventu que a professora Virginia e u moço Marcone falou com nois, tô curiosa, imenda logo essa prosa e me conta cumé que foi.

– Intão, u eventu foi muitu bão, é mais ou menus aquilu que nois já vinha dizenu, todu barulhu é música e, tem música boa i música ruim, u barulho que u colóquio tratô é só música boa, meu amor, barulhu da natureza, das água, das cachoeira, dus cantu dus pássaru, dus barulhus das pedra e de gente tamém, dus istrumentus que ês toca, das cantiga, e eté das fofoca, num importa a música que toca, u impotante é fazer barulhu e issu nois tem noção, de ca ladu já basta u atu da renova nu sintidu da reparação.

– Uai, intão esse trem foi bão, que pena que tava aperrengada, senão eu ia ser mais uma guela gritanu, fazenu baruhu para daná, que branu u silêncio, u grande responsável das barrage rombá.

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Opinião:
Fotos: Wilson Costa

“Nós vamos passar, mas isso aqui se preserva”

A tradicional comemoração em homenagem à Nossa Senhora das Mercês, celebrada em Bento Rodrigues, coloriu e iluminou as ruas do distrito no primeiro ano de festejos após os momentos mais graves da pandemia. Nem a tarde quente, característica do início da primavera, espantou as mais de 50 pessoas reunidas, primeiro, na casa da Dona Terezinha, depois, em procissão e, por fim, na missa realizada na Igreja das Mercês.

A celebração é permeada por múltiplos significados, memórias e afetos. Moradoras e moradores, nascidos e criados no local, guardam lembranças de alegria, batalhas, tristeza e resiliência diante do templo, tão prejudicado pela ação do tempo e pelo descaso da Renova, Vale, Samarco e BHP (leia mais na edição 77). Apesar das mazelas, a Igreja das Mercês segue de pé e, junto ao povo, representa a resistência dos que permanecem.

“Durante a pandemia, a procissão ficou pa rada, agora que a gente tá voltando. Estamos saindo daqui porque essa casa foi umas das poucas que sobrou. Eu chamei minhas irmãs pra gente limpar e dar todo o apoio pra quem vem, porque as outras casas estão muito des truídas. Nisso, a gente pensou que a procissão podia sair daqui, até porque não tem muito lugar pra gente tá saindo com a bandeira. Depois da procissão, a gente vai pra igreja, mas lá a situação não tá muito boa. Ontem mesmo teve uma detonação ali que… só Deus. A gente tava limpando a igreja e sentiu até tremendo. O rapaz que tava em cima da escada, colocando iluminação, até assustou com o tremor.

Mesmo assim, a gente tem a Igreja das Mer cês como forma de refúgio. Lá na Lavoura [reassentamento], eu não vou, não me vejo lá. Se tem alguma coisa e me convidam, eu não vou porque lá não tem igreja, não tem quase nada pronto e eu não me vejo partici pando lá não, em qualquer evento que tem, na verdade. Enquanto existir aquela igreja ali, tiver a casa aqui, as meninas vindo, é só aqui que eu venho.”

Terezinha Custodio Quintão Silva, moradora de Bento Rodrigues

“Desde que eu me entendo por gente, desde criança, a gente vem, acompanhando pai e mãe, celebrar Nossa Senhora das Mercês em setem bro. Chegamos aqui quando essa igreja precisa va muito de reforma, aí meu pai, Manoel Muniz, tomou a frente, isso no início dos anos 70.

Eu, desde os 7 anos, trabalho. Comecei aqui, na reforma dessa igreja, buscando água do rio, junto de uma pessoa adulta. Eu chegava lá, segurava o cavalo, alguém enchia os tam bores e, chegando aqui na igreja, nós tiráva mos a água e passávamos pra vasilhas meno

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Fotos: André Carvalho

res, essa era nossa ajuda. Essa reforma dos anos 70 foi aos pouquinhos. Depois, as festas se fortaleceram.

