Jornal de Toronto #10

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Jornal de Toronto Primeira vez: posto de gasolina

Transporte coletivo precisa ser priorizado p. 3

Acompanhe na série "Primeira vez" as crônicas de uma nova vida no Canadá. p. 7

edição # 10 | ano # 1 | 2018 | www.jornaldetoronto.ca | info@jornaldetoronto.ca | ISSN 2560-7855

Pelo direito a não ter carreira alguma

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O primeiro passo do Notícias da Baixada Brasil na Netflix Ano XIV, Parte 2

Com mais acertos que erros, 3% é uma grata surpresa para os amantes de ficção científica p. 5

Cristiano de Oliveira Gosto de cerveja pra acompanhar os assuntos, não pra ser o assunto. Até outro dia, todo mundo ia pro bar e tomava até Conhaque de Alcatrão São João da Barra se estivesse gelado, com a grade no chão pra ir colocando as garrafas vazias. Agora você propõe um entretenimento sadio como esse e o povo recusa porque “é de milho”. Vá se lascar! Passou a vida tomando milho e morrendo de achar bom... p. 4

Há sempre algo mais para aprender

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Emma Sheppard

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O processo e o modo como meus alunos têm sido desafiados forçou-me a olhar para cada pessoa como um indivíduo – ainda mais do que antes – e a ajudá-los a separar suas dificuldades de seus pontos fortes. Isso também me ensinou algo que eu achava que já sabia: sobre as inúmeras “versões” de inglês que existem, e o quanto é possível alguém viver por tanto tempo em seu próprio idioma e ainda assim ter sempre algo novo a descobrir. p. 4

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Editorial Pois é, a sociedade, o mercado, a carreira, tudo força a gente a conduzir nossa vida de uma determinada maneira. E eis que um dia nos damos conta que dá pra fazer completamente diferente. Podemos criar uma vida sem carro, sem carreira, ou com uma nova perspectiva dela; podemos aprender e reaprender o que pensamos que sabemos, podemos ir em busca do nosso mundo e do mundo do outro, e então nos aventurarmos numa nova jornada.

Cotidiano

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Nada é certo e sabe-se lá o que encontraremos. Mas tudo fica mais empolgante e é sobre esse modo diferente de olhar que essa edição trata.

A História nos conta que tudo pode ser reescrito – nos dias de hoje, podemos dizer “editado” – e então muda-se a percepção da realidade. Se ela está com a gente ou a gente está com ela, nem sempre se sabe. Mas veja bem, se o Brasil foi “descoberto”, o coelho bota ovo, e a cerveja é de milho, tudo então é possível. ADR

Editor-chefe: Alexandre Dias Ramos Gerente de mídia social: Luiza Sobral Revisor: Eduardo Castanhos Fotógrafos: Isabelle X. Dias, Luiz Almeida, Pedro Saad & Rafael Salsa Correa Colunistas: Cristiano de Oliveira, Emma Sheppard, Leandro Calado & José Francisco Schuster Colaboradores dessa edição: Beverly Buckley, Elisa Riva, Letícia Tórgo & Maria Bitarello Agradecimento especial para: Clarissa Kuschnir & Rafaela Yamaki Agências, fontes e parceiros: Netflix, Outras Palavras, Pixabay, Wikimedia Commons Conselho editorial: Nilson Peixoto, Rosana Entler & Sonia Cintra © Jornal de Toronto. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução de qualquer trecho desta edição sem a prévia autorização do jornal. O Jornal de Toronto não é responsável pelas opiniões e conteúdos dos anúncios publicados. Circulação: O Jornal de Toronto é mensal e distribuído em Toronto, GTA, London, Montreal, Ottawa, Calgary e Vancouver. Contato: info@jornaldetoronto.ca Siga nossa página no Facebook, Twitter, e matérias complementares, durante todo o mês, em nosso site: www.jornaldetoronto.ca Edição #10, ano #1, 2018 ISSN 2560-7855

Transporte coletivo precisa ser priorizado King Street, em Toronto.

