A Sirene - Ed. 81 (Janeiro/2023)

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PARA NÃO ESQUECER | Ano 8 - Edição nº 81 - Janeiro de 2023 | Distribuição gratuita
SIRENE
A

BHP PEDE A INCLUSÃO DA VALE COMO RÉ EM PROCESSO NO REINO UNIDO Dezembro de 2022

A mineradora anglo-australiana BHP, co-controladora da Samarco, pediu à Justiça do Reino Unido que coloque a mineradora brasileira Vale, que também controla a Samarco, no processo que corre no local. Segundo o pedido da BHP, em caso de condenação na Europa, a Vale deverá contribuir com os valores devidos. Juntas, BHP e Vale detêm o controle total da Samarco, responsável pela barragem de Fundão, que se rompeu em novembro de 2015. Além dos processos que correm no Brasil, as mineradoras são interpeladas judicialmente no Reino Unido.

MAIS UMA JOIA IDENTIFICADA 20 de dezembro

A Polícia Civil de Minas Gerais informou a identificação da supervisora de mina Cristiane Antunes Campos, de 35 anos, uma das vítimas fatais do rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. O crime-desastre, que ocorreu em 25 de janeiro de 2019, matou 272 pessoas, das quais três ainda não foram identificadas. Às vésperas de completar quatro anos da catástrofe minerária, o Jornal A SIRENE se solidariza com a família de Cristiane e com todas as famílias atingidas pelo rompimento. Esperamos que as três últimas joias sejam identificadas com brevidade.

ATI RETOMA ATIVIDADES

4 de janeiro

Newsletter do Jornal A SIRENE

Todos os meses, o Jornal A SIRENE faz uma curadoria de informações relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão e à mineração. Se quiser receber nossa newsletter mensal, A SIRENE INFORMA, inscreva-se: https://jornalasirene.substack.com/

ATENÇÃO!

Não

assine nada

Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista.

Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

EXPEDIENTE

Após o recesso de Natal e Ano Novo, a Cáritas MG, ATI (Assessoria Técnica Independente) das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, retomou suas atividades nesta quarta-feira, 4 de janeiro.

CABF E CÂMARA DE MARIANA DISCUTEM IPTU

REASSENTAMENTO 21 de dezembro

Após reunião entre a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e a Câmara Municipal de Mariana, com participação da Cáritas MG, ficou decidido que o IPTU em nome dos proprietários atingidos e das proprietárias atingidas nas casas dos reassentamentos só será cobrado a partir da aprovação do “habite-se”. O IPTU de 2023 foi lançado em nome da Renova, que ficará responsável pelo pagamento caso a transferência da propriedade para as pessoas atingidas não seja feita até maio de 2023. Atualmente, o valor se refere apenas à metragem dos terrenos, porque as construções não foram registradas e regularizadas pela Prefeitura. Segundo a Receita Municipal, não haverá mais isenções de tributos como havia nos territórios de origem. As pessoas atingidas manifestaram receio sobre o aumento dos valores devido às construções. No início do próximo ano, uma comissão deverá ser criada para facilitar a lavratura de escritura dos imóveis concluídos.

AGRADECIMENTO ESPECIAL

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Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Bruno Milanez, Camila, Daniel Rondinelli, Gedma Alejandra Salamanca Rodriguez, Geraldo Martins, Jussara Jéssica Pereira, Lucia Maria Fantinel, Valeria Amorim do Carmo e Virgínia Buarque. Para ajudar a manter o jornal, acesse: https://evoe.cc/jornalasirene

Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho Editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Eduardo Salles Filho e Laura Lanna | Reportagem e Fotografia: André Luís Carvalho, Crislen Machado, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Marcella Torres, Maria Eduarda Alves Valgas, Pedro Henrique Hudson, Stephanie Locker, Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Eduardo Salles Filho, Mateus Paiva Chagas Carneiro | Apoio: Cáritas MG, Programa de extensão Sujeitos de suas histórias (UFOP), Curso de Jornalismo da UFOP, Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFOP, Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Foto de capa: André Luís Carvalho | Fontes de recursos: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A Sirene. ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP. CABF.