Em algumas épocas, tivemos Reinado, mas Reinado é uma festa mais cara e, numa co munidade pobre, não tínhamos como ban car, mas fazíamos do jeito que dava. Depois do rompimento, a gente faz desse jeito, com muito sacrifício, porque muita coisa é no improviso. Tudo tem que sair de Mariana e acabamos pedindo ajuda às pessoas que en tendem que não podemos deixar as tradições morrerem, porque senão fica muito fácil pras empresas que causaram esse crime, essa des truição de todo Bento Rodrigues, Paracatu, do Rio Doce e tantos outros lugares.

Pra nós, isso é uma questão de luta, nós va mos passar, mas isso aqui se preserva. O pa dre citou uma reforma que tá pra acontecer, isso é coisa que a gente pediu faz muito tem po e devia ser a primeira obra a acontecer. A Igreja das Mercês precisa de uma reforma. Vejo que é um ganho que a comunidade vai ter e aqui também vai ser um ponto de visi tação pra quem vier ver a destruição que as gananciosas causaram.

Infelizmente, hoje eu não piso onde era mi nha casa. Eu não piso onde fui criado, onde meu pai nasceu. Eu não piso porque tá debai xo de água, eu peço que eles descomissionem esse dique [dique S4] pra eu poder pisar lá. Enfim, comemorar a festa de Nossa Senhora das Merces me emociona muito pelo que já vi meu pai fazer na frente dessa igreja, ajoe lhar na porta, agradecer às graças que ele já recebeu aqui e pedir bênção para a família.”

Manoel Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues

“Quando eu morava aqui, antes do rompi mento, a minha vida era só igreja. Eu era Ministro da Palavra, fazia celebração. Depois de tudo o que aconteceu, eu fiquei um pou co afastado, mas, quando tem a festa aqui, a gente vem pra ajudar e pra não deixar o pa dre sozinho.

Antes, a gente trabalhava como festeiros, vá rios grupos se separavam pra organizar as festas das Mercês e de São Bento. Cada um ficava responsável por uma parte da orga nização das festas. Eu fiquei mais ou menos uns 10 anos fazendo isso, controlava o som, fazia o que precisava.

Minha família é católica, mas eu me envol vi mais por influência dos amigos, vendo a pessoa trabalhando, vendo que é vocação passada de pai pra filho, eu posso considerar eles como meus pais. Então eu fui pegando o hábito de ajudar na Semana Santa, na Sexta -Feira da Paixão, fui tomando gosto e tô nes sa vida até hoje.”

“Aqui eu nasci, fui batizada, participei da ca tequese, da coroação, depois eu passei a dar catecismo, a organizar as coroações, parti cipava da Conferência Vicentina, sempre junto da igreja. A partir de 2016, a gente fica tentando resguardar nossas memórias e não deixar morrer. Tentamos resguardar nossa igreja, lutamos muito pra conseguir o restau ro dela e agora parece que vai sair. A gente luta muito pra não deixar isso aca bar nunca. A igreja e as casas que sobraram estão muito prejudicadas pelas explosões, tá tudo rachado porque a mineradora tá quase dentro da comunidade. A cada dia estão che gando mais, a cada dia o volume aumenta, a gente reclama e eles abaixam um pouquinho, depois aumentam de novo. Desde que mo rávamos aqui existiam essas explosões, mas agora tá muito mais próximo. Daqui dá pra ver eles mexendo, à noite a gente escuta os caminhões trabalhando. Subindo na laje tam bém dá pra ver as máquinas do outro lado. A gente reclama e não resolve nada. Agora que conseguimos o restauro da igreja, a gente es pera que eles parem um pouquinho.”

Maria das Graças Quintão, moradora de Bento Rodrigues

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Festejo com tradição e esperança

Com muita fé, alegria, esperança, força de vontade, música, comida e brincadeiras. Assim a Festa do Menino Jesus foi realizada em Paracatu de Baixo, nos dias 17 e 18 de setembro. Uma celebração que faz parte da tradição da comunidade, ensinada de geração em geração. E, nesse momento, mais emocionante do que nunca, com apresentações das Folias de Reis de Pedras e de Paracatu, da Corporação Musical Sagrado Coração de Jesus de Padre Viegas, e da Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião de Mariana. Com a família, amigos(as) e toda a comunidade, honram o nome de Seu Zezinho e de todos(as) os(as) que já se foram, deixando uma mensagem de garra e fé de que tempos melhores virão.