José Francisco Schuster O projeto piloto da prefeitura de Toronto para priorizar o transporte coletivo na King Street, no seu trecho do centro da cidade (entre a Bathurst Street e a Jarvis Street), implantado em 12 de novembro passado, tem feito com que comerciantes da área aleguem redução em seus negócios, já que o estacionamento foi impedido. Isso que por ali passa o streetcar (bonde) da King – a terceira linha de transporte coletivo mais importante da cidade, com mais de 65 mil passageiros por dia, atrás apenas das linhas 1 (amarela) e 2 (verde) do metrô. Só que os engarrafamentos faziam com que, às vezes, caminhar fosse mais rápido do que usar os bondes. O problema não é específico da King Street: empresários e profissionais brasileiros em Toronto, como Angela Mesquita (Brasil Remittance), Carlos Dornelas (tesoureiro da Dundas Street West Business Improvement Area) e a Dra. Veronica Yoshiura revelaram que o número de seus clientes que usam carro vai de 40% a mais da metade. É de se questionar por que exis-

te esta resistência em trocar o veículo particular pelo transporte público, mesmo em uma cidade cujo transporte coletivo recebeu o título de melhor agência de trânsito da América do Norte. Há que se reconhecer que o TTC acaba de ampliar a linha amarela do metrô em sete paradas, fazendo com que se possa chegar, pela primeira vez, a uma cidade da região metropolitana de Toronto, Vaughan. O problema é que quem depende do TTC sabe que muitas vezes o serviço deixa bastante a desejar, especialmente na hora do rush, com atrasos, superlotação, passageiros sendo deixados para trás nas paradas porque não há mais espaço, metrôs parados no meio dos túneis e a lentidão dos bondes. Também há questões como a raridade de transporte na madrugada (o serviço chamado blue night), fazendo com que o retorno para casa do trabalho ou do bar seja demorado e cansativo. O TTC certamente justificará que não tem recursos suficientes, apesar de receber subsídios dos três níveis de governo (federal, provincial e municipal), além da venda de passagens e de publicidade. Há sempre a pressão para

equilibrar as contas. Já nas cidades onde o transporte público é delegado pelo governo a empresas privadas, como é regra no Brasil, é natural os empresários tentarem obter o máximo de passageiros com o mínimo de custo, ou seja, reduzindo a oferta de transporte. Essa mentalidade faz com que em Porto Alegre, por exemplo, o número de passageiros do transporte coletivo decline ano após ano, enquanto a população cresce. Todavia, é necessário urgentemente desfazer este círculo vicioso que beneficia o uso de veículos particulares. Os automóveis são reconhecidamente um dos maiores problemas ambientais do mundo, com suas descargas lançando ininterruptamente milhões de toneladas de poluentes na atmosfera e contribuindo decisivamente para o aquecimento global. A par disso, já se torna um meio de transporte ineficiente, na medida em que se chegou a um nível de saturação das ruas e rodovias, com engarrafamentos absurdos,

rafael salsa correa

como o da King Street, onde tudo simplesmente pára. Com a indústria automobilística junto com a de combustíveis estando entre as mais poderosas do mundo, é difícil de os governos tomarem atitudes sérias e drásticas para enfrentar o problema, virando a mesa e apostando maciçamente no transporte público. É urgente, contudo, deixar a era dos salões do automóvel para trás (acaba de ocorrer mais um em Toronto) e focar no transporte de massa como a única alternativa ecologicamente viável e capaz de deslocar com velocidade razoável populações crescentes condensadas em áreas urbanas cada vez mais verticalizadas. A viabilidade financeira virá justamente a medida que o usuário ver que vale a pena abandonar o carro porque chegará a seu destino a tempo e sem passar desconforto.

Com mais de 30 anos de experiência como jornalista, José Francisco Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Foi, durante 8 anos, âncora do programa Fala Brasil, inicialmente pela rádio Voces Latinas e posteriormente pela Camões Rádio.

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Cultura

4 beverly buckley

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Notícias da Baixada: o sistemático no Brasil

