Projeto ARI 85 anos

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VISÕES DO JORNALISMO

85ANOS

VISÕES DO

JORNALISMO

COMO FAZER ENTREVISTAREPORTAGEMAPRESENTAÇÃO EDIÇÃODIAGRAMAÇÃOCRÔNICAFOTOGRAFIA HUMORPRODUÇÃOWEBJORNALISMOOPINIÃO

PROFISSIONAIS RECONHECIDOS COM O PRÊMIO ARI DE JORNALISMO CONTAM EXPERIÊNCIAS NAS ÁREAS EM QUE ATUAM 1


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COMO FAZER ENTREVISTAREPORTAGEMAPRESENTAÇÃO EDIÇÃODIAGRAMAÇÃOCRÔNICAFOTOGRAFIA HUMORPRODUÇÃOWEBJORNALISMOOPINIÃO

PROFISSIONAIS RECONHECIDOS COM O PRÊMIO ARI DE JORNALISMO CONTAM EXPERIÊNCIAS NAS ÁREAS EM QUE ATUAM 2

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COMO FAZER ABERTURA - LUIZ ADOLFO LINO DE SOUZA JOÃO BATISTA DE MELO FILHO JUREMIR MACHADO DA SILVA LARISSA ROSO CLÁUDIA LAITANO SANTIAGO - NELTAIR ABREU PATRICIA COMUNELLO PEDRO GARCIA GUILHERME KOLLING MICHELE FERREIRA NEUSA GALLI FRÓES ROBERTO BRENOL ANDRADE JONATHAS COSTA CID MARTINS OZIRIS MARINS LUCIANE KOHLMAN LÉO NUÑEZ MILTON COUGO RICARDO GIUSTI MARCELO RECH FECHAMENTO - NÍLSON SOUZA 4

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VISÕES DO JORNALISMO: COMO FAZER/ARI 85 ANOS ORGANIZAÇÃO Nilson Souza PROJETO GRÁFICO Luiz Adolfo Lino de Souza REVISÃO Pedro Macedo CRÉDITOS As entrevistas desta antologia foram realizadas pelos jornalistas Antônio Goulart, Ciro Machado, Cláudio Brito, Cristiane Finger, Flávio Dutra, José Nunes, Júlio Cordeiro, Jurema Josefa da Silva, Léo Nuñez, Luiz Adolfo Lino de Souza, Márcia Martins, Moacir Knorr Gutterres (Moa), Nílson Souza, Pedro Dreher, Thamara da Costa Pereira e Vilson Romero, e pelos estudantes de jornalismo da ESPM-Sul Augusto de Oliveira Braga, Cassiano Taffarel, Leonardo Colato, Luiza Bicca Schirmer, Maria Ana Krack, Natália Valduga, Pamela Rodrigues e Vinícius Dias Valiente Ulmann. Dados Internacionais de Catalogação

ASSOCIAÇÃO RIOGRANDENSE DE IMPRENSA (ARI) Avenida Borges de Medeiros 915, Centro Histórico. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. www.ari.org.br 6

SUMÁRIO ABERTURA - LUIZ ADOLFO LINO DE SOUZA JOÃO BATISTA DE MELO FILHO JUREMIR MACHADO DA SILVA LARISSA ROSO CLÁUDIA LAITANO SANTIAGO - NELTAIR ABREU PATRÍCIA COMUNELLO PEDRO GARCIA GUILHERME KOLLING MICHELE FERREIRA NEUSA GALLI FRÓES ROBERTO BRENOL ANDRADE JONATHAS COSTA CID MARTINS OZIRIS MARINS LUCIANE KOHLMAN LÉO NUÑEZ MILTON COUGO RICARDO GIUSTI MARCELO RECH FECHAMENTO - NÍLSON SOUZA

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ABERTURA Este livro é uma demonstração de força do jornalismo. Idealizado durante o isolamento da pandemia da Covid-19 traz uma série de entrevistas com vencedores do Prêmio ARI de Jornalismo. A disseminação das plataformas de teleconferência possibilitou os encontros virtuais e inspiraram a Diretoria-executiva da ARI a realizar este projeto dedicado a estudantes de jornalismo e novos profissionais. Vivemos uma campanha de desconstituição do jornalismo, como estratégia para atacar a democracia, aproveitando-se de crises econômicas, políticas e culturais destes primeiros anos do século XXI. O jornalismo vive, então, a necessidade diária de reafirmar seu papel em favor da sociedade, regulado por legislação própria para conter desvios, e fundamentado em rotinas e técnicas que comprovam sua seriedade e liberdade na tarefa de bem informar. O subtítulo “Como fazer” deste “Visões do Jornalismo” define a compilação de experiências de jornalistas reconhecidos que, entrevistados por colegas, explicam detalhes da sua área de atuação. A ARI tem tradição em publicar obras sobre comunicação há muitas décadas e este livro retoma este propósito. Os estudantes de jornalismo estão sempre na busca de referenciais e informações sobre detalhes da profissão que vão encarar. Levar a visão dos jornalistas da ARI às universidades é uma tradição desta Casa. Aliás, foi a Associação Riograndense de Imprensa quem promoveu o primeiro curso para jornalista, antes da criação das faculdades no Estado. E foi a experiência da ARI, de seus dirigentes e associados, que contribuiu para a formatação dos pioneiros cursos de jornalismo. Os profissionais entrevistados são associados da ARI e tiveram sua atuação profissional reconhecida pelo Prêmio ARI nos últimos 20 anos de história do troféu mais cobiçado da imprensa gaúcha, realizado desde 1958. 8

Foi difícil fazer a escolha dos nomes, mas a intenção de dar continuidade a este projeto, em outras plataformas, nos tranquiliza em reparar omissões e trazer outras visões, já que nem todas as atividades possuem as mesmas regras e a criatividade é qualidade fundamental do trabalho de cada profissional. Para este projeto contamos com a colaboração de estudantes e professores de jornalismo da ESPM-SUL, através de seu laboratório, que encarregou-se das transcrições das entrevistas gravadas. Os alunos participaram das entrevistas com interesses específicos para atualizar temas e focar em questões de um mercado de trabalho em transformação. E os estudantes também editaram os depoimentos em vídeos e áudios para um projeto de cauda de longa que tem o objetivo de usar mais de uma plataforma para conquistar seu objetivo: encantar sobre uma profissão imprescindível nos dias de hoje. A paixão dos jornalistas pelo que fazem, a responsabilidade na execução das tarefas e o papel do profissional na mediação com os seus públicos faz de cada depoimento uma lição de jornalismo. Na leitura das entrevistas se identifica um jornalismo baseado na credibilidade e no serviço público. Vemos a clara função do jornalista de ajudar pessoas a entenderem melhor os acontecimentos. Igualmente a responsabilidade de fiscalizar os poderosos e lutar contra a desinformação. Isto porque o jornalismo responsável é uma conquista da sociedade democrática. Desta maneira, a ARI vê suas bandeiras históricas contempladas em defesa das liberdades. Agradeço imensamente a todos que partiparam deste projeto. Diretores da ARI, jornalistas e estudantes, com a urgência da profissão, entrevistaram 19 profissionais em 30 dias, mesmo durante este período de pandemia, traumática do ponto de vista pessoal e profissional. Este trabalho mostra a nossa relevância como associação que representa profissionais do jornalismo do Rio Grande do Sul há 85 anos. Luiz Adolfo Lino de Souza Presidente da ARI Dezembro de 2020 9


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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO JOÃO BATISTA DE MELO FILHO

“O que defendemos é o direito da sociedade de ser bem informada”

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ais antigo narrador de televisão do Rio Grande do Sul, Batista Filho celebrizou-se como comentarista e apresentador de programas esportivos, mas também inclui em sua carreira de mais de seis décadas de jornalismo a defesa intransigente da liberdade de expressão. Paralelamente à atividade jornalística, foi presidente da Associação Riograndense de Imprensa entre os anos de 2010 e 2016, e atualmente preside o Conselho Deliberativo da entidade. Natural de Lagoa Vermelha, ele seguiu os passos do irmão e radialista Ênio Melo. Batista também começou no rádio como locutor de notícias esportivas na Farroupilha e integrante da equipe que cobria as atividades do Jóquei Clube de Porto Alegre. Também foi um dos primeiros contratados da TV Piratini, então afiliada da Rede Tupi, pertencente aos Diários Associados. Na emissora lançou o programa Conversa de Arquibancada, líder de audiência e precursor dos debates esportivos no rádio e na televisão. Militante do antigo Partido Trabalhista Brasileiro e simpatizante do ex-governador Leonel Brizola na década de 60, enfrentou a censura e a perseguição política do regime militar, fortalecendo ainda mais suas posições de defensa da democracia e da liberdade de imprensa. 10

O Brasil vive hoje a plena liberdade? Nós vivemos em uma democracia jovem, nossa constituição é de 1988, recém completou 32 anos. O jornalismo vive com saúde na democracia e com espaço para o contraditório como princípio, mas temos tido tentativas de sufocamento desta democracia. E o que uma entidade como a ARI pode fazer pela democracia? Defendemos não apenas a liberdade de imprensa e de expressão, mas também os demais direitos da sociedade, entre os quais o de contar com uma associação de jornalistas como a nossa, que é laica, independente e apartidária. Quando a ARI defende a liberdade de imprensa, está defendendo o direito da sociedade de ser bem informada. Sabemos que a imprensa não é dona da verdade, é apenas transmissora e investigadora de fatos. Qual é o papel do jornalista nesse contexto? O jornalista tem que manter a sua independência. Não pode ser prisioneiro de qualquer linha de interesses, sejam eles políticos, econômicos e muito menos de viés autoritário. Liberdade de imprensa é não ser prisioneiro de inverdades. Traduzimos com independência os fatos e acontecimentos para a reflexão da sociedade. Desde a redemocratização do país, os meios de comunicação brasileiros vêm cumprindo este papel com lisura, na imensa maioria das situações. E quando há excessos? A imprensa está submetida à legislação, que possui as ferramentas para conter os excessos e os meios de punição. As emissoras de rádio e televisão, por exemplo, são concessões por tempo determinado. Podem ser cassadas em caso de cometerem crime. Nosso bem maior é a vida e, junto com ela, a liberdade. Mas sabemos desde casa que a liberdade tem limites.

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A liberdade de expressão está restrita à imprensa? Não, é ampla e abrange todos os setores da sociedade. Está no livro, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e também nos meios jornalísticos. Com suas peculiaridades. Na arte cênica, por exemplo, é permitido o palavrão, que não cabe nas nossas reuniões profissionais e formais de empresas e governos. É uma licença permitida como expressão e sentimento. Em outras áreas, não é apropriado utilizar tudo o que é aceito no ambiente cultural. Onde a limitação é necessária? Nas fake news. As pessoas têm o direito de se expressar, mas nunca de caluniar, ofender ou difamar. Neste momento em que enfrentamos crises sucessivas, a econômica, agravada pela sanitária e também pela política, é evidente a campanha de desconstituição do papel da imprensa. A polarização política se utiliza da desinformação para deslegitimar adversários e também para desacreditar a imprensa.

Mas tem gente pedindo a intervenção militar, não? As Forças Armadas são responsáveis pela segurança dos cidadãos e do país. Não existe clima para a volta de um regime de exceção. O Supremo Tribunal Federal, o Legislativo e o próprio Executivo sabem quais são suas atribuições e também qual é o papel das Forças Armadas. Não creio que haverá retrocesso na nossa democracia. Nas redes sociais, são frequentes as defesas de golpes. Isso não é uma ameaça à democracia? As redes sociais, excetuando-se fanáticos e mal-intencionados, são fundamentais para as pessoas se expressarem. Devem ser livres para isso. Acho, inclusive, que elas podem contribuir para as pessoas se tornarem mais solidárias, desde que aprendam a rejeitar manifestações preconceituosas e a selecionar informações verdadeiras, baseadas na ética e na responsabilidade do jornalismo profissional.

O jornalismo está sob ataque? Como pode reagir? Temos notado que a maioria das pessoas, especialmente aquelas que fogem do fanatismo, vem buscando o jornalismo profissional para se informar e para refletir. Quem passa informação destorcida acaba perdendo a credibilidade. Os grandes meios de comunicação, os pequenos e os médios, têm como propósito trabalhar com a verdade, nunca com a mentira. Que garantia o jornalismo independente pode ter quando os políticos pensam somente em seus próprios interesses? Temos a Constituição. Uma sociedade democrática precisa de leis que controlem atitudes, atividades e comportamentos. Nossas instituições, apesar de um ou outro desvio, estão sólidas. Não há e nem pode haver margem para aventuras autoritárias no nosso país.

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A ENTREVISTA JUREMIR MACHADO DA SILVA

“Entrevistar é estabelecer um diálogo baseado na honestidade”

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olemista e polivalente, o santanense Juremir Machado da Silva, 58 anos, construiu uma carreira jornalística sólida nos dois principais grupos de comunicação do Estado e se transformou num dos profissionais mais respeitados da imprensa gaúcha. Foi repórter, colunista e correspondente do jornal Zero Hora na Europa, além de apresentador do programa Esfera Pública na Rádio Guaíba. É editor de Cultura no jornal Correio do Povo, onde também assina uma coluna de opinião. Graduado em Jornalismo e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, doutor em Filosofia pela Universidade de Paris V: René Descartes, é professor do curso de Jornalismo da Famecos, onde também coordenou o programa de pós-graduação em Comunicação entre 2003 e 2014. Autor prolífico, já publicou 38 livros e dezenas de traduções.

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Como se faz uma entrevista e o que é preciso para ser um bom entrevistador? Eu sempre gostei de entrevistar, desde a época que eu comecei em Zero Hora entrevistando jogadores de futebol. Depois eu fiz muitas entrevistas com intelectuais, publiquei dois livros. Tem um livro que eu publiquei em 1993, “O Pensamento do Fim do Século”, pela LPM, com entrevistas com personalidades tipo Astor Piazzolla, Umberto Eco, Habermas, essas figuras. Depois tem um outro pela Editora da PUC chamado “Visões de uma Certa Europa”, com entrevistas que eu fiz durante o tempo que eu morei na Europa, então sempre gostei disso. Ainda faço muita entrevista para jornal no caderno de sábado. Durante muito tempo, quando eu comecei entrevistando, eu era mais agressivo, queria constranger, era meio inquisitorial. Mas, agora que já sou quase um sexagenário, fui ficando mais sinuoso. É claro, a gente briga porque somos seres humanos, e de vez em quando nós perdemos a paciência. Mas em geral não é assim, eu consigo fazer as perguntas que eu quero sem um tom agressivo. Do meu ponto de vista, entrevistar é estabelecer um diálogo que seja baseado na honestidade. Tem que perguntar o que se quer perguntar, o que é importante. O que não pode ser é um interrogatório policial. Nós não somos policiais, não somos juízes, e precisamos fazer com que o entrevistado fale. Nesse sentido, é preciso que ele estabeleça uma certa relação de confiança com o entrevistador, se não ele vai se proteger, vai se retrancar e não vai dizer nada de interessante. O entrevistador precisa ao mesmo tempo ser firme, incisivo, mas capaz de estabelecer uma relação de confiança. Aí o entrevistado vai se soltando e dizendo coisas interessantes. Dá para estabelecer também uma relação amistosa, já que boa parte desses entrevistados são pessoas que a gente vai entrevistar de novo, então não pode todo dia fazer uma entrevista que corta a relação com o entrevistado. Precisa-se, ao mesmo tempo, apertar o cara e saber que ele vai voltar, até porque não é obrigado a voltar. Então tem um certo jeito para obter resposta e manter a relação. Uma coisa que me agrada nesse ofício é ter boas relações com todos os horizontes. Eu me dou bem com o pessoal da direita, 15


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me dou bem com o pessoal da esquerda...é uma relação afetuosa e que passa o interesse sincero de saber como é que as pessoas estão de saúde, ainda mais em tempos como este. Eu acho que entrevistar é primeiro se informar bem, e depois ter honestidade e firmeza. Tu fizeste um apanhado das entrevistas com personalidades, com luminares, aqueles que tu vais entrevistar muitas vezes até pela biografia. Como é entrevistar o João dos Anzóis Carapuça, que vende sorvete na esquina? Eu não sou um obcecado só por luminares. Para mim o que interessa é, antes de tudo, o tema. No Esfera Pública o que mais gostava de fazer era pegar um tema e esgotar. Pega, sei lá, volta às aulas, tem que entrevistar o diretor, o professor, o secretário de Educação, todo mundo para ver a diversidade dos pontos de vista. Isso eu acho interessante. E aí tem que fazer falar. Acho que a principal atribuição do entrevistador é fazer a pessoa falar, deixá-la à vontade para falar. Tem uns que rendem muito, tem uns que rendem até demais, aí tem que cortar. Tem outros que falam pouco, mas a gente tem que deixar à vontade para que as pessoas falem e cada um tem coisas a dizer. Não são só as celebridades que têm grandes coisas a dizer, todas as pessoas têm experiências interessantes que vale a pena ouvir. Eu procuro me preparar sobre os temas para conseguir extrair de cada entrevistado o melhor possível.

coisa treinada até por partido, não vou dizer qual partido, mas tem um partido em que todos falam muito. Muito, muito, muito, é interminável, capaz de falar meia hora. Aí então a gente tem que cortar. Aos pouquinhos a gente foi estabelecendo um padrão: depois de sete minutos a gente encontra um jeitinho de cortar. O monossilábico é mais difícil porque às vezes não rende, às vezes uma entrevista morre em 10 minutos porque o cara não vai falar. Num programa de rádio, a produção tem que funcionar tão bem quanto o entrevistador. Qual é o peso da produção? A produção é tudo, a produção é decisiva. O tempo inteiro é isso, tem entrevistados que a gente fica perseguindo durante meses, e tem outros que a gente pensa na última hora. Agora, tem que botar um programa no ar todos os dias. Tem dias que é muito fácil, e tem dias que falta meia hora para começar e não tem ninguém – e tem que ter! Então é uma aventura, ao mesmo tempo maravilhosa, e tem dias que é estressante. Sem uma boa produção, não funcionaria. A produção é o elemento fundamental.