“Se não ferver, não acontece. A gente briga, a gente ferve para a festa acontecer. Foi difícil organizar essa festa sem ele, porque, em todo momento, a gente não deixou de lembrar dele. Mas a gente também não podia deixar de fazer essa homenagem a ele. É uma coisa que ele era apaixonado, e a gente aprendeu com ele. Agora a gente também é apaixonado pela Folia. A gente vai fazer todo o possível, mesmo com dificuldade, a gente vai continu ar fazendo essa festa. Era a maior alegria do meu pai e a nossa também. E, se Deus qui ser, essa é a nossa esperança, manter o legado dele. É muito difícil, porque a gente tem que brigar muito para tudo acontecer. Brigar en tre aspas, né? É a forma da gente falar. Se a gente for olhar as dificuldades que tem para acontecer as celebrações aqui, não só a do Menino Jesus, como a do nosso padroeiro Santo Antônio e a da Nossa Senhora Apa recida, já tinha acabado com tudo. Mas essa não é a nossa esperança, a esperança é que tudo continue mesmo com as dificuldades. É por isso que eu tô sempre aí na luta pela nos sa igreja. Eu tenho lutado para nossa igreja se manter de pé, porque a igreja somos nós e, para isso, precisamos da união. Sem a união, não tem como. Então tô sempre chamando

atenção, pelo bem de todos nós, pelo bem da comunidade, porque a igreja é nossa.

Depois que meu pai faleceu, eu sempre te nho falado com meus irmãos. Meu pai ama va tanto essa Folia e mostrava isso para nós. Foi uma coisa que nós aprendemos com ele, então não podemos deixar acabar. É uma

esperança que temos de continuar para que possa passar de geração em geração. Se a gente deixar acabar, estamos acabando com uma história que foi criada há tantos anos. Tá escrito na bandeira que essa Folia foi fun dada em 1961 – a gente tá falando que ela foi fundada, mas é porque meu pai assumiu

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Fotos: André Carvalho

a responsabilidade, muito grande, e assumiu como capitão da Folia, como mestre, pra não deixar acabar. Mas já existia há muitos e mui tos anos. Meu pai sempre falava que, a não ser o dele, uns dois grupos já tinham se pas sado. Ele era criança quando fazia parte da Folia e, quando assumiu a folia, já estava com 20 anos. Então, imagina, se meu pai morreu com 81 anos, no ano passado, se há tantos anos ele acompanhava, quantos anos essa Fo lia tem então, né? Muitos anos. Meu pai as sumiu a responsabilidade como capitão para não deixar acabar e seguir com uma tradição que já tinha sido criada há muitos anos, nem é das nossas épocas. A gente aprendeu e é isso que a gente vai fazer. Assim vamos seguir.”

“Fui eu que tomei conta, eu que organizei tudo, eu que matei o boi e eu que vou pagar tudo. Meu pai, que hoje tá falecido, pediu: ‘meu fi lho, faz a festa pra mim'. E eu tô fazendo. Cho rei demais na igreja. Quando vi o retrato dele, me cortou o coração. Mas meu pai me deixou uma lembrança muito grande. Tá aqui a Folia de Reis, tem comida para todo mundo, se aca bar, nós fazemos mais. E eu quero fazer a festa todos os anos dessa maneira.”

Antonio Geraldo de Oliveira (Nié), morador de Paracatu de Baixo

“Nós viemos todo ano, vai fazer uns cinco anos, convivemos um pouco com o Zezinho, todas as comunidades que nós vamos nos tratam bem, não temos problema nenhum. Já virou tradição do Congado participar da festa, já entrou no nosso calendário vim para a festa.”

