PARA NÃO ESQUECER | Ano 7 - Edição nº 76 - Agosto de 2022 | Distribuição gratuita A SIRENE
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JUSTIÇA INTIMA UNIÃO A CO OPERAR COM PROCESSO NA INGLATERRA Julho de 2022 Prevista para ser concluída no final de junho, a repactuação judicial da reparação dos danos decorrentes do crime-desastre do rompimento da barragem de Fundão deve ser assinada após as eleições. Isso porque não haveria consenso sobre os valores destinados às pessoas atingidas, que não foram incluídas nas negociações. Também não haveria consenso sobre os valores que cabem aos governos federal, estaduais e municipais. Agora, as comunidades têm mais tempo para estudar os termos do acordo, estabelecer as demandas e pressionar as mineradoras e a Justiça por um processo que tenha a efetiva participação das pessoas atingidas.
Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Escreva para: jornalasirene@gmail.com @Acesse: www.facebook.com/JornalSirenewww.jornalasirene.com.brjornalasirene
GRUPO DE INVESTIDORES VISITA TERRITÓRIO ATINGIDO 24, 25 e 27 de agosto Em diálogo com as comunidades atingidas, um grupo de investidores das mineradoras vem à Mariana para ver de perto a realidade local em relação à reparação do crime da Samarco, Vale e BHP. Trata-se de uma ação estimulada pelo processo de incidência internacional realizado pela Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão em Mariana (CABF) e pela Cáritas Minas Gerais.
Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Antenora Maria da Mata Siqueira, Bruno Milanez, Camila, Daniel Rondinelli, Elke Beatriz Felix Pena, Geraldo Martins, Jussara Jéssica Pereira, Leleco Pimentel, Padre João, Priscila Santos, Ricardo Salles de Sá, Valeria Amorim do Carmo e Virgínia ParaBuarque.ajudar a manter o jornal, acesse: www.evoe.com/jornalasirene. AGRADECIMENTO ESPECIAL
EXPEDIENTE Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho Editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Eduardo Salles Filho | Reportagem e Fotografia: André Luís Carvalho, Crislen Machado, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Maria Eduarda Alves Valgas, Stephanie Locker, Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Eduardo Salles Filho | Apoio: Cáritas MG, Programa de extensão Sujeitos de suas histórias (UFOP) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Foto de capa: André Luís Carvalho | Fonte de recurso: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A Sirene. Apoio da ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP.
NãoATENÇÃO!assinenada
ASSEMBLEIA COM O MINISTÉRIO PÚBLICO 17 de agosto O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) convida a todas as comunidades atingidas de Mariana para uma assembleia composta por duas pautas: 1) formação sobre educação financeira e prevenção aos golpes; e 2) discussão sobre a ida das pessoas atingidas para os reassentamentos Ocoletivos.encontro acontece às 18h no Centro de Convenções de Mariana.
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– Pois é, us atingidus estão percebenu u que a vale ta fazenu com este nó, tentandu separá e pô cada um por si só, mais muitus de nois que intendeu que du jeitu que tá caminhanu nois pra fortalecer tamus se ajuntanu, afinar a nota técnica que nois aprovemu nu CIF diz que sa mus todus uma comunidade só, os moradores margiando o rio Carmu, Gualaxu, seu afruen tes e todus us cursus de água, ó.
– Ué, cume que foi issu, num era sobre a comu nidade de Antônio Pereira?
– Eu achu que nois já miricia um titulu de Dotora Honoris Causa, pelu intendimendu du processu e pela nossa colaboração nesta –questão.Rum,mais é issu mesmu que eu pensu, até num importu com reconhecimentu que venha da academia, pois eu me sintu formada pela lida, e agraciada por muitas palavras de grati dão vindas das boca de argumas pessoa dessa nossa coorporação.
– Antes essas coisas paricia difici mas de tan tu lidar com u assuntu desta maniera escrita e falada que tem hora qu eu pensu que já sou uma adevogada.
Papo de Cumadres: Audiência pública na ALMG sobre direitos do povo tradicional de Antônio PereiraPorOpinião:Sérgio
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Papagaio Foto: Ricardo Barbosa - ALMG
No dia 13/07/2022 foi realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais uma audiência pública para buscar atender aos direitos da comunidade tradicional de Antônio Pereira. As cumadres Clemilda e Concebida foram convidadas, mas só Concebida pode ir.
– Pois intão, comu ocê num teve lá eu precisu te contá de duas recompensa que tive, que até me fez chorá. Primeru cumpadre Wilsu Nunes disse que a profição de garimpeiros e garimpei ras que nois sempre usamu pra dus nossus fius tá tratanu, passa de pai pra fiu e nois crece sa benu sem precisá de niuma facurdade freqüen tá. Dispois um mininu disse que antes da vale cercá u terrenu que ês a vida intera usô, u seu cavalo que lá sempre pastô, assim ele diz: ele era feliz, agora tá triste, sem ter lugar celtu de pastá até nu asfartu o cavalu dele anda a vagá. – Meu Deus, que grandeza deste menimu que intende a felicidade dum cavalu, e a pe queineza da vale que num quer incheugá a triteza das comunidade que ela vive a mar tratá, nesse sintidu a vale é uma máquina de produzi atingidu.
– Cumadre Clemida, que pena que ocê num pôde ir lá, ês falaru que a ardiência era sobre a comunidade de Antônio Pereira, mas eu vi ês abordá assuntu que vale para tudu quantu é atingidu deste Brasil sufridu.