E aquele entrevistado que é monossilábico? Ele diz “sim”, “não” e vai um tempo e tu fica desesperado, tu não sabes o que fazer. E tem aquele que não para de falar, tu não sabes em que momento cortar. Tu tens alguma técnica especial para fazer o monossilábico falar e para cortar o falastrão? Quando nós começamos – a Taline e eu – o Esfera Pública, uma das ideias era deixar as pessoas falarem porque normalmente os programas de rádio cortam muito. A gente fala 30 segundos, 40 segundos e já atropela, então fica muito picotado. A nossa ideia era dar espaço para desenvolver o raciocínio. Só que tem alguns, e eu diria que parece uma

Nesse caminho da produção da entrevista, mas no caso não a de rádio, que tem a produção como uma função fixa, mas sim da produção de uma entrevista para o jornal, onde tu és o produtor e tu és o repórter. Por exemplo, no caderno de sábado: qual é a preparação que tu fazes para uma entrevista? Eu sempre tive essa coisa bem clara que o essencial era ler os livros do entrevistado. Lembro de ter ido entrevistar a Lya Luft e eu, começando em jornalismo, estudante pobre, mal vestido e tudo, ela ficou meio desconfiada. Mas depois a gente fez a entrevista e eu tinha lido os livros dela, e ela ficou impressionada com o conhecimento que eu tinha daqueles livros. Foi uma entrevista muito legal. Uma vez eu fui entrevistar um cara de moda, da Lancôme talvez, que veio a Porto Alegre, e eu também fui lá de havaianas – confesso que eu era meio radical. O cara ficou meio assim, pensou que eu não ia ter nada para perguntar.

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Mas eu tinha me preparado. Eu acho que o essencial é, quando decido entrevistar um autor, eu leio os livros. Me lembro de uma entrevista que eu fiz em Veneza com o Mario Vargas Llosa, acho que foi para Zero Hora, sobre o Festival de Cinema de Veneza. Eu tinha lido tudo. “Conversa na Catedral” é um livro que talvez eu tenha lido 30 vezes. Eu não digo isso para me gabar, digo isso como um dado. Quando quero entrevistar alguém, eu leio o que a pessoa escreveu, o que ela fez. Eu me preparo porque eu gosto. A entrevista para mim é um encontro, um acontecimento. Então eu acho que o essencial é: quer conversar com a pessoa, tem que saber do que é que ela fala, o que é que ela fez e por que ela fez. Tu fazes marcações no livro, marca páginas, como é que tu fazes essa preparação? Eu risco os livros bastante. Risco, marco...atualmente estou relendo as obras completas do Borges, é o meu escritor predileto. Aí eu releio e marco frases, e de vez em quando encontro uma frase que eu tinha marcado e não me lembrava. E aí eu fico pensando porque eu marquei. O que ela me dizia na época? O que ela me diz agora? Entrevistar é encontrar uma pessoa para ter uma conversa diferenciada, em que eu me enriqueça. Eu tenho prazer em encontrar as pessoas. No Fronteiras do Pensamento, que eu ajudei a criar, eu sempre tive prazer em sair com os autores. O cara vem, dá palestra e depois? Eu gostava de sair com ele para conversar, para jantar, para conhecer, para me aprofundar. Então para mim entrevistar é isso, é um pretexto para encontrar as pessoas e por isso eu me preparo para encontrá-las. O entrevistador deve se posicionar quando ele está entrevistando alguém que, por exemplo, emite alguma opinião preconceituosa? Ele deve tentar conquistar a simpatia do entrevistado? Na faculdade a gente briga às voltas com esses temas: isenção, objetividade, imparcialidade, se tem ou não tem. Eu cada vez mais acredito que cognitivamente se pode ser imparcial, por que não? Mas é difícil, 18

e não sei se é sempre conveniente. Acho que em alguns casos é melhor não ser. Mas quais casos? Para mim, agora que eu tenho 35 anos de jornalismo, o essencial é a independência. Em alguns casos é preciso ser, digamos, posicionado. Vamos pegar um exagero: se eu entrevistar um pedófilo, se eu entrevistar um corrupto comprovadamente corrupto, que eu não tenho nenhuma dúvida, e ele disser que não fez nada, talvez eu tenha de ser posicionado. Acho que em alguns casos posicionamento é necessário. Por exemplo, em questões de racismo, eu acho que cabe um posicionamento. Agora eu não acho que se deva ser, o tempo inteiro, um juiz inquisitorial. Tem situações em que me parece que passa do ponto. Eu acho que tem que tentar ganhar confiança do entrevistado, mas também não pode ganhar a confiança de uma maneira, por assim dizer, desonesta, para enganar, para fazer uma pegadinha. Acho que tem que ser um diálogo franco, e a gente pode dizer muita coisa sem ser maldoso ou sem ser inquisitorial. Tu já tiveste polêmicas na direita, na esquerda e ao centro. Como é esse tipo de relação aqui na província? Como é lidar com as paixões ideológicas dos gaúchos? É complicado. Eu me envolvi em muitas polêmicas. Vocês conhecem algumas delas, como com o Luís Fernando Verissimo, com o Lobão, com um monte de gente. O chato das polêmicas é o rótulo que eu tinha na testa, o polemista. Às vezes a palavra nem era polemista, era polêmico. E aí vai ficando uma limitação. O cara olha para ti e diz “lá vem o polêmico”, e isso te reduz. Então eu fui cansando um pouco. Mas tem momentos em que é inevitável, tem que ir lá dizer o que pensa e correr riscos. Eu perdi emprego, mas não me arrependo. Eu gosto de polêmica, mas estou numa fase onde o que eu quero mais é dizer coisas que tenham um certo sentido, quem sabe até uma certa profundidade. Estou numa fase “zen”. Estou menos interessado em brigar e mais interessado em criar, em emocionar, em colaborar.

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Tu já te acertaste com o Luís Fernando Verissimo? Não, mas devo dizer que não me arrependo das críticas que eu fiz. Acho que o Verissimo é um bom escritor, dá prazer ler as coisas dele. De vez em quando eu leio Verissimo escondido no banheiro. Qual o conselho que tu dás para o estudante que começou a estagiar, entrou no veículo de comunicação e às vezes tem dúvidas para qual lado ir. Como referência e também como alguém que trabalha em um veículo de comunicação, o que tu achas que se espera de um estagiário hoje? Uma boa interação com os experientes e com os veteranos sempre ajuda. Tem veteranos que são chatos, se acham os donos da verdade. Mas tem os que nasceram, no fundo, para ser professores e ensinam informalmente. Acho que é isso, tem que ir procurar experiência e tem que estar aberto para experimentar, se arriscar. Eu comecei na Zero Hora, na editoria de Esportes. Logo em seguida teve uma greve geral em que o país parou, e eu me ofereci para participar da força-tarefa para cobrir a greve porque eu queria ter experiências em outras editorias. Tem que se oferecer, não dá para ficar parado. Acredito muito na filosofia do Neném Prancha: quem pede recebe e quem se desloca tem a preferência. Como é que tu vês as redes sociais e as redes sociais como instrumentos de desinformação? Rede social informa ou desinforma? Tu estás nas redes sociais? As duas coisas. Ao mesmo tempo que tem fake news, tem também muita informação. Eu vejo as redes sociais como uma velha banca de revistas. Estou em todas, no Instagram, no Facebook, no Twitter. Eu gosto mais do Twitter, é a que os jornalistas preferem em geral, por ter manchete e um texto curtinho num estilo bem jornalístico. Eu vejo a internet como uma banca de jornais, onde estão lá todos os títulos de jornais e revistas, e o teu desafio é te tornar visível.

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E qual é o filtro que os estudantes de jornalismo devem fazer para ter uma boa informação nas redes sociais? Como em tudo, precisa de boa formação da família, da escola, da faculdade. Precisa ser esperto, inteligente. Os estudantes são muito bons, muito rápidos e sabem de tecnologia muito mais do que nós. Quando eles percebem que é possível galgar, ocupar espaços, eles se dedicam. A minha experiência de 25 anos na Famecos é de estudantes que encantam a gente. Como em tudo, tem alguns que não são bons. Mas em geral eu falo mais no positivo do que no negativo. Como tu vês o jornalismo pós pandemia? Como tu vês a relevância do jornalismo – que tem sido destacada – e quais são as tuas impressões do nosso papel? Eu acho que o jornalismo nunca vai desaparecer. É provável que o jornal em papel desapareça, mas o jornalismo não. O jornalismo é fundamental para organizar a informação, para coletar informação, para descobrir aquilo que alguém gostaria de esconder. E nesta época, nós estamos vivendo isso, o jornalismo está divulgando informações preciosas, está ajudando a educar a população na medida do possível para enfrentar essa doença. Sem jornalismo não há democracia, eu acredito profundamente nisso. O jornalismo é a base da democracia. E não adianta pensar que todo mundo é jornalista, que eu estou com meu celular, vejo um acidente na esquina e faço uma imagem ou relato o acontecimento. Jornalismo é profissão, precisa sistematizar, precisa investir naquilo, precisa se dedicar. E aí não é para todo mundo. Precisa formação, é para quem quer ser. Acredito que o jornalismo tem um futuro muito promissor, ainda que os suportes vão mudando. O papel não sei se vai resistir por razões econômicas. Evidentemente que é muito mais barato fazer um jornal na Internet do que ficar imprimindo e mandando de caminhão para algum lugar. Com a chegada da tecnologia 5g, a velocidade das conexões vai aumentar muito, então vai ficar muito mais fácil usar celular e tudo mais. E isso vai facilitar, mais uma vez, o jornalismo eletrônico. Lugar para jornalista não vai faltar. 21


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A REPORTAGEM LARISSA ROSO

“Para ser um bom repórter é preciso ter persistência”

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la já fez todo tipo de reportagem, inclusive uma sobre os últimos desejos de quem tem pouco tempo de vida que lhe valeu vários prêmios de jornalismo e alguns apelidos irônicos, como Dona Morte e A Senhora da Foice. Mas o que Larissa Roso, repórter especial e especializada de Zero Hora e de GZH, mais gosta é extrair histórias singulares de pessoas comuns para transformar em narrativas extraordinárias de vida. Jornalista formada pela PUCRS e mestranda em Ciências Médicas/Bioética pela Faculdade de Medicina da UFRGS, ela também carrega no currículo a experiência de Bolsista do programa Alfred Friendly Press Partners, com passagem pelo jornal The Washington Post, de Washington-DC, Estados Unidos e de Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência e membro do Comitê de Bioética Clínica, ambos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Com toda essa bagagem, que também inclui três prêmios ARI de Jornalismo, Larissa assegura que a humildade – para ouvir, para perguntar, para aprender – é a primeira palavra da cartilha de um bom repórter.

pórter. Eu sei que é difícil a gente ter certeza aos 17, 16 ou 18 anos, mas eu lembro que no meu caso eu tinha muita certeza do que escolhi. E é curioso pensar nisso hoje porque eu fiz uma escolha baseada no tipo de jornalismo que já está muito diferente atualmente. Eu fiz Jornalismo porque era uma estudante que gostava muito de escrever, e já faz um tempo que a gente sabe que não basta só saber escrever para ser jornalista – ainda que seja a base de qualquer área da profissão que a gente escolha – mas é muito mais do que isso. E não só saber escrever, mas escrever bem. Essa é uma habilidade muito particular que a gente tem que batalhar para desenvolver, então eu acho difícil que alguém que não gosta de escrever chegue lá na hora de escolher um curso universitário e opte pelo jornalismo apenas porque goste de futebol e queira aparecer na TV. Dá para fazer? Dá. Mas acho que fica muito mais difícil. E o que nos faz escrever bem? Treinar, é claro, mas duvido que alguém consiga escrever bem sem ler muito. Eu sempre fui uma frequentadora da biblioteca da minha escola, e o que me chamou mais para a literatura foi a ficção, mais especificamente os livros da Agatha Christie. Embora não seja considerada uma literatura de primeira linha, o texto não é algo que se diga “meu Deus, como é bom”, foi o que me chamou muito para o mundo dos livros, e li praticamente a coleção inteira dela por gostar muito de mistério. Também sempre gostei muito de ler jornal, inclusive na minha adolescência eu lia de trás para frente porque eu era “gremistona”, acompanhava tudo do Grêmio. Hoje o meu gremismo só aflora nas grandes finais, nem acompanho mais futebol, porém é interessante pensar que foi isso que me tornou leitora de jornal. Para ver como as coisas mudam, a parte esportiva é a que menos me chama a atenção atualmente.