“Desde dos 15 anos, eu ensaio na Folia de Reis em Paracatu. Meu pai faleceu, mas ele que me trazia. Ele também vestia de palhaço,

“Fiquei mais à frente da organização da co mida, mas tem três meses que estamos prepa rando, aí junta todo mundo, uma mãozinha de cada um, hoje mesmo levantamos cinco horas da manhã, e o almoço tá aí, pronto. É um orgulho, porque a gente tá aqui, despeda çado, por dentro da gente tá tudo moído. Por fora estamos rindo, mas, por dentro, está tudo destruído, porque tem 60 anos que a gente faz a mesma festa com a mesma comida, né? É tempo demais. Enquanto nós vida tiver, tem comida, tem festa, tem tudo. Essa festa não vai acabar, enquanto tiver um de nós, vai haver a festa, porque é tradição, do meu pai, do meu avô que passou pro meu pai, meu pai passou para os filhos, nós passamos para os nossos fi lhos, que vão passar para os netos, e assim vai.”

Efigenia Geralda Teotônio, moradora de Paracatu de Baixo

“É minha primeira celebração aqui na comu nidade de Paracatu e, quando eu cheguei, a gente acaba sentindo o impacto também, das

pessoas. Infelizmente, devido ao rompimento da barragem, as pessoas saíram de suas casas, distantes da comunidade. Quando chegam, veem as marcas, certamente é um momento de rever um pouco da história deles, de buscar um pouco da identidade, então acredito que, pra eles, é um momento importante, singular. Mas a gente percebe claramente que eles con tinuam unidos em orações e, enquanto comu nidade, isso é importantíssimo. Eles buscarem ver essa unidade, resgatando a identidade de les, mesmo diante de tantas marcas. No mais, é Deus para abençoar cada um deles e todos os visitantes também, que celebraram conosco. Agora é dar continuidade àquilo que já tem. A religiosidade está presente, então vamos bus car sempre fazer o que já era de costume.

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e eu agora. E o palhaço faz graça, brinca com as crianças, pede esmola, e o povo gosta.” Zé Nestor, morador de Paracatu de Baixo Padre Delvair Divino Xavier, Paróquia Monsenhor Horta e Cláudio Manoel Fotos: André Carvalho
Foto: Wilson Costa

O salão da Socorro pede socorro!

Às portas de se completarem sete anos do rompimento da barragem de Fundão, ainda nos deparamos com situações que nos remetem ao fatídico dia 5 de novembro de 2015. É o caso de Maria do Socorro Carneiro Lisboa. Desde que aconteceu o crime-desastre e sem trabalho remunerado, a Socorro do salão, como ficou conhecida em Barra Longa, amarga um enorme prejuízo.

“Eu, a vida toda, morei em Barra Longa e foi com muita dificuldade que consegui mon tar o meu salão de cabeleireira, debaixo da minha casa, a mais ou menos 100 metros do rio Carmo. E aí, como todos sabem, no dia 5 de novembro, a barragem rompeu e des truiu todo o meu trabalho de anos e anos. Com a renda do meu salão, eu tinha meu di nheiro e podia ajudar meu marido, Ninho, com as despesas da casa. Agora meu marido tem que arcar com todas as despesas sozi nho. Eu ainda cuido de minha mãe enferma, com 82 anos, e meu marido ainda tem que pagar uma colaboradora para me auxiliar no cuidado da casa e de minha mãe. Eu tô com medo de não conseguir aposentar, pois tive que parar de pagar a previdência pri vada que vinha pagando e, ainda por cima, tive que resgatar todo o recolhimento que havia feito até então para arcar com meus compromissos.

Meu marido, Antonio Lisboa, que todos chamam de Ninho, estava completando 54 anos naquele dia e o presente que recebeu foi esta maldita lama que acabou com nosso sossego. Hoje, para dormir, preciso tomar remédio. Ô, Meu Deus, que tristeza isso que a Renova faz com a gente.”

Maria do Socorro Carneiro Lisboa, moradora de Barra Longa

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Por Maria do Socorro Carneiro Lisboa Com o apoio de Sérgio Papagaio Fotos: Sérgio Papagaio

Quantas escolas o rejeito destrói?

