A Fome, a Vontade Em tempos de polarização de Comer e o extrema, cabe perguntar: afinal, Belo Rapaz com o o que é política? A polarização que o vive deixa pouco espaço, ao menos até Olho Maior que a Brasil aqui, para as forças e opiniões políticas mais Barriga p. 4 ao centro do espectro ideológico. p. 7
valf
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edição # 30 | ano # 3 | fevereiro 2020 | www.jornaldetoronto.ca | info@jornaldetoronto.ca | ISSN 2560-7855
Um começo repentino Para sua primeira exposição no Canadá, o artista português Carlos Bunga foi convidado a produzir dois grandes trabalhos para o Museu de Arte Contemporânea de Toronto. p. 3 brian forrest
Paisagem, instalação de Carlos Bunga no Hammer Museum, Los Angeles, 2011. Cortesia do artista, Galería Elba Benítez (Madri) e Alexander and Bonin (Nova York).
Esta nação peregrina Notícias da Baixada
A criação da diáspora portuguesa no pós-Guerra da América do Norte p. 3
Ano XVI
Cristiano de Oliveira A todos, um feliz ano novo. Espero que tenham virado o ano em situação melhor que meu irmão e minha irmã, que fizeram um réveillon pros amigos só com cerveja da Backer. Agora tá todo mundo estressado e já achando que qualquer pereba na perna é sinal de intoxicação letal. E na praça, a gourmetização continua. Não interessa o produto, basta falar que veio de fora e todo mundo se derrete e diz ailoviú. Mas o que mais doeu foi saber que o bom e velho Chico do Churrasco, um barzão gigante lá no bairro Caiçara... agora virou Caiçara Grill! p. 2
fabio ludesi
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O lançamento do primeiro livro do historiador português Gilberto Fernandes aborda o processo de formação da diáspora portuguesa nos Estados Unidos e Canadá no período do pós-Guerra. Um rigoroso e robusto trabalho de pesquisa acadêmica, que o levou
a consultar arquivos em Portugal, Canadá e Estados Unidos. O livro traz a história transnacional das comunidades, abordando a conjuntura da Guerra Fria, movimentos dos direitos civis americanos, da guerra colonial portuguesa, e do multiculturalismo do Canadá.
Marias, Mahins, Marielles, malês
A regulação da vida e da morte no Brasil contemporâneo p. 6
Maria Clara de Sena.
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Editorial Seja como for, é sempre muito importante olhar para nosso passado para viver um presente melhor. Há uma tendência da memória em apagar certos acontecimentos, ou nos deixar entregar aos duros fatos do presente. Mas, por outro lado, também somos nós que fazemos o presente; então, gurus, modinhas e ideologias miraculosas não podem nos deixar levar e esquecer o que nos faz humanos e o que torna melhor nossa convivência uns com os outros. Essa edição resgata e conecta assuntos que, talvez por uma breve distração, deixaríamos passar. A precariedade da arquitetura de Carlos Bunga, a massificação de Cristiano de Oliveira, a recuperação da história de Gilberto Fernandes, a resiliência de Maria Clara, assim como a limitação que Schuster descreve ou a fantasia de Valf e Rodrigo Toniol são algumas das matérias que você poderá curtir, e refletir, esse mês no Jornal de Toronto. E, para muito breve, o JdeT está preparando uma surpresa para todos os leitores e anunciantes. O ano de 2020 promete. Portanto, fique ligado e não deixe de curtir e acompanhar nossa página de Facebook. Boa leitura! Editor-chefe: Alexandre Dias Ramos Revisor: Eduardo Castanhos Fotógrafos: Anna Encheva, Brian Forrest, Camila Garcia, Conger, Filipe Braga, Jack Guez, Michael Zender & Pablo Saborido Colunistas: André Oliveira, Camila Garcia, Cristiano de Oliveira, José Francisco Schuster, Rodolfo Marques & Rodrigo Toniol Colaboradores dessa edição: Ana Paula Buttelli, Fabio Ludesi, Karla Matias, Mariana Thorstensen Possas, Pato Irie, Rui Mateus Amaral, Sérgio Santos Barbosa, Valf & Will Leite Agradecimento especial para: Carlos Bunga, Edwin Isensee, Gilberto Fernandes, Heather A. Meltzer & Maria Clara de Sena Agências, fontes e parceiros: AFP, Alexander and Bonin, Bow Bridge Communications, Galería Elba Benítez, Getty Images, Lula Lounge, MOCA, Museu de Serralves, Revista Cláudia, University of Toronto Press Conselho editorial: Camila Garcia, Cristina Tozzi, Nilson Peixoto & Rosana Entler © Jornal de Toronto. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução de qualquer trecho desta edição sem a prévia autorização do jornal. O Jornal de Toronto não é responsável pelas opiniões e conteúdos dos anúncios publicados. Circulação: O Jornal de Toronto é mensal e distribuído em Toronto, Mississauga, Oakville e Montreal. Contato: info@jornaldetoronto.ca Subscription: $0.50/cada, $50.00/ano Siga nossa página no Facebook, Twitter, Instagram e matérias complementares, durante todo o mês, em nosso site: www.jornaldetoronto.ca Edição #30, ano #3, fevereiro 2020 ISSN 2560-7855
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Notícias da Baixada
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Ano XVI
Cristiano de Oliveira A todos, um feliz ano novo. Espero que tenham virado o ano em situação melhor que meu irmão e minha irmã, que fizeram um réveillon pros amigos só com cerveja da Backer. Agora tá todo mundo estressado e já achando que qualquer pereba na perna é sinal de intoxicação letal. Eu estive no Brasil pra minha tradicional visita de fim de ano, e conforme contei na edição passada, esse ano a viagem contou com o fator esquisito e triste da ausência da minha avó. Ao mesmo tempo, ao ver a família toda junta, mantendo a tradição de se reunir sempre, sem nenhuma divergência política ou religiosa (só divergência futebolística mesmo, mas sem provocações), e ninguém brigado com ninguém, eu concluí que o trabalho dela foi tão bem feito que por vezes parece que ela ainda está ali, amalgamando-nos com sua presença. E na praça, a gourmetização continua. Não interessa o produto, basta falar que veio de fora e todo mundo se derrete e diz ailoviú. Budweiser continua sendo uma cerveja chique. Todo mundo adora a Schincariol da garrafa verde, que o brasileiro chama de Ráinique e diz ser a melhor coisa do mundo... até daqui a dois meses, quando a modinha virar. Mas o que mais doeu foi saber que o bom e velho Chico do Churrasco, um barzão gigante lá no bairro Caiçara... agora virou Caiçara Grill! É muita breguice. Trocar um nome raiz e histórico por um anglicismo patético usado por 90% dos restaurantes que servem carne? Um pequeno exemplo de um fenômeno bem maior: aos poucos, o brasileiro vai deixando sua até então imbatível criatividade se esvair, em nome do desejo louco de copiar alguém mais rico. A vontade de ser diferenciadão ainda está lá firme, todo mundo quer se destacar no meio da multidão. Mas ninguém sabe como, e todo mundo faz do jeito errado. Globa-
A
fabio ludesi
lização ou preguiça de pensar? O que mais me chamou atenção, no entanto, foi como a cultura está se desintegrando sob total anuência de todos. Achar bons filmes brasileiros pra comprar virou luta. Em arquivo digital, não vi ninguém vendendo. Em DVD, o filme nacional chegou ao seu Momento Caprichosos de Pilares: quem comeu, comeu, quem não comeu não come mais. Acabou. Restará assistir ao que a plataforma de streaming autorizar. Nas poucas livrarias ainda existentes, você só vê livro de estudo pra concurso, autoajuda, biografia e livro estrangeiro. Quase caí pra trás ao ver, bem na entrada da
vida é incrível _ Will Tirando
Saraiva, o livro Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas! Por mais que eu preze os clássicos, é muita sacanagem com a produção literária nacional colocar, como destaque da loja, um livro estrangeiro de autoajuda originalmente escrito na parede de uma caverna usando um toco de carvão. Daí todos dizem: “ah, mas é que agora é tudo online”. Não, não é. Dados mostram que o ebook tem só 1% do mercado literário no Brasil. Então o livro de papel reina? Reina como o Rei Chiuaua no Planeta Gato: ele pode ainda
ser o maior na categoria, mas onde está a categoria? Os estoques das livrarias, online ou não, vivem vazios. Encontrar determinado livro virou uma luta árdua. Estará o livro no mesmo caminho dos filmes e suas plataformas de streaming? Será que, por fim, leremos só o que a livraria autorizar? E apesar de tudo, eu adoro aquilo lá. Já era pra ter largado desse vício, mas é mais forte que eu. Adeus, cinco letras que choram.