Como se tornar repórter, como se preparar para uma reportagem e que características deve ter um profissional desta área? Talvez eu fale coisas óbvias, mas acho importante reforçar mesmo assim. Em primeiro lugar, é preciso ter vontade de fazer isso – ser re-

Ler textos mais longos ainda é fundamental? Uma coisa que fala muito da geração de hoje, e isso não existia na minha época, são as redes sociais. Quando eu falo em ser leitor, não é leitor de Facebook, nem leitor de Instagram, nem leitor de Twitter. O Twitter é uma grande ferramenta, acho que das redes sociais é a que

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Em várias situações a gente passa vergonha, somos tratados de maneira inadequada e temos que insistir, o que se torna chato muitas vezes. Como o meu pai diz, nós precisamos ser “despachados” para conseguir exercer a função de repórter.

mais nos serve e nos ajuda por ser um grande menu de notícias. Se nós sabemos quais contas seguir, ele se torna uma formidável forma de informar-se. É claro que temos que fazer um filtro para tornar essa ferramenta útil, mas acredito que é a partir do Twitter que pulamos para outras coisas. Hoje em dia é indispensável acessar redes sociais para fazer jornalismo. As autoridades estão lá, as personalidades estão lá, os anônimos estão lá, mas a gente não pode ser leitor de post com limitação de caracteres. Essas plataformas servem como um trampolim para chegarmos a outras coisas, mas um bom leitor não é o leitor de redes sociais. Algo que acontece muito e que reflete na maneira que se escreve é a questão do uso da linguagem própria das redes, com abreviaturas, sinais e uma série de ferramentas que podem agir como obstáculos para se escrever um bom texto. Não tem como ser escritora de um bom texto se abastecendo apenas do que se lê nas redes sociais. Outra coisa que acho fundamental não só para começar, mas em qualquer fase da carreira na reportagem: a gente tem que ser humilde. Temos que ter humildade para aprender, para perguntar. É claro que a gente vai aprendendo cada vez mais, vamos nos cercando de recursos e ferramentas, vamos desenvolvendo habilidades, mas acredito que a gente sempre pode aprender. Vários estudantes vão parar numa redação muito cedo – alguns antes dos 20 anos –, para ser estagiários, assistentes, produtores de conteúdo, e esses jovens estão no meio de muita gente que sabe muito. Portanto eles têm um acesso facilitado aos bastidores. Outra coisa que eu tive que trabalhar muito e batalhar para contornar foi a questão da timidez. Eu era muito, muito tímida, durante toda a minha infância e adolescência fui muito quieta. Era daquelas que sentava bem na frente – não sei se ainda se fala CDF –, prestava atenção em tudo, conversava com meu pequeno grupinho de amigas e tinha muita dificuldade de levantar a mão para fazer uma pergunta. Isso é algo que vai exigir uma transformação em algum momento se a pessoa quiser seguir no jornalismo. Eu consegui me libertar disso. É como se a gente incorporasse um personagem quando está trabalhando porque temos que ter jogo de cintura e coragem para perguntar certas coisas.

Como é a tua relação com as fontes? Como é possível saber quando ela está tentando te manipular ou se está passando confiança? Eu gosto muito de fazer grandes reportagens, que é algo que está cada vez mais difícil de se fazer – falando da época pré-pandemia. É um trabalho de estabelecer confiança, de alimentar uma relação. Assim como a gente tem relações de amizade, de afeto e de amor, nós também temos uma relação com as fontes que deve ser abastecida. Acredito que o principal pilar dessa relação é a confiança, e sempre digo que uma das coisas mais difíceis é conhecer uma pessoa e fazer esse desconhecido começar a confiar em ti. Às vezes não é ter confiança em ti simplesmente, mas confiar em ti para falar das coisas mais difíceis e delicadas da vida dele(a). Isso não se faz de uma hora para outra em um dia só, nem com um telefonema ou em um encontro de 10 minutos. É uma coisa que tem que ser construída, e acho que o nosso interesse no assunto contribui muito nessa questão. Quando podemos fazer reportagens do nosso interesse é um privilégio, porque aí a gente une o melhor dos mundos, ou seja, fazer aquilo que a gente gosta – a reportagem – sobre um assunto que gostamos, o que é maravilhoso. Não é sempre que acontece, já que quando estamos na redação nós pegamos o que aparece, mas quando conseguimos fazer o que a gente gosta é muito especial e muito importante. Nessas situações de reportagens mais longas, acredito que a relação com a fonte é algo que vai sendo construído, pois a pessoa precisa te conhecer. Quando o jornalista já tem um histórico ou um portfólio público, isto é, as coisas que tu escreves e publicas estão acessíveis na internet e no jornal, nós, como figuras públicas, podemos usar isso como cartão de visitas para passar confiança e credibilidade para a fonte. Alguns jornalistas aparecem mais do que outros, é claro. Até a explosão das redes sociais, os repórteres de jornal sempre eram

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VISÕES DO JORNALISMO

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Qual fonte é mais difícil: a fonte da iniciativa privada, os empresários, ou os entes públicos que já estão acostumados com a imprensa? Referente às fontes de iniciativa privada e iniciativa pública, acho que varia muito. Cada vez mais instituições privadas estão se munindo de assessorias de imprensa, o que é bom porque organiza o processo.

Vou dar um exemplo dentro do contexto da pandemia: como os médicos estão muito solicitados, eles são as principais fontes de praticamente todas as matérias que a gente tem que fazer, as solicitações de entrevista estão muito concentradas nas assessorias de imprensa. Isso é curioso porque, por mais que eu tenha relações diretas com uma série de fontes hoje em dia, eu tenho que dar um passo atrás e primeiro falar com assessoria para dizer que eu quero entrevistar o doutor Fulano – que eu já conheço, mas mesmo assim preciso encaminhar o pedido. Como todo mundo está fazendo tudo muito rapidamente e a pressão é grande para entregar rápido, isso organiza o processo – ainda que seja uma coisa a mais para fazer. As entidades privadas já estavam se organizando nesse sentido antes da pandemia, e as que não estavam preocupadas com isso agora estão, a fim de organizar essas demandas. Nos órgãos públicos, eu vejo que o acesso à informação às vezes é bem difícil. E aí acho que cabe uma reflexão: às vezes quem está nos órgãos públicos são jornalistas que já passaram por redação, então sabem qual é a velocidade exigida das coisas com relação a nós e à nossa performance. Eles sabem como a rapidez é importante, então é bem complicado de lidar com isso muitas vezes. Hoje em dia, no entanto, e eu diria que isso é bom, o papel da Imprensa está tão relevante, tão importante que se a gente tem um interlocutor no outro lado – seja uma atividade pública ou privada – isso já ajuda muito porque você está falando com um colega. Tem instituições clássicas onde a dificuldade de acesso é imensa. Um exemplo atual: para falar com alguém do Ministério da Saúde ou do Ministério da Educação é praticamente impossível. Eles se comunicam por boletins e por informes, basicamente. Durante a pandemia, enquanto o Ministro da Saúde era o Mandetta, tinha coletiva de imprensa todos os dias, mas depois não teve mais. Então é cada vez mais difícil a gente ouvir o Ministério da Saúde em plena pandemia de coronavírus. Conseguir uma entrevista com alguém do Ministério de Saúde é atualmente impossível. Outra coisa: ao mesmo tempo em que as entidades, as instituições se dão conta da importância de ter uma equipe de imprensa para atender a imprensa, eu ainda acho o processo

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os menos “conhecidos” dentro do grupo repórteres, visto que a gente não falava na rádio nem aparecia na televisão. Hoje está tudo muito misturado, e todos nós somos exigidos em várias frentes. Mas voltando à questão da relação de confiança com a fonte, acho que quanto mais esforço tu colocas no teu trabalho, quanto mais credibilidade tu vais construindo, isso vira um cartão de visitas para ti no futuro. Eu, por exemplo, que já estou em determinado ponto da minha carreira, quando quiser fazer uma reportagem grande, muito difícil de trabalhar e muito delicada, o meu portfólio pessoal é meu cartão de visitas. Muitas vezes já usei disso, ou seja, apresentei meu trabalho quando fiz uma proposta para alguém e a matéria era muito difícil. E enquanto a pessoa pensava a respeito, eu dizia: “Olha, já tô acostumada a lidar com assuntos desse tipo, e, se tu quiseres ler algo do que já fiz, aqui está”. E mandava alguns links para a pessoa dar uma olhada e ver que tipo de coisa eu faço. Caso seja uma reportagem do dia a dia, acho que vai somando o conjunto da obra. A tua credibilidade está muito atrelada com o resultado do teu trabalho. Se eu trabalho cinco dias na semana eu posso fazer de 5 a 10 matérias, e quanto mais esforço eu botar nisso, quanto mais concentração eu tiver, quanto mais veracidade, mais detalhista eu for, quanto mais eu conferir e quanto mais rechecagem eu fizer, melhor e mais incontestável será o meu trabalho. Isso já me ajuda a conquistar minhas fontes e me abre caminhos para novos contatos. Às vezes nós fazemos pontes, ou seja, eu não preciso entrevistar o João, mas ele conhece a Maria que é com quem eu quero conversar. Aí eu aciono o João e ele já vai falar de mim de uma certa maneira para a Maria, que a fará “desarmar-se” para falar comigo.


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Tu achas que tem uma idade para ser repórter, até por essa questão da confiança da fonte? Porque talvez o pessoal mais jovem não passe isso para quem está entrevistando. Por outro lado, o pessoal mais velho tem mais dificuldade de mobilidade, por exemplo. Eu acho que todo mundo enfrenta dificuldades no início da carreira que não são exclusivas dos jornalistas. Quando a gente vê um profissional muito jovem, tendemos a pensar que a pessoa não tem experiência suficiente e, portanto, não vai saber resolver os problemas, seja médico, prestador de serviços, qualquer profissão. Isso é uma coisa tão arraigada que é difícil desconstruir. Mas às vezes o profissional jovem é muito mais agilizado, interessado, e vai atrás de meios de se renovar e se reciclar do que o profissional já bem estabelecido, que está da metade para o fim da carreira. Acho que essa mentalidade precisa mudar, e não só na nossa profissão. No entanto, também não podemos dizer que todo o iniciante tem a manha, tem o talento, sabe o caminho das pedras, porque não é assim. Mas como alguém vai começar e se estabelecer na profissão se não for fazendo? Uma dica que vale para quem está começando e para alguém em qualquer outra fase da carreira: a gente ouve muito “não”, seja buscando uma entrevista, seja tentando conseguir uma informação ou falar com alguém. Tem dias especialmente difíceis em que a gente leva tanta porta na cara que não tem a ver com

o tempo de carreira, até porque numa ligação a pessoa muitas vezes nem está vendo a tua cara, não sabe quem tu és. Talvez até te conheça de nome, dependendo da área em que essa pessoa atua. Se a gente recorre ao governo, por exemplo, eles já sabem quem está na ativa por lidarem com jornalistas em entrevistas, coletivas de imprensa. E a gente muitas vezes já conhece essas pessoas porque circulamos muito aqui no Rio Grande do Sul. E em Porto Alegre especificamente esse meio social/profissional não varia muito. Acredito que, em qualquer carreira, o início talvez tenha essa questão da barreira da experiência, já que nós só vamos aprender fazendo. E vai levar um tempo que a gente vai ser JOCA (Jornalista em Início de Carreira), onde vamos ter que andar um pouco para sermos reconhecidos por aquilo que a gente faz – e eu vejo pessoas muito jovens conseguindo isso muito cedo. Sobre a questão das mulheres, acredito que isso seja uma batalha ampla para todas. Eu não sou mãe, mas eu conheço muitas jornalistas que são, e vejo um retorno muito difícil da licença, por exemplo, e também a conciliação muito difícil dessa rotina que a gente tem com a maternidade. Falando do local onde eu trabalho, por mais que a gente bata ponto, tenha uma jornada controlada por relógio-ponto, o nosso trabalho não se esgota quando a gente bate o ponto na saída e vai para casa. Se a gente tem uma matéria em andamento, eu sempre digo que eu almoço aquela matéria, janto aquela matéria, durmo em cima dela, ela vai comigo para o banho, para a academia, ela circula comigo em um processo constante de criação e maturação. Às vezes me pego escrevendo mentalmente quando perco o sono. Portanto, imagina dar conta de um trabalho que não se encerra com o fim do expediente tendo filhos. Em pleno 2020, especialmente agora que todo mundo – ou todo mundo da minha bolha, pelo menos, que são pessoas que têm condições – está trabalhando em casa, ainda tem uma discussão sobre o papel de cada um dentro do casal. Quem cuida da casa, quem cuida das crianças, quem é sobrecarregado, quem assume mais coisas. É uma discussão que a gente tem que avançar, não apenas na nossa área quanto nas demais. Eu vejo as mães – sejam repórteres, sejam editoras – tendo essa dificuldade de conciliação trabalho/

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muito burocratizado nas duas frentes – pública e privada. Como funciona: a gente liga, fala com o assessor de imprensa, que está fazendo, com quem gostaria de falar, para quando é, dá todas as informações, e a única coisa que o assessor fala no final é “manda um e-mail agora dizendo tudo isso”. Ou seja, eu falei por cinco minutos para explicar a matéria e agora vou ter que escrever um e-mail de oito parágrafos para dizer a mesma coisa que já falei com ele. Eu entendo que é para a coisa “tramitar” nas entranhas da instituição que ele representa, mas acho que esse processo pode avançar um pouco nas duas frentes, dos dois lados para facilitar o trabalho tanto do jornalista quando do assessor de imprensa.


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maternidade, porque o jornalismo é uma atividade peculiar que exige muito, nos suga muito e requer muita atenção, dedicação e doação. Eu imagino a dificuldade que é fazer isso com uma criança pequena e uma rotina doméstica para dar conta, e vejo por meio das minhas colegas próximas como é complicado conciliar tudo isso. Qual a importância da afinidade entre repórter e fotógrafo para o resultado do trabalho? Eu fico pensando se essa relação fotógrafo/repórter também não está ameaçada nos dias de hoje, porque cada vez mais é muito comum o repórter sair sozinho para fazer a matéria. Até março, quando eu ainda estava na redação, não era raro eu sair com um bloquinho – sou das antigas, ainda anoto com papel e caneta porque não consigo digitar no celular a não ser em situações muito especiais –, um celular pra tirar foto e o equipamento da rádio porque sabe que vai ter que entrar no ar em determinado programa da Gaúcha para falar do local onde está apurando. Se a gente tem a possibilidade de ter uma parceria com fotógrafo e trabalhar junto, a gente vai desenvolvendo um vocabulário próprio e uma dinâmica própria. É claro que em matérias do dia a dia a gente depende de quem está escalado em tal horário para fazer tal coisa. Mas se, quando a gente faz matérias especiais, há a possibilidade de escolher nosso parceiro e essa dupla funciona afinada, a gente faz reuniões iniciais, tem outras duplas que nós nem precisamos mais fazer porque já sabemos como funciona a partir de olhares, de dar uma piscada, de fazer um gesto que significa alguma coisa. E isso é algo a ser construído também. Uma parceria dessas consiste num laço de confiança que a gente cria com o colega. Eu quero que a pessoa que fotografe para mim, que ilustre a minha reportagem, que capte o vídeo da minha matéria seja alguém que tenha um olhar parecido com meu e que se sensibilize com os mesmos assuntos que eu. Se isso tudo casa, acredito que quem mais ganha é o público, o leitor. Eu, enquanto repórter, saio supersatisfeita por ter imagens que acompanham o meu texto, o fotógrafo também fica satisfeito por haver um texto que acompanha 30

as imagens dele. Quando o público conclui que aquele casamento é perfeito, eu acho que é o melhor dos mundos. A gente vai criando uma marca, mostrando que a gente gosta desses assuntos e que, quando falamos desses temas, fazemos desse jeito. Repórter decide sozinho ou compartilha decisões com colegas? Essa questão do respeito casa muito com a humildade. Temos que ser humildes na hora de perguntar e sugerir, ao mesmo tempo em que precisamos ter humildade para ouvir o colega. Às vezes a gente fica meio receoso, mas um olhar cru, de fora, de alguém que não tem aquela técnica maravilhosa que o colega tem pode resultar numa contribuição muito válida. Me lembrei de uma reportagem recente que fiz em uma UTI a respeito do coronavírus onde o fotógrafo que estava comigo fez uma pergunta que não tinha me ocorrido até aquele momento. Nós estávamos no auge do debate sobre a hidroxicloroquina – salvadora do presidente apesar de tudo que diga o contrário –, e ele estava fotografando e fazendo vídeos até que perguntou pra médica que eu estava entrevistando “tem alguém tomando hidroxicloroquina aqui?”. Na hora me deu um estalo, pensei “nossa, que boa pergunta”. Eu nem sei se essa pergunta ia me vir à cabeça porque estava absorvida pelas outras coisas que estava perguntando. É um trabalho complementar. Atualmente, ser uma dupla de reportagem é cada vez mais um privilégio, porque as tarefas estão se tornando mais individualizadas. Minha mãe sempre fala no “homem banda” que tinha no colégio dela, que era a pessoa que tocava uma coisa com o pé, com o braço tocava outra, soprava algo com a boca...os equipamentos de rádio que a gente leva, por exemplo, são coisas que demandam muitas mãos e muitos bolsos. Se a gente pode sair em dupla e estabelecer um método de trabalho com essa pessoa é sempre muito bom. Falaste que, dependendo da semana, consegues fazer de 5 a 10 matérias. Não chega num ponto em que a cabeça entra em parafuso? Tens alguma dica para superar um bloqueio para escrever? 31


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esses tempos foi “A Peste”, do Albert Camus, que virou um best-seller na pandemia e eu queria muito ler porque tinha tudo a ver com o meu trabalho. Eu gosto muito de literatura de ficção, e geralmente é o que eu escolho para ler. Quando leio esse tipo de narrativa é como se clareasse a minha mente, ainda que seja um esforço intelectual. Eu me ressinto de não saber bordar, costurar, pintar cozinhar. Tem gente que enfrenta o estresse de várias maneiras. Para mim, ler outra coisa já serve. Eu mergulho completamente naquela história que não tem nada a ver com meu dia, e aquilo me dá uma clareza de ideias muito boa.