Foto: Alice Silva
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Truculência e revitimização: Renova ignora reivindicações e processa atingidos
a Renova apresente propostas de reparação adequadas. As ações continuaram a ocorrer ao longo dos dias, de forma alternada entre grupos menores. Reação da Renova No dia 5 de julho, a Renova lançou uma nota em que insinuou que as manifestações causa riam impacto no cronograma das obras - sem mencionar as próprias responsabilidades nos atrasos e problemas nos processos de repa ração. Nove dias depois, em 14 de julho, a 2ª Vara Cível da Comarca de Mariana proibiu, sob pena de multa, a realização de reuniões ou manifestações nas vias públicas munici pais que dão acesso ao reassentamento de Pa racatu de Baixo. A organização não recebeu os manifestantes.
Por Crislen Machado Em manifestações que ocorreram, em dias alternados, desde o fim de junho até meados de julho, pessoas atingidas dos distritos de Paracatu de Baixo e de Monsenhor Horta reivindicaram o direito à moradia digna e a necessidade de reformas em suas casas. Os protestos ocorridos nas estradas que dão acesso ao reassentamento buscaram chamar atenção para a situação de famílias que não têm garantia quanto às moradias no novo Paracatu de Baixo nem quanto à reforma de suas casas em Monsenhor Horta. Ao invés de dialogar com as comunidades e atender às reivindicações legítimas, a Renova conseguiu, na Justiça, a interrupção das mobilizações e silenciou pessoas atingidas. Manifestações Nos dias 30 de junho e 1º de julho, por volta das 4 da manhã, um grupo de, aproximada mente, 50 pessoas saiu da sede de Mariana, no sentido da estrada que dá acesso ao novo Paracatu de Baixo. A ação durou cerca de 38 horas e interrompeu, por igual período, o acesso às obras na localidade. Os(As) mani festantes, movidos(as) por reivindicações in dividuais e coletivas, brigaram pela inclusão de famílias nos projetos, questionaram a rea lização de obras incompletas e denunciaram propostas inadequadas de reparação. Em Monsenhor Horta, os(as) manifestan tes reivindicaram a necessidade de início e conclusão de obras em imóveis danificados pelo intenso fluxo de máquinas pesadas no distrito. Em ambos os casos, as pessoas en volvidas prometeram insistir nos atos até que Quase sete anos após o crime da Samarco, Vale e BHP em Mariana, pessoas atingidas de Paracatu de Baixo e Monsenhor Horta ainda convivem com a incerteza quanto ao direito à moradia digna. O prazo inicial para entre ga dos imóveis era março de 2019, mas foi alterado, por decisão judicial, para agosto de 2020 e, depois, para fevereiro de 2021. Hoje, o atraso de quase um ano e meio está sujeito à multa de um milhão de reais por dia. As empresas, entretanto, recorreram da decisão e o pagamento está suspenso. Além do problema relacionado à demora na construção e na entrega das casas, moradoras e moradores de Paracatu de Baixo reclamam que não são ouvidos pela Renova, que não têm lotes ou projetos de casas no reassenta mento, que novos núcleos familiares não são reconhecidos e que não conseguem negociar com a empresa. Em relato à Cáritas Brasilei ra Regional Minas Gerais, Arlinda da Silva, moradora de Paracatu de Baixo, contou que deseja viver no reassentamento, mas que a Renova lhe ofereceu a reparação em dinhei ro, por meio de ligações, mas que seu desejo é viver junto à comunidade.
O uso do direito de reunião pelos(as) mani festantes ocorreu para denunciar os descum primentos de prazos e acordos feitos com a Renova e para reivindicar uma negociação justa para as famílias que ainda não tiveram seus direitos garantidos. A conclusão e a en trega das obras são de absoluto interesse das pessoas atingidas, e os atrasos são de total responsabilidade da organização. Esta ação silencia e revitimiza manifestantes que lutam por direitos garantidos constitu cionalmente, assim como ocorreu em Antô nio Pereira, onde a Vale S.A. moveu um pro cesso semelhante, que resultou na proibição da realização de manifestações em locais que dão acesso às minas. A exposição judicial das pessoas atingidas pelo maior crime socioam biental do país, que as caracterizam como responsáveis por atrasos nas obras, pode ser compreendida, segundo a Cáritas, como uma estratégia para desmobilização popular e ins tauração de conflitos internos na comunida de, apesar de ser de conhecimento geral que os atrasos na entrega das moradias já eram realidade muitos anos antes. Silva
Foto: Alice Silva Decisão judicial e desdobramentos A falácia do atraso nas obras e prejuízos fi nanceiros à Renova por conta das manifes tações se tornou um processo judicial contra as pessoas atingidas que se organizaram de forma pacífica, dentro dos limites da legali dade, mas foram processadas pela empresa. A decisão jurídica, nos autos do processo n.º 5003077- 87.2022.8.13.0713, concedeu às empresas autoras a antecipação do pedido de proibição de reuniões ou manifestações, tais quais ocorreram, nas vias que dão acesso ao reassentamento.
Uma nota publicada pela Cáritas, Assesso ria Técnica Independente que atua junto às pessoas atingidas de Mariana, lembra que a Constituição Federal garante o direito à reu nião e à manifestação pacífica, “sem armas, em local aberto ao público, independente mente de autorização judicial, direito este garantido, inclusive, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, no art. 15 do Pacto de São José da Costa Rica, ra tificado pelo Brasil por meio do Decreto n.º O678/1992”.acolhimento da tese proposta pela Reno va pela Justiça ocorreu de forma unilateral, sem espaço para a escuta das reivindicações dos(as) manifestantes. A assessoria lembrou ainda do direito à livre manifestação e à dis pensabilidade de aviso prévio para realizá-la: “o Supremo Tribunal Federal [...] definiu que a ausência de notificação ou aviso prévio não torna ilegal a reunião pública e pacífica, como consequência obrigatória. Isso porque a fun ção precípua da notificação ou do aviso pré vio, conforme previsto na Constituição, é zelar para que o exercício do direito de reunião se dê de forma pacífica, sem frustrar outra reu nião pública convocada para o mesmo lugar”.
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Foto: Alice
“Eu, a Cláudia, a Nenzica e o Antonio ajuda mos a organizar a festa. É a primeira vez que fazemos a festa de São Bento aqui no reas sentamento. Ela já foi feita lá no Barro Preto. No ano passado, a gente fez na Matriz Sagra do Coração de Jesus e, no primeiro ano da pandemia, foi remoto. Aí, nesse ano, a gente conseguiu trazer pra cá. Fizemos o tríduo em Mariana, na igreja Sa grado Coração de Jesus, e a gente pensou as sim: “ah, por que não fazer um dia lá, onde a gente já vem celebrando?”. Você vê os idosos que estão aqui? Eles não vão lá [no território de origem]. Aquela me nina que o padre pediu para jogar água é a minha irmã, Vilma, ela não voltou lá até hoje. Mas aqui, desde a primeira missa que teve, ela veio e minha mãe também. Tem a dona Marcelina, a dona Carminha… Os idosos vêm aqui, mas não vão lá porque eles ainda não sentiram essa vontade. E ainda tem mui ta criança e muito jovem que também não tem vontade de ir lá até hoje.” Rosilene Gonçalves da Silva, moradora de Bento Rodrigues “Quando chega o dia de São Bento, a gente lembra do casamento. Eu casei com meus dois meninos no colo. O Rafael tava lá em Belo Horizonte internado, assim que ele saiu da UTI, a gente veio pra casar rápido. A gen te chegou a marcar o casamento três vezes e desmarcar, porque ele passava mal, falava pro padre que hoje não ia dar não, pra mar car pra outro dia. Casamos no mês de maio, num domingo ao meio-dia. A gente ia casar no sábado, mas o padre tinha um casamento lá em Santa Bárbara e ele disse que os casa mentos aconteciam antigamente no domin go: “cês querem fazer?”. “Nós quer, uai”. Aí a gente casou no domingo, meio-dia com o sol quente, mas foi muito bom e bonito.”
Jordan Sacramento, morador de Bento Rodrigues “Lembrar do casamento é muito bom, foi um casamento inesquecível. Nós nos casamos dia 24 de maio e, em setembro, foi minha irmã. Nós fomos as últimas que foram casa das lá e, depois de tudo que aconteceu, é só a memória mesmo. Hoje a gente foi lá [em Bento Rodrigues] e eu falei com os meninos que foi ali que a gente casou. A Marina até fa lou: “mas não tem igreja aqui não”. E eu mos trei pra ela que ali era a igreja de São Bento, mostrei nossa casa, a casa da minha mãe. Ela acha estranho porque, quando ela chegou, já não tinha nada. O Miguel, não. Ele entrou com as alianças e guardou mais coisas na ca beça. A gente não deixa esquecer, sabe por quê? Porque foi a história da vida do pai e da mãe deles que ficou lá, enterrada. Lá ficou nossa história e aqui começa a deles. Eu falei com eles que a festa de São Bento, hoje, ia deixar a gente meio triste, sabe? De pois de tudo que aconteceu, foi a primeira vez que teve assim. Nesses anos todos, hoje que nós estamos comemorando, não como fazia lá, mas a gente reuniu a turma toda. Conseguimos ver todo mundo que não via há muitos anos. Já teve uma festa lá em Ma riana, mas não foi desse jeito, e no Bento an tigo teve, mas não é a mesma coisa. Minha mãe veio aqui, mas lá ela não vai de jeito ne nhum. Sabe, eu também não tive muita von tade de ir lá.”
Conceição Aparecida Sacramento, moradora de Bento Rodrigues
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Festejar São Bento em comunidade
Por Conceição Aparecida Sacramento, Efigenia Pereira Gonçalves, Jordan Sacramento, José Nascimento de Jesus (Zezinho do Bento), Monica dos Santos, Rosilene Gonçalves da Silva e Pe. Marcelo Santiago Com o apoio de Crislen Machado e Tatiane Análio Apesar dos percalços impostos pelo rompimento da barragem de Fundão e, mais recentemente, pela pandemia de COVID-19, a tradicional festa em comemoração ao dia de São Bento, em 11 de julho, continuou a ser celebrada pela comunidade de Bento Rodrigues. Nesse período de quase sete anos, as festividades vinham ocorrendo na sede de Mariana, no Bento de origem e remotamente. Com o avanço da vacinação e a diminuição das restrições, moradores(as), familiares e amigos(as) se reuniram para comemorar o dia do padroeiro da comunidade. Na sede houve a realização de um tríduo na igreja Sagrado Coração de Jesus, entre os dias 7 e 9 de julho. Todos os dias após as missas, os(as) fiéis se reuniram em uma partilha e confraternizaram com amigos(as) e conhecidos(as). No dia 10, houve festividades no reassentamento, com a presença da banda de Antonio Pereira, procissão pelas ruas e missa. As comemorações marcam um importante passo em direção ao estabelecimento simbólico e material das tradições nesse novo espaço, além de colaborar para a retomada e o fortalecimento do coletivo, ao possibilitar que moradores(as) que ainda não conseguiram voltar ao território atingido possam participar das cerimônias. Para quem se sente confortável em retornar ao Bento de origem, houve a celebração de uma missa no dia 30, para lembrar as tradições e demarcar o pertencimento do espaço.
Pe. Marcelo Santiago, paróquia Sagrado Coração de Jesus “Fico feliz de vir aqui neste momento. A gen te tem coisas no coração que só Deus sabe. Não sou de Bento, nasci em Coronel Xavier Chaves, mas me reconheço como morador daqui e tenho Deus no coração, eu sou fi lho de Bento Rodrigues. A gente foi embo ra, deixou tudo aí. Saímos com vida, então sou muito feliz por estar aqui neste dia de hoje, nesta festa maravilhosa, com tanta gen te maravilhosa junto com a gente. Meu co ração está doendo, mas estamos realizando nosso sonho que é voltar para essa terra. Se eu pudesse, teria construído minha casa aqui de novo. Sinceramente, onde a Renova está construindo, eu não sou favorável, eu não sei se vou morar lá, mas aqui é maravilhoso. Aqui era meu sonho, aqui é nosso.”
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Fotos: André Carvalho “Tá aqui hoje foi bom, porque eu consegui ver muita gente e a procissão e a missa foi muito boa também. Fazia tempo que a comunidade não reunia e eu mesmo só consegui vir por que era aqui, se fosse lá em Mariana, eu até ia, mas lá no Bento mesmo, eu não vou, não. Não consegui voltar lá, é muito sofrido. Aqui a gente tá tentando voltar com as coisas, co meçar de novo, né, mas é difícil.”
Efigenia Pereira Gonçalves, moradora de Bento Rodrigues “Me sinto muito feliz e abençoado de poder ter presidido essa Eucaristia e celebrá-la com todos. Nós estamos celebrando aqui, na co munidade raiz de Bento Rodrigues, a festa devotada ao seu padroeiro São Bento jus tamente nesse espaço onde existiu a igreja. Aqui temos as ruínas por causa do crime das empresas que dificultaram a presença e des truíram, de fato, os lares e também essa igreja devotada a São Bento, uma igreja histórica, construída em 1718. A fé, sem sombra de dú vidas, é um marco de unidade e comunhão de toda uma comunidade, sobretudo do nos so povo que guarda suas tradições religiosas e suas muitas devoções, como também a São Bento. Ele nos inspira a confiar em Deus e não esconder os dons e talentos, mas colocá -los a serviço. Ao celebrarmos esse dia, nós renovamos nossa esperança, nossas lutas, lu tas dos atingidos e atingidas pelos seus direi tos e também pela regeneração da bacia do rio NósDoce.queremos agradecer as graças recebidas, fazer memória dos que nos precederam, dos que foram vítimas do rompimento dessa bar ragem, 20 pessoas, dos que morreram depois, que é um número enorme, e que não viram, infelizmente, ainda cumpridas as compensa ções, o processo indenizatório, o retorno a um espaço, a um lar para viver e dar conti nuidade, andamento à sua vida. Sem sombra de dúvidas, a fé nos dá resistência, resistência na luta, discernimento e iluminação para que a gente possa estar à altura dos desafios, não desanimar, ter coragem; é o que o povo veio fazer aqui hoje de um jeito simples, bonito, do modo como sempre celebraram com a sa bedoria que vem do simples. Saímos daqui, sem sombra de dúvidas, mais rejuvenescidos, à luz da fé, para fazer aquilo que Deus deseja, que é lutar por um mundo bonito, uma hu manidade abençoada e feliz, assim queremos para Bento Rodrigues.”
José Nascimento de Jesus (Zezinho do Bento), morador de Bento Rodrigues “Era o nosso sonho encontrar a imagem de São Bento original, como não encontramos, decidi fazer uma réplica através de foto que nos sobrou e presenteei minha mãe com ela. Não tinha como a bênção ser em outro lu gar senão nas ruínas da igreja de São Ben to. É sempre bom voltar a celebrar no nosso território, é aqui que sentimos em casa, não tem dinheiro no mundo que pague esse mo mento. É muito gratificante compartilhar esse momento com a família e amigos. Que São Bento possa nos dar muita saúde para que possamos sempre celebrar o dia de São Bento no nosso território.” Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues
Direito de Entender Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça Desde o desastre criminoso do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, os atingidos vêm lutando pelo reconhecimento e pela concretização de seus direitos, amiúde valendo-se de instituições públicas como o Ministério Público e a Defensoria Pública. O Ministério Público promoveu a defesa coletiva dos direitos dos atingidos a partir do dia seguinte ao crime, mediante reuniões, ofícios e ajuizamento de ações. A Defensoria Pública começou a atender continuamente aos atingidos em 2017, quando foi instalada na Comarca de Mariana. Nesse contexto, muitos atingidos confundem as funções de cada instituição. Na unidade do Minis tério Público em Mariana sempre nos deparamos com atingidos pleiteando atendimentos próprios da Defensoria Pública e vice-versa. Para sanar tais dúvidas, esse breve texto apresenta, de forma simples, objetiva e resumida, as similarida des e as diferenças entre as referidas instituições, de modo a contribuir para a instrução e o fortalecimen to da cidadania na comunidade atingida. Antes, porém, duas observações: primeiro, dora vante o Ministério Público será identificado como MP e a Defensoria Pública como DP; segundo, as instituições são independentes uma da outra, mas podem e devem partilhar contribuições quando se trata de postular os direitos dos atingidos. Começando pelo MP, a instituição está prevista no art. 127 da Constituição da República: “o Ministé rio Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Em seguida, no art. 129, estão relacionadas as fun ções do MP, destacando-se as três primeiras: “I - pro mover, privativamente, a ação penal pública, na for ma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos di reitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Do exame desses dois preceitos constitucionais con clui-se que o MP não pertence aos tradicionais po deres estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e se caracteriza como instituição independente, que tem por atribuição precípua assegurar os direitos coleti vos previstos em lei, tanto de caráter penal como de índole extrapenal.
MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA PÚBLICA: UMA NECESSÁRIA,DIFERENCIAÇÃOUMTRABALHOCOMPLEMENTAR
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Grosso modo, o MP é um advogado do interesse público, que atua como representante da sociedade. Aliás, a palavra advogado vem do latim ad vocare, cujo significado jurídico é “chamado para falar por outrem”. É exatamente isso o que o MP faz ao falar em nome da sociedade para a proteção dos interes ses coletivos. O exercício dessa importante função exige que o MP tenha poderes específicos, correspondentes aos deveres delineados na legislação. Assim, para exem plificar, quando um crime é cometido, o MP dispõe do poder-dever de processar o(a) autor(a) do delito por meio da ação penal; quando um ilícito ambien tal é praticado, o MP tem o poder-dever de apurar o evento e de promover a responsabilidade do autor por intermédio da ação civil pública. No primeiro caso, o MP requer a aplicação de uma sanção penal, como multa e prisão; no segundo, o MP demanda a reparação civil dos danos, que pode gerar obri gações de pagar (indenização ao fundo de direitos difusos e a terceiros prejudicados), não fazer (cessa ção ou suspensão de atividades) e de fazer (restau rar a área danificada). O MP é composto pelos membros, denominados Promotores de Justiça e Procuradores de Justiça na seara estadual, que são profissionais graduados em Direito e concursados, auxiliados por uma equipe de colaboradores (oficiais, analistas, assessores e es Noutratagiários).linha, a DP está prevista no art. 134 da Constituição da República: “a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdi cional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamen talmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, ju dicial e extrajudicial, dos direitos individuais e cole tivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Consti tuição Federal”. A partir desse artigo e dos demais dispositivos que tratam da DP, pode-se deduzir que é uma instituição independente dos demais poderes, que possui como função principal realizar a assistência jurídica de for ma gratuita aos necessitados, isto é, às pessoas que não têm condições de suportar os custos do processo e os honorários advocatícios. Essa assistência pode ser tanto judicial quanto extrajudicial e veicular-se por meio de ações individuais ou coletivas. É comum que a DP atue na autoria ou na defesa das partes pobres em processos de investigação de paternidade, pensão alimentícia, registro civil, in ventário, divórcio, fornecimento de medicamentos, transferência hospitalar, guarda, tutela e curatela. No campo penal, incumbe à DP fazer a defesa dos réus sem recursos ou que não tenham contratado um advogado. Os membros da DP são os Defensores Públicos, também bacharéis em Direito e aprovados em con curso Comparativamentepúblico. pode-se afirmar que as duas instituições têm semelhanças: são essenciais à fun ção da Justiça, qualificam-se como independentes dos poderes estatais, compõem-se de profissionais graduados em Direito aprovados em concurso e possuem atividades relacionadas à prestação juris Asdicional.diferenças recaem, sobretudo, nos direitos tutela dos: o MP tem como função a tutela dos direitos da sociedade; a DP atua na defesa dos direitos dos(as) necessitados(as). Portanto, é possível que MP e DP estejam em lados opostos no mesmo processo, ope rando com finalidades distintas. Em um processo penal, por exemplo, o MP atua processando a pes soa que figura como acusada pelo cometimento de um delito, visando à prevenção de novos crimes e à retribuição do mal causado pelo criminoso, en quanto a DP faz a defesa dos direitos do réu, desde que ele não tenha procurador.
Nota-se que, a princípio, a DP age na defesa de di reitos individuais, e o MP na defesa de direitos cole tivos, sendo tais atuações as mais comuns. Todavia, excepcionalmente, a DP e o MP desenvolvem ativi dades distintas, mas o aprofundamento desse tema não é pertinente neste exíguo espaço. Seja como for, em Mariana, as instituições operam em harmonia e convergem no mesmo sentido, qual seja, a efetiva implementação dos direitos dos atingi dos. Nas ações civis públicas ajuizadas pelo MP em Mariana foram fixados direitos que abrangem todos os atingidos. Contudo, muitas vezes, as empresas e a Fundação Renova não cumprem o acordado e, assim, os atingidos são encaminhados à DP de Ma riana para que o Defensor Público possa pleitear judicialmente o cumprimento. Nesse desempenho funcional compartilhado, muitos atingidos foram Decontemplados.fato,asinstituições MP e DP são essenciais ao funcionamento da Justiça, pois, sem elas, grande parcela da população ficaria desamparada e à mer cê dos mais nefastos elementos existentes em nossa sociedade.
Fotos: Sergio Papagaio “Eu fui atingido pelo fluxo de caminhões aqui perto de casa. A minha casa foi interditada pelo Corpo de Bombeiros e pela Defesa Civil porque ela tá toda rachada, tem rachadura aqui que cabe uma mão, mas, mesmo assim, faz dois anos que eu tô moran do nela. Antes eu até recebia o valor do aluguel, mas eu me separei e, como não tinha pra onde ir, resolvi voltar para cá. O aluguel tá muito caro e eu não ti nha como pagar, então procurei a Renova, mas eles mesmos me mandaram voltar para essa casa.
Por Daniele Bié e José dos Santos Com o apoio de Crislen Machado “A minha casa foi afetada diretamente. A lama entrou no andar de baixo e na escada que dá acesso principal ao andar de cima. Minha rua ficou sem água, sem luz, um caos geral. Eu fi quei morando fora de casa por dois anos e meio e, nesse período, apareceu muito problema. Na casa da minha avó, na rua de cima, eles refizeram o quintal, porque foi lama em tudo, refizeram o esgoto e passaram pelo meu terreiro. Eu tenho uma piscina e esse esgoto está voltando, tá dando mau cheiro e está molhando o muro. Um funcionário deles, na época, esteve na mi nha casa e falou comigo que, se continuasse mo lhando, corria o risco da estrutura ceder e que eu acabaria perdendo o trabalho da piscina. Pouco depois, veio a pandemia e, agora, nem respostas dão. A gente liga e eles dizem que fecharam o Nãoprotocolo.voltaram para terminar a obra e eu não as sinei nada sobre a reparação. Preferi voltar para casa pelo fato de terem me dado muito problema, mas eu não assinei nenhum termo de aceite de voltar para a casa. Eu voltei pra não perder todo o resto das minhas coisas, mas eles não voltaram para finalizar a obra. No portal, eu não sou re conhecida como atingida, mas, no sistema de les, disseram que gastaram cento e tantos mil de obras na minha casa, sendo que eu não assinei nenhum valor, eu não sei de onde eles tiraram que gastaram tudo isso na minha casa.” Daniele Bié, moradora de Barra Longa Desde o crime da Samarco, Vale e BHP, em novembro de 2015, moradoras e moradores de Barra Longa convivem com uma série de problemas relacionados à infraestrutura local e à perturbação dos modos de vida. Na cidade, que teve o centro urbano atingido pelo rejeito, a rotina passou a ser marcada por máquinas pesadas, poeira, trânsito de pessoas desconhecidas e barulho. Os danos causados após a chegada e o processo de retirada do rejeito transformaram o município em um canteiro de obras permanente e indesejado. Apesar do trabalho, aparentemente intenso, a população se queixa de obras não iniciadas, demora na finalização e da entrega de trabalhos mal feitos. Reformas começadas há anos foram abandonadas e as reclamações são ignoradas. O rejeito danificou uma área estratégica para comerciantes, famílias, trabalhadores(as) rurais e pescadores(as). O fluxo intenso de maquinário pesado, justificado pela Renova para desobstruir vias, contribuiu e ainda contribui drasticamente para comprometer a estrutura de imóveis. A Renova, entretanto, desconsidera parte desses(as) moradores(as) como atingidos(as) e atua, desde sua criação, de forma insatisfatória e injusta.
Tem muita gente que tá na mesma situação que eu, só na rua de cima tem umas cinco ou seis pes soas com as casas interditadas.”
Tem uns laudos da minha situação aqui, mas, até hoje, não fizeram nada, tá tudo parado. Essa chu va que aconteceu no fim do ano passado e início desse ano também contribuiu no prejuízo, por que entrou água na minha garagem, desceu um barranco e quase jogou a casa no chão. Em ne nhum momento, eles fizeram nenhuma reforma e nem deram previsão. Dizem que eles não vão mexer, que vão pagar pra gente arrumar, mas, até hoje, nada. Eles também quebraram a entrada da minha garagem todinha e eu tive que arrumar.
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José dos Santos, morador de Barra Longa
Renova abandona obras em imóveis atingidos em Barra Longa
Foto: Renato Foto: Benilde Madeira Foto: Benilde Madeira
Foto: Ana Salles - ALES Até hoje, já quase sete anos, e essa empre sa não resolveu o problema. Quando criou essa fundação foi porque falavam que a Justiça no nosso país é muito lenta, mas ela ficou mais lenta ainda que a Justiça. Não resolveu nem a metade do problema que foi causado pelo rompimento da barragem em 2015. A gente sente como se eles tivessem gos tado muito, porque estão ganhando muito bem e pretendem não terminar isso logo, porque senão acaba o emprego deles. Nos so entendimento é que eles vêm arrastando por esse tempo todo por isso. A nossa região foi muito impactada pelo rejeito e, infelizmente, nem 5% do muni cípio foi reconhecido ainda, sendo que está dentro da deliberação que reconhecia o município por inteiro. Já mostramos pra eles que o município está contaminado, eles fazem estudos, mas não divulgam e não reconhecem como área atingida. A Renova, criada para adiantar o processo de reparação do rompimento da barragem de Fundão, em 2015, só faz atrasar. Enquanto isso, vidas estão sendo perdidas, lares acabando, falta renda. A insatisfação do povo é nítida. Na terça-feira, 12 de julho, uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES), com o intuito de discutir o reconhecimento das categorias de subsistências, tratou desses e de outros problemas. Pescadores(as), membros de associações e representantes de comunidades estiveram presentes para defender suas categorias e pedir justiça. A Renova, por sua vez, mesmo sendo convidada, não compareceu à mesa. Acho um descaso da Renova não compa recer em audiência pública quando são convidados, só se forem convocados ou in timados, porque aí eles são obrigados a ir. Pra mim, não é surpresa, porque eles não gostam de ouvir a verdade.
