A Sirene - Ed. 74 (Junho/2022)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 7 - Edição nº 74 - Junho de 2022 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER SAMARCO GANHA PASSE LIVRE EM MARIANA Maio

A mineradora Samarco, controlada pela Vale e BHP, obteve autorização para ampliar as atividades no Complexo Minerário Germano, o mesmo onde ficava a barragem de Fundão, que colapsou em 2015 devido ao descaso e à sua ganância. A Samarco pretende retomar 100% das atividades no local até 2029, enquanto não paga, após quase sete anos, os danos pelo crime que cometeu. O Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) permitiu que a empresa aumente a extração nas minas de Alegria Norte e Alegria Sul, com intervenção em 35 hectares de Mata Atlântica, 11 dos quais em área de proteção ambiental.

NOTA DE PESAR

O Jornal A SIRENE manifesta pesar pelas mortes de trabalhadoras e trabalhadores da Vale ocorridas em Minas Gerais no mês de maio. No dia 26, os prestadores de serviço Lucas Marques Urias, Thaine Silva e Vanusa Gomes morreram em Itabira, após um acidente com o micro-ônibus que levava trabalhadores da empresa. No dia 31, Deivison Nunes morreu na mina Fábrica Nova, em Mariana. A mineração é classificada como atividade de alto risco pelo Estado brasileiro, como os crimes de Samarco, Vale e BHP, em 2015 e 2019, provam.

ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

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PROCESSOS SOBRE O ROMPIMENTO ESTÃO SEM JUIZ FEDERAL 12 de maio

A Corregedoria Nacional de Justiça revogou a designação do juiz federal Mário de Paula Franco Júnior para a 12a Vara Federal de Minas Gerais, onde atuava nos processos relativos ao rompimento da barragem de Fundão. A ministra Maria Thereza de Assis Mura justificou a decisão para resguardar o magistrado e garantir prestação jurídica célere, eficaz e imparcial. Com a decisão, os processos sobre o desastre estão sem juiz federal responsável. Em abril do ano passado, o Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais e as Defensorias Públicas da União, de Minas e do Espírito Santo pediram a suspeição do juiz ao TRF-1. Franco Júnior foi promovido em novembro de 2021 para a 4a Vara Federal do Amapá. FESTA DE SANTO ANTÔNIO 11 e 12 de junho A comunidade de Paracatu celebra, nos dias 11 e 12 de junho, o padroeiro Santo Antônio, no templo do santo no território de origem. No sábado, 11, acontecem a missa, o levantamento do mastro e a procissão da bandeira, a partir das 19h. No domingo, 12, às 14h, ocorre a missa. Depois tem quadrilha. O ônibus sai às 12h30 do Centro de Convenções rumo ao Barro Preto, à Colina e ao território. Mais informações sobre a programação e o itinerário podem ser conferidas com a CABF.

Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: @jornalasirene www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene Para reproduzir qualquer conteúdo deste jornal, entre em contato e faça uma solicitação.

MORADORES(AS) DE DISTRITOS PROTESTAM CONTRA MINERADORAS 19 de maio As comunidades do distrito marianense de Cachoeira do Brumado e de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, se uniram para protestar contra Vale, Samarco e BHP, em frente à Mina del Rey, em Mariana. A população de Cachoeira do Brumado demanda o pagamento das indenizações pelos danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão. O desastre desestruturou a economia do local, dependente do turismo e do artesanato de tapetes de sisal e panelas de pedra sabão, saberes tradicionais ameaçados. Já as pessoas de Antônio Pereira demandam que a Assessoria Técnica Independente escolhida pela comunidade seja liberada para atuar. Reivindicam ainda que toda a comunidade seja reconhecida como atingida, devido ao adoecimento físico e mental e à vulnerabilização das famílias.

AGRADECIMENTO ESPECIAL Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Bruno Milanez, Camila, Daniel Rondinelli, Elke Beatriz Felix Pena, Geraldo Martins, Imaculada G. P. Afonso, Jussara Jéssica Pereira, Priscila Santos e Virgínia Buarque. Para ajudar a manter o jornal, acesse: www.evoe.com/jornalasirene.

EXPEDIENTE Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho Editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Eduardo Salles Filho | Reportagem e Fotografia: André Luís Carvalho, Crislen Machado, Joice Valverde, Maria Eduarda Alves Valgas, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Stephanie Locker, Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Eduardo Salles Filho | Apoio: Cáritas MG, Programa de extensão Sujeitos de suas histórias (ICSA/UFOP) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Foto de capa: Joice Valverde | Fonte de recurso: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A SIRENE. Apoio da ADUFOP (Associação dos Docentes da UFOP).


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Papo de Cumadres: Opinião:

o crime e a justiça

Clemilda e Consebida estão com a cabeça ruim diante da prisão dos Garimpeiros Tradicionais do alto Rio Doce.

Por Sérgio Papagaio

– Cumadre Clemilda, eu tava aqui pensando antes da sua chegada... Aquela nota técnica, que nu CIF foi aprovada, num diz que nossa comunidade é tradicioná porque us nossos ancestrá que foi responsavis por este estado das Minas Gerais começá? – Ué, issu é uma veudade. Cê ta falanu da nota que u Phancisco Filipe, u Erminio, u Papagaio e u Emmanué ajudô a gente a fazê? – Issu, cumadre. Lá diz que samu comunidade tradiciná, portantu a ação truculenta das pulícia militá, civil e federá fez minha cabeça embaraiá. Será que a convenção 169 virou frô e u livru de lei ela só serve pra infeitá? – Ês ta comparanu agente com us assassinu que invade terra dus índios pra suas riquesa minerá roubá, chegandu até a vida dus índio tirá. Nois garimpa pru ouro que nois tirá cumida prus nossus fiu comprá. – Nu meio de tanta tristeza u nosso amigu Emmanué, que tantu nos ajudô, vil seu amadu pai desta terra pauti. Cumade, minina de Deus, uma coisa vô te falá, u nosso Emmanué, que antes era fiu, fez a transformação, passo já a muitu tempu cê pai dus tradicioná, mas agora recebe a confirmação. Num é pai de sangue mais de coração, e muitas vezes nesta vida istu tem maior validação, hoje ele é nosso pai pois antonte era irmão. – Tô com a panela nu fogo e num possu mais prosiá, mas vô dexá uma peugunta nu ar: se nois pagasse impostu iguar a Vale disse pagá, será que no território que a Vale minera nois também pudia garimpá?

Foto: Sérgio Papagaio


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Era uma vez um belo horizonte Por Sérgio Papagaio

Vi o Curupira deitado no meio da rua, do lado da estrada, abraçado a uma onça-pintada na calçada. Tomava água mineral, pois a bica do taquaral secou. Avistei também dois gatos-do-mato de pele escura, que, agora, da mesma forma, são moradores de rua. Foram despejados da Serra do Curral, lugar de, até então, natureza abundante, mas que não pode mais abrigar bichos do folclore, ou qualquer outro animal, apenas o bicho homem, do tipo ganancioso e arrogante. Esse povo mal quer acabar com o matagal, querem minério, e decidiram de madrugada que a serra tem que ser explorada. A serra ainda estava dormindo, coitada, quando foi avisada.

O Copam quer desabrigar a bicharada, e toda a passarada terá que migrar. O Horizonte não mais será Belo, os picaretas decidiram isso no martelo – coincidentemente, ou não, picareta e martelo são símbolos da mineração. Querem acabar com o que é belo para construir o “bezerro de ferro”, adoradores do deus dinheiro, que, há séculos, prejudicam o povo mineiro. Na busca pelo metal, não há espaço para os bichos e os encantos da natureza, e a serra, com muita tristeza, nesta dor matadora, será levada para longe pela correia transportadora. Não haverá mais a sinuosidade exuberante da montanha esverdeada, que será diminuída, pelotizada. Doravante, não veremos mais o monte e a cidade do belo virará um Triste Horizonte. Foto: Divulgação-FPMZB


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Renova despreza desejos da comunidade sobre cemitério Desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, o reassentamento do subdistrito de Bento Rodrigues, devastado pelo rejeito da Samarco/Vale/BHP, caminha a passos lentos e já teve sua entrega atrasada diversas vezes. Como entidade supostamente responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo desastre, a Renova fez um projeto arquitetônico para o cemitério do distrito no reassentamento. Nos dias 13 e 20 de maio, a organização promoveu encontros com as pessoas atingidas para discutir a possível localização do cemitério que será construído. Pensado para ser implantado na entrada de Bento, o cemitério fica a apenas 13 metros de algumas casas, o que desagrada a comunidade. Além disso, a Renova apresentou apenas uma opção, sem oferecer alternativas às pessoas atingidas.

Por Tatiane Análio

O projeto arquitetônico desenvolvido pela Fundação Renova envolve um cemitério parque que, depois de construído, será cuidado pela prefeitura. Não houve uma escuta prévia a respeito da opinião da comunidade sobre a melhor localização para a construção. A instituição alega que contatou todas as pessoas atingidas para essa discussão. No entanto, nos dois dias de audiência, um número reduzido de participantes compareceu ao Centro de Apoio às Famílias de Bento Rodrigues, local onde o projeto foi apresentado. Em dado momento, uma moradora sugeriu um Grupo de Trabalho no Centro de Convenções de Mariana para que mais pessoas pudessem acessar a planta.

Após a primeira audiência, ficou claro que a comunidade rejeitou a proposta, mas a Renova manteve o segundo encontro. Uma ata foi formulada com sugestões dos moradores e das moradoras. Outros encontros para a discussão do tema foram propostos, ainda sem data marcada.

Pela forma impositiva como a iniciativa foi apresentada, alguns tensionamentos surgiram. Muitos moradores e muitas moradoras tiveram a impressão que a proposta estava caminhando para algo concreto, ou seja, o cemitério seria implantado naquela área de qualquer maneira, à revelia do desejo da comunidade. A maioria das pessoas atingidas que estava presente não concorda com a construção do cemitério no local previsto. Por uma questão histórica, cultural e de pertencimento, uma obra desse tipo precisa ser pensada em conjunto, afinal, ela será um local importante no reassentamento, que pertence, por direito, às pessoas atingidas, e não à Renova ou às mineradoras. Fotos: Tatiane Análio


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Repactuação:

tem crimes que o dinheiro não paga Já são quase sete anos de descontentamento das pessoas atingidas com a Renova, muitas promessas vagas, famílias, casas e animais à espera da reparação para que as comunidades possam, enfim, se reerguer. A destruição de territórios, em novembro de 2015, parece não ter sido suficiente para a mineração predatória. Samarco, Vale e BHP, por meio da entidade, continuam a cometer violações e a negar direitos, como as discussões sobre os territórios de origem deixam claro. Em maio, ocorreram duas reuniões sobre o assunto, nos dias 9 e 19. A primeira foi com a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e a segunda, sobre a repactuação, com o Ministério Público de Minas Gerais, a Cáritas e o promotor de Justiça Guilherme de Sá Meneghin. O Ministério Público e o promotor Guilherme Meneghin repassaram pontos do novo acordo. As pessoas atingidas exigiram algumas garantias

de direitos, como melhorias no processo de elaboração dos projetos das casas apresentados pela Renova, para que consigam opinar efetivamente sobre como querem suas casas, sem serem vetadas. Também demandaram maior atenção aos animais, que foram resgatados da lama e necessitam de manutenção, alimento e alocação, até que a repactuação esteja concluída e as pessoas atingidas consigam estabilidade financeira. As principais reclamações foram anotadas para serem incluídas no novo acordo de repactuação. Para tentar viabilizar esses direitos exigidos, entre possibilidades, está a Renova disponibilizar arquitetos que acompanhem as famílias e desenvolvam projetos de moradia mais do gosto das pessoas atingidas, que irão viver nas casas. Essas comunidades atingidas também querem saber se a repactuação vai dar conta de punir todos os crimes cometidos pelas mineradoras, em meio ao medo de perder conquistas, como o direito aos territórios de origem.

Por Marino D'Angelo Junior e Mirella Sant'Ana Com o apoio de Maria Eduarda Alves Valgas

Falar sobre o retorno à minha terra de origem, Paracatu de Cima, é algo que não vai acontecer, porque, depois desses anos todos, a realidade econômica da nossa região passa por um retrocesso, as pessoas sofrem um empobrecimento forçado, sem falar na contaminação, o isolamento. Hoje, os parceiros, os meeiros, os colaboradores não vivem mais aqui. Eu não vou voltar pra terra de origem, a gente tem outros planos, outros objetivos e essa é a realidade. Eu vejo os atingidos numa situação: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come na repactuação. Enxergo a repactuação como um grande negócio para as empresas, porque é cômodo o criminoso pagar pra tentar ficar com as mãos limpas e falar que conseguiu resolver tudo. Fico decepcionado porque ficou claro pra mim que, no nosso país, não tem justiça, que o poder econômico pode muito mais do que as pessoas de bem e porque existem muitos danos nesse crime que o dinheiro não paga. Mas eu acho que os atingidos devem tentar uma solução que possa nos libertar dessa vida imposta que a gente vive hoje.

Foto: André Carvalho

Marino D'Angelo Junior Morador de Paracatu de Cima

Foto: Júlia Militão


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Algumas famílias da zona rural não vão voltar para a terra de origem, não vão morar novamente no local atingido pela lama, até porque, na maioria dos locais, esses imóveis atingidos ainda estão com a lama no terreno. A gente conquistou o reassentamento familiar, que nos deu o direito a ter um novo reassentamento, uma nova casa, em um local diferente daquele que foi atingido. É o caso da minha família, nós não vamos voltar para o imóvel que foi atingido lá em Ponte do Gama. Mas a gente também conquistou o direito de que, nas terras de origem atingidas aqui de Mariana, de Bento, de Paracatu ou da zona rural, as pessoas atingidas não perderiam o direito e o acesso em detrimento da indenização e do reassentamento. A empresa não iria comprar, digamos assim, as terras dos atingidos com uma indenização e com o novo reassentamento. Foi um dos direitos mais difíceis de serem conquistados. Mas parece que está em perigo agora com o movimento da repactuação, principalmente para as pessoas de Bento e de Paracatu. Ali, toda a comunidade foi deslocada.

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Foto: Daniela Félix

Tem uma questão histórica, de sentimento, que envolve a história de Bento Rodrigues, de Paracatu de Baixo. Então é um medo intenso da perda desse direito que foi conquistado com muita luta e que representa muito para muitas pessoas. Como atingida da zona rural, tenho um carinho imenso ainda e sinto muita falta do pedacinho de terra que foi atingido em Ponte do Gama. Ainda que a gente não vá morar nele novamente, é algo que faz parte da nossa essência e da nossa história. Fica um medo real da repactuação tirar isso que foi conquistado. Mirella Sant’Ana Moradora de Ponte do Gama Falar dos meus animais… Ainda tenho animais, continuo sofrendo com o descaso da Samarco de não me fornecer alimentação em quantidade e em qualidade. Perdi muitos animais no ano passado e isso prova o retrocesso em que a gente se encontra. Marino D'Angelo Junior Morador de Paracatu de Cima

Foto: Voal Fotografia

grande. As coisas não se resolvem ou se resolvem numa medida muito pequena, que não é, de fato, a solução pros problemas das comunidades. Uma dessas coisas é a questão dos animais. Já teve denúncias, já saiu no Jornal A SIRENE, a gente já teve muitas e muitas reuniões para tratar a questão. Muitos animais estão morrendo de fome, porque a Renova tem se negado a levar os alimentos

A gente está travando uma batalha muito

Moradores de Ponte do Gama reunidos em festa na comunidade em 2016. Foto: Voal Fotografia

pra eles. A Renova não conseguiu ainda restituir o modo de vida e a situação econômica das famílias da zona rural e de comunidades que têm criação, agora vem aí com propostas num nível absurdo. Mais uma vez, é um ataque ao direito das pessoas e um ataque ao modo de vida. Além de não restabelecer o modo de vida, ainda tenta impor questões que são muito prejudiciais e causam novos danos à população. Como as pessoas vão manter os animais em apartamento? Tem atingidos morando na cidade hoje. Mariana, apesar de não ser uma cidade grande, ainda é uma cidade. Você não consegue cultivar, nem criar animais em apartamento. Mesmo as casas aqui não são casas com quintais que dê pra fazer isso, então, além de a Renova não fornecer o alimento, ainda vem tentando impor situações que são incabíveis, insustentáveis, levando em conta a situação socioeconômica das pessoas hoje. Essa pauta causa muito sofrimento nos atingidos. Além de não ter solução por parte da Renova, ela ainda vem com uma nova facada. A Renova não consegue fazer uma medida de reparação sem causar novos danos. Mirella Sant’Ana Moradora de Ponte do Gama


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Direito de Entender

REPACTUAÇÃO

Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça

No ano de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciou um longo processo de conciliação entre o Poder Público e as empresas Samarco, Vale e BHP, acerca das medidas de reparação do desastre criminoso decorrente do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, ocorrido em 2015. Consta que essa missão surgiu de um pleito da 12ª Vara da Justiça Federal de Belo Horizonte-MG e, assim, após a concordância das partes, foram convocados para reuniões representantes da União, dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, das Defensorias Públicas (União e estados de Minas Gerais e do Espírito Santo) e dos Ministérios Públicos (Federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo). Além deles, haveria um representante dos municípios atingidos pelos rejeitos. As reuniões de trabalho foram denominadas “Repactuação”, pois o objetivo era, precisamente, refazer os acordos que geraram o TTAC (Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta) e o TAC-GOV (​​Termo de Ajustamento de Conduta Governança), de modo a assegurar celeridade, definitividade e resolutividade nas ações reparatórias dos danos causados. Desde a instalação, ocorreram diversas agendas virtuais e presenciais, sobretudo em Brasília-DF. Em um primeiro momento, a Comarca de Mariana não foi integrada à Repactuação, aparentemente porque os processos judiciais estavam na Justiça Estadual e não se relacionariam com o TTAC e o TAC-GOV. Ademais, a repactuação teria como foco a Ação Civil Pública proposta pelo MPF em 2016, para cobrar o montante de 155 bilhões de reais em reparações, com demandas distintas das ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) em Mariana. Da mesma forma, representantes dos Ministérios Públicos propuseram o ingresso direto de famílias atingidas na repactuação, mas os pe-

didos foram negados. Salientou-se, na época, que tanto os órgãos de execução dos Ministérios Públicos quanto das Defensorias Públicas representariam coletivamente os atingidos. Contudo, no final de 2021, a Comarca de Mariana foi incluída na Repactuação, visando atender às demandas dos atingidos locais, o que provocou minha presença nas reuniões da Repactuação. Por isso, durante os últimos meses, o MPMG em Mariana intensificou o diálogo com os atingidos e com a assessoria técnica, no intuito de apresentar uma proposta para a mesa de repactuação. Não obstante, para além da Repactuação, o MPMG continuou e continua exercendo suas funções diariamente na defesa dos direitos dos atingidos de Mariana, notadamente nos processos que ainda tramitam nesta comarca. Certamente, nesse contexto diferente e diante de todos os problemas causados pelas empresas e pela Fundação Renova nesses quase sete anos do desastre criminoso, muitas dúvidas surgiram entre os atingidos, das quais destaco os seguintes tópicos a serem abordados: · O que é o CNJ? · Os atingidos poderão perder direitos com a repactuação? · A proposta dos atingidos poderá ser negada? O Conselho Nacional de Justiça, cujo acrônimo é CNJ, está previsto no art. 92, I-A, da Constituição da República (CR/1988) e é um dos órgãos do Poder Judiciário. Apesar disso, não exerce função jurisdicional, ou seja, não julga processos judiciais, mas atua no “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, §4º, da CR/1988). Decerto, o órgão possui independência e está destituído de qualquer

vinculação com as partes, sendo ideal para promover a conciliação. “Conselheiros” são os integrantes do CNJ, em número total de 15. O conselheiro Dr. Luiz Fernando Bandeira de Mello conduz a Repactuação e, como é do conhecimento dos atingidos, realizou uma audiência pública em Mariana, no dia 29 de março de 2022, na qual colheu importantes informações para a Repactuação. No tocante à possibilidade de perda dos direitos conquistados pelos atingidos, a Repactuação não irá alterar qualquer prerrogativa obtida em Mariana nos processos instaurados pelo MPMG na Justiça Estadual. Por outro lado, o MPMG deverá anuir com a proposta e, conforme já ressaltei nas últimas reuniões, não assinarei o acordo sem aval da comunidade atingida de Mariana. Em outras palavras, não há risco de perda de direitos. Todavia, é importante frisar que a formulação de um acordo naturalmente envolve perdas e ganhos. Se for para obter mais ganhos, tendo por base a aceitação da comunidade, a proposta poderá ser aceita. Por fim, sem dúvida, a proposta que está sendo construída pelo MPMG, por atingidos e assessoria técnica poderá ser recusada pelas empresas na Repactuação ou, o que é mais provável, será respondida com uma contraproposta. Daí o cronograma segue com manifestações dos dois lados, pois repassaremos aos atingidos a contraproposta e, seguramente, debateremos com os atingidos até que seja possível uma tréplica derradeira. Seja como for, ressalto que somente será acolhida uma proposta com a prévia concordância da comunidade atingida de Mariana. Feitos esses esclarecimentos, o MPMG mantém o compromisso de defesa dos direitos dos atingidos em todos os âmbitos de atuação, inclusive na Repactuação.


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É o nosso caminho original

No último dia 20 de março, os(as) moradores(as) de Bento Rodrigues organizaram um mutirão e abriram, por conta própria, o acesso ao território de origem, bloqueado desde o desbarrancamento de um trecho da estrada no início do ano. Como bem destacou a Assessoria Técnica Independente da Cáritas na coluna daquele mês, “munidos de pás, enxadas, picaretas, indignação e força coletiva”, a comunidade, cansada do descumprimento dos acordos e das falsas promessas, colocou em prática a manutenção que é de responsabilidade da Renova. Contudo, as estradas permanecem precárias e a dificuldade do acesso continua sendo motivo de cobrança dos(as) moradores(as), preocupados(as) principalmente com o risco de acidentes. Mesmo diante de todo descaso, a comunidade do Bento não abandona o lugar que as empresas parecem ter o interesse em manter fechado e esquecido.

Por Marcos Manoel Muniz (Marquinhos) e Cristiano Sales Com o apoio de Joice Valverde

A estrada veio a cair em janeiro e aí ficamos naquela luta pedindo para arrumar, passando por Camargos, onde a estrada também tava muito ruim e perigosa, ou dando volta por Santa Rita, passando pela área da própria Samarco, onde é a barragem, mas com autorização deles, horário, batedor pra estar te guiando, tinha hora que você queria passar, mas tinha que ficar esperando o horário. E foi assim até que os moradores falaram: “ah, vamos abrir a estrada”. Marcos Manoel Muniz (Marquinhos), morador de Bento Rodrigues O nosso acesso está muito precário. Não é de hoje que viemos pedindo às empresas para dar a manutenção devida nas estradas, mas é um jogo de empurra e empurra. Nós, moradores, precisamos abrir um pedaço da estrada na mão para podermos passar, pois as empresas sequer deram a devida atenção. Vejo que é uma falta de respeito com nós, moradores. As empresas foram as maiores causadoras e não estão nem aí para nós. E ainda os seus veículos continuam utilizando nossas estradas. A situação das estradas está muito ruim, nem Patrol passa nelas. Eles fazem de tudo para nós não permanecermos em Bento de origem. Cristiano Sales, morador de Bento Rodrigues Naquele dia, tava até gostoso de trabalhar, de ver a animação da turma. Acho que a gente já tinha que ter feito isso há mais tempo, até mesmo para mostrar para as empresas que, quando a gente quer, a gente faz. Não precisava ficar pedindo favor, esse tipo de coisa. Torna-se muita humilhação. Lógico, a gente continua pedindo para eles, Renova e prefeitura, melhorarem o acesso, porque, do jeito que tá lá hoje, só passa carro pequeno. É perigoso a passagem? É. Mas é o nosso caminho original, daqui de Mariana pra Bento é o menor caminho. Então quem gosta de ir, quem vai pra ficar o final de semana, acaba indo.

Fotos: Zezinho do Bento

Marcos Manoel Muniz (Marquinhos), morador de Bento Rodrigues


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Por Sérgio Papagaio

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A Praça dos meus sonhos

A avalanche de rejeitos oriunda da barragem da Samarco, que rompeu em 5 de novembro de 2015, destruiu igrejas, casas, pontes, plantações, sonhos, sentimentos e, em meio a todos os destroços, a praça de Barra Longa não escapou a este crime anunciado. A pracinha, como sempre foi chamada, era o cartão postal da cidade de Barra Longa. Construída às margens do majestoso rio Carmo, foi berço de vários casamentos e palco de paqueras, namoros e amores que constituíram famílias. Sua construção data de 1970 e recebera o nome de Praça Manoel Lino Mol. Por 45 anos, a praça serviu de abrigo para os casos ali contados sob a sombra das árvores e sobre os bancos que sempre ofereceram descanso e conforto. Quantas histórias verdadeiras, ou não, nasceram ou foram contadas em seu aconchego. Mas, na madrugada do dia 6 de novembro de 2015, o monstro de rejeito que escapou da prisão de Fundão fez da nossa pracinha mais uma vítima de seus inúmeros crimes. Atingida pela avalanche de lama, a praça se torna um depósito de rejeito. Um ano depois, a praça passa por uma reforma ou, melhor dizendo, uma maquiagem, pois tudo o que foi construído na praça sem a participação das pessoas atingidas segue o padrão Renova de reparação. A prova é tanta que, na primeira cheia do rio Carmo, no final de 2021 e no início de 2022, a praça recebeu mais uma grande quantidade de rejeitos que estava depositado às margens dos rios Carmo e Gualaxo do Norte. Destruiu o piso que a Renova havia construído há cinco anos, provando, mais uma vez, para que a Renova foi instituída. Em Barra Longa, a barragem está se rompendo até hoje.

Fotos: Sérgio Papagaio


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Repactuação: defesa da Matriz de Danos das pessoas atingidas de Mariana é luta para evitar retrocessos Por Marcos Silva, Luiz Horta e Ellen Barros

Em setembro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciou as discussões sobre a negociação de um novo acordo para a reparação dos danos causados pelo desastre-crime das mineradoras Samarco, Vale e BHP desde o dia 5 de novembro de 2015. Em Mariana, as pessoas atingidas denunciam a falta de solução no âmbito do atual processo de reparação conduzido pelas mineradoras por meio da Fundação Renova, mas denunciam, sobretudo, a falta de participação direta na mesa de negociações e defendem que os instrumentos construídos por elas, como a Matriz de Danos, sejam empregados nesse processo de repactuação. Hoje quem decide como será o novo acordo são as empresasrés, junto aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e às Instituições de Justiça dos dois estados. Para tentar minimizar a falta de participação das pessoas que deveriam ser protagonistas do processo de reparação, as comunidades atingidas, com apoio da sua Assessoria Técnica Independente, a Cáritas MG, estão discutindo e sistematizando possíveis propostas de valores que deverão ser consideradas pelo CNJ no âmbito da repactuação. Esses valores levam em conta as diretrizes construídas pelas pessoas atingidas e sua assessoria e que precisam ser seguidas no processo de reparação, mas também as propostas em negociação na repactuação, que foram apresentadas pelo Ministério Público nos dias 18 e 19 de maio. As discussões entre representantes das comunidades e a Assessoria foram divididas em quatro reuniões de grupos de base nos dias 25, 26, 30 de maio e 01 de junho. As propostas e também as problemáticas percebidas nesse processo serão apresentadas ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), para que sejam levadas à mesa de negociação. Longe de ser um processo ideal de participação popular e de controle social, esse esforço feito pelas comunidades atingidas e pela Assessoria, com tempo muito restrito, representa uma tentativa de resistência e de luta por uma reparação justa. Dentre as diversas pautas está a indenização das perdas e danos, e a luta é para que se apliquem os princípios normativos e metodológicos da Matriz de Danos das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, construída com a participação dessas pessoas e que é, portanto, o meio capaz de se fazer a necessária reparação integral. Tal Matriz de Danos é instrumento contrário à simples precificação do sofrimento e possui metodologia que incorpora e compatibiliza técnicas e princípios alinhados a um modelo de

Pessoas atingidas defendem a própria Matriz de Danos em audiência realizada no dia 23 de maio de 2019, em Mariana Foto: Ellen Barros/Cáritas MG

reparação integral, digno, transparente, bem fundamentado e baseado no direito das vítimas de dizerem sobre suas perdas. A construção da Matriz de Danos das pessoas atingidas é fruto de organização popular e se deu de forma diametralmente oposta daquela aplicada pela Fundação Renova - um modelo imposto e construído sem a participação das vítimas do desastre-crime. A matriz de danos das mineradoras, aplicada pela Fundação Renova, já se mostrou ineficiente, inapropriada, violenta e gerou, inclusive, novos danos. O caminho contrário é definido, portanto, pelo protagonismo do trabalho de base como método das pessoas atingidas, únicas capazes de dizerem sobre seu sofrimento, identificarem e construírem um modelo que lhes representa e que é necessário para a indenização justa. A Matriz de Danos das pessoas atingidas, por sua vez, guiada pelos princípios da Reparação Integral, feita a partir de metodologias científicas socialmente referenciadas e participativas, é o instrumento adequado para auxiliar o Poder Judiciário a atuar de forma mais ampla e próxima das vítimas de grandes desastres-crimes, ao contribuir para decisões mais justas e satisfatórias. Agora, mais do que antes, defender a Matriz de Danos das pessoas atingidas de Mariana é lutar para que haja efetiva reparação, para impedir que ocorram retrocessos e garantir que o novo acordo não repita “o erro tantas vezes cometido”, que é ignorar a participação, o saber e o poder das pessoas atingidas em construir instrumentos legítimos de reparação e tomar as rédeas da própria vida de volta.


EDITORIAL As pessoas atingidas chegam a junho de 2022 na expectativa de, mais uma vez, negociarem seus direitos com Samarco, Vale e BHP, com a repactuação. Quase sete anos depois do crime, ainda tentam receber uma reparação justa por parte das mineradoras, mas sequer foram chamadas à mesa para falarem em nome próprio, ainda que tenham sido elas que sofreram e sofrem na pele e na alma as consequências da ganância, do descaso e das violações cometidas pelas mineradoras desde 5 de novembro de 2015 até hoje, todos os dias. Para a Justiça brasileira, as populações atingidas são ouvidas por meio de outras pessoas (defensorias e Ministério Público), e as demandas sempre são mediadas por outras vozes. Foi preciso, a quem negocia a repactuação, pisar no território para escutar e entender a dor e a luta que têm sido, há quase sete anos, a tônica das existências dessas comunidades. A dificuldade em fazer valer a voz de quem deve estar no centro dos processos de reparação é diária. É preciso gritar para garantir a localização do cemitério onde deve ser, para cuidar das estradas que garantem o acesso aos territórios de origem, para protestar contra novas investidas da mineração em Minas Gerais, para exigir o cuidado dos animais. Mas as tentativas de abafar as vozes de quem narra, há tantos anos, os horrores das violências das mineradoras não calam — nem vão calar — as pessoas atingidas. Em mobilizações, protestos, conquistas, demandas, eles e elas serão ouvidos, serão ouvidas. E qualquer processo de reparação dos danos e das violências do crime das mineradoras deve colocar essas vozes no centro, para fazer justiça de verdade. É nisso que nós, do Jornal A SIRENE, acreditamos. É a partir de onde pautamos nossa atuação: em colocar no centro do jornalismo a escuta das vozes das pessoas atingidas, para que narrem suas histórias, relatem suas perspectivas sobre os acontecimento. Sejam ouvidas. Que a Justiça brasileira faça o mesmo ao buscar a repactuação. Que as perguntas das populações atingidas sejam escutadas. Que alguém seja, finalmente, capaz de responder: quem vai pagar pelo crime do rompimento da barragem de Fundão? Quando? Como?


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