A gente está trabalhando num ritmo muito frenético no momento, de vez em quando faço até duas matérias por dia. É claro que não são reportagens profundas, são coisas estilo “breaking news”, mais informativas. Tem dias que são desesperadores mesmo, e é curioso que na redação isso se dilui, porque são muitas pessoas e todo mundo está passando pelo estresse ao mesmo tempo, enquanto que em casa vira um trabalho meio solitário. Se a gente está sozinha não dá para ir no bar tomar um café, não dá para virar para o lado e trocar uma ideia com um colega. Tem dias que o horário do meu intervalo é determinado pela minha capacidade de produção. Quando eu não aguento mais, eu paro e vou almoçar, mesmo estando sem fome, porque preciso fazer outra coisa. Eu paro um pouco, vou comer, vou dar uma volta. A gente está limitada agora com a pandemia e meu apartamento é pequeno, não tem muita opção de onde ir nem o que fazer aqui dentro. Em tempos normais, pré-pandêmicos, a minha grande válvula de escape era a academia. O exercício físico cansativo, pesado é algo completamente diferente do que eu faço. O nosso trabalho é essencialmente intelectual, ele também gera cansaço físico, mas a gente trabalha com a cabeça. E isso tem um limite, assim como o esforço físico. Acredito que fazer o contrário, ou seja, gastar o meu corpo e não a minha cabeça, é um contraponto bom. Se tu tens às vezes um dia de intervalo para concluir a matéria, esse pernoite meu com a reportagem já faz diferença, porque é deitar em cima do que tu tá fazendo. É dormir – ou às vezes, no meu caso, não dormir –, acordar, dá uma pensada naquilo, pegar o celular e anotar uma ideia que eu tive. Acontece de eu ter insights no meio da noite, do tipo “vou começar por aqui, vou terminar ali”. No outro dia, quando tu sentas na frente da matéria, tu já estás com os olhos descansados e vendo aquilo de outra maneira. Acho que cada um precisa descobrir os seus passatempos e as suas distrações, como ouvir música por exemplo. Durante esses tempos de pandemia, o que tem funcionado muito para mim é dar um limite a mim mesma para consumir notícias. Eu vou ler sobre pandemia de coronavírus até as 20 horas, e depois desse horário eu não leio mais sobre isso – a exceção

Essa imagem do repórter-banda sintetiza bem a realidade hoje. Como um profissional multitarefa pode fazer um bom texto? Lembrei agora do Eduardo Veras, que foi nosso colega muitos anos na Zero Hora. Era um ótimo editor e tinha um texto excelente, e ele tinha uma frase que me vem muito à cabeça: não se pode ser sempre brilhante, às vezes dá para ser apenas correto. Claro, ser correto é uma obrigação do repórter, mas vão ter textos dos quais tu não vais te orgulhar. Às vezes a gente vai ler a matéria no jornal do dia seguinte, ou publicada na internet horas depois, e o olho vai direto naquela palavra repetida três vezes no mesmo parágrafo. Aquilo chega a dar uma dor, tu pensas: “mas como é que eu não vi isso”? E acho que, de vez em quando, a nossa tarefa é um exercício de conformismo também, porque não vamos escrever um texto brilhante todas as vezes. Outras vezes a gente precisa conciliar entre escrever um texto extremamente técnico e dar um bom texto para aquele assunto, visando tornar a matéria mais palatável, didática e atraente para o leitor. Um exemplo disso é o próprio coronavírus, em que a gente tem falado sobre coisas extremamente técnicas. Escrever um bom texto é escrever um texto com informação, e não necessariamente uma epopeia, uma odisseia, uma narrativa épica. Um bom texto é aquele que te prende. As histórias da Agatha Christie, por exemplo, te prendem por te dar um pouco mais de informação a cada três, quatro páginas, e isso te mantém no livro. Nesse ritmo frenético de agora, fazer um bom texto é um desafio.

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Agora estás no rádio e, eventualmente, deves fazer aparições na TV. Nas duas funções é muito comum começares a ser mais reconhecida e, consequentemente, receber mais mensagens nas redes sociais. Como tu fazes a seleção dessas mensagens? Que depuração é feita? Qual é o filtro que se faz para não cair numa pegadinha? No jornal há um nicho bem demarcado, na rádio a gente pega de tudo. Tem assuntos que eu nunca tratei a essa altura da vida, em mais de 20 anos como repórter, porque eu estava em outros cantos da redação fazendo outras coisas. E algo que eu tiro de útil dessa questão – que também tem a ver com a humildade e serve como conselho em qualquer fase da carreira – é que, se temos dúvida, perguntamos para quem sabe mais do que a gente. Mesmo sozinhos em casa nós ainda fazemos parte de um grupo de mais de cem jornalistas, e se eu não tenho contato direto com eles é muito fácil ter. Se eu precisar ligar para o Cid Martins agora acho que eu não tenho celular dele, mas eu consigo em um

minuto. Vou acionar alguém que conheça ele, que está sempre cobrindo operação policial e está sempre acordando de madrugada com para estourar lugar de armazenamento de armas, de carro roubado; o Cid está sempre nesse tipo de coisa. Essa área da polícia é bem complicada, especialmente para mulheres que estão começando. Tem áreas que eu acho que são extremamente áridas para a mulher jornalista, e na política e na polícia eu noto muito isso. Admiro bastante as mulheres que fazem uma carreira na reportagem política ou na reportagem policial, por que são ambientes de muito machismo ainda e a gente enfrenta várias dificuldades. Eu já tenho 40 anos, mas tem vezes que eu tenho que falar com pessoas da polícia que eu não conheço, por exemplo, e não tenho a manha da reportagem policial que os meus colegas têm. Logo, às vezes antes de contatar essas fontes, eu vou falar com meu colega que está acostumado a cobrir apreensão de drogas. Nós vemos aquelas fotos da apreensão da Polícia Civil em que eles põem o escudo da Polícia, os blocos de dinheiro enfileiradinhos um do lado do outro, as drogas e as quantidades, as balas e montam o logotipo da polícia com tudo isso...é uma obra de arte contemporânea. Um delegado pode me dizer que 100 kg de maconha é uma coisa espetacular, mas eu vou perguntar para um colega meu “Isso é muito ou pouco”? - essa informação precisa ir na matéria. Isso é a maior apreensão do ano ou só neste mês já tiveram outras quatro maiores do que essa? É claro que eu posso pesquisar num banco de dados, posso dar uma olhada na internet, mas se eu tenho acesso fácil a um especialista eu vou me socorrer dele, com certeza. Acho que isso não é demérito nenhum, pelo contrário, mostra que eu estou sendo comprometida com o conteúdo que estou apurando, produzindo, e pedindo a opinião de um especialista na cobertura desse tipo de assunto. Acredito que é por esse caminho que a gente escapa das “armadilhas”. Precisamos nos cercar do que nós temos e de quem está disponível para ajudar, porque o trabalho do repórter não é solitário, ele depende de muitas pessoas. Enquanto a gente vai batendo em portinha fechada, a gente vai batendo, batendo e batendo até que alguém abre. Às vezes eu fico pensando “Por que será que essa pessoa

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Às vezes eu penso “Hoje vou escrever algo mais simples”. Um exercício bom para isso e que tem me ajudado é fazer os textos para o rádio. Eu comecei mais intensamente nesse meio de um ano para cá, e não posso fazer na rádio o texto que eu gosto de fazer, que são matérias profundas, com introdução, onde eles pegam a pessoa pela mão e vão levando no decorrer de um longo caminho por várias páginas – ou telas. Mas na rádio não tenho como fazer isso, eu tenho que contar uma história inteira em um parágrafo, e isso é um bom exercício para sair do lugar onde eu estava mais acostumada a ficar. Além disso, para escrever bem, eu acho que o texto tem que decantar, passar por outros olhos. No momento eu tenho usado o meu namorado, que é formado em direito e não tem nada a ver com o jornalismo. É engraçado porque tem horas que eu peço um sinônimo pra ele e me dá um sinônimo “juridiquês”, uma palavra horrível, e eu digo brincando “não, tem que ser uma palavra simples!”. Essa é a “cobaia” que eu tenho. É um leitor que escreve juridiquês o dia inteiro, mas para quem eu peço “senta aqui, lê, vê se tu entendes e me diz o que tu achas”.


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leitos de UTI nessa pandemia e perguntei “Isso está certo?”, e ele me disse “Está”. Aquilo me deu um alívio, sabe? A tranquilidade da certeza da informação correta é algo impagável. Por isso que eu acredito que a gente deve se cercar sempre das nossas estratégias, sejam pessoas, seja pedir para um colega ler ou alguém que não entende nada do assunto. Isso também é um ótimo termômetro às vezes, porque não adianta eu escrever só para quem entende. Eu cheguei num ponto onde eu tenho conceitos prontos na minha cabeça, por exemplo, o que é entubar uma pessoa, como o coronavírus entra no organismo, como é a primeira fase da doença. Quem sabe eu não dou o meu texto pra minha mãe ler? Ela é formada em artes plásticas e é muito bem informada, mas será que ela vai entender o que eu estou falando? Acredito que a gente vai criando estratégias e recursos para se cercar e para ter tranquilidade. Eu vejo colegas obcecados com conferência, por exemplo, e nós temos que checar, temos que conferir, temos que pegar anotação inicial e conferir se digitamos certo – conferir número, nome, tudo. Temos que duvidar de nós mesmos, acho que isso também é uma grande lição e vale para sempre. Eu, por exemplo, tendo a escrever que ANVISA é Agência Nacional de Vigilância e Saúde, e tá errado – ou não? Viu, já não sei se é Vigilância Sanitária ou Vigilância e Saúde. Todas as vezes que eu tenho que escrever isso – praticamente todos os dias – eu tenho que entrar no site da ANVISA. Não vou confiar na minha cabeça porque eu sei que eu não me garanto.

me disse isso? Eu jamais daria esse depoimento se estivesse no lugar dela, jamais contaria isso”, e é bom que eu siga me surpreendendo com esse tipo de coisa. Uma vez eu fiz uma reportagem sobre os últimos desejos de quem tem pouco tempo de vida, e - nossa! - até hoje eu tenho apelido de Dona Morte, A Senhora da Foice, Urubu. As pessoas te olham e ficam “nossa, como é que tu gostas de falar dessas coisas”? Mas eu realmente quero saber. Foi difícil? Foi, aliás uma das coisas mais difíceis que eu já fiz. Eu ouvi muito mais “não” do que “sim”, mas daí chega uma hora que vira uma birra. Todo mundo diz que não dá para fazer, mas eu vou mostrar que dá. Era uma das coisas que eu estava pensando em falar na pergunta inicial a respeito de ser um bom repórter: é preciso ter persistência. Em qualquer nível da tua carreira profissional, não se pode perder nunca isso, não se desiste. A gente sempre vai ter muitas dificuldades, às vezes mais, às vezes menos. Quando for muito fácil, desconfie, porque talvez aquilo não seja tão relevante. Se a gente está lidando com um assunto que mexe com a vida das pessoas, a vida privada, a vida pública, a administração pública, a gente sempre vai encontrar obstáculos. Aí a gente tem que ter ferramentas, tem que ser versátil e se perguntar: como vou reagir à dificuldade que está se apresentando agora? Eu vou telefonar para um colega que sabe mais que eu; vou consultar por fora alguém que tem a mesma profissão do meu entrevistado para ver se ele tá me enrolando e perguntar para essa pessoa “Escuta, um colega teu, que não interessa o nome, me disse tal coisa. É assim mesmo ou não é”? E ele vai dizer “sim, é” ou “não, não é”. Então é isso, eu me cerco de informações para que eu tenha segurança, porque não existe nada melhor do que, no final de um dia de trabalho, eu deitar minha cabeça no travesseiro e pensar “não deixei nenhuma ponta solta. Se eu tive dúvidas, eu fui atrás”. Esses dias eu estava pulando corda no estacionamento do meu prédio – tive que improvisar a questão do exercício físico porque não tem academia agora – e me veio aquele frio na barriga e pensei “putz, errei um número”. Larguei tudo como estava, voltei correndo pro computador, li o que eu tinha escrito, acionei um colega (Marcelo Gonzato) que virou um expert em

Como será o jornalismo depois dessa pandemia, na tua visão? Tem uma frase que eu digo sempre, que não é minha, mas ouvi de alguém lá no começo da pandemia e peguei pra mim: todos nós perdemos alguma coisa, nem que seja a possibilidade de sair na rua sem usar máscara. Esse é o mínimo dos mínimos. Tem gente com perdas absurdas, seja de vida de um parente, seja de saúde, seja o emprego, seja a renda, seja o patrimônio. Mas ainda que todo mundo tenha perdido alguma coisa, eu acho que o jornalismo ganha muito, porque talvez mais do que nunca esteja escancarada a importância do que a gente faz.

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Vejam o que é o embate do uso da cloroquina entre autoridades, desde o presidente da República, passando pelos ministros e outros dirigentes que elegeram um antiviral e um vermífugo – agora entrou a Ivermectina na jogada também. Não tem nenhuma sustentação científica ficar dizendo que tomar Ivermectina ou Cloroquina previne ou combate a doença já contraída. Semana passada eu conversei com estudantes de Medicina da Federal de Ciências da Saúde, e um deles me perguntou “Vocês não enchem o saco de falar sempre nessa bobajada?”. Eu devolvi a pergunta pra ele: “E tu, enquanto estudante de Medicina ou como médico, tens o direito de te negar a dar uma resposta pela milésima vez a respeito da eficácia da Cloroquina?”. Tanto a minha a resposta quanto a dele foi “não”. Quem é da imprensa sabe que muitos leitores, ouvintes, usuários da internet ou telespectadores são fiéis, e assistem, ouvem e leem todos os dias. Contudo, a gente não pode partir do pressuposto de que as pessoas acompanham a nossa produção como ela é feita. A matéria que eu fiz da Cloroquina em abril, que eu refiz em maio duas vezes e três vezes em junho, talvez eu tenha que fazer quatro vezes agora em julho, porque é o mês em que a gente está chegando no pico provavelmente – que estava previsto para o início de agosto. Acho que nós saímos muito fortalecidos porque somos os verificadores das fake news que grassam pelas redes sociais. Tenho certeza que todo mundo aqui já recebeu a receita do alho para prevenir o contágio, ou tomar whisky com sei lá o quê, que mata o vírus pela garganta...eu vi uma pesquisa publicada no Valor Econômico que 17% dos brasileiros entrevistados acreditam na eficácia da hidroxicloroquina contra o coronavírus, mas o que mais me preocupou foram os 7% que acreditam no poder do alho contra a doença. Isso é para vocês verem o tipo de dúvida que a gente ainda esclarece já estando em julho, sendo que eu venho falando desse assunto desde janeiro e a pandemia chegou no Brasil no final de fevereiro. Nós estamos vivendo um cenário tão peculiar, e uma crise sanitária é tão política e tão ideológica no nosso país, as coisas se misturam tanto, que o nosso papel como mediadores, como curadores da informação e como verificadores da informação é indispensável. A Lupa é

a grande agência verificadora de checagem de Jornalismo e agora está muito envolvida com a pandemia – e não poderia ser diferente. Jornais de público geral também realizam essa checagem e tem outros projetos voltados para isso, como o Projeto Comprova. A gente batalha tanto para sermos ouvidos, para ter a nossa credibilidade confirmada que eu acredito que isso vai gerar um movimento positivo por parte das pessoas nesse momento. O jornalista enfrenta muita resistência e é muito visto como o “bisbilhoteiro”, o “urubu”, o que tem sempre um posicionamento ideológico – puxa para um lado, puxa para o outro, e agora nós estamos mostrando o caminho de muita coisa. Às vezes é muito fácil porque o discurso é tão absurdo que a gente já mostra “Olha aqui como isso é mentira”, mas às vezes é mais elaborado. Eu só lamento que a gente tenha que “perder tempo” com coisas tão básicas quando gente poderia estar avançando em outras frentes e a população avançando junto, puxando a régua mais para cima na questão do esclarecimento das pessoas – visto que ainda perdemos horas de apuração e de entrevista para dizer que o alho não mata o coronavírus. No entanto, como um todo, eu acho que o jornalismo sai muito forte, e eu fico muito feliz por isso. A gente merecia esse reconhecimento nesse nível e eu acho que isso sem dúvida nos fortalece. Que pena que isso aconteceu num dos piores momentos da nossa história, das nossas várias gerações aqui presentes, mas saímos mais fortes, mais reconhecidos.