Cristiano de Oliveira é mineiro, atleticano de passar mal, formado em Ciência da Computação no Brasil e pós-graduado em Marketing Management no Canadá. Famigerado colunista de jornal em Toronto há mais de 15 anos. É um grande cronista do samba e das letras.
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Esta nação peregrina
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A criação da diáspora portuguesa no pós-Guerra da América do Norte Camila Garcia
camila garcia
Susana Miranda entrevista Gilberto Fernandes na ocasião do lançamento do livro, em Toronto.
Um começo repentino Rui Mateus Amaral é curador adjunto do Museu de Arte Contemporânea de Toronto Carlos Bunga é um nômade. Nas últimas duas décadas, o artista português, baseado em Barcelona, atravessou o mundo, erguendo estruturas colossais e íntimas que ele denominou Ruína (2008), Paisagem (2011), Mausoléu (2012), Ágora (2012), Capela (2015) e, mais recentemente, Catedral (2019). Projetadas com papelão, fita adesiva e tinta doméstica, as construções da Bunga são improvisadas e temporárias. Uma vez realizadas, elas lembram modelos arquitetônicos em escala humana, abrigos temporários e ruínas modernas. Surgidas a partir de um convite para responder à arquitetura existente, cada um de seus projetos oferece uma experiência singular, na qual espaços alternativos abrem espaço para novas possibilidades. Embora cada um de seus projetos seja distinto e fugaz, eles são sustentados pela prática corporal do artista e pelas memórias daqueles que os experimentam. Para sua primeira exposição no Canadá, Bunga foi convidado a produzir dois grandes trabalhos específicos para o Museum of Contemporary Art Toronto
Canada (MOCA). Inspirada na simplicidade da arquitetura do museu e no ritmo de suas colunas, Bunga enfatiza e desafia a fisicalidade da estrutura. Suas instalações formidáveis e sua sensibilidade nômade aprofundam sua longa investigação sobre alguns dos assuntos mais comoventes de nosso tempo: estabilidade, certeza e permanência. Incorporadas à exposição estão várias novas esculturas feitas com móveis de origem local – mesas laterais, escrivaninhas, molduras douradas e armários – que são retrabalhadas em paisagens urbanas pintadas. Potencializando ainda mais o projeto de Bunga, estão os curtas-metragens de rupturas performáticas – o esmagamento de uma lâmpada, o rompimento de uma parede – cada um dos quais expressando o potencial de uma ruptura de ser tanto um começo repentino quanto um sinal de fim. A exposição acontece de 6 de fevereiro a 10 de maio no Museum of Contemporary Art Toronto Canada (158 Sterling Rd., Toronto, próximo da Dundas West Station).
Na noite de uma típica quarta-feira fria na cidade de Toronto, o público aos poucos reunia-se no Supermarket bar, localizado no Kensington Market. O palco, à meia-luz, revelava fotografias de uma comunidade em um passado não muito distante, mas que ainda se tem pouca compreensão. A ocasião era o lançamento do primeiro livro do historiador português Gilberto Fernandes. This Pilgrim Nation: The Making of the Portuguese Diaspora in Postwar North America é resultado da tese de doutorado de Fernandes, e aborda o processo de formação da diáspora portuguesa nos Estados Unidos e Canadá no período do pós-Guerra. Um rigoroso e robusto trabalho de pesquisa acadêmica, que o levou a consultar arquivos em Portugal, Canadá e Estados Unidos. Fernandes revelou que teve acesso a milhares de documentos e fotografias relevantes e que estava particularmente interessado nos arquivos produzidos pelos corpos diplomáticos portugueses, especialmente devido ao papel exercido por alguns agentes dentro ou próximos do Estado Novo (ditadura portuguesa) na própria criação do conceito de diáspora. O historiador afirmou
que esta relação é um dos aspectos mais importantes do livro e que pode ser considerada positiva ou negativa, dependendo da perspectiva pessoal de cada um. O livro traz também a história transnacional das comunidades, abordando a conjuntura da Guerra Fria, movimentos dos direitos civis americanos, da guerra colonial portuguesa, e do multiculturalismo do Canadá. Para as comunidades da diáspora na América do Norte, é um retrato de suas similaridades, diferenças e dos desafios que cada uma delas tiveram que ultrapassar para se estabelecer e prosperar, além de ser uma oportunidade – como reforçou o autor – de acabar com os estereótipos que ainda existem dentro da própria comunidade portuguesa. O livro preenche uma lacuna ao propiciar um olhar globalizado e comparado, e possibilita segundas e terceiras gerações de imigrantes aprofundarem o conhecimento sobre suas origens. A escolha do local também foi
Capa do livro de Gilberto Fernandes, publicado pela University of Toronto Press.
bem apropriada. Historicamente um bairro operário, o Kensington Market acolheu britânicos, judeus e, nos anos 50, tornou-se uma das principais portas de entrada para os portugueses. Foi nessa região que surgiram os primeiros negócios, clubes e onde naquela época se exercia a “Portugualidade”. This Pilgrim Nation é uma publicação da University of Toronto Press e já está disponível para compra online. A partir de fevereiro, o livro deve chegar em livrarias selecionadas e nas bibliotecas públicas da cidade.
Camila Garcia é paulista e já trabalhou com teatro, rádio, televisão e jornalismo. Sempre de olho no universo político, adora trocar suas impressões com os mais chegados, e agora com os leitores do Jornal de Toronto. Atualmente é apresentadora do programa de televisão Focus Portuguese, todos os sábados e domingos, na OMNI TV.
Ágora, instalação de Carlos Bunga no Museu de Arte Contemporanea de Serralves, Porto, 2012. Cortesia do artista, Galería Elba Benítez (Madri) e Alexander and Bonin (Nova York).
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filipe braga
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Conexão Toronto-Salvador Pato Irie é Mestre do Grupo TDot Batu O grupo de samba reggae TDot Batu foi criado em Toronto em novembro de 2012. A inspiração do nosso grupo é a percussão afro-brasileira vinda de Salvador, Bahia, a exemplo dos blocos Olodum, Ilê Aiyê e Timbalada.
Depois de 7 anos tocando, aprendendo, realizando grandes produções e participando de diferentes festivais pela cidade, chegou a hora do grupo se conectar diretamente com suas raízes. Um grupo de 20 pessoas está saindo de Toronto para participar no Carnaval de Salvador, em fevereiro de 2020. Lá, teremos a oportunidade de participar de workshops de percussão com os Mestres dos diferentes blocos afros. Vai ser uma experiência de muita riqueza para nossos percussionistas e também para nossa comunidade aqui, que vai ter a oportunidade de ouvir, em nossos próximos shows, todo o material que iremos aprender com esse intercâmbio cultural Canada-Brasil, Toronto-Salvador.
anna encheva
TDot Batu no Lulaworld Festival, durante o Dundas West Fest 2018.
A Fome, a Vontade de Comer e o Belo Rapaz com o Olho Maior que a Barriga
da série "Crônicas de vidas miseráveis"
Valf é ilustrador e escritor
Do mesmo ventre nasceram e da mesma sina compartilharam. Uma – a Fome – moça alva de cabelo claro e olheiras pronunciadas, tinha um belo semblante. Faltava-lhe porém toda a região do abdômen. Daí a lhe chamar por Fome. A outra – a Vontade de Comer – tinha a barriga por inteiro. Não possuía a mandíbula e, da boca, só o lábio superior. E seus olhos eram olhos tristes de alguém que nunca sorriu na vida. Na convivência, o infortúnio de uma era o alento para a outra. E assim viviam da necessidade do sofrer oposto. Companheiras na miséria, acima de tudo. Foi quando um dia chegou vindo de terras distantes o Belo Rapaz com o Olho Maior que a Barriga e cruzou o destino das irmãs. Comida era sua vida e falar dela um dos seus maiores prazeres. De suas comilanças sem fim fez alarde e para as famintas irmãs contou em tom de epopeia seus feitos gastronômicos. O dia em que comeu um rebanho inteiro com mais de 300 cabeças de gado, o pequeno reino que veio à bancarrota depois de lhe oferecer um banquete e até a sua famosa batalha contra 116 javalis selvagens pela disputa da carcaça de
um animal morto. A Fome degustava cada palavra do Belo Rapaz com o Olho Maior que a Barriga como se fosse um manjar, como se suas histórias lhe satisfizessem as necessidades do alimento. E foi assim que, pelos excessos do estômago, o Belo Rapaz com o Olho Maior que a Barriga conquistou o coração da Fome... e a inveja da Vontade de Comer. Ferida e tomada pela cegueira do ciúme, ela armou contra aquele que havia roubado a atenção da irmã. Com astúcia incentivou o Belo Rapaz com o Olho Maior que a Barriga a comer a lua e beber o mar. E salivando, foi isso que ele fez. Durante 26 dias sem descanso nem trégua ele consumou sua empreitada. Naco a naco. Bocado a bocado. Pedaço a pedaço. Até o fim. Mas aquilo havia sido demais até para ele. Enfarado, embotado e quase morto, o entupido glutão mal teve tempo de se despedir da Fome antes de fenecer. Esta, pobre, chorou durante 8 dias e 8 noites... tempo que durou seu sofrer... e também morreu. E vive agora a remoer remorso a infeliz da Vontade de Comer. E o que mais lhe dói é ter até o resto da vida o estômago a roncar para lhe lembrar a palavra... fome.
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Perdido
José Francisco Schuster De um dia para o outro, dá um vazio na cabeça, do nada. Um pânico. As coisas mais simples viram quebra-cabeças. Os primeiros desafios são acessar o básico do celular. E aí, como é que faz? Como se comunicar com o mundo? Digitar fica um tormento. Com velocidade, como ele exige para não bloquear a oportunidade de senha, impossível. E passar certas barreiras, torna-se impossível. Um ponto a ultrapassar, que fazia com facilidade, torna-se impossível, angustiante. Lembro-me que eu mesmo o instalei, por sugestão do celular. Como, agora, cancelar esta coisa para que não me perturbe e me permita avançar? Não sei. Só ligando para a empresa do celular. E como se liga? Google dá mil respostas. Até lembrar da irritante gravação “você já tem três mensagens (absurdo, hein?). Ligue para 611 e libere mais, esta ligação é grátis”. Ligo. Depois de uma ladainha,
“o próximo atendente estará disponível em 35 minutos. Disque um que ele lhe retornará”. Eficiente, hein? E minha vida bloqueada. Lá pelas tantas liga a simpática atendente. “O telefone está todo bloqueado, quero desbloqueá-lo para tudo”, explico. Dane-se a segurança. Ela deve ter ficado com aquela cara de pasma com a pergunta de nível de idiota e com o suspiro de “ai, meu Deus, mais um telefonema dos piores, os idosos”. Tentou em círculos dar uma ideia, sem algo concreto. Ao final, já estava apelando para entrar em contato com o fabricante do aparelho. “Deixe, vou tentar mais um pouco e, se não der certo, vou na loja”, replico. “Nãooooo”, diz ela assustada, “a loja não pode fazer nada”. Desligo com um celular inútil nas mãos e sem acesso ao mundo. Mais tarde, chega minha enteada em casa. Adolescente! Chegou minha solução! Digo que não
conger
posso fazer nada. Ela mata a charada na hora: screen lock. Meu suspiro de alívio só dura fração de segundo. “Password”, ordena ela. PQP! Aquele que eles mandam ficar trocando e que tem que ter caixa alta, caixa baixa, caractere? Perguntar para mim, com a mente em branco??? Sem isso, não há como? Começam as tentativas, com o pânico de não ser bloqueado por excesso. Depois de suar frio, consegui. “Agora tem uma segunda senha, lembra?”, diz ela.
Dica sustentável Ana Paula Buttelli é jornalista Consumidores conscientes apoiam produtores rurais adquirindo seus produtos em feiras, isso é fato. Mas, na temporada de inverno, temos poucas opções por aqui. Os chamados farmers market acontecem de maio a outubro na maior parte de Toronto. Então, como podemos apoiar o setor primário da economia durante o ano inteiro?
A resposta está no selo Fairtrade, que é bem fácil de encontrar nas prateleiras dos supermercados. No Canadá, são quase 7 mil produtos, dos quais café, banana e chocolate estão entre os principais. Ao comprar os produtos que estejam identificados com o selo, estamos cooperando com a relação honesta entre agricultores e revendedores, sem abuso de mão de obra. Além de assegurar o pagamento justo aos produtores, também colaboramos com projetos sociais. Na próxima ida ao supermercado, além de optar pelos itens Fairtrade, lembre-se de levar sacolas retornáveis.
Meu Deus do céu! É teste pra trabalhar na NASA? Mais um suplício. “Passou, repita a senha”. O quê??? “Faz um segundo que digitou...” Sim, mas nem sei o que digitei. A caixa era alta ou baixa? E o tal caractere? Mais um esforço sobre-humano para acertar. E finalmente, em um milagre, deu! Livre do screen lock, o primeiro de meus problemas.
Este é o cérebro, uma caixinha maravilhosa onde guardamos tudo o que somos e na qual também perdemos tudo em um nada. Pavor para os idosos, com os quais devemos ter compaixão, ainda mais em um mundo informatizado, cheio de códigos e senhas e até exigências de rapidez. É de enlouquecer.
Com mais de 35 anos de experiência como jornalista, José Francisco Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Foi, durante 8 anos, âncora do programa Fala Brasil e do programa Noites da CHIN - Brasil, ambos em Toronto.
Política
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Marias, Mahins, Marielles, malês A regulação da vida e da morte
no Brasil contemporâneo
Mariana Thorstensen Possas é professora do departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora visitante na Universidade de Toronto & Karla Matias é mestre em administração pública pela Universidade de Ottawa
Marielle Franco. Negra, moradora da periferia da cidade do Rio de Janeiro, pobre e lésbica. Socióloga de formação, mestre em administração pela Universidade Federal Fluminense, vereadora do PSOL no Rio de Janeiro e defensora dos direitos humanos. Em 14 de março de 2018, durante o período da intervenção militar no estado do Rio de Janeiro, foi assassinada pela milícia, segundo indicam as investigações oficiais até o momento. As razões da morte ainda não estão claras, mas já temos elementos suficientes para afirmar que está muito provavelmente ligada a divergências
políticas e a sua militância. Maria Clara de Sena. Negra, nascida na zona da mata de Pernambuco, pobre e trans. Bacharel em Serviço Social, integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no estado de Pernambuco, previsto no Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura das Nações Unidas. Ganhou o Prêmio CLAUDIA 2016, na categoria “Políticas Públicas”, dentre outros prêmios. Após receber ameaças de morte de um agente penitenciário durante uma visita à serviço do mecanismo, por defender direitos humanos de presos, deixou o Brasil e vive
pablo saborido_revista cláudia
Maria Clara de Sena.
como refugiada no Canadá, desde 2016. Marielle e Maria Clara. Morte e vida relacionadas aos direitos humanos e ao tipo de militância que eles embasam e justificam. No Brasil, a luta cotidiana pelos direitos humanos, especialmente para quem fala deles a partir da periferia, pode ser uma atividade extenuante e arriscada, e resultar em mortes violentas. Marielle e Maria Clara são dois exemplos desse fenômeno brasileiro. Por serem quem eram, e por defender os direitos de quem defendiam, colocaram suas vidas em risco.
A
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No Brasil contemporâneo, defender o direito de LGBT não serem torturados e mortos, ou o direito de crianças e jovens negros das periferias não serem mortos durante operações policiais ordinárias, rende ameaças de morte. Os fatores determinantes para o risco da morte se tornar realidade, como nos casos de Marielle e Maria Clara, estão ligados ao “lugar social” que ocupam: negras, pobres, moradoras de periferia, lésbica e trans. Ou seja, negras, pobres, defendendo o direito de outros negros e pobres. Não foram perdoadas por isso. A luta pela demarcação de terras e pelo respeito à cultura e às tradições dos povos indígenas é um outro exemplo de bandeira de direitos humanos, cuja luta implica muitas vezes em colocar a vida e a integridade física em risco. Surpreendentemente para nós cidadãos e cidadãs do século XXI, a proteção ao meio ambiente, em suas várias esferas e dimensões, é hoje também uma bandeira das mais perigosas, dependendo de onde e contra quem a militância é destinada. Mas há um aspecto dessa violência como fenômeno do Brasil contemporâneo que vale a pena destacar. Assistimos nos últimos anos, tanto no discurso oficial do governo e de governantes, como expresso em mídias tradicionais e sociais, à crescente disposição em atacar explicitamente os direitos humanos, enquanto ideias e valores, assim como nas pessoas de seus defensores e militantes. O que temos então contemporaneamente é o movimento de explicitação e legitimação do ataque aos direitos humanos.
Os defensores de direitos humanos são, em muitas dessas comunicações políticas e midiáticas, representados como inimigos, como desonestos, como “doutrinados”. E as lutas que eles encarnam são tratadas com desconfiança e desprezo; afinal, quem defende “bandido” não pode ter a confiança do “cidadão de bem”. E assim, a interpretação de situações complexas vira uma simplista disputa entre o bom e o mau, o mocinho e o bandido. O discurso que deveria ser construtivo
e emancipador (os direitos humanos) se torna razão de disputa, de ódio e de morte. Como em muitos outros conflitos no Brasil, a resolução do embate não se dá por meio do diálogo, nem da justiça, mas “na bala”. E, enquanto isso, o Brasil permanece, segundo várias organizações internacionais (Global Witness, Human Rights Watch, Anistia Internacional), entre os países que mais matam defensores de direitos humanos e ambientais no mundo.
Human sapiens Sérgio Santos Barbosa é poeta Maria Clara disse, eu estava lá no Drom, apreciando o bom, ouvi, “... afoxé não é moda, é certeza.” como o espírito da arte em qualquer parte é o desapego, maturidade, saber conviver, viver com o entendimento mediante o outro, a qualidade, atributo genético estético que acrescenta, agregar-se valor e comportar-se acessível, elevar-se o nível, melhor é ser cowboy, o lado bom de ser bandido, viver em imenso bando-humanidade em profusão, em multidão incrível, doar-se o braço e a mão, disponibilidade ao pão, jamais à falta alheia dizer “não”, velada sutileza, vide como em bula a compaixão, receita, abrir-se espaço ao outro, oferecer o próprio passo, completar no amplexo o forte acalentador abraço, amar escancarar sorriso, compartilhamento a favor do bem, junto desafiar e enfrentar o tempo e de cara-a-cara dizer venha!, ao vento, saber no outro o melhor como antepasto ao alimento, que enfim sustenta almas, todas, no intervalo ao cansaço. amém. Obrigado, Maria Clara de Sena.
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Em tempos de polarização extrema, cabe perguntar: afinal, o que é política? André Oliveira & Rodolfo Marques O Brasil vive uma polarização política extrema, opondo o bolsonarismo ao lulismo, de modo a deixar pouco espaço, ao menos até aqui, para as forças e opiniões políticas mais ao centro do espectro ideoló-
luta, uma espécie de guerra de trincheiras virtual, produzindo, não raro, fake news, ao mesmo tempo em que servem para mobilizar grupos para manifestações de rua ou em outros espaços de representação. A proliferação hiperbólica de informações e embates, no ambiente virtual e/ou
define a política a partir de uma concepção minimalista, tendo como uma de suas referências essenciais a contribuição teórica do austríaco Joseph Schumpeter. Para ele, a democracia teria uma natureza meramente instrumental, resumindo-se à possibilidade periódica que os eleitores
tinua funcionando através das instituições que fazem o chamado controle horizontal (Ministério Público, Poder Judiciário, Tribunais de Contas, etc.) dos atos dos governantes. No caso brasileiro, por exemplo, a Operação Lava Jato evidenciaria a robustez das instituições de controle ho-
gico. A polarização é perceptível nas redes sociais com repercussões, no convívio das famílias brasileiras, em menor ou maior medida. As redes sociais, em especial, apresentam-se como um espaço de permanente
familiar, suscita outra vez a indagação sobre qual é o lugar da política no tempo presente. Na literatura em Ciência Política, há dois grandes campos teóricos que definem a política de modo distinto. O primeiro campo
têm de escolher, mediante eleições livres, qual grupo irá governar. A democracia associa-se prioritariamente ao voto e às convocações sazonais do eleitorado. Schumpeter não considerou que, no período entre eleições, a democracia con-
rizontal no combate à corrupção estatal dos agentes
políticos e seus associados empresariais. Além disso, as eleições não são hoje suficientes para classificar um sistema como democrático, afinal, ditaduras também realizam eleições, mas sem a necessária competição schumpeteriana entre grupos (ou partidos) pelo poder. Em contraste (mas não em absoluta oposição) com a concepção minimalista (ou de mercado) da política, existe a concepção maximalista que entende a política como Fórum ou Espaço Público. Nesse caso, a política seria exercida nos espaços públicos institucionalmente assegurados às manifestações de todos. Retomando a tradição ateniense, Hannah Arendt dirá no livro A Condição Humana que o exercício da política requer a aparição (na Esfera Pública, tal como os atenienses faziam na Ágora, a praça pública) e o discurso (com o fim de convencer os demais participantes dos debates). As deliberações públicas sobre o orçamento participativo
seriam um exemplo viável de democracia participativa. Essa concepção de democracia deliberativa apresenta, no entanto, uma série de limitações, como a capacidade reduzida de participantes na tomada de decisões em sociedades urbanas complexas, dentre outras críticas. Fazer política implicaria, portanto, na associação a um partido ou grupo político (no sentido schumpeteriano) ou na participação física e efetiva de debates nas arenas públicas (no sentido arendtiano). Tudo bem ponderado, passar boa parte do dia nas redes sociais, disparando mensagens, como um “guerrilheiro virtual”, contra um grupo ou outro (não raro, sob o manto oportunista do anonimato), não se conformaria a nenhuma das formas prescritas de se fazer política, a menos, é claro, que se atribua um novo significado a um conceito já essencialmente polissêmico.
André Oliveira (à esquerda) é advogado com especialização em Direito Público, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e membro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) desde 2009. Rodolfo Marques é analista judiciário, publicitário e jornalista; Mestre (UFPA) e Doutor (UFRGS) em Ciência Política, e professor de Comunicação Social na Universidade da Amazônia e na Faculdade de Estudos Avançados do Pará.
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A fantasia sobre Israel e a política brasileira Rodrigo Toniol
Durante a campanha eleitoral de 2018 testemunhamos um fenômeno curioso no Brasil: candidatos alinhados à chamada onda conservadora, assim como seus apoiadores, passaram a fazer uso ostensivo da bandeira de Israel. No período de campanha, a demonstração de apoio às causas da chamada nova direita apelava para a estética nacionalista do verde e amarelo, do uso de camisetas da seleção de futebol, por bandeiras do Brasil e, justamente, por bandeiras de Israel. A estética se transferiu para o mundo virtual e as duas bandeiras passaram a ser a marca e um ícone capaz de comunicar a identificação com o conservadorismo em perfis do Twitter e Instagram. Durante parte do mês de janeiro deste ano estive em Israel para uma participação em um evento acadêmico cujo tema era exatamente esse, o uso de
uma imagem projetiva fim, não podemos esquee, por mais fantasiosa cer que é cada vez maior que possa ser, acioná- o número de igrejas evan-la é eficaz para seu uso gélicas que fazem uso de político. No Brasil, a símbolos judaicos. O elecomunidade israelita é mento mais emblemático minoritária, mas asso- desse processo certamente ciar um projeto político é a construção do Templo a ela pode servir como de Salomão, no meio da atalho para se aproxi- Brás, em São Paulo, erguimar de suas caracte- do com pedras vindas de rísticas: branca, classe Israel e com cultos com média e tradicional. pastores usando quipá. A referência à Israel é Esse Templo da Igreja Unium atalho para o bran- versal adiciona uma nova jack guez_afp_getty images queamento desejado camada de convergência A bandeira israelense e brasileira são vistas do lado de fora da Embaixada do Brasil em Tel Aviv, em outubro de 2018. das classes ascenden- entre a nova direita e altes que têm se associa- guns grupos evangélicos referências à Israel em di- construção estética dessa vem permanecer em nosso do com a nova direita, e no Brasil. A nova direita ferentes partes do mundo nova direita. Mas afinal, o horizonte quando tenta- também para cumprir um está construindo sua estépela direita emergente. A que significa esse apelo? mos entender o fenômeno antigo projeto dos grupos tica e essa Israel imaginájá estabelecidos das clas- ria faz parte dela. primeira constatação mais Como explicar o uso da no Brasil. A referência à Israel ses mais abastadas. Por geral é a de que estamos, bandeira de Israel por pesde fato, falando de um fe- soas sem qualquer cone- não indica simplesmente nômeno que extrapola o xão com aquela região do o desejo por uma aliancaso brasileiro e que tem mundo ou com sua histó- ça política com aquele Rodrigo Toniol é doutor em antropologia e se repetido em diferentes ria? Por que isso, e por que país, o que está em jogo professor da Unicamp, tendo realizado estudos latitudes. A segunda é a de agora? Essas são perguntas é acionar, por meio des- de pós-doutorado na Universidade de Utrecht (Holanda); foi também pesquisador-visitante que o apelo à Israel parece chaves e as respostas ainda sa referência, uma Israel nos Estados Unidos e México. Suas pesquisas e ser algo que permanecerá estão se delineando, mas imaginária. Nesse caso, o publicações estão principalmente relacionadas constante como marca da destaco três pontos que de- país do Oriente Médio é com os temas de religião, saúde e ciência.