Por Manoel Bueno dos Santos (Nego da Pesca), Renato Correia de Oliveira e Benilde Madeira Com o apoio de Maria Eduarda Alves Valgas
Mariana - MG A SIRENE10 PARA NÃO ESQUECER Agosto de 2022
Mais lenta que barco a remo
Manoel Bueno dos Santos (Nego da Pesca), morador de Serra-ES Sou da categoria pesca profissional com Registro Geral de Pesca (RGP), hoje aban donada pelos órgãos, cortaram todos os benefícios, como os auxílios financeiros. Já existem decisões sobre a pesca de sub sistência, falta a Renova cumprir. Existem rumores de um programa “Rio Doce sem fome”, porém, para o pescador profissio nal, só se tira direitos. Foi tirado meu di reito de pescar, tive minha vida impactada. Tudo que tinha era a pesca, agora não pos so mais exercer. Benilde Madeira, moradora de Aimorés-MG Sou pescador profissional de RGP, a Renova sempre trata o atingido de qualquer jeito, nun ca deu ouvidos ao atingido, nem ao Ministério Público, nem à Defensoria Pública, nem a nin guém. Mais um descaso foi na audiência, eles tinham que ter, pelo menos, uma justificativa do porquê não foram, foi uma falta de respeito, um descaso. Eu já estou doente de tanto lutar pelos pescadores, principalmente os profissio nais, porque ela cortou o cartão. Estamos, des de janeiro, fevereiro, sem receber. Tenho todos os documentos, enviaram lá de Brasília todos, e a Renova não dá retorno. Eu moro a 300 me tros do Rio Doce, e ainda temos o problema da barragem de Aimorés, que acaba atingindo o rio, que está todo podre. A Renova fala que o rio está bom e que temos que voltar à ativida de. Como? Você chega na frente do rio e é uma catinga. Se for pescar, vem peixe ruim, com tu mor, estragado. O trem tá complicado, eles sa bem que estamos certos, mas não aceitam. Renato Correia de Oliveira, morador de Resplendor-ES
Soberania alimentar vs fome: o Brasil que não deu certo
Eva conseguiu reaver o AFE e destaca: “o auxílio emergencial ajuda bastante, hoje em dia tá tudo muito caro, gás subiu, conta de luz subiu, despesa subiu, mantimento do supermercado tá tudo muito caro, verdura e legumes a gente tem que comprar, porque na cidade infelizmente não tem como plantar”. Mirtes, por outro lado, nunca conseguiu a garantia do seu direito e, hoje, sobrevive com ajuda de amigos e familiares, além dos parcos 400 reais de benefício do Governo, o Auxílio Brasil, antigo Bolsa Família. Como se não bastasse a falta da reparação, novos danos são gerados. Atualmente, Mirtes vive o deslocamento forçado que não viveu em 2015. “Minha casa, o sonho é morar lá, mas não tem mais como, ela foi interditada pela Defesa Civil porque foi toda trincada pelos transtornos de caminhão pesado da Renova.” Aos prantos, ela relata: “minha situação não tá fácil. Viver do jeito que tô vivendo! Além de tudo, eu estou de déu em déu, sem moradia. Hoje eu gostaria de dizer para a Fundação Renova: ‘o que vocês estão esperando? Eu morrer pra resolver?’”. Diante do descaso da Fundação Renova, a Cáritas MG está elaborando um relatório social com o caso de dona Mirtes, para que ela possa usá-lo como instrumento de cobrança de seus direitos no atendimento agendado por ela junto à Defensoria Pública, para o mês de setembro. A Assessoria Técnica Independente se mantém firme no propósito de garantir o acesso às informações necessárias para que as pessoas atingidas sigam lutando pelos seus direitos. Em caso de dúvidas, entre em contato com a Central de Informações da Cáritas em Mariana pelo telefone: (31)992180264. Por Ellen Barros
Mariana - MG A SIRENE 11PARA NÃO ESQUECER Agosto de 2022
“Sobre o cartão, fiz vários pedidos e nunca tive decisão nenhuma. Se não fosse as minhas amizades, eu tinha morrido de fome!” Essa fala é de Mirtes da Luz Gonçalves, de 54 anos, moradora atingida pela barragem de rejeitos da Samarco, Vale e BHP, na comunidade de Pedras, zona rural de Mariana. O cartão do qual ela fala é o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), instrumento de mitigação dos danos causados pelo desastre criminoso das mineradoras em Mariana, uma pequena renda mensal, direito conquistado, mas ao qual Mirtes nunca teve acesso. Fome. Palavra indecente, imoral, obscena, que voltou a sentar à mesa das famílias brasileiras. “Em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer”, revela a segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. A publicação aponta para a continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora na crise econômica, o aumento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia de Covid-19 como principais responsáveis por um cenário em que mais da metade (58,7%) da população brasileira se encontra em insegurança alimentar, nos mais variados níveis de gravidade. A fome é um mal do agora, é uma urgência do presente, mas ela é também devoradora de sonhos, destruidora de futuros. Assim também é o rejeito tóxico despejado nas vidas das milhares de famílias atingidas de Mariana desde novembro de 2015. Duas ações emergenciais foram conquistadas, ainda naquele ano, para conter o avanço da extrema vulnerabilidade das pessoas atingidas: o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), para quem teve perda de renda, e o Auxílio Moradia Provisória, para quem sofreu deslocamento compulsório. No entanto, mesmo se tratando de algo essencial, os auxílios não chegaram para todas as pessoas atingidas; muitas delas tiveram o acesso aos auxílios recusado pela Fundação Renova, organização que deveria garantir a reparação, mas que, em muitos casos, dificulta o acesso das pessoas até mesmo à mitigação dos danos. “Eu plantava um pouquinho de cada coisa, sempre com muita fartura, pra vender e, com o dinheiro, poder comprar alguma coisa. Tinha de tudo na horta, um pouco de cada coisa pro meu sustento também. Minha alimentação era 100% saudável. A produção na roça era muito boa, com muita fartura, mas minha vida transformou de um sonho para um pesadelo. As coisas que eu produzia, foi tudo junto com a lama.” Apesar da constatação da perda de renda, consequente à perda da produção, Mirtes teve diversos pedidos de AFE negados. Com o sofrimento, veio a doença: “a minha vida saudável, que vinha também da minha alimentação, se transformou. Acabou em remédio tarja preta que eu uso hoje”. Soberania alimentar é o nome dado à situação em que as pessoas definem suas formas de produção, distribuição e consumo de alimentos saudáveis e sustentáveis. Ela ocorre quando essas pessoas podem desfrutar de alimento em quantidade e qualidade adequadas à sua cultura e ao seu modo de vida. Era essa a realidade de Mirtes lá em Pedras, mas também de Eva Maria Aparecida, em Bento Rodrigues, e de tantas outras famílias atingidas antes do rompimento da barragem de Fundão.
Eva Maria Aparecida, de 59 anos, relata, com afeto, a abundância alimentar que viveu: “lá em Bento Rodrigues, de uma forma geral, a nossa alimentação era muito saudável. Café da manhã com a mandioquinha cozida, batata doce, às vezes um bolo caseiro que minha mãe fazia muito bem. O almoço nosso era aquela verdurinha panhada na hora, que a gente ia lá na horta, colhia e sabia que era molhada com uma uma água sem agrotóxicos… Frango, ovo, era tudo colhido lá mesmo, meu irmão que criava as galinhas e o ovo era colhido na hora”. Mas tudo isso acabou com a destruição da comunidade. A mãe de Eva, dona Lurdes Bertoldo Teixeira, veio a falecer em 15 de abril de 2020. “Infelizmente, o estado de saúde dela foi só se agravando por causa da alimentação”, relata a atingida. Era dona Lurdes quem recebia o AFE após o rompimento da barragem e a situação, que era ruim com o deslocamento compulsório, a vida na cidade forçando o consumo de mercadorias industrializadas e alimentos com agrotóxicos, ficou insustentável com o corte do AFE da família. “Minha mãe faleceu e eles cortaram o auxílio quatro meses depois. Eu fiquei desesperada. Estava cheia de contas para pagar quando retiraram o auxílio e eu não tinha nada”, relembra Eva. Tudo piorou com a instalação da pandemia de Covid-19. Em 2020, a situação de insegurança alimentar tanto da família de Eva quanto de Mirtes levaram ambas a buscar informações da Assessoria Técnica Independente, a Cáritas MG, sobre como proceder para ter acesso ao AFE. Foram, então, orientadas e encaminhadas à Defensoria Pública.
A questão, porém, parece estar longe das preocupações da Renova, que, todos os dias, dá mostras que não sabe o que é ou não quer fazer justiça. Criada como arranjo ju rídico para, em tese, mediar os processos de reparação decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, a Renova se comporta como empresa, não como fundação.
O que é justiça? Essa pergunta ecoa na mente de mi lhares de pessoas desde que Samarco, Vale e BHP mata ram pessoas, destruíram comunidades e modos de vida e derramaram milhões de metros cúbicos de rejeitos mine rários na bacia do rio Doce, em novembro de 2015.
A Renova pode gastar milhões em publicidade para vender uma imagem de eficiência e compromisso so cial. Mas a verdade é outra: o método da organização é composto por descaso, falta de respostas, incompetência e negligência. Uma atuação incapaz de mediar a repara ção, incapaz de oferecer uma resposta à pergunta: o que é justiça? EDITORIAL
Longe do interesse público de quem foi e continua sendo injustiçado, age a favor da máquina minerária com seguidas decisões prejudiciais às pessoas atingidas. Com a força do dinheiro e do poder, utiliza o aparato judiciário para punir quem busca respostas, direitos e dignidade. Questiona conquistas como as assessorias técnicas, pro tela o cumprimento de suas obrigações. Causa espanto e indignação que uma organização me diadora busque o Judiciário para processar pessoas atin gidas que, cansadas, traumatizadas, empobrecidas, deses peradas, estão reivindicando seus direitos do modo como conseguem.Alémde recorrer à truculência, em uma postura rea tiva, defensiva e violenta, a Renova se recusa a conversar com as pessoas atingidas e a atender demandas legítimas. Enquanto isso, vai à imprensa insinuar que as pessoas atingidas seriam exigentes demais em relação à reparação justa de uma catástrofe da qual não têm culpa alguma.