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Pode ser em escala mundial: quem te inspira no jornalismo? Acho que não vou nem na escala mundial, vou ficar na escala porto-alegrense: o nosso colega de Zero Hora, Moisés Mendes. É uma pena que ele não esteja mais em veículo diário, porque para mim é uma das pessoas mais brilhantes e com um dos textos mais fenomenais que já conheci. É alguém com quem eu aprendi muito e com quem eu ainda aprendo. Embora ele já não esteja mais no convívio da redação há uns três anos, eu sempre o chamava de “meu guru”. Acho ótimo que a gente tenha um guru e também temos que ter grandes ídolos. Eu admiro uma série de escritores, jornalistas e gosto muito de determinados autores.


VISÕES DO JORNALISMO

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Tu já foste discriminada ou rejeitada por ser da RBS? Nossa, muitas vezes. Às vezes o contato acaba já na apresentação. Aliás já fica uma dica pros estudantes: sempre que for contatar alguém, a primeira pergunta depois do “bom dia” é “Tu tens um minuto para falar comigo ou eu tenho que ligar em outro momento?”. Eu percebo que essa pergunta raramente é feita hoje em dia, sendo que é o mínimo da educação, ainda mais agora que a gente está entrando na casa dos entrevistados, vendo o que eles têm na parede. Está tudo tão sem limites nessa realidade virtual que é importante lembrar da gentileza e da boa educação, já que elas abrem portas também. Às vezes, eu falo “bom dia, pode falar? Aqui é a Larissa Rosso, sou repórter da Zero Hora…” e acaba aí. Em várias ocasiões já ouvi “Não, para a RBS eu não falo”. Teve uma época – de 2013 pra cá – que nós cobríamos muitos protestos, e a gente teve que criar uma série de medidas de segurança para os repórteres e fotógrafos na rua. Nós saíamos sem identificação, o carro que nos levava até o local do protesto não tinha logotipo e a gente não usava blocos de anotação com o logotipo da empresa. Toda essa descaracterização era justamente

para não sofrer represálias. Mas isso não adianta muito porque, caso tu precisasses abordar alguém no protesto – seja de qual lado fosse –, na apresentação tu não podias omitir para quem tu estavas fazendo aquela reportagem, e aí as coisas ficavam extremamente hostis e tensas. Às vezes não é por ser da RBS, é por ser jornalista apenas. Tem uma coisa muito difícil que a gente faz – para mim, talvez, uma das mais difíceis de explicar – que é ir ao velório de pessoas que não são conhecidas. Lembro de um caso do menino 10 ou 11 anos que morreu atropelado por um ônibus, ele estava de bicicleta e desceu correndo por uma rua e o ônibus pegou ele no corredor. Faz uns dois anos que aconteceu, e causou uma intensa comoção. Me mandaram para o velório porque isso ocorreu num sábado à noite, e eu estava de plantão domingo de manhã. Pessoalmente, eu sinto um extremo mal-estar em situações como essa porque tenho dificuldade de explicar o que é que eu estou fazendo ali. E nesse dia foi tenso porque eu cheguei muito cedo, então estava só a mãe, uma irmã e mais alguém dentro da capela. O que eu vou fazer se chego ali e ninguém me conhece? Evidente que sou uma estranha, então eu tenho que me apresentar. No momento que eu falei que era jornalista, a irmã do menino estourou, me puxou pelo braço e foi me arrastando para tentar me botar para fora da capela. A situação foi muito tensa. Eu pedi para ela me soltar, disse “Vamos nos respeitar, sei que tu estás vivendo um momento terrível, mas deixa eu conversar contigo”. Quando eu estava indo embora ela correu atrás de mim para pedir desculpas, explicou que tinha reagido daquela forma porque estava nervosa e queria proteger a mãe. Logo, às vezes apenas a nossa função em si já causa hostilidade, e isso é inerente à profissão. Nós não somos bem-vindos em muitos lugares. Quando vou explicar para alguém o que estou fazendo ali, às vezes eu mesma me questiono se me convenci da minha própria explicação, e isso é uma reflexão que nós também temos que nos fazer. De fato, a imprensa muitas vezes é vista como “inimiga”, e é por isso que ressalto a importância do momento atual para nós como jornalistas. Estamos sendo muito redimidos devido à pandemia. A nossa profissão está sendo vista com olhares positivos por conta dessa situação que estamos vivendo.

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Contudo, se a gente tem um guru por perto, que é com que a gente pode falar, mandar WhatsApp, pedir uma dica ou para que leia o nosso texto, melhor ainda. Não podemos deixar de sonhar alto e pensar “Quero escrever como o repórter X do The New York Times”, mas se tu tens um grande ídolo que está perto e é acessível, essa pessoa vai ser de uma utilidade tremenda para ti. Aos estudantes: tentem explorar e cultivar os gurus em volta de vocês porque eles vão prestar orientações preciosas, já que às vezes o editor ou os colegas do lado de vocês não terão tempo para ajudar. Outra coisa importante é trocar ideias. Trocar ideia com alguém sempre serve para alguma coisa, nem que seja falar em voz alta o que tu estás pensando, ouvir e pensar “Resolvi, já sei como é que eu vou fazer” – sendo que às vezes nem é necessário a opinião de alguém. Mas se tu tens alguém que te inspira e que é próximo de ti, acho ótimo porque essa pessoa vai te ajudar bastante. Tenha sempre alguém para te ajudar, isso é fundamental.


VISÕES DO JORNALISMO

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Como foi o teu início no jornalismo e como te transformaste em cronista? Eu entrei na faculdade de Jornalismo já um pouco mais velha porque eu fiz Psicologia antes. Entrei no curso de Psicologia e fiz três anos, viajei, passei um ano morando fora do Brasil e aí, quando eu voltei, em vez de retomar a faculdade de Psicologia, eu decidi fazer vestibular de novo e começar a fazer Jornalismo. Isso porque antes de viajar eu já

tinha trabalhado um tempo no setor de revisão da Zero Hora, porque era um trabalho legal para quem estudava. Eu estudava durante o dia e trabalhava à noite na revisão do jornal. Aí eu saí para viajar e fazer um mochilão nos Estados Unidos e na Europa; fiquei viajando um ano. Na volta eu percebi que eu sentia mais falta do ambiente do jornal do que da faculdade de Psicologia e aquilo foi um sinal. Então eu resolvi fazer vestibular para Jornalismo. Entrei no jornalismo e aí me formei em 1992 e entrei logo no Segundo Caderno, onde eu fiquei até o fim, até me aposentar no final de 2018. Então, minha carreira de jornalista foi sempre na área de cultura, eu entrei na redação em 92 como eu falei, mas só fui começar a escrever crônicas em 2004. Esse negócio de virar cronista tem muito a ver com alguém um dia olhar para tua cara e te convidar a escrever uma crônica. Eu tinha escrito crônicas, acho que a primeira crônica mesmo que eu escrevi no jornal foi em uma interinidade do Paulo Sant’Ana. Eu estava grávida e foi uma crônica sobre a gravidez. Tive minha filha em 98, isso foi em 98, e teve uma repercussão superlegal. Mas, enfim, não pensei mais no assunto. Porém, como editora eu tinha esse trabalho de convidar pessoas para escrever no jornal, não só no Segundo Caderno como em outras áreas também. Pela proximidade da área cultural, eu sempre ficava atenta em quem escrevia para trazer para dentro do jornal vozes diferentes. Para o Segundo Caderno especificamente eu trazia muitos artistas, músicos, gente do cinema, gente do teatro, muita gente escreveu ao longo dos anos. Eu tinha muito essa ideia de que, como jornalista, como editora, eu tinha o espaço que eu quisesse para escrever. Se eu quisesse escrever sobre algum assunto eu tinha todo espaço, e que eu tinha obrigação moral de abrir espaço para quem era de fora para que mais pessoas pudessem participar do jornal. Então, sempre tive um certo pudor com a ideia de eu vir ocupar um espaço fixo de cronista no jornal, mas aí aconteceu de um certo momento, quando o Fogaça era cronista da Zero Hora e resolveu sair porque ia voltar a concorrer depois de algum tempo pensando em se afastar da política, por volta de 2003, 2004, eu disse: “acho que eu seguro essa bronca, vou assumir esse espaço’’. Primeiro eu fui lá para o editor e

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A CRÔNICA CLÁUDIA LAITANO

“Vem cá, leitor! Vou te dar um texto muito bem escrito”

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la escolheu a Psicologia, mas foi escolhida pelo Jornalismo – para a felicidade dos leitores que puderam acompanhar a evolução de uma jovem revisora de textos para a dupla condição de editora de cultura competente e cronista reconhecida. A porto-alegrense Cláudia Laitano assina uma crônica semanal em Zero Hora e encanta os leitores com sua sensibilidade e a originalidade de seus escritos. “Eu me sinto muito jornalista como cronista que busca um assunto novo e traz para o leitor” – define-se. Detentora de cinco prêmios ARI de Jornalismo, Cláudia leva para suas crônicas, além da técnica apurada de sua escrita, a experiência de leitora insaciável, viajante aventureira e mãe de uma nativa digital. Essas múltiplas atividades inspiram seus textos, fortemente posicionados e caracterizados por valores humanitários.


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propus uma série de nomes que podiam ocupar aquela vaga e botei o meu nome no meio. No fim acabei entrando nessa vaga no Segundo Caderno, sendo que ali eu me sentia muito em casa, porque é um caderno de cultura. Então, eu me sentia bem protegida naquele ambiente para falar dos assuntos que me interessavam. Um tempo depois, a Lya Luft saiu da página 4 do jornal daquela época. E, quando ela saiu, eu fui convidada para substituí-la no jornal, porque ela tinha ido para Veja. E começou uma nova etapa porque era um público que me fazia ter a percepção de que eu teria que falar com mais gente, com um público diferente do que aquele com o qual eu estava acostumada. Tiveste que mudar teu estilo de escrita para fazer crônicas, já que antes tu fazias muitas reportagens? Eu fiz pouca reportagem, na verdade, porque eu entrei no Segundo Caderno em 92, e logo me transformei em editora de televisão. Em 95 e 96, eu já era editora do Segundo Caderno. Então eu fui muito mais editora do que repórter, não tive muita dificuldade em mudar de registro. E também porque na área de cultura, mesmo o repórter tem menos restrições com a primeira pessoa, com o texto mais descontraído. Isso que em outras editorias podia ser visto como uma coisa não muito boa, no Segundo Caderno era uma coisa totalmente estimulada: que as pessoas tivessem uma voz mais autoral, um texto mais descontraído - isso fazia parte do ambiente do jornalismo cultural.

e coisas que me interessam no noticiário não são exatamente as mesmas que interessam a outras pessoas. Então é, sim, o noticiário e o que está acontecendo, mas diante do recorte dos meus interesses, porque eu sou exposta ao tipo de caminho que eu faço frequentemente, não só para ter ideias para a crônica, mas sim porque são as coisas que me interessam. Eu leio muito jornal cultural, na área de livros, na área de cinema, então isso é uma coisa que faz parte do meu cardápio diário de consumo. Eu me interesso muito por mudanças de comportamento ligadas de alguma forma ao mundo digital ou ao modo como as pessoas se comportam nas redes. Eu tenho uma filha que acabou de fazer 22 anos. Os assuntos que a interessam, os problemas da geração dela, as coisas que a gente discute e sobe as quais concorda ou não concorda, isso tudo pra mim é muito interessante, já que traz à tona coisas que pra mim são novas e eu imagino que para o leitor possam ser também. É muito baseado no noticiário, com uma tentativa sempre de apresentar um assunto novo e um enfoque novo. Se tem uma coisa que é pavorosa para mim é um texto que chove no molhado, repete o que os outros estão dizendo, fala sobre um assunto que ninguém mais aguenta ouvir. Esse mesmo tipo de preocupação que eu tinha como editora ao escolher a capa do Segundo Caderno eu tenho agora, o mesmo tipo de raciocínio e sensibilidade, alguns dos mesmos critérios para escolher o tema como cronista também.