Ano XIV, Parte 2 Saudações, baianos de Alpercata. Resumo do capítulo anterior: Dona Armênia mandou Tony Ramos jogar a Torre de Babel na chón. Jade se apaixonou pelo Cigano Igor e foram os dois posar pra foto do rótulo da Catuaba Selvagem; Jamanta mata Sandrinha; Cristiano voltou do Brasil e começou a contar caso: é a parte final das tradicionais “Notícias da Baixada”, o único noticiário do Brasil estritamente dedicado àquilo que ninguém quer saber. • Essa febre de cerveja artesanal no Brasil já me cansou. Você chama o povo pra tomar uma e já escuta: “curte uma IPA?”. Pronto, eu já quero até tomar chá de losna, mas não quero cerveja mais. Que preguiça! Gosto de cerveja pra acompanhar os assuntos, não pra ser o assunto. Até outro dia, todo mundo ia pro bar e tomava

até Conhaque de Alcatrão São João da Barra se estivesse gelado, com a grade no chão pra ir colocando as garrafas vazias. Agora você propõe um entretenimento sadio como esse e o povo recusa porque “é de milho”. Vá se lascar! Passou a vida tomando milho e morrendo de achar bom, agora vai virar pra mim e dizer que viu a luz num copo de Lager de jaca argentina e caracol véio da Malásia? Pro inferno todos porque eu quero é milho! Cerveja pra mim são duas: branca e preta, conhecidas e apreciadas por gente de todo tipo, cumprindo sua missão de unir o rico e o pobre numa espécie de socialismo alcóolico, mas obviamente arrumaram um jeito de elitizar a cerveja e criar um muro de milho entre as classes sociais. Pois eu não vou pro Brasil tomar uma cerveja sabor barraca do raizeiro, vou tomar cerveja do jeito que eu me recordo de cerveja. Que se dane as modinhas, porque eu não tô beben-

do pra fazer graça, eu tô bebendo pra achar graça. Portanto, se você me vir na rua aqui em Toronto enxugando cerveja barata, é só protesto, não é cachaçada não, viu? • O português brasileiro é uma língua espetacular que nos dá milhões de possibilidades de escrita e fala, mas infelizmente ninguém dá valor ao que tem (até perder), e com isso o que se vê no Brasil é todo mundo tentando colocar alguma coisa em inglês em tudo que se fala e escreve. Liquidação é coisa do passado, agora é “sale”. Que Sale é esse, é filho de Seu Sales da Acadia? Já não existe desconto, tudo é “off”. Aliás, desculpa aí, não é off, é ófi. O trailer do Renato, tradicional

ponto de encontro das mais intelectualizadas baratas e ratazanas da capital mineira, agora é Renato Fine Burguers! Você pode chamar um x-tudo daqueles de qualquer coisa, menos de “fine”! E cerveja agora vem da “brewery” no “growler”. Growler da brewery não, irmão... aí cê mata Sandrinha. Aí cê tá pedindo “bullying”! Ninguém pega servi-

ço mais, pega “job”. É, eu já tinha desconfiado mesmo que havia uma certa falta de serviço envolvida nisso. Mas ainda assim, o Brasil é um barato. Voltar lá é sempre uma lembrança do quão importante são as pequenas coisas, os pequenos prazeres que não há dólar que pague. Como eu disse acima, só se dá valor ao que se perde. Adeus, cinco letras que choram.

Cristiano de Oliveira é mineiro, atleticano de passar mal, formado em Ciência da Computação no Brasil e pós-graduado em Marketing Management no Canadá. Foi colunista do jornal Brasil News por 12 anos. É um grande cronista do samba e das letras.

elisa riva

Cristiano de Oliveira

Há sempre algo Emma Sheppard

mais para aprender

Quando comecei a escrever esta coluna, no verão passado, eu já estava com quase 10 anos de experiência como professora de English as a Second Language (ESL). Toda a minha carreira, e grande parte da minha vida, se concentrou no significado que representa mudar para um novo país e tentar reconstruir uma vida e habilidades linguísticas a partir do zero. Desde setembro, tenho tido uma nova experiência em minha carreira – trabalhando no Seneca e no George Brown Colleges, ministrando cursos introdutórios de inglês para canadenses, imigrantes e estudantes internacionais. Foi nesses últimos meses que aprendi mais sobre aprendizagem e linguagem do que tudo o que eu já sabia antes. Eu tenho visto canadenses cometendo os mesmos erros que eu passei anos corrigindo em estudantes de idiomas, dizendo a eles que esse erro era o que os deteria, e lutando por textos que eu pensava que eles iriam passar. E eu tenho visto alunos, recém saídos de semestres de inglês, dominarem conversas e até corrigirem seus colegas de classe.