A escola feita pela Renova, inaugurada em 7 de dezembro de 2016, para dar assistência educacional à população de Gesteira depois que a antiga sede foi destruída pela lama de rejeitos, foi fechada pela Defesa Civil em meio à pandemia, na época das chuvas, por problemas de estrutura. Goteiras e rachaduras afastam crianças dos estudos. Agora, meninos e meninas têm de acordar de madrugada para se deslocar até a comunidade mais próxima, de Taboões, a cerca de 10km de Gesteira, para estudar.

“Eu, como sempre, acho isso um absurdo, não ter uma autoridade para estar retornando essa escola para a comunidade, sendo que tinha uma escola de primeira qualidade. A Renova veio e construiu uma escola que não tem estrutura, não teve uma duração para as crianças da comunida de, foram mais ou menos três anos só. O povo tá saindo do território, porque estão achando isso muita dificuldade para a criança, né? As crianças têm que acordar de madrugada para ir para outra comunidade estudar, elas voltam tudo cansada, dormindo na van, é muito cansativo. Eu acho um absurdo que não tenha ninguém para levantar essa pauta para reconstruir a escola o mais rápido possível. Sete anos esperando é muito triste.

Eu já fui cantineira e trabalhava na escola, me aposentei. Vejo como uma prioridade para a co munidade a escola retornar o mais rápido possí vel, é muito cansativo, tanto para o aluno quanto para a família, as crianças, os pais preocupam.

Era uma escola muito bem equipada e, hoje, a gente vê uma comunidade sem escola, as pessoas querendo retornar para o território, mas não têm como, porque os filhos precisam estudar. Isso é uma dificuldade muito grande, está impedindo que as pessoas retornem e tá levando as pessoas a tomar essa decisão de ir para fora. Isso tudo por causa desse crime, dessa lama que veio destruin do tudo, rompendo com tudo da nossa vida, da nossa história.”

“Ai, nossa escola, bonita, né? Não tem aluno, tá fechada, os alunos têm que sair daqui para ir es tudar em outra comunidade, uma pouca vergo nha. A escola é linda, mas, no mesmo instante que chove aqui fora, chove lá dentro, serviço mal feito que a Renova fez. Quando precisamos utili zar para alguma coisa, uma reunião, não pode, muita gente impede, não podemos nem pegar a chave para ter acesso. Quando tinha a outra es cola, a gente usava ela quando quisesse, era só pedir e tinha o salão ao lado também, que dava para fazer tudo. Hoje temos que fazer do lado de fora, na quadra, e a quadra também está cheia de esgoto, porque é um pouco caso com a nossa co munidade. Toda vez que a gente precisa de usar, eles não entregam a chave e, quando entrega, é na má vontade, uma confusão, falam que precisa de uma autoridade, aí fica lá fechada, para quê? Igual museu fechado. De museu já basta o Ges teira lá embaixo, que a lama derrotou, detonou tudo, a outra escola, igreja, e hoje aqui não tem nada para usar, para fazer uma reunião.”

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Fotos: Marli Gomes Silva

Rainha dos Milagres e Mãe preta deste Brasil

Não me dê migalhas, nem presentes patri moniais,

Não construa templos para mim, nem pa lacetes pra eu morar,

Não gaste seu tempo rezando, pra me ensi nar a trabalhar, Nem ponha flores nos pés das estátuas, que ali estão a me representar,

Pois as estátuas não admiram e nem po dem cheirar, Me dê o seu coração, com toda a capacida de intrínseca de poder amar,

Eu moro no céu, quem precisa de templos e palacetes está nas ruas, sem ter casa de morar, Encontre um meio de ensinar quem passa fome, sem ter comida, nem onde trabalhar, Plante alimentos e sapatos para enfeitar os pés da fome e a quem descalço anda a caminhar, Por fim, antes de por mim rezar, faça o que meu filho disse, quando aí esteve a lhes ensinar, quando tive fome e me destes de comer, pois, assim como o Cristo, é a mim, sua Mãe preta, que alimentas, seguindo o ensinamento de Jesus, quando dás a quem tem fome um pedaço de cuscuz.

Mariana - MG A SIRENE10 PARA NÃO ESQUECER Outubro de 2022
Foto: André Carvalho

Pessoas atingidas de Mariana ainda sofrem com a contaminação ambiental

Às vésperas de completar sete anos do maior crime socioambiental do Brasil, o rompimento da barragem de Fundão (Samarco, Vale e BHP), em Mariana-MG, pessoas atingidas continuam sofrendo com a contaminação nos locais onde residem e com dificuldades em retomar suas vidas

Ainda não é possível conhecer todos os danos provocados pelo crime de Mariana, que se desdobram à medida que a reparação não é realizada, em um cenário de constantes violações de direitos. O risco de contami nação pela dispersão do rejeito no ambiente segue sendo ignorado pelas empresas-rés no processo, que afirmam que o resíduo de minério presente hoje nos territórios atingidos não apresenta riscos, enquanto estudos inde pendentes, feitos com as metodologias usadas pelo Ministério da Saúde, evidenciam a contaminação das áreas afetadas pelo rompimento.

Segundo o estudo independente realizado em 2019 pelo Laboratório de Educação Ambiental, Arquitetura, Urbanismo, Engenharias e Pesquisa para Sustentabilidade (LEA-AUEPAS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), foram detectados elementos contaminantes no solo: ar sênio (As), cromo (Cr) e mercúrio (Hg); na água: arsênio (As), chumbo (Pb), mercúrio (Hg), níquel (Ni), ferro (Fe) e manganês (Mn); e em leite de vaca: chumbo (Pb). No mesmo ano, um outro estudo feito a pedido do Ministério Público Federal (MPF) pela empresa AMBIOS - Engenharia e Processos Ltda. indicou contaminação ambiental na poeira domiciliar com cádmio (Cd). Ambos os estudos dizem sobre a necessidade de acom panhamento constante da contaminação ambiental, mas na prática não houve continuidade.

Esses contaminantes, quando em concentrações altas no organismo, podem causar danos graves à saúde em médio e longo prazo, com doenças que podem se passar por alergias, escamações de pele, queda de pelos e até casos de cânceres.Esses estudos evidenciam que a saúde das pessoas que convivem diariamente com esses contaminantes possa estar prejudicada ou que venha a ser prejudicial no futuro. Quem vive nas áreas atingidas e se alimenta dos produtos provindos dessas áreas corre o maior risco.

Assim, quem já teve sua vida arrasada com o rompimento da barra gem de Fundão continua, ainda hoje, sofrendo com as consequências do crime, bem além do que é reconhecido pelas empresas. Enquanto o tema não é tratado como uma temática de saúde pública nos municípios afeta dos, as pessoas atingidas não conseguem investigar, por meio de exames, a possibilidade de terem no organismo algum elemento tóxico associado à contaminação ambiental. Os exames e o tratamento adequado ainda são objeto de luta desses grupos.

Acompanhado pela Assessoria Técnica Independente (ATI) da Cáritas MG, Clodoardo Carneiro Cerceau, morador atingido pela barragem de Fundão na comunidade de Pedras, em Mariana, relata que teve toda a área “de baixada” tomada pela lama. “Nós perdemos essa área… A lama acabou com as capineiras nossas quase tudo”, afirma, que complementa: “aqui, não se produz mais”. Essa área era a mais produtiva do terreno em que ele e sua família cultivavam toda a alimentação para o rebanho leiteiro, principal atividade econômica do núcleo familiar. Sem amparo e reconhecimento das dificuldades por parte da Fundação Renova, a família fez tentativas de trabalhar na área atingida pela lama, com a utilização de adubação re

comendada e uma grande quantidade de esterco, mas sem sucesso. Assim como ele, outros também já tentaram conviver com esses rejeitos e não têm conseguido.

Outros estudos também apontam para as dificuldades de produção nas áreas afetadas. Na pesquisa realizada por por Fernanda Cruz (2018), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foram avaliados o crescimento inicial de diversas espécies de plantas cultivadas no rejeito de minério oriundo do rompimento da barragem de Fundão. Apesar de as sementes de todas as espécies estudadas terem brotado no solo contamina do com rejeito, o crescimento foi consideravelmente menor no rejeito em comparação com o plantio no solo sem contaminação. Também foi obser vado que as plantas cultivadas em solo contaminado pelo rejeito acumu laram menor desenvolvimento em comparação com as cultivadas no solo sem essa contaminação. Os resultados desses estudos justificam as queixas apresentadas por diversos atingidos, que, mesmo com utilização de uma grande quantidade de esterco para adubação da área atingida pela lama, não obtiveram adequado desenvolvimento das culturas.

A Cáritas MG, no exercício de suas atribuições de promoção de asses soria técnica às pessoas atingidas pela barragem de rejeitos da Samarco (Vale e BHP), tem feito o assessoramento multidisciplinar das comunida des atingidas de Mariana, conforme análises técnicas que consideram a realidade local e suas necessidades, com o objetivo de assegurar a garantia dos direitos conquistados por essas comunidades e a efetivação da repara ção integral. Entretanto, casos como o de Clodoardo são frequentes. Falta de reconhecimento das pessoas atingidas, descumprimento de acordos ju diciais, violação de direitos e falta de transparência com as informações são ações recorrentemente observadas nos territórios.

REFERÊNCIAS

Cáritas MG. Dossiê NFPD0008: processo de cadastramento das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana-MG. Mariana: Cáritas Brasileira - Regional Minas Gerais, 2018. CRUZ, Fernanda Vieira da Silva. Desempenho de sementes e plântulas de espécies arbóreas no rejeito oriundo do rompimento da Barragem de Fundão (Mariana, MG). 2018. 46 f. Dissertação (Mestrado em Fisiologia Vegetal)Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. LASCHEFSKI, Klemens Augustinus. Rompimento de barragens em Ma riana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por des possessão. Ambientes, v. 2, n. 1, p. 98-143, 2020.

Mariana - MG A SIRENE 11PARA NÃO ESQUECER Outubro de 2022
Por Anna Rosa Chagas e Maurílio Batista, assessores técnicos da Cáritas em Mariana Milho cultivado em terreno livre da lama de rejeito de mineração / Milho cultivado em terreno acometido pela lama de rejeito de mineração Fotos: Arquivo pessoal de Clodoardo Carneiro Cerceau

No mês em que o Brasil celebra sua padroeira, Nossa Senhora Aparecida, mais uma vez trazemos às páginas do Jornal A SIRENE as celebrações de fé que as pessoas atin gidas têm insistido em realizar, apesar das violências, do sofrimento, das atribulações e da falta de justiça. Em se tembro, os territórios receberam as festas do Menino Je sus e de Nossa Senhora das Mercês. Nós acompanhamos e contamos como foi. Tem sido assim ao longo de todo o ano, graças ao arrefecimento da pandemia de COVID-19, à teimosia das pessoas que organizam as comemorações e à fé de quem acredita.

Sejam festas católicas, evangélicas, de outras religiões, festejos populares, esses eventos demonstram a crença e a resiliência das comunidades em um futuro que vai ser diferente do presente de luta, sem nunca esquecer o passado, marcado pelo crime de novembro de 2015. São, também, encontros para manter vivas tradições e impe dir o apagamento que a máquina minerária não desiste de promover. Nos territórios de origem, as comunidades demarcam sua presença e existência; nos canteiros de obras dos reassentamentos, atestam seu pertencimento e demandam direitos.

Além de ser dedicado à padroeira, outubro também é mês das crianças. Ou deveria ser. Em Gesteira, a escola que a Renova construiu não prestava e está fechada. É só mais um exemplo do descaso completo com que a dita fundação e as mineradoras tratam a parcela da população que, constitucionalmente, deve ser prioridade absoluta, o grupo que vai levar adiante o legado das pessoas atingidas e que deveria – mas não é – ser ouvido e respeitado.

EDITORIAL

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