Uma pergunta que os estudantes sempre fazem quando um profissional está falando com eles: de onde saem as ideias para as tuas crônicas? As minhas têm muito a ver com o jornal, com o que estou lendo, com o que me interessa, em vários sentidos. Por um lado, a gente poderia pensar que todo cronista é mais ou menos isso. Boa parte dos cronistas escreve sobre coisas que estão acontecendo e isso faz com que, às vezes, várias pessoas escrevam sobre o mesmo assunto, mas nunca é o mesmo texto, porque a gente tem percepções do noticiário diferentes

Como é o retorno dos leitores? Tem algum assunto que fica mais polêmico e que as pessoas têm mais interesse em interagir contigo? Sim, atualmente o tema “política” é o que mais desperta o desejo de interação. Um texto que entra na área do bolsonarismo/antibolsonarismo tem um retorno imediato e isso já faz algum tempo. Acho que todo mundo que escreve sabe disso, percebe isso: a política se tornou em um assunto que mobiliza as pessoas emocionalmente e o que dá retorno para crônica é a mobilização emocional, mais do que a intelectual, mais do que se identificar ou achar bonito. Nada supera a relação emocional, aquilo que realmente te irrita e te deixa indignado, ou concorda com a

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tua indignação ou dá eco para a tua indignação, ou, ao contrário, é algo que tu discordas tanto que te mobiliza. Para usar um exemplo recente, escrevi uma há poucas semanas sobre os médicos que têm defendido o uso da cloroquina, me posicionando bastante claramente contra essa postura. Teve uma coisa sobreposta a outra, porque é um tema que toca na política e na relação corporativista dos médicos. Muitos questionaram meu lugar para estar emitindo opinião sobre o trabalho dos médicos. Foi publicada até uma opinião do presidente do CREMERS, como resposta à minha coluna, porém educada. Teve vários que não foram educados. Acho que, nesse momento, a questão política é o que mais mobiliza o retorno dos eleitores. Machado de Assis escreveu uma crônica chamada O Nascimento da Crônica, na qual ele diz que há um meio fácil e simples de começar a crônica, por uma trivialidade. Tu buscas mais uma coisa polêmica, uma crítica, uma reflexão. É esse o teu estilo? Eu acho que sim, até porque houve um momento em que a crônica de jornal era um refresco do noticiário. No tempo do Machado de Assis ele poderia escrever sobre qualquer assunto. Primeiro porque quem escreve bem escreve sobre qualquer coisa e também porque os leitores de Machado não tinham tantas opções de leitura. O texto podia se dar esse luxo de ser um texto sobre o ser e o nada. As pessoas não tinham esse fluxo absurdo de informação na disputa pelo tempo. Continua-se tendo 24 horas, mas as pessoas têm muito mais demandas de informação e ofertas de informação do que elas tinham há 150 anos. Hoje em dia, para alguém ler o teu texto, tu tens que oferecer alguma coisa. “Vem cá, leitor, eu vou te dar um texto muito bem escrito’’. Ainda funciona, pode acontecer, mas não é a regra que as pessoas escrevam textos maravilhosos o tempo todo. Mesmo quem escreve muito bem nem sempre escreve textos maravilhosos que valem o tempo de investimento.

acontecem. A crônica busca analisar, dando um colorido emocional? O segredo, e o que eu acho que faz a distinção entre diferentes cronistas, é como eles vão despertar essa emoção. Emoção é várias coisas, pode ser uma emoção de beleza, de identificação, de curiosidade, de indignação... são vários tipos de sentimentos que um texto pode mobilizar. Mas eu acho que cada vez menos tem sido algo no sentido que já foi, como a crônica clássica do Rubem Braga sobre o passarinho na janela. Ela cada vez menos é algo que se vê no jornal, embora seja algo que se possa encontrar de outras formas. É um gosto literário, uma percepção e uma acessibilidade que as pessoas continuam tendo, mas não necessariamente o jornal como a gente conhece é o veículo. Tu achas que, além de emocionar e refrescar o jornal, o jornalismo cultural e as crônicas culturais têm outra função para as pessoas? Desenvolvem alguma coisa na sociedade? Acho que são dois universos diferentes. As crônicas que a gente lê no Segundo Caderno da Zero Hora têm escritores e músicos escrevendo. Eu acho que o ponto em comum entre o jornalismo cultural e a crônica que vai mais para essa área é a ideia de curadoria, é fazer uma seleção em um universo de opções muito grande. Isso sempre foi a base do jornalismo cultural, mas hoje, com tantas opções, torna-se mais importante ainda ter uma pessoa que faz esse trabalho de escolher uma série entre as milhares que estão disponíveis no momento, saber porque essa série vale a pena, o que tem um papel importante para o consumidor comum, que às vezes não tem tanta chance de informação. Esse papel de curadoria é o mais importante na área de cultura.

Alguém já disse que o objetivo da crônica é envolver e emocionar o leitor. Diferente da notícia: a notícia dá um fato, as coisas que

O que te atrai mais: o comentário do dia a dia, baseado inclusive nessas notícias e no cenário, ou essa crônica mais literária? Qual tua preferência e o que tu achas que escreveu mais nesse tempo? Com certeza foi a crônica baseada no dia a dia, em notícias. Eu me sinto muito jornalista como cronista, muito editora no sentido de al-

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guém que busca um assunto novo e traz para o leitor. É isso que me dá prazer na hora de escrever, mas muitas vezes eu tive que escrever textos fora desse recorte. Esse tipo de texto ligado no noticiário tem um limite. Por exemplo, para alguém que escreve todos os dias, como o David Coimbra, é impossível fazer sete crônicas a partir de textos de notícias. Não tem sete notícias que valem investimento de escrita. Em sete dias talvez tu tenhas que colocar outros assuntos, inventar outros assuntos. Em todas as vezes que eu tive que escrever mais de um texto por semana, um dos textos era o que eu chamo de texto aleatório. Um texto aleatório que eu escrevi recentemente foi sobre o edifício aqui na minha frente que tirou a vista do rio pra mim. É uma coisa da minha vida que, se for trabalhada de forma certa, pode servir para que outras pessoas se identifiquem e gostem de ler. No final, tenho muito prazer em escrever esse tipo de texto. Não é uma coisa sobre a qual me incomoda escrever. Só não é o primeiro impulso quando eu sento para escrever. Quando perguntavam para o Paulo Sant’Ana por que se colocava tanto nas suas crônicas, ele dizia: “é porque esse é o assunto que eu conheço melhor”. Mas, no teu caso, a gente percebe que tu realmente evitas te colocar muito nas tuas crônicas, quase não utiliza tua experiência pessoal como tema. É bem raro, apesar de já ter feito algumas vezes, quando escrevi sobre minha filha, mãe, infância, família, mas são exceções, até porque é um recurso que, se abusado, pode ficar irritante. A gente como cronista é aquilo que a gente quer ser e aquilo que a gente não quer ser. Como leitora, há vários tipos de textos que eu não gosto e nunca gostei, e esse tipo de texto me ajuda a encontrar a minha voz. Textos que, por exemplo, recorrem sempre à primeira pessoa e sempre correm para assuntos sentimentais são textos que eu não gosto de ler e autores que eu não leio porque não me interessam. É uma coisa que eu evito escrever porque me apavora um pouco a sensação de minha vida virar alguma coisa tão importante que mereça ser escrito. E esse tipo de comportamento é um pouco como eu me comporto nas redes sociais, eu posto coisas 48

da família de vez em quando, mas tudo com uma certa parcimônia. Não acho que minha vida seja tão interessante assim e nem tenho a necessidade de expor a vida privada de uma forma tão intensa como eu vejo que algumas pessoas têm. Eu não fui abençoada com esse tipo de necessidade, como cronista, eu sou um pouco como me comporto nas redes sociais. A palavra crônica vem de “Cronos”, do grego, e começou como uma narrativa histórica, tanto é que dizem que a primeira crônica do Brasil foi aquela carta do descobrimento, do Pero Vaz de Caminha. Os cronistas modernos também estão voltando para a história, mas a história contemporânea. Concordas com isso? Acho que sim. Se tem uma marca muito forte da nossa época é essa da primeira pessoa. Eu acho que isso aparece muito na crônica e em um gênero que é muito vizinho da crônica, que é o ensaio. Como a crônica, o ensaio tem essa semelhança entre reportagem e um pouco de ficção. O ensaio deu origem à crônica, é o avô da crônica, começou com Montaigne lá no século XVI. O cara que senta e que vai dizer como ele vê e sente o mundo, vai dizer a sua opinião sobre basicamente todas as coisas, das mais importantes como o governo do país até as coisas mais miúdas da vida cotidiana. Essa foi a genialidade do Montaigne quando ele começou a escrever esse título que foi batizado de ensaio e que veio redundar na crônica de jornal, ali no século XIX, quando começou o jornalismo. Se há uma marca desse gênero que eu acho muito contemporâneo, é isso das pessoas se exporem mais. Os americanos têm um termo que eles usam muito - “relatable” - para definir o tipo de texto que faz com que as pessoas se conectem e se identifiquem, de uma subjetividade para outra. É um texto que eu acho que está muito conectado com o gosto da nossa época. O que mudou na tua carreira profissional com a transição do jornalismo cultural para cronista e que oportunidades surgiram para ti a partir dessa mudança? 49


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Na verdade, não foi uma mudança, porque quando eu comecei a escrever crônicas eu continuei fazendo as mesmas coisas que eu fazia. Eu não saí do jornal, sempre fui editora de cultura, e a crônica era algo que eu fazia em paralelo a isso tudo. No dia a dia, não mudou nada, mas o compromisso de escrever um texto semanal me trouxe muita coisa, me trouxe uma atenção para as coisas, para os textos que eu leio, para as coisas que as pessoas me falam, uma atenção flutuante sobre o que pode ser e render assunto para uma crônica, que é algo que eu valorizo muito. Acho que isso me tornou uma leitora melhor para ter que escrever o texto, e o compromisso de escrever toda semana me fez escrever melhor também, porque quanto mais a gente escreve, melhor a gente escreve. Acho que teve um ganho duplo aí, que é o ganho da produção de texto e também do consumo de textos e do processamento de pensar sobre coisas que escolho para escrever sem saber exatamente onde o negócio vai dar. Minha filha sempre brinca comigo, que eu faço umas pontes entre os assuntos, que a ponte começa no Rio de Janeiro e termina em São Paulo. Mas isso é um exercício que eu gosto de fazer e acontece porque eu tenho a sensação de que um assunto me interessa, mas eu não sei exatamente porque e nem como eu vou desenvolver aquilo. Então, esse tipo de exercício na hora de escrever é algo que se tornou uma parte de mim. É uma parte de quem eu sou. É parte da maneira como eu me relaciono com as pessoas, como eu me expresso e processo informação.

tempo sim. O texto tem que ser melhor do que eu falando aqui, porque eu tenho mais tempo para voltar, analisar e revisar. Ele tem que expressar os valores que eu tenho como ser humano na vida real. Assim, se eu não vou agredir ou humilhar uma pessoa, eu não vou fazer isso no texto que eu escrevo. Há esse exercício de falar de uma maneira lúcida, mas sem perder a paixão. Eu sou uma pessoa apaixonada, que se apaixona pelos assuntos e causas, e para usar o exemplo da coluna da cloroquina, eu sou apaixonada por esse assunto e é algo que me indigna muito. Então não tem como isso não aparecer no texto, mas eu tenho que colocar aquilo de alguma forma que abra espaço para que os médicos que estão fazendo um bom trabalho não se sintam ofendidos e vejam que eu não estou querendo generalizar para a categoria inteira. Acho que tem que sobrar espaço para a argumentação mais do que para agressão, então esse tipo de cuidado eu tenho muito, já que é muito fácil um assunto pelo qual a gente é apaixonado virar uma coisa sem limites.

Como é que tu administras críticas e redes sociais? Além da autocensura do bom gosto, que citaste há pouco, existe algum outro tipo de censura com as tuas crônicas? A censura é tão internalizada que eu nem percebo, mas, como leitora ou quando eu frequento as redes sociais, eu tenho pavor de agressão, qualquer tipo de agressão pessoal, arrogância... Então, o texto tem que expressar um estilo de ser humano com o qual eu me identifico, aquele ser humano tem que ser melhor do que eu porque o texto é algo que pode ser revisto e melhorado, não por muito tempo mas por algum

E o patrulhamento das redes, que não deixam passar nada? É, mas eu realmente me preocupo bastante se uma pessoa que eu conheço me manda uma crítica que acho pertinente. Se for agressiva, não adianta nem a pessoa me conhecer. Caso contrário, é algo que vai me fazer refletir e pensar. Uma crítica pertinente de uma pessoa que eu não sei quem é, que eu acho que através da leitura a pessoa pode ter visto coisas que eu não, é algo que eu também vou levar em consideração. Agora, uma crítica que eu não acho pertinente de uma pessoa que eu não conheço, para mim não diz nada. Pode me xingar do que quiser, me chamar do que quiser, se eu acho que não faz sentido para mim, eu não me ofendo porque não vejo legitimidade naquilo. Realmente é uma coisa que não me preocupa. Então toda essa ideia de “o que as pessoas vão falar nas redes” me preocupa até certo ponto, não é um mundo que realmente eu habito, no sentido de que se aquilo ali for contra mim ou me disser algo que eu não concordo vai acabar com a minha vida. Não sei, nunca aconteceu também, talvez se tivesse acontecido eu teria outra opinião. A opinião massiva, e não balizada por uma coisa que eu

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realmente reconheça como algo que eu deva levar em conta, não me toca. Foi o que aconteceu nessa crônica dos médicos. Tinha milhares de comentários na internet falando horrores, mas não me diz nada porque era fácil perceber que aquilo era um movimento detonado por uma motivação política mais do que por qualquer outra coisa como uma falha de raciocínio. Esse tipo de crítica realmente não me incomoda.

alguém que daqui a 50 anos possa ter dúvidas se eu era contra ou favor. Eu quero que saibam que eu era contra.

Isso aumentou depois das últimas eleições presidenciais? Um ano antes da eleição aumentou, quando começou esse movimento de polarização. Como eu não me sinto no meio dessa discussão de forma alguma, eu sei bem o lado que estou e o lado que eu não quero que daqui a 50 anos abram os arquivos dos jornais e se perguntem se aquela pessoa era contra ou a favor. Eu quero que todo mundo saiba o que eu pensava sobre esse assunto que me apaixona, me mobiliza, mais do que qualquer outra coisa que já aconteceu na política brasileira desde que eu comecei a acompanhar, ali nas eleições diretas em 1984, quando eu tinha 18 anos. De lá para cá, acho que nunca teve algo que me parecesse tão inadmissível como o que a gente está vivendo hoje. Nunca fui tão apaixonada e quando a gente é muito apaixonada acontece, sim, de ter uma reação contrária. E normal e para isso estou preparada. Eu me preocupo mais com o julgamento da história e com

Tem um termo que procuram ensinar muito na academia que é a imparcialidade quando escrevemos Como que tu lidas com isso? Acho que no trabalho do cronista não tem nenhuma cobrança de imparcialidade. Pelo contrário, o importante para o cronista é ele ter uma voz, ter uma ‘autoralidade’. Ainda assim, mesmo não achando que eu tenho que ser imparcial - e eu não sou -, procuro apresentar os meus argumentos, o motivo pelo qual tenho determinado posicionamento e procuro escolher com qualidade esses argumentos. Hoje em dia tem muita gente dando opinião do jeito que eu dou, opinião é o que mais tem no mundo. O que a gente vê agora é uma banalização da mentira como se fosse um argumento. Tem coisas que não são opinião. O que eu penso sobre a homeopatia não é opinião, é o que a ciência diz: que é um tratamento não comprovado ainda, assim como a cloroquina. Eu me preocupo que, nessa onda de “eu sou comentarista, eu posso dizer o que eu quero”, as pessoas acham que dá para passar a boiada da mentira, da desinformação, do erro. Aí acho que é desonesto. Eu, como cronista, me preocupo com a desonestidade. Mas a imparcialidade não é no espaço da crônica ou no espaço da opinião que vai ser cobrada. Acho que, por mais imparcial que um repórter tente ser, ainda assim existe um objetivo que está além do mundo real, porque depende da maneira como tu vês o mundo. A abordagem de um repórter que foi criado em uma comunidade de Porto Alegre e um que foi criado no bairro Bela Vista, ao cobrir um assassinato de um jovem negro na periferia, por exemplo, vai ser totalmente diferente, pela bagagem de vida e pela experiência de vida que esses repórteres carregam. Assim, a imparcialidade vai se manifestar de maneiras diferentes e em graus diferentes. Acho, então, que a imparcialidade, mesmo no lugar em que a gente espera que ela exista, como no jornalismo diário ou em um noticiário, ainda assim ela é um objetivo que nem sempre é muito mensurável. No espaço da crônica, realmente não é algo que se cobre. Pelo

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E a interação com o leitor é estimulante para o teu trabalho? Sim, essa realmente é a melhor parte, porque tu sentes que de alguma forma estás expressando o que aquelas pessoas queriam estar dizendo. Isso eu acho legal porque mesmo que não seja uma multidão de bilhões de pessoas, mesmo que seja um grupo pequeno e uma fatia dos leitores, se o texto que eu escrevo serve para expressar alguma coisa para essas pessoas eu acho que é o que vale a pena, e o retorno é sempre muito carinhoso. Tenho mais histórias boas de retornos bons e coisas bonitas que me disseram do que de coisas ruins. Agressão mesmo só ultimamente com essa coisa da política, mas no geral os leitores são muito fiéis e queridos.