O processo e o modo como meus alunos têm sido desafiados forçou-me a olhar para cada pessoa como um indivíduo – ainda mais do que antes – e a ajudá-los a separar suas dificuldades de seus pontos fortes. Isso também me ensinou algo que eu achava que já sabia: sobre as inúmeras “versões” de inglês que existem, e o quanto é possível alguém viver por tanto tempo em seu próprio idioma e ainda assim ter sempre algo novo a descobrir. E isso me ensinou a continuar aprendendo, da mesma forma que sempre falei para meus alunos fazerem. Ao longo desta nova faceta da minha carreira, tenho me lembrado de muitas das coisas que são mais importantes para mim no ensino e aprendizagem: que cada indivíduo vem com sua própria história, que a linguagem é complexa e sempre pode ser melhor compreendida, e que estamos sempre aprendendo, não importa de onde viemos ou que novos desafios enfrentamos.

Emma Sheppard é nova iorquina, mas paraense de coração. É professora de inglês há mais de 10 anos, com mestrado em Pedagogia pela UofT. Atualmente, Emma dá aulas para a comunidade brasileira e angolana, e para todos aqueles que desejam melhorar a sua experiência no Canadá. _ teacheremma123@gmail.com


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O primeiro passo do Brasil na Netflix

Com mais acertos que erros, 3% é uma grata surpresa para os amantes de ficção científica Leandro Calado Imagina uma sociedade onde tudo é escasso, a qualidade de vida é baixa, o acesso à alimentação, saúde, cultura e educação são praticamente inexistentes e a única maneira de sair desta comunidade é através de um processo anual onde apenas 3% dos candidatos é selecionado para a tal mudança de vida. Esta é a premissa de 3%, a primeira série original da Netflix produzida no Brasil. A produção é ambientada em um futuro distópico, onde o Continente representa a pobreza resultante de um sistema político falho, e o Maralto uma chance de recomeço em uma localização rodeada pela fartura em todos os segmentos. Anualmente os governantes do Maralto dão para os jovens do Continente que completaram 20 anos a oportunidade de participar do Processo – um sistema de seleção dividido em etapas, com a finalidade de encontrar os 3% aptos para fazer a mudança. Coordenado por Ezequiel (João

Miguel), o experimento social testa diversas habilidades dos participantes. Entre entrevistas e atividades de resolução em grupo, é bastante nítido que o Processo não é justo, é mais que evi-

(Rafael Lozano). Cada um com motivações próprias e batalhas internas que influenciam os desdobramentos do processo. Cada episódio é focado em um personagem diferente. Seus

pedro saad_netflix

dente que a malandragem pode levar mais longe que os preparos físico e intelectual. Entre os participantes estão Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Joana (Vaneza Oliveira), Rafael (Rodolfo Valente) e Marco

passados são expostos justificando suas atitudes no processo seletivo, criando uma identificação e consequentemente uma “torcida” para que ele seja um dos vencedores do Processo. A narrativa segue em dois pontos

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o seu espaço.

de vista: participantes vs. realizadores. No núcleo dos participantes existe um direcionamento mais novelesco. Da relação entre os candidatos emergem inúmeros subtemas, como amizade, romance, traição, falsas aparências e a dualidade clichê “herói vs. mocinho”, que são religiosamente abordados em seriados adolescentes. A temática mais interessante está na presença da Resistência, uma organização rebelde secreta com a finalidade de se infiltrar em Maralto e começar uma revolução para que todos do Continente tenham a mesma qualidade de vida. O segmento dos realizadores tem uma ótica mais madura. Com o passar dos episódios, é possível enxergar defeitos em Maralto e principalmente naqueles que o governam. Os misté-

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rios centrados em Ezequiel carregam a melhor atuação da série – pela interpretação de João Miguel e pela reviravolta mais convincente. 3% tem erros, mas o resultado final é uma agradável surpresa produzida em terras brasileiras. A série propõe uma reflexão inteligente sobre meritocracia e a passividade do povo diante das resoluções impostas por um governo autoritário. 3% nasceu em 2011, idealizada pelo recém-formado em Audivisual pela USP Pedro Aguilera, como um projeto piloto disponibilizado no YouTube, e segue atualmente como a série de língua não-inglesa mais assistida nos Estados Unidos. A série teve o investimento de R$ 10 milhões para 8 episódios e já garantiu uma segunda temporada, com estreia prevista para 27 de abril.

Nascido no Rio de Janeiro e nordestino de coração, Leandro Calado é jornalista graduado pela Universidade Federal de Sergipe. Em 2017, trocou o menor estado do Brasil pela imensidão de Toronto. Apaixonado pela sétima arte e cultura pop em geral, escreve semanalmente para a versão online do Jornal de Toronto, onde indica (ou não) filmes para os leitores.


Saúde& Bem-Estar

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Pelo direito a não ter carreira alguma Um dos aspectos mais aprisionantes do trabalho assalariado é a tendência a vincular a vida a uma única profissão Maria Bitarello é escritora, jornalista e tradutora outras palavras

“Carreiras são uma invenção do século 20, e eu não quero uma.” Quando li essa frase, conclui no ato: nem eu! Um dos primeiros pânicos que tive, ainda bem nova, ao me projetar adulta era justamente esse: como é que eu vou conseguir trabalhar a vida toda fazendo a mesma coisa? Tinha calafrios noturnos com a ideia. Isso muito antes de ler a frase acima no livro de Jon Krakauer, Na Natureza Selvagem. Muito antes de saber que não era preciso fazer todo dia a mesma coisa pra ser um adulto. Se soubesse então que carreiras são uma invenção re-

cente, teria me concentrado em sofrer apenas com os outros dois desse trio de terrores do reino assombrado da “maturidade”: 1) acordar cedo todo dia; 2) e ter que virar esposa e mãe. Me sentia completamente inapta pra todos eles. E pra despistar o carreirismo e evitar que a profecia se concretizasse, tive que dar uma voltinha por aí. Nos Estados Unidos, me agradava observar o valor que conferem às conquistas atléticas. Fulano é bancário, mas na verdade quando chega em casa e tira o disfarce de Clark Kent ele vira um ultrama-

Praia de Copacabana e estátua de Carlos Drummond de Andrade, que era formado em farmácia, mas se tornou funcionário público administrativo, além de ser o poeta brasileiro mais influente do século XX.

ratonista, treina todos os dias e disputa até cinco provas anuais, incluindo o triathlon. Trabalho; qualquer um pode fazer. Mas os feitos atléticos dependem de disciplina e perseverança individuais, o que é uma prova de caráter na

terra do self-made man. Aí na França era parecido, porém diferente – todo poder ao cérebro. Beltrano é carteiro, mas está escrevendo um ensaio definitivo sobre a obra completa de Marcel Proust. Sicrano é funcionário administrativo da prefeitura, mas todos os anos viaja pro Norte da África pra fotografar mulheres da cultura tuaregue. Foi um alívio perceber que a carreira não precisava ser a luz no fim do túnel, o fim que justificaria todos os meios, nem o topo da cadeia alimentar. Poderia ser maratonista e escritora, ciclista e jardineira, yogi e cozinheira, professora e mochileira. Foi gloriosa e alforriante a descoberta. Ia ao encontro a tudo que eu sentia. Era possível, sim, ter um trabalho que não me definisse enquanto espécie e não fazer desse trabalho uma trilha monocórdica. A ausência de uma carrei-

ra no sentido de um curriculum vitae não equivale a carência de ofício. De jeito nenhum. E o trabalho não dignifica o homem (e a mulher) coisa nenhuma. Diante de tais descobertas, a ideia de voltar ao Brasil e, consequentemente, precisar encontrar uma profissão definitiva me mantinha firme e forte lá do outro lado do Atlântico – onde, parecia, estaria a salvo desse fardo e das expectativas, minhas e de outrem, acerca de quem eu deveria ser aqui na terrinha. No além-mar, em terras estrangeiras, não esperavam muito de mim. Um sentimento libertador, a princípio, mas por fim infantilizador. E com o tempo foi tornando-se desestimulante sustentar o status café-com-leite do visto de estudante. Era hora de voltar. Hora de peitar o utilitarismo profissionalizante de frente.

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E eis o que constatei. Carreira não pode ser algo que você busca, como passar de fase no videogame, ou passar de júnior pra sênior na firma. Uma carreira dotada de sentido só pode ser algo que te acontece, como a vida. Movida pelo tesão, pelo amor, pela alegria. Ela vai sendo trilhada ao longo da sua jornada terrena, como um passo dado depois do outro, como os capítulos de um épico russo ou o avanço da escola de samba na avenida. Haverá caminho, percurso, trajeto. Dos trabalhos que você amou aos que detestou, dos amantes às amadas, das dores de garganta às de cotovelo, passando pelas unhas encravadas e os vãos desesperos. É a história de cada um. Natural e inevitável. A humana aventura. Travessia.