Mariana - MG A SIRENE 2 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
DE

Opinião:

Papo de Cumadres: ano

novo mundo velho

As cumadres Consebida e Clemilda estão sentindo que o tempo parou no momento do rompimento da barragem, pois nada em suas vidas evoluiu depois que de suas casas saíram.

— Cumadre Clemilda eu tô venu falá tantu em anu novu, mas u que adianta u anu novu se as véia coisas tão tudu aí sem evoluí?

— Pensu também da mesma manera, nossas vida parece um pé de bananeira que deu caixu, tamus há sete anos du mesmu geitu, mas que diachu.

— Cumé que vamu comemorá u anu novu se tudo que nus rudeia tá du mesmu geitu, sempre com a cara feia, óia procê vê, as nossas casa de morá ês nem comessaru a fazê.

— Pois intão quandé, minha Nossa Sinhora Aparicida, que nossas casa vai ser contruída? Se num fosse nossa fé e nossas criança eu achu que nós duas já tinha mudadu pra dibaxu da terra pur farta de esperança.

— Pois é cumadre minina de Deus, agente tamu vivenu é de fé nu criadô de nossas vida e na nossa Senhora Aparicida.

— Intonsse, de manera, que de lá pra cá u anu num seja novu, mas que a nossa fé nu criador para u novo anu ganhe nosso aprouvu e que Jesus faça nascer em nós todu anu a esperança, de novu.

Mariana - MG A SIRENE 3 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Foto: Sérgio Papagaio

Alunas de Bento Rodrigues saem vitoriosas da Olimpíada Nacional em História do Brasil

Kelly e Lavynia, do 9o ano, e Laura, do 8o, estudantes da Escola Municipal Bento Rodrigues, participaram, com a orientação de sua professora Silvany Diniz Ferreira, da Olimpíada Nacional em História do Brasil - Aberta para Todos, promovida pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As meninas chegaram à final e levaram, como prêmio, bolsas de iniciação científica individuais de R$ 100 por mês, durante um ano, concedidas pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A competição teve quatro etapas com provas e atividades diversas, até novembro. Na última, elas falaram sobre a Igreja de São Bento, patrimônio histórico e cultural da comunidade destruído pelos rejeitos da Samarco, Vale e BHP. O convite para participar veio da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por meio do projeto de extensão “As escolas de Mariana e a Olimpíada Nacional em História do Brasil”.

Mariana - MG A SIRENE 4 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Por Kelly Mary Chaves, Laura Alves Dias, Lavynia Beatriz Felipe Silva e Silvany Diniz Ferreira Com o apoio de Stephanie Locker Geminiani Fotos: Maria Eduarda Alves Valgas

“Um amigo meu da UFOP me falou sobre as Olimpíadas, que era um projeto legal. Nós participamos no início do ano da ONHB14 [Olimpíada Nacional em História do Brasil 14] e fomos até a quarta fase. Foi a primeira vez que estudantes de Mariana foram até essa fase. No fim do ano, teve essa Olimpíada aberta, para quem quisesse participar, a ONHBA2, que tem a categoria ‘escola pública’. É uma Olimpíada nacional, começou com 5.000 pessoas. Os 400 melhores ganhariam uma bolsa de 100 reais por um ano. As meninas quiseram e, quando ficaram sabendo, vieram atrás de mim. Na quarta fase, a tarefa era escolher um patrimônio da localidade e as meninas escolheram a Igreja de São Bento, que foi destruída pelo rompimento da barragem. A princípio pensamos na Igreja das Mercês, mas elas queriam a de São Bento, tem mais significado para elas. Elas foram ousadas de colocar como patrimônio algo que já estava no chão. De noite, no dia de entregar essa tarefa, o site começou a dar problema e a gente ficou morrendo de medo de não ter como enviar. A Kelly ficou até 1 da manhã tentando. No final, fomos aprovadas. Elas fizeram todas as fases, eu ajudava e discutia, mas quem ‘batia o martelo’ eram elas. Elas ficaram super empolgadas, motivadas a conhecer o mundo da História. É uma Olimpíada da Unicamp, nacional, e elas foram até a última fase. Eu senti que elas tiveram maior interesse pela História, depois das Olimpíadas, maior curiosidade, mais atenção. As provas não são fáceis, elas precisam realmente pensar por elas, não é nada óbvio. E elas vestiram a camisa, foram atrás, se aprofundaram no assunto, mergulharam nas tarefas. A UFOP deu uma oficina de Paleografia para auxiliar as meninas. É muito desafiador, o mais interessante é que elas realmente se interessaram nos desafios e foram vitoriosas!”