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contrário: em geral, a voz autoral ou a voz que manifesta a sua opinião de forma clara é valorizada. Tu achas que a entrada das redes sociais gerou essa questão das fake news? O jornalismo tem saída para isso? Parece haver uma certa descrença no jornalismo e mais crença nas mentiras do que nas notícias. Como o jornalismo pode recuperar a credibilidade? Com certeza a tecnologia criou uma coisa nova que não existia e com a qual a gente tá aprendendo a lidar, que é a capacidade da mentira se multiplicar, e de uma pessoa em casa ter milhões de seguidores, mais do que um jornal tem de leitores. Essa nova ferramenta criou desafios que não tão resolvidos, estão longe de ser resolvidos ainda: como a gente vai lidar com isso? Como a gente vai preservar a democracia, a esfera política, uma campanha eleitoral e a saúde pública em um meio em que a mentira não tem limites, que é indominável? É uma questão que ainda está posta. A outra questão é o valor do jornalismo. O fato é que esse aumento de tecnologia que trouxe as fake news ao mesmo tempo minou as bases do jornalismo como negócio. As empresas jornalísticas também estão desafiadas a fazer as pessoas pagarem por esse negócio que é caro, que envolve energia e investimento, que é o jornalismo. As duas coisas estão postas na mesa ao mesmo tempo. Por um lado, nunca se precisou tanto de jornalismo, mas, por outro lado, nunca tantas pessoas acharam que não querem pagar para receber notícias, que notícia é uma coisa que brota nas redes sociais e não é algo fruto de trabalho. Mas, ao mesmo tempo, acho que a pandemia mostrou a urgência que se tem de jornalismo de qualidade. Vimos os telejornais com mais audiência, os jornais aumentaram seu impacto. Pela primeira vez, o número de assinaturas digitais do New York Times superou o número de assinaturas do papel, o que é uma transição muito importante, porque não interessa muito onde vai ser consumido o jornalismo, pode ser até em folha de bananeira, mas a gente precisa ter jornalistas que podem viver com esta profissão. Como vai ser esse negócio, nós vamos ter que descobrir. Se a geração da minha filha não vai mais comprar jornal em 54

papel, mas se ela vai pagar o New York Times digital, que bom! O jornalismo está sendo pago. Esse momento de transição da primeira vez que um grande jornal impresso foi superado pela sua própria marca digital é um momento que deve nos dar esperanças. Saiu na capa de alguns jornais, e não é uma notícia só para o New York Times, mas sim uma notícia para o jornalismo. As pessoas estão se dando conta de que notícia não dá em árvore, e de que jornalismo tem que ser pago, assim como a Netflix ou a internet que se tem em casa. As pessoas tem que pagar pelos veículos que consomem, investir, apoiar e valorizar. Acho que a gente está ainda na pré-história do mundo digital. A condição feminina te trouxe alguma dificuldade a mais para conquistar o espaço que tu tens como jornalista e como escritora? Não acho que eu tenha tido uma dificuldade a mais. Acho que a minha geração já encontrou várias coisas assentadas, e outras coisas que não estavam tão assentadas assim. Nós nos acostumamos a achar que estava tudo bem e não havia problema. Quando comecei a trabalhar, eu tinha 19 anos e tinha um chefe, lá na Zero Hora mesmo, que fazia piada e que dava cantada, várias coisas que hoje seriam escandalosas. Hoje eu olho para trás e penso como eu achava aquilo normal. Não é normal. Mas a gente se acostumava a achar que sim. No sentido de ter tido chances, de ter feito o que eu queria fazer e de ser valorizada pelo meu trabalho, eu nunca senti no jornal. Acho que eu fazia parte de uma redação que sempre teve uma cultura de mulheres importantes, e hoje tem uma diretora de redação mulher. Então a gente sempre valorizou muito a mulher, ou pelo menos não colocava obstáculo em relação a isso. Essa coisa da “cafajestagem” existia ali nos anos 1990 e 1980, era bem comum nas redações, e a gente fingia que não via. Agora, é muito legal ver que a geração que vem depois nos coloca outras questões e faz a gente pensar, nos ajuda a desnaturalizar algumas coisas. Falaste que as pessoas novas apresentam coisas novas. Quais são os principais impactos que os jovens provocam em vocês? 55


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Talvez não seja do gosto, mas é legal de aprender e saber. Se tu gostas de música, é legal ir atrás de outros gêneros além daquele que tu escutas. É legal descobrir outras coisas! Se existe alguma coisa na geração mais nova que eu reparava, era isso, uma certa falta de curiosidade por ingenuidade. Claro que a pessoa tem direito a ser ingênua quando tem 20 anos, é do jogo, porém é diferente de ser arrogante e pensar que não há mais nada para aprender. Eu sempre lembro de um amigo meu que era professor e conta que na aula ele perguntou: “o que estava acontecendo em 1979?”. E uma aluna respondeu: “não sei professor, não estava lá.”. Isso para mim é uma resposta clássica adolescente! No colégio tu até podes relevar, mas na faculdade, uma pessoa achar que não precisa saber o que aconteceu no passado, é uma arrogância ou uma maneira de se defender de alguma fragilidade.

Vou falar da minha experiência com o jornalismo cultural, não sei como é nas outras áreas. O jornalismo cultural é muito baseado na curiosidade das pessoas, na voracidade, no interesse que elas têm pela área cultural. Isso significa que uma pessoa que gosta de música não vai se satisfazer em ouvir o que todo mundo está ouvindo. Ela vai querer ter uma cultura musical e saber “o que as pessoas estavam ouvindo nos anos 90, 60, 50. E no século XIX? Por que as pessoas mudaram? Essa curiosidade que faz com que as pessoas corram atrás de sua formação era um traço em comum das pessoas que iam para a área de cultura. Eu, quando cheguei na redação do jornal, logo conheci uma pessoa que foi muito importante na minha formação: o Tuio Becker, que era um crítico de cinema. Ele já tinha começado a trabalhar no final dos anos 60 e início dos anos 70, e, apesar de ser um crítico de cinema, ele tinha uma cultura muito vasta em várias áreas. Eu olhava para ele e pensava: “eu quero ser assim, eu quero saber sobre dança também, quero saber sobre música erudita, literatura, cinema...”. Tu olhavas para as pessoas mais velhas com essa percepção de que aquela pessoa tinha percorrido um caminho, tinha uma história e tinha aprendido coisas e que tu estavas em dívida. Ou seja, tu tinhas que correr atrás do prejuízo, porque o mundo não era só a música que se estava ouvindo na MTV. O que eu sinto hoje é que, sem querer generalizar, a maioria das pessoas que chega na redação chega muito sobrecarregada de presente. É tanta informação, tanta coisa acontecendo agora, tanto vídeo que foi postado ontem, música que saiu hoje. Sinto essas pessoas sem interesse de pesquisar outras coisas e de ampliar o repertório. Isso é uma coisa que eu lamento profundamente, porque hoje, aos 54 anos, eu ainda me sinto uma pirralha em relação ao Tuio Becker, que infelizmente já morreu, morreu em 2008. Tenho certeza, no entanto, que se ele tivesse vivo eu iria olhar para ele e dizer: “eu tenho que ler e ouvir mais, tenho um mundo inteiro para descobrir’’. Isso não é para mim um peso, uma carga ou sofrimento, e sim o que dá sentido à minha vida: saber que há coisas diferentes para aprender. Eu lamento muito, então, quando eu vejo pessoas jovens fechadas no presente e sem esse apetite de formação, de criar uma estrutura e um repertório maior.

Como tu te abasteces para a parte do jornalismo cultural, como seleciona filmes, livros e músicas? Depois que eu me aposentei, e agora na quarentena, eu estou vivendo meu paraíso com o qual eu sempre sonhei: ter todo o tempo do mundo para ler o que eu quero. Isso exige organização, então eu tento me organizar por temas que me interessam para ter alguma rotina dentro da falta da rotina. Sim, eu vejo filme um dia sim e um dia não, intercalo filme com série à noite, e durante o dia eu tenho uma hora que eu leio as coisas do mestrado, outra hora leio coisas só porque estou a fim de ler, outra hora coisas em francês porque eu gosto de treinar o francês. Enfim, eu criei uma rotina para poder viver esse momento, mas até o paraíso exige uma certa organização. Tem várias coisas que eu queria ler, fazer e estudar, mas não tinha tempo e agora eu tenho. Antes eu fazia muito disso, mas com bem menos tempo. Primeiro porque trabalhava o dia inteiro, então ficava mais para a parte da noite. Durante a semana era pouco, então o que dava para fazer no fim de semana eu fazia. Teve época que eu tive criança em casa, então eu aproveitava os intervalos. Mas sempre foi algo que fez parte da minha vida, só que antes era o recreio e agora é o tempo todo.

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O DESENHO DE HUMOR SANTIAGO - NELTAIR ABREU

“A charge é a crônica do cotidiano desenhada”

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le tomou emprestado o nome da sua terra natal quando decidiu viver de caricatura e charges e firmar uma imagem no mundo dos desenhistas de humor. Desde que desembarcou na Capital gaúcha, Santiago logo encontrou onde publicar sua arte, aplicando técnicas trazidas da infância, na sua Santiago do Boqueirão, onde brincou de verdade, fazendo caricaturas de familiares, colegas, professores, prefeitos, vereadores e figuras típicas locais. A experiência campeira o levou a criar o Macanudo Taurino Fagunde, que tanto sucesso fez e faz, pois é um personagem baseado no gaúcho típico do pampa, que retrata os hábitos e a sociologia dos habitantes do campo no extremo sul do Brasil. Das páginas da Folha da Tarde, onde começou em 1975, o estudante de Arquitetura da UFRGS percorreu outras redações e o mundo. Seu traço, com grande poder de síntese, ironia e muito humor, lhe trouxe prêmios dos mais cobiçados nos grandes salões nacionais e internacionais, com obras publicadas em várias mídias, inclusive nos famosos alternativos Coojornal e Pasquim. Santiago coleciona prêmios: são 20 troféus ARI, que ocupam lugar de destaque entre outros recebidos em salões de charge, caricatura e quadrinhos de humor em várias 58

cidades e países. Numa disputa com 15 mil participantes de todo o mundo faturou, no Japão, o “Grand Prix” do Concurso Yomiuri de Cartuns, promovido pelo jornal “Yomiuri Shimbun”, cidade de Tóquio (l990). Santiago tem especial gratidão pelo o 1° lugar na Exposição “Guerra à Guerra”, em Sofia, (1988), Bulgária, devido à temática e por ter sido sua primeira viagem internacional. Ele integra o grupo de cartunistas distribuído no mundo inteiro pela agência CWS/NYT ligada ao jornal New York Times. Também é autor de 17 livros. Santiago é casado e tem dois filhos. Mora em Porto Alegre.

O que é que faz um caricaturista? Eu não sei te dizer. Só sei dizer que quando eu digo que sou caricaturista/sou cartunista, as pessoas completam assim: “Sim, mas e pra viver? Vive de quê? O que faz pra viver?” A resposta é mais ou menos essa: vadiagem. Cartunista é vadiagem. Pura vadiagem. E para ser um profissional do jornal? Realmente, nos dias de hoje, para viver a gente tem que ter outra coisa. Porque jornais, revistas e livros ninguém mais compra. Ninguém mais compra um cartum. Não tem mais para quem vender o desenho. A gente está ficando quase só com as mídias eletrônicas, ficando quase como um hobby. É quase um hobby meu. Tu começaste na década de 70 na Folha da Tarde e naquele momento havia até disputa de quem era o melhor, pela quantidade e qualidade de cartunistas que tínhamos na praça. Fale desse tempo. Naquele período da Folha da Tarde, havia também a Folha da Manhã. Foi um período bom, mas duro, do ponto de vista profissional, de ganhar a vida. Ninguém ficava rico, então não se ganhava pelo que se fazia. A gente tinha salário, tinha carteira assinada na Companhia Caldas Júnior. Tinha o pessoal da Zero Hora também. Ainda tinha o Diário de Notícias, no tempo que eu comecei. Mas hoje restaram meia dúzia de jornais no país inteiro. O resto é trabalho que não é trabalho. É 59


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Facebook e Instagram de grátis, completamente de grátis. Depois vai se tentar auferir ganhos por outros lados, mas diretamente pelo desenho não se ganha, não se vive mais disso hoje. Qual é a função do desenho da charge, da caricatura na imprensa? Para que serve? A função do desenho da charge/da caricatura na imprensa é muito importante, porque é a crônica do cotidiano desenhada, a crônica visual e humorística do cotidiano que é fundamental e importante. É a crítica; a crítica política. Agora, neste momento, Deus me livre, infelizmente temos material sobrando para desenhar. Então, acho que está sendo muito importante o trabalho, porque eu tenho visto o Facebook, Instagram, redes sociais, o Aroeira, principalmente, com crítica de como instigar o governo fascista que está por aí é importantíssimo. O histórico dos cartunistas não é um dos melhores do mundo. Na história, quando a revista Simplicissimus na Alemanha, uma publicação quase centenária, começou a criticar o Hitler em 1930, todo o pessoal na revista teve que se exilar, teve que ir embora, e os que ficaram aderiram ao nazismo, pior ainda. Então, quando começam esses regimes totalitários, a gente fica com as orelhas em pé, com o cabelo em pé. Mas qual é a função do humor na imprensa? Eu acho que é esse aí: fustigar, encher o saco. Eu acho que a sociedade toda é um panelão, que vai cozinhando, vai cozinhando, vai cozinhando, e vai queimando no fundo. O cartunista e os jornalistas questionadores têm esse poder de cutucar lá no fundo da panela, remexer a panela e trazer para cima aquele cozido que está ficando queimado embaixo. E o cartum faz muito bem isso, remexe no fundo da panela ou então levanta a ponta do tapete e mostra que a sujeira não foi embora, que a sujeira está na sala ainda. Então é isso que o cartunista tem feito. Claro que existe também o espaço para o cartum, para o humor gráfico, engraçado e divertido. Eu gosto muito de fazer desenhos puramente engraçados, sabe? Adoro fazer isso também, mas não posso fugir tam60

bém do dever de denunciar, de fazer denúncia. Eu não consigo fugir dessa condição. Existe censura no trabalho do chargista ou tem algum assunto proibido? Algo que não possa fazer. Hoje, felizmente na internet, como a Internet não paga, como ninguém te contrata, tu podes colocar o que dá na cabeça, depois é que tu vais ver o que vai acontecer, se mais tarde vai ter processo. Já houve ameaça de processo contra alguns cartunistas. Não se trata de tabu, mas a gente tem um cuidado de não fazer calúnia. Numa época de Fake News, a gente tem que cuidar para que o cartum também não vire um cartum de Fake News. Uma charge/um cartum que fale do pressuposto falso/calunioso, seria mais ou menos fazer um cartum de mamadeira de piroca. Isso não. Isso é uma calúnia, nunca existiu, como tu vai fazer um cartum sobre isso? A não ser para desfazer essa notícia falsa. Esses cuidados a gente tem. O cartum na imprensa nacional já é bem antigo, então tu te inspiraste em quem? Até hoje, por exemplo, o Luis Fernando Verissimo é um mestre que eu sigo em todas as condutas/posturas, na forma de fazer humor/na sua elegância de fazer humor, eu tento fazer igual a isso. E o Barão de Tamandaré é claro que foi um inspirador enorme, embora o Barão não desenhasse. O Barão fazia humor de texto, mas ele nos ensinou essa técnica como a arte da ironia, do sarcasmo é a forma de tu dizer de forma engraçada, dourar a pílula que se diz, certo? A pílula é meio amarga de ser engolida, mas tu botas o humor em volta dela, açucarzinho do humor, se engole e depois, é claro, a pessoa/o leitor reflete sobre isso. Millôr Fernandes também, uma espécie de farol para a nossa conduta, para a nossa profissão de humorista. Eu estou falando agora de um cara que desenhava, com seu estilo estranho, mas desenhava. E depois tem uns outros do desenho de humor, o Ziraldo, o Sampaulo e Sampaio, aqui de Porto Alegre, que para mim foram grandes inspirações. Eu tive a sorte também, de além de ser inspiração, o Sampaio e o Sampaulo 61