Viagem

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Primeira vez: posto de gasolina

Cabot Trail, Pleasant Bay, Nova Scotia.

luiz almeida

Letícia Tórgo é produtora cultural Sofia estava mais do que animada com a viagem. Acordou cedo, chamou um Uber, pegou as malas e partiu para o aeroporto. Encontrou Kamilla no café do embarque, levemente mau-humorada, como de costume. Ainda não eram oito da manhã. Juntas embarcaram para Halifax. Finalmente, as amigas iriam iniciar o plano de conhecer uma província canadense por ano. Secretamente, havia algo que deixava Sofia ainda mais ansiosa por esta viagem: ela iria alugar seu primeiro carro e dirigir por toda Cabot Trail. No Brasil, era “a motorista da galera”. Ao imigrar, como você sabe, zeram os pontos. É preciso recomeçar. Esta era a primeira vez que iria dirigir em quase um ano no Canadá. Passou na prova teórica raspando, mas mandou bem na prática, se policiando para parar a cada esquina e dar a ré virando completamente a cabeça. Do aeroporto, partiram direto para a locadora. Revisou o carro, olhou o marcador de combustível e assumiu o volante, segura de si. Logo na primeira esquina gritou: teto solar! Apertou o botão com toda a força e ficou animada com a possibilidade do sol

sobre sua cabeça em Cape Breton. Três minutos. Os cabelos de Kamilla voando em todas as direções e o vento levemente gelado dentro do carro acabaram com sua brincadeira. Tentaria novamente outro dia. Não era uma viagem de luxo, mas a lagosta com vinho branco da primeira noite fez as duas voltarem “altinhas” para o aconchegante bed and breakfast reservado online. Oh, Canadá. No dia seguinte, pé na estrada. Parar para fotografar não era problema, desde que uma “tagueasse” a outra no Instagram. Enquanto o sol brilhava lá fora, chovia likes naquela horta. Finalmente, uma luz amarela deu o alerta no painel: combustível entrando na reserva. A co-pilota olhou no GPS o posto mais próximo enquanto a pilota controlava o limite de velocidade. Pé pesado, sua mãe diria. Ao chegar, Sofia encostou o carro e desceu para abastecer pela primeira vez. Como abrir a tampa? Quanto pagar? O que fazer? A vida por aqui é repleta de infinitas “primeira vez”. Começou a ler as instruções e seguir o passo-a-passo na tela. Não sabia a capacidade do tanque e não tinha ideia de quanto gas-

taria. Meteu “cenzinho” no visor para não ter que parar tão cedo. Aparentemente, tudo certo. A “motorista da galera” agora tinha qualificações de frentista. E ela estava amando segurar aquela mangueira. Quando o visor marcou cinqüenta e dois, ela ouviu um estalo. A bomba parou. Pára! Cinqüenta dólares dá pra se esbaldar em lagosta! Como uma boa iniciante

Farol em Peggy's Cove, Nova Scotia.

na arte de abastecer, ela não sabia que seria cobrada apenas o que consumisse. Até a última gota, pensou. Essa gasolina vai ter que entrar... Cinqüenta e nove, sessenta e três, sessenta e quatro... O jeitinho brasileiro falou mais alto e lá foi ela sacudir o carro para entrar um pouco mais. Kamilla ria alto no banco da frente chamando a amiga de louca, para variar.

De repente, a gasolina derramou para fora do tanque. Desespero. Imaginou uma versão brasileira de Telma & Louise explodindo um posto no meio nowhere em Nova Scotia. Tentou se acalmar. Pediu ajuda para a amiga. Esfregão, água na sapatilha, medo de manchar o carro. O vendedor da loja de conveniências falou algo pelo alto-falante, mas elas não

entenderam absolutamente nada. “Acho que deu merda, vambora.” Guardou a bomba, o esfregão e pegaram a estrada, não sem antes parar no meio-fio para ver se haviam danificado a pintura. Tudo certo e uma bela história para contar. O cheiro de gasolina grudava nas narinas. Finalmente, Sofia pôde abrir o teto solar.

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