“Eu participei pela experiência de algo novo, foi indo e eu fui gostando, a gente vai aprendendo junto e é muito gostoso de fazer. A experiência é muito boa, mas também cansa um pouco. Mas, no cansaço e na emoção de estar fazendo tudo, você até esquece que cansa ou que, às vezes, é difícil. Foi bom, porque, como a gente participou da anterior, vimos que nosso esforço na anterior ajudou muito nessa. Foi muito bom ver que a gente evoluiu, aprendeu, eu gostei demais. A gente falou sobre a Igreja de São Bento, porque a gente cresceu lá, metade das nossas vidas foi lá, e como a igreja representa muito Bento, mais gente deveria saber dela. Os monitores da UFOP também foram essenciais nas etapas, ajudaram muito a gente, eles também fazem parte disso.”

“Foi a professora Silvany que me falou sobre a Olimpíada, o projeto de extensão da UFOP e me chamou pra participar. Eu gosto muito de procurar oportunidades extracurriculares para o meu currículo estudantil, então, quando tem uma oportunidade como as Olimpíadas, eu gosto. É um pouco cansativo, a ONHB tem muitos textos e a gente tem que ler todos eles, mas é uma experiência muito legal e inspiradora pra gente participar de novo. Essa foi a segunda vez que participamos e é um incentivo que a gente tem, é uma experiência muito legal, muito abrangente. Eu esperava que a gente fosse chegar até o final, porque veio com a bagagem muito boa da Olimpíada anterior. Ser reconhecida, saber que fomos uma das três melhores equipes do 9o ano no nosso estado foi sensacional, muito incrível! A gente teve que desenvolver um pensamento crítico para as questões da ONHB, isso foi essencial. A gente tem que democratizar o acesso às Olimpíadas no Brasil, não é todo mundo que conhece, e é uma oportunidade muito enriquecedora.”

“A ONHB é uma experiência educativa muito gratificante, você se diverte, ganha novos conhecimentos, uma nova visão sobre a história, se enturma, trabalha em equipe, isso aproximou muito a gente. Eu pretendo participar das próximas Olimpíadas, é maravilhosa a experiência. A minha família sempre foi muito ligada às festas de São Bento, eles ajudavam a planejar as missas, então, depois que a barragem estourou, minhas tias vão sempre lá, elas têm a chave da igreja, continuam organizando as festas. Então, quando Silvany falou que íamos fazer o texto sobre a Igreja de São Bento, me ofereci de procurar fotos, a história da igreja e aí fomos desenvolvendo. A maior surpresa da ONHB foi ela ter acabado e a gente pensado que não tínhamos ganhado a bolsa, quando abrimos nosso e-mail, descobrimos que ganhamos a bolsa de iniciação científica, todo mundo surtou, foi gratificante.”

Mariana - MG A SIRENE 5 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Kelly Mary Chaves, moradora de Bento Rodrigues Laura Alves Dias, moradora de Bento Rodrigues Meninas analisam obra de Rugendas na biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Sociais

“Tem como ser feliz assim?”

A escola municipal de Pedras, subdistrito de Mariana, não funciona há muitos anos. O pequeno pátio recebe, uma vez por semana, profissionais da Secretaria de Saúde para atender à comunidade. Ao fundo, a sala de aula ainda exibe marcas de outros tempos: restos de um alfabeto colado na parede, um mural de aniversários desbotado. Num canto, livros antigos, empoeirados, com forte cheiro de mofo, se amontoam num armário de ferro, perto de adereços de uma quadrilha espalhados no chão. Os vestígios de estudantes e professores(as) que não ocupam mais o espaço convivem com camas, sofá, cômoda, espelho, mesinha com mantimentos. É ali que Dona Mirtes da Luz Gonçalves das Graças mora, desde a pandemia de COVID-19, quando a casa dela, há poucos metros, foi interditada pela Defesa Civil.

O imóvel em que viveu por 35 anos escapou, em 2015, do rejeito da Samarco, Vale e BHP, mas a máquina minerária chegou à sua porta quando a Renova passou a movimentar caminhões pesadíssimos na região, o que causou trincas e rachaduras em várias casas, inclusive a dela. Após reclamações, o fluxo cessou, mas não sem destruição. Desde então, Mirtes tenta, sem sucesso, ser reparada para conseguir consertar sua casa. O quarto onde Mirtes dormia tem trincas do teto ao chão, assim como os outros cômodos da casa, onde as rachaduras avançam na laje. Impedida de voltar ao lar que construiu com as próprias mãos, desacostumada a viver em Mariana e ignorada pela Renova como atingida, restou à Mirtes se abrigar em uma sala de aula da antiga escola em que seus filhos estudaram, com insegurança, sob risco de infiltrações e profundamente triste.

“Vim pra cá depois da pandemia. Tava na minha casa, a casa começou a abrir, trincar. Foi abrindo. O meu local é aqui, a minha vida toda é aqui, meu trabalho todo foi aqui, todo mundo me conhece. Aí começou aquelas trincadura, rachadura, eu fui atrás do pessoal da Renova, nem satisfação eles davam, nada, nada. Fui atrás deles, conversei com eles, pedi pra arrumar um barraquinho pra mim, ninguém fez nada! A minha casa ficou cai, não cai. E eu indo atrás, mandando foto, ninguém faz nada. Quando eu ia lá: “ah, ninguém tá sabendo”.

Fui pra Defesa Civil. Ela veio, tirou foto, fez tudo que tinha que fazer. Fui chamada na prefeitura para poder alugar um local [com aluguel social], pagava 300 contos, eu inteirava o resto, mas não sei onde eu ia achar aluguel nesse preço…

E eu com remédio pra comprar, sem trabalhar, sem condição de trabalhar, usando remédio forte. Uso remédio pra dormir, uso remédio de depressão. E tem vez que ainda não durmo. Não tem como dormir. Hoje eu não queria estar nessa situação, não. Eu queria tá naquela casa que corri atrás, fiz tudo pra tá nela e não tô. Eu tô nesse desespero, de déu em déu, porque isso é sofrimento, deita, não dorme. Isso é uma tristeza pra mim. Toda vez que eu vou lá na Renova, dizem: “tá oiando”, “ah, não tem resultado de nada”, “não tá sabendo”. A Renova ofereceu 7 mil reais pra mim. O que vou fazer com 7 mil reais? Não vai dar nem pra pagar os remédios que eu já comprei. Não dá pra fazer nada.

Eles tão fazendo hora com minha cara, me fazendo de idiota, me fazendo de besta. Minha saúde, ó, foi tudo pra lama. Não é querer demais, não, é que minhas coisas foram destruídas. Eu tô ao Deus dará.

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A escola que abriga também aprisiona, e a insegurança perturba o sono Fotos: André Carvalho No prédio da escola também fica um Posto de Saúde improvisado, ao lado do ponto ônibus do subdistrito, em uma rota de fuga Na antiga sala de aula transformada em abrigo é preciso proteger a cama e livros escolares antigos das goteiras Por Mirtes da Luz Gonçalves das Graças Com o apoio de Karina Gomes Barbosa

Se não fosse amigos, filhos, família, eu não existia mais não. A Renova nunca veio aqui. Minhas camas, minhas coisas tavam em tempo de estragar. Não é trem de rico, não é boa. É de pobre, com minhas alegrias. Pra mim, é uma alegria ter isso aí, ó, porque foi meu suor.

Não existe uma coisa dessa, você lutar a vida toda, eu fiz minha casa nos braços. Trabalhei de servente pra fazer minha casa, pensando: “o dia que eu não guentar trabalhar, eu tenho um teto pra mim ficar embaixo dele”. E hoje eu não tenho.

Eu plantava, pra todo lugar, pros outros, horta. Colhia verdura, tudo que você imaginasse eu colhia, porque não tinha preguiça. Eu plantava tudo que existia, que era bom pra saúde, eu plantava. Hoje tá lá, tudo cortado de formiga. Eu tinha de tudo pra hoje não ter nada?

Eu fico aqui, vou lá em Mariana, volto. Lá tenho meus filhos, irmã, minha mãe, mas eu não me sinto bem sem o meu local. O meu local é meu.

É revoltante demais. Você não tá pedindo esmola, não. Você tá atrás do que é seu, do que você fez a vida toda, pra hoje eu tá nessa situação, nessa revolta, nessa tristeza.

Já tô perdendo coisa demais, tô perdendo minha saúde, tô perdendo tudo. Se eu der um infarto e morrer por falta de recurso deles, pelo menos esses trem aqui servem pros meus filhos. Eles pegam essas coisinhas. Se eu deixar na casa, vai cair tudo, quebrar tudo.

Tem dia que deito, durmo um pouquinho, começo a chorar, vem tudo. Eu aqui, gente, o que é isso? Preciso disso? Fiz minha casa, trabalhei demais, me machuquei, perdi muito sangue. Pra hoje, eu tá a Deus dará.

Quando a gente tá nessa situação, não quer saber de nada, quer saber de ficar quieta. Eu subo, ando mato afora, não tô indo muito mais em casa porque não tava me fazendo bem, na minha cabeça. Subo lá pra cima… Vou andar pra distrair, né?

Antes, minha saúde era muito boa, comia o que plantava, fazia coisa pra vender. Agora só Deus. Agora tenho de ficar provando de tempo em tempo uma coisa que tá provada, que não precisa provar. O que eles tão fazendo com a gente não é coisa que você consegue imaginar. Eu já tenho prova, tenho testemunha, tenho eu como testemunha, tem a casa, tem a conta, tem tudo. Tem o pessoal que sabe quanto tempo fico aqui. Quando precisaram da minha casa pra alugar, usaram. Agora que não vale mais, não reconhecem minha casa…

Meus netos vinham sempre brincar. Outro dia levei minha neta na casa, ela caiu no choro. Meus pais falavam, a gente tem que trabalhar, a gente tem que ter o teto. Falei isso pros meus filhos. Eu pensava que tinha meu teto.

Meu pai falou tanto comigo, fiz tudo direitinho que ele mandou, e hoje não tenho. Fiz mas não tenho.

Às vezes, não consigo dormir, fico sentada, pensando em tanta coisa que eu fazia, tinha minhas coisas tudo, minha cerâmica linda, jabuticaba, laranja, graviola, lichia, mandioca, abóbora. Sou apaixonada pela minha casa. Era pra tá na casa minha. Tem como ser feliz assim?

Quando você tem tudo na vida, senta alegre e pensa: “ó, eu tô feliz”. Quando você não tem, pensa o que vai ser de mim de agora indente? Hoje eu tô aguentando vir sentar aqui, pensando nas coisas que eles tão destruindo, não querem fazer nada pra mim. Daqui uns dias, será que vou ter força de vir, levantar, sentar? Você põe muita coisa ruim na cabeça. Sinto que tô morrendo junto com minha casa.”

Mariana - MG A SIRENE 7 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Na entrada da casa, Dona Mirtes exibe seus antigos instrumentos de trabalho como um segundo altar Na casa interditada, as paredes tomadas por trincas e rachaduras O telhado sobre o quarto de Dona Mirtes parece estar desabando O lar que ajudou a construir se tornou uma ruína da violência minerária

Homenagem à padroeira

No dia 12 de outubro, no distrito de Paracatu de Baixo, ocorreu um encontro da comunidade para celebrar o dia de Nossa Senhora Aparecida. A programação contou com uma missa na Capela de Santo Antônio, para dar graças à Padroeira do Brasil, que começou às 9h30. Após a celebração, aconteceu a 9a Carreata de Nossa Senhora Aparecida do distrito. Todo o evento contou com a presença de moradores, moradoras e pessoas amigas de Paracatu. Com mais de 50 carros, a carreata prestou homenagem à Nossa Senhora e ao seu Zezinho, figura importante para a comunidade, que faleceu no final de 2021.

Mariana - MG A SIRENE 8 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Por Marcella Torres e André Luís Carvalho Fotos André Luiz Carvalho

Pelos direitos de todas as famílias

O crime da Samarco, Vale e BHP, em 2015, segue fazendo vítimas e transformando a vida de muita gente, mais de sete anos depois. Morte, luto, reassentamento incerto, injustiça. Cenário de dor. Dor que vem acompanhada, muitas vezes, de conflitos familiares ou mudanças na configuração das famílias. O rompimento da barragem de Fundão afetou, além de tantas outras coisas, o relacionamento das pessoas atingidas: como manter um convívio saudável com a saúde mental e física desgastada?

Assim a vida caminha e muitas pessoas atingidas passaram a compor novos núcleos familiares: nascimentos, novas uniões, separações, falecimentos. A Justiça de Minas Gerais decidiu que as famílias que se formaram entre 5 de novembro de 2015 e dezembro de 2020 têm assegurado o direito à moradia. Todas as pessoas atingidas podem preencher o cadastro para ter direito à indenização. A Samarco, por meio da Renova, deve garantir um imóvel para cada novo núcleo familiar, diz a letra da lei, mas, entre dever e fazer, há uma lacuna gigantesca de pessoas e de distintos modelos de família que seguem sem justiça e moradia.

do ano passado, naquela chuva que deu, aí eu coloquei lona lá. Pedi à Renova para arrumar minha casa, eles não fizeram nada, falaram que não podem fazer nada.”

“Quando o crime aconteceu, eu estava em Barra Longa e era casado. O meu processo de separação se deu também porque minha ex entrou em depressão, eu entrei em depressão. Eu tenho problemas de saúde também. Meu filho também entrou em depressão. Mudaram a gente de casa, até hoje não voltaram a gente para casa. Ela mora em outra casa com meu filho. Eu estou morando na minha casa, que continua interditada já faz quatro anos ou mais. Eu tentei um aluguel com a Renova e eles não arrumaram para mim. Aí, como o aluguel aqui em Barra Longa é muito caro, eu voltei para casa que está interditada e estou morando lá. A casa está toda rachada, o piso todo quebrado. E, até hoje, a Renova não deu nenhuma resposta. Entrou água na garagem no início

José dos Santos, morador de Barra Longa “Meu tio tinha uma união estável quando o crime aconteceu. Eles tinham um terreno juntos. Houve a separação dois anos depois da tragédia. E aí ele era tratado dentro do processo de reparação como novo núcleo. Então, no caso específico dele, de reparação, ele tinha direito de uso e de uma metragem no Novo Paracatu e, devido a questões de saúde, ele foi realocado dentro de Paracatu. Ao mudá-lo de terreno, a Renova também diminuiu a metragem dele de 800 metros para 250 metros quadrados, tirando assim todos os direitos de reparação que ele tinha, como alguns pés de fruta e o galinheiro. Ele adoeceu e eu fiquei responsável pelo processo. Aí eu comecei a perceber, mais ainda, como a Renova tratava ele com injustiça devido à sua baixa escolaridade. Eu vi que ele estava perdendo muito. Solicitei várias tratativas para que ele tivesse uma reparação justa.”

Anderson Jesus de Paula, que fala por seu tio Roberto Carlos de Paula, ambos moradores da comunidade de Paracatu de Baixo

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Por José dos Santos e Anderson Jesus de Paula Com o apoio de Tatiane Análio Com as chuvas, a situação já precária da moradia só piora A injustiça e falta de perspectivas atravessam o cotidiano das pessoas atingidas Fotos: Maria Eduarda Alves Valgas O descaso se mostra em cada canto da casa

Quem decide a repactuação?

Ocorreu, no dia 6 de dezembro, na Câmara dos Deputados, em Brasília, uma audiência pública para tratar sobre o processo de repactuação do acordo judicial firmado pela Vale, Samarco e BHP sobre as perdas e os danos causados a partir do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.

Na ocasião, representantes de movimentos sociais, assessorias técnicas, dos poderes legislativo e judiciário estiveram presentes e ativos na elaboração de argumentos sobre a possibilidade de retomar a elaboração do novo acordo.

Chama atenção o fato de que, mais uma vez, não houve participação direta das pessoas atingidas pelo crime-desastre, apesar de serem as mais interessadas na causa. As discussões recentes, construídas sem o envolvimento das comunidades, remontam ao primeiro trato, firmado em 2016, que determinou a criação da Renova, ação que culminou em incontáveis problemas.

A falta de inclusão das pessoas atingidas, à essa altura, exclui as articulações feitas há mais de um ano pelo Ministério Público Federal (MPF), por membros das comissões e moradores(as) em geral. As conversas em torno da repactuação se iniciaram em setembro de 2021 e, desde então, a falta de participação direta nas mesas de negociações era apontada, por pessoas atingidas, como um dos entraves na elaboração de uma proposta justa de reparação.

Apesar disso, durante meses, reuniões entre representantes das comunidades atingidas, MPF e Cáritas foram convocadas a fim de elaborar uma proposta ampla e assertiva. No entanto, devido à proximidade do período eleitoral e à discordância entre estados e empresas sobre prazos e valores, a possibilidade de firmar a decisão ainda neste ano foi descartada.

Recentemente, o tema da repactuação voltou a ser debatido. No dia 30 de novembro, a Advocacia Geral da União (AGU) conduziu, segundo coluna do jornalista Gui -

lherme Amado, do site Metrópoles, reuniões para avançar em encaminhamentos favoráveis às mineradoras sobre o acordo, antes do término do governo atual. Uma semana depois, a audiência pública na Câmara possibilitou, mesmo que de maneira limitada, a demarcação de pontos e cobranças quanto à forma como será elaborada a repactuação em Mariana. Wellington Azevedo, membro do Fórum Permanente em Defesa da Bacia do Rio Doce, e Rodrigo Vieira Pires, secretário executivo da Cáritas Regional Minas Gerais, foram enfáticos ao ressaltar que uma decisão fechada às pressas, na surdina, não tem credibilidade alguma.

Uma das principais posições levantadas pelos representantes das pessoas atingidas foi a necessidade de firmar o pacto no próximo governo. Os deputados Rogério Correia (PT-MG) e Helder Salomão (PT-ES), presentes na reunião, concordaram em levar para a equipe de transição do governo federal eleito a proposta de que tomem conhecimento do caso e assumam a responsabilidade na construção participativa do novo acordo.

Mariana - MG A SIRENE 10 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Fotos: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Solidariedade e transformação social: saiba mais sobre a atuação da Cáritas em Minas Gerais

Nós, da Cáritas MG, como vocês sabem, há mais de seis anos estamos juntos em Mariana como Assessoria Técnica Independente (ATI) das pessoas atingidas pela barragem de Fundão. Talvez, no entanto, não saibam que a Cáritas atua em diversos países e que a Cáritas Brasileira é um organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com trajetória de mais de 60 anos junto às pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em Minas Gerais, a Cáritas tem 37 anos de história trabalhando com diversos públicos, executando projetos e ações no âmbito da assistência, do assessoramento e da pastoralidade transformadora na missão de construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Nosso trabalho com e para as pessoas atingidas pela mineração vai além da ATI. Há mais de 15 anos, a Cáritas MG atua de forma preventiva, mitigadora e reparatória junto às comunidades atingidas por grandes empreendimentos. Somos uma instituição que promove debate e acúmulo sobre a temática, integramos diversos espaços de âmbito regional, nacional e até internacional, que discute a proposta de uma Ecologia Integral e os desafios comuns enfrentados pelas comunidades que vivenciam violações de direitos socioambientais. Buscamos construir espaços seguros de comunhão e fortalecimento com essas comunidades, desenvolver e incentivar experiências concretas de prevenção, ações coletivas e tecnologias sociais, além de espaços de diálogos, comunicação e articulação pela defesa e garantia de direitos das pessoas atingidas por esses conflitos.

Para tanto, a Cáritas MG se beneficia de uma rede ampla de apoio aos seus projetos. Atualmente, executamos 24 projetos, com mais de 15 financiadores distintos. Justamente por causa dessa história, do nosso papel social e transformador, da atuação com as populações em situação de vulnerabilidade, da nossa missão de estar junto e ao lado das pessoas em situação de violações de direitos, que as pessoas atingidas pela barragem de Fundão em Mariana escolheram, em 2016, a Cáritas como sua ATI.

O papel de ATI é desempenhado, com muito orgulho, pela Cáritas MG, com o objetivo de promover a participação livre e informada das pessoas atingidas na pauta da reparação integral das perdas e dos danos, sejam eles materiais ou imateriais, sofridos por essas pessoas de forma individual e/ou coletiva. Destacamos nossa

atuação ao lado das pessoas atingidas em espaços como manifestações e atos públicos por direitos, audiências públicas, atendimentos individuais, reuniões de comissão, encontros de pessoas atingidas, grupos de base, entre outros. Tais espaços são utilizados justamente para ampliar e repercutir as vozes das pessoas atingidas, já que, muitas vezes, elas não são ouvidas e têm a participação interditada nas discussões dos próprios direitos em diversas mesas de negociação dos acordos e das instâncias deliberativas do que deveria ser um processo de reparação integral. Importa destacar também as instâncias de articulação e partilha entre pessoas atingidas de Mariana e de outros territórios atingidos pela mineração, uma vez que os debates sobre a reparação se dão de forma ampliada, pois os danos causados pela atividade predatória da mineração não respeitam limites municipais e estaduais.

Neste 2023 reafirmamos nosso compromisso com a promoção, garantia e defesa dos Direitos Humanos em suas mais diversas áreas, principalmente junto às comunidades atingidas pelos conflitos socioambientais. Em Mariana, seguimos firmes apoiando a luta por direitos das mais de 5 mil pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão e as várias violações desdobradas e perpetuadas no território. Para saber mais sobre a Cáritas MG, acesse: mg.caritas.org.br e www.territorioatingido.com.br.

Mariana - MG A SIRENE 11 PARA NÃO ESQUECER Janeiro de 2023
Equipe Cáritas reunida em Assembleia com o MPMG, em maio de 2021. Foto: Laís Jabace - Cáritas MG 1 Laura Lélis e Thalita Araújo foram assessoras na Cáritas MG em Mariana até setembro de 2022.

Começar um ano é, sempre, a chance de escrever uma história nova. A época marca, também, a passagem do tempo sobre nossas vidas. No caso das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, esses mais de sete anos significam espera, injustiça, incertezas, sem uma perspectiva concreta de conclusão.

É o que representa uma das histórias que contamos este mês, da Dona Mirtes, tão surreal como as violências que têm sido cometidas ao longo da Bacia do Rio Doce desde 2015. O sentimento de que as violações se perpetuam no tempo também está presente na matéria sobre as recentes discussões acerca da repactuação, que novamente excluem as pessoas atingidas, e nos relatos sobre as violências cometidas na reparação contra novos núcleos familiares – consequências naturais do fluir do tempo.

Mas esse período não está marcado apenas pelo que deixa de acontecer depois da catástrofe de 5 de novembro de 2015, que interrompeu vidas, sonhos, planos. A trajetória de estudantes da Escola Municipal Bento Rodrigues na Olimpíada Nacional em História do Brasil de 2022 prova a persistência diante das adversidades e a disposição de seguir adiante, de celebrar e conquistar.

Para nós, do Jornal A SIRENE, tem sido um desafio registrar dor e resistência, alegria, fé e injustiça, e tentar conciliar a cobertura de territórios, identidades, afetos e memórias que não são definidos somente pela perda. Narrar essa história (e essas histórias) precisa incluir dignidade e resiliência.

Iniciamos mais este ano cientes da responsabilidade que é contar com a confiança das pessoas protagonistas desse processo e alegres pela confiança que se fortalece a cada edição.

EDITORIAL

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