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foram dois amigos pessoais. Eu colhi muita coisa com eles. Todos esses pilares/esses basilares do humor foram a minha inspiração. O meu caminho a ser seguido. Como é o teu processo de criação para fazer uma charge? Como tu decides qual tema desenhar, sobre qual assunto? O processo é se abastecer de temas. E uma coisa um pouco difícil, um momento difícil é escolher qual é o tema, mas em geral os temas se impõem. Por exemplo, quando o excelentíssimo mandatário vai brincar com a cegonha lá (cegonha não, avestruz) e toma uma bicada nós já temos um tema pronto. Só que aí tu tens que transformar aquilo que já é, nesse caso ainda não é um bom exemplo, sabe por quê? Porque já é engraçado por si só. O bom é quando a coisa parece séria e a gente vai lá, levanta o véu e mostra que aquilo não é nada sério, mostra através do humor/da piada. Esse que é o bom trabalho. Quando as coisas são suficientemente ridículas não fica espaço para nós desenhistas atuarmos, mas quando as coisas parecem muito sérias, a gente mostra a sacanagem que tem por trás. Então, tem um trabalho. Lida a notícia, escolhido o tema que vai fazer, tem aquele trabalho que é doloroso, bom saber o que é isso: vai para prancha de trabalho, fica esboçando e esboçando até achar uma ideia que consiga expressar, ao mesmo tempo, crítica e… tem a mesma dose de crítica e a mesma dose de graça. Se a crítica for dura/ seca, ela fica planfletária e fica ineficiente. Agora se a crítica, quando tem uma roupagem de humor/graça/ironia aí ela fica plenamente digerível. Até o criticado, às vezes, tem que ver. Esse o processo de criar, fazer inventar. Os americanos, do cinema mudo, tinham o que eles chamavam de gague, que é aquela situação engraçada, aquela situação paradoxal/ irônica, até tu chegar nesse momento aí é muito gostoso. Depois o trabalho de executar o desenho, que aí é a parte mais prazerosa, a parte que tu ficas sentado contigo mesmo, a música tocando, não precisa mais ouvir notícia, porque já tem o abastecimento, aí toca música e vai desenhando. Desenho do trabalho puramente braçal, desenhar, é extremamente prazeroso desenhar, para mim pelo menos. Eu se eu tiver tempo fico até de 62

madrugada botando detalhes no meu desenho, detalhes que tem a ver com tema, eu vou agregando e agregando. Com isso o leitor também vai se divertir olhando aqueles detalhes que são quase secundários do desenho. Aí quando está pronto realmente é uma alegria. Em tempos de redes sociais e internet, além dos fatos em si, que já produzem uma concorrência, a realidade está fazendo mais engraçado do que a gente consegue. Um exemplo são os memes, alguns muito engraçados, coisas desse tipo. Como se convive com isso? É um tipo de concorrência? Exatamente, exatamente, são uma concorrência, mas é uma concorrência leal. Muito leal, em que a gente se diverte. Eu me divirto muito com os memes, aqueles bem mal desenhados me fazem rir muito. Tem uma escola aí que acha que o desenho de humor tem que ser mal desenhado, tem que ser torto mesmo. Tem pessoas que acham isso. A revista New Yorker, que é uma espécie de Bíblia do cartum, ela está publicando muito desenho tortinho. Em geral, os desenhos são os mais tortinhos, os mais infantis. No Brasil quem inaugurou essa escola aí foi o Jaguar. Jaguar tem o desenho todo torto e é muito engraçado por ser torto, as figuras do Jaguar são muito engraçadas porque elas têm os pés virados para dentro, é uma figura desengonçada, mas muito engraçada, muito divertida e muito expressiva. Então eu saúdo a chegada dos memes. Na verdade, eles são, mais ou menos, o que já foi tentando lá na década de 60, o Ziraldo fazia o que ele chamava de “Fotos Fofocas”. As Fotos Fofocas eram exatamente assim; aquelas fotos que estavam na imprensa e ele colocava ali legenda, ou como diriam os antigos: dizeres, e aquilo era muito engraçado. Eu me lembro que tinha muitas, Jânio Quadros, com aqueles pés tortos, por exemplo. O Ziraldo, o cara que mais fazia isso na revista Fatos & Fotos ou na Cruzeiro, agora não me recordo, já fazia algo que era muito parecido com meme. Muito o pai do meme. Assim como a nossa milonga gaúcha aqui é a mãe do Rap, uma coisa improvisada mais falada do que cantada, e foi mais ou menos o mesmo fenômeno. Uma do Rap e o outro dos Memes. 63


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O que te levou a se tornar um chargista? O chargista é um homem de opinião ou humorista? Qual habilidade deve ter um profissional dessa área? Bom, eu nem sei o que me levou a entrar nessa área aí; eu não escolhi, o mundo me escolheu. Eu desenhava desde moleque e o meu pai mesmo dizia: esse guri, se não ganhar a vida desenhando, vai morrer de fome. E eu achei que tinha que ganhar a vida desenhando! Quando eu vim a Porto Alegre, se apresentou aquela oportunidade na Folha da Tarde. Eu ganhava, acho que, um salário mínimo, talvez, mas como eu nunca tive ambições de ter dinheiro, me pagando pelo desenho estava bom. Por exemplo, para mim, naquele momento, eu queria transformar o meu trabalho em algum dinheiro, um troco que pudesse pagar as contas. E aí a coisa foi acontecendo cada vez mais. No jornalismo, e também acontece de coincidir de eu ser um cara designado. Dizem que a minha descendência de bascos com catalões, lá da Espanha com meu avô e minha avó, seria uma mistura explosiva de gente indignada, muito braba. Então eu descarrego essas minhas indignações em forma de desenho. Eu tento tirar da minha indignação a parte azeda e transformar em arte. Eu volto a dizer que gosto muito de desenhar despreocupadamente com a realidade política, aquilo que a gente chama de cartum mesmo, que não tem a ver com a realidade política do momento, são os desenhos que a gente faz para os salões, para os concursos internacionais, que o Moa participa também e já ganhou muitos, nos quais a gente não vai falar, evidentemente, da atualidade política do nosso país, vai falar sobre o humor, das coisas diárias. Tem umas que são perecíveis como é a charge. E eu gosto de trabalhar com isso, porque é aquela redenção maluca/doentia de todo artista, a charge vai ser eterna no dia. Então a gente quer fazer um desenho que perdure, seja apreciado durante todo o tempo. E a charge é diária, essa do jornalismo diário, um pouco frustrante, porque ela morre. Daqui há dois meses ela está morta, né? Quem é que vai lembrar da ema mordendo o dedão do Bolsonaro? Ninguém mais lembra desse tema. Ele morre, ao passo 64

que o cartum, que ganha prêmios no mundo, são desenhos feitos para pendurar. Desenhos sobre a condição humana, sobre ecologia, sobre o mundo moderno, sobre as neuroses do nosso mundo/das grandes cidades. É um desenho que dura para sempre. Tens muitos cartuns que já te renderam prêmios e outros, como a Santa Ceia Gaudéria, muito disputada por apreciadores de arte. Como surgiu a ideia desse Cristo num galpão? Isso foi uma brincadeira. Foi sugestão de um amigo que já faleceu até, não era cartunista nem nada, era um intelectual e ele disse assim: “Por que tu não fazes uma ceia com a gauchada”. Pô, mas é uma bela ideia mesmo, vamos esboçar aqui, esbocei, e ele me disse assim: “Mas o Cristo tem que ser negão”. A primeira versão teve uma da tiragem de 100. É mais de 100 porque teve provas do artista também, que deve ter umas 30 provas do artista. E aí mais tarde eu resolvi fazer ela a cores e imprimi em offset, eu fiz uma nova versão, então fiz duas versões: essa primeira, que é raridade para colecionadores, e a outra que é mais popular, que eu faço para os amigos quando pedem eu ponho à venda. Cristo deveria ser negro, por quê? O que o meu amigo disse foi assim: tu fazes uma gauchada em volta de uma mesa e um Cristo negão. E aí que ficou divertido, que realmente a visão dele - ele era um cara muito culto, esse meu amigo, e ele sabia que Cristo teria que estar muito mais para o lado de um escuro do que para um loiro de olhos azuis. Dificilmente esses olhos azuis, existiria esse loiro na Palestina. Então Cristo realmente deveria ter muito mais para o lado de negro. Aproveitando essa oportunidade, essa ideia do regionalismo no teu trabalho é reconhecida. O Macanudo, como é que surgiu para ti? Também foi ao natural, quase conduzido por isso, porque era minha vivência do campo, na minha cidade Santiago. A minha vivência se dava entre a cidade e o campo, o tempo todo. 65


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Mas tens uma longa trajetória. Os teus primeiros personagens eram assim? Não, eu comecei na Folha da Tarde fazendo desenho de charge política. Quando ele não tinha a personagem. Mas aos poucos começava a aparecer sempre a figura de um gauchinho sentado no banco com radinho ouvindo notícia. Eu achei que esse personagem tinha que ter um nome. E o nome de Macanudo acabou indo para ele. E ao lado dele teria uma família de outros personagens. Aí eu digo: mas é o meu caminho natural, uma coisa que eu conheço, sei como é que se comporta esse homem. A minha família toda é de bombachudos, meus tios eram tudo homem do campo. Então, é uma facilidade fazer isso. Coincidiu, também, que naquela época, na década de 70, houve um boom do regionalismo, quando surgiu a Califórnia da Canção Nativa, começou a se valorizar muito o regionalismo gaúcho. Eu acabei pegando essa onda, me ajudou muito, eu devo muito a esse momento também. E as pessoas brincam de procurar detalhes.

criam boas piadas, boas situações, e não conseguem desenhar. Quando a gente consegue, a gente se dá conta que conseguiu reunir essas duas habilidades, a coisa está feita. Era o caso do Sampaulo, do Sampaio. Eu estou dizendo que se expressavam muito bem pelo desenho, levavam a sua mensagem desenhada de forma muito eficiente, que a brincadeira é toda essa: levar pelo desenho aquela ideia que tem na cabeça, de forma que ela seja compreensível e consequentemente visível. Tanto é que a máxima para nós desenhistas é a seguinte: vamos nos expressar em tudo que nós pudermos através do desenho, quando restar uma parte da informação que não conseguimos botar em desenho, no papel, aí colocamos em texto no balãozinho, na conversa, na fala. Mas ali é o último momento, antes a gente tentou colocar todas as informações em desenho. E aliás, os grandes desenhos, que ganham os grandes prêmios no mundo, são os que conseguem se expressar somente pelo desenho, esses são o gol de placa de desenhista. Então, seriam essas duas habilidades: de desenho e também de colocar esse desenho a serviço de uma ideia original, uma ideia surpreendente, uma ideia nova! Porque a pior coisa do mundo, a pior coisa do mundo, é a piada velha/conhecida, fazer um desenho com o tema de uma piada velha. O núcleo da piada é uma coisa manchada vai ser um aborrecimento enorme para o leitor, e o intuito é te fazer rir e faz tu odiar aquela pessoa, aquela piada velha, cansada, chata. Não há meio termo.

Que habilidades o cartunista, ou mesmo o cara que passa humor, precisa ter e precisa cultivar? Eu acho que quando se fala em habilidade a gente tem que falar de duas habilidades: uma habilidade - a primeira primordial - é o que me conduziu para esse lado, que me conduziu realmente é o gosto e a facilidade que eu sempre tive para desenho, o gosto pelo desenho, pela figuração, na figura, pela brincadeira do lápis, da linha, do risco. E também tem habilidade de conduzir esse sistema quando vais fazer uma charge, porque essa habilidade de desenho deve estar combinada com a capacidade de criar situações geopolíticas muito surpreendentes. Humor sem surpresa não existe. Tu tens que criar coisas muito surpreendentes. E é difícil criar situações que mostrem um paradoxo, que tenham uma criatividade, aquilo que os americanos chamam de gague. É difícil. Muitos desenhistas bons aí às vezes se perdem porque não conseguem criar uma boa piada. Assim como tem caras que fazem, que

Com esse trabalho tão apaixonado tu conseguiste muitos prêmios, inclusive o ARI e outros nacionais e internacionais. Quais tu lembras para nos falar? A década de 90 foi uma década de ouro para mim, quando eu ganhei prêmio no Japão, na Europa e no Canadá também, e vários outros lugares. Tive a satisfação de ir receber um prêmio na Bulgária, a primeira vez que eu saí do Brasil. Então foi uma década boa. Na década de 2000, ganhei alguns prêmios, mas já bem menos, e agora está sendo muito escassa a minha mina, a mina de prêmios, eu não estou conseguindo tirar muita coisa daí. Mas foi muito bom ganhar prêmios porque, como

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recém falamos do regionalismo, que é uma área que me dei muito bem, que eu gostei muito e gosto até hoje de fazer, mas eu tinha naquele momento, aí na década de 90 e tal, queria mostrar também que eu não trabalhava só para os gauchinhos e mostrar também que eu podia falar para o mundo. E aí surgiu um prêmio importante no Japão, lá na década de 80, e eu digo: olha, eu quero mostrar para vocês que japonês também pode entender minhas piadas. É claro que eu não vou desenhar gauchinhos para eles. Mas dos sistemas de ecologia, universais. Então foi ótimo isso. Eu tenho alguns troféuzinhos colocados aqui numa prateleira. Os troféus ARI eu tenho uns 20, mas ali tem também cavalinhos do Xico Stockinger, são muito bonitos, uma peça escultórica bonita. E al--guns diplomas também, desses prêmios.

marães era citado. O escritor tinha feito uma ação trabalhista contra a Caldas Júnior, estava maldito, não se podia falar em Josué Guimarães. Eu nem sabia!! No outro dia, o desenho foi raspado, ficou um buraco naquele texto. Falava Érico, falava Quintana e no Josué Guimarães estava cortado. Então teve casos desse tipo aí. Depois eu trabalhei muito tempo também no jornal da Fecotrigo, mas eu não tinha censura, aí a gente sempre acordava sobre os temas, algumas vezes teve alguma ressalva, mas poucas.

Tu sempre tiveste liberdade para trabalhar? Em todos os veículos que tu estiveste? Mesmo na mídia tradicional ou em outros jornais e revistas com as quais tu colaboraste? Eu sempre tive o campo aberto para escolher o meu tema e fazer do jeito que eu quero. Agora, passar pela direção, passar pelo diretor de redação, é outro problema. Várias vezes, muitas vezes na verdade, tive problemas. Eu tinha até um truque, no tempo da Folha da Tarde: eu fazia o desenho, deixava ele prontinho, largava na mesa do editor-chefe e fugia. Não me encontravam mais para mudar detalhes, coisa assim, aí eu dizia assim: se não quiser botar, tira o desenho, mas eu não vou mudar detalhes. E teve até casos engraçados deles interferindo nos meus detalhes. Uma vez, num desenho sobre a Feira do Livro, o Josué Gui-

Trabalhaste também no Jornal do Comércio, ali havia alguma censura? Nos censuraram muito, o Moa também, nós fizemos uma experiência que era um trio no Jornal do Comércio: eu, o Moa e o Kaiser, outro grande cartunista gaúcho, nós nos revezávamos dia a dia no Jornal do Comércio. E fomos cortados várias vezes. E, por último, eu desencadeei uma crise que eu fiz um desenho sobre lucro dos bancos, que eu criticava o excesso de lucro dos bancos, e acharam que eu estava contra um princípio basilar do Jornal do Comércio que era o lucro. Eu disse: eu não estou sendo contra o lucro, eu estou criticando especificamente o abusivo lucro dos bancos. Aí acabei saindo, o Moa também saiu e o Kaiser também saiu e terminou a charge do Jornal do Comércio, onde ficou evidenciado que não tinha como ter charge. Até as cartas enviadas para o jornal também eram extremamente conservadoras, mal-humoradas, o cara não conseguia ver o humor que havia no desenho. Quando o editor vinha, naquele tempo, que a gente ainda estava na ditadura militar, e me dizia: isso daqui vai dar problema, vai parar todo mundo na cadeia. Eu aceitava. Eu digo: ah, então vamos mudar, vamos mudar o detalhe. Eu aceitava, não era intransigente. O Sampaulo teve um caso interessante em que o editor da Folha da Tarde cortou um desenho que ele fez criticando o ditador Francisco Franco. Aí o Sampaulo passou pelo corredor, encontrou o Breno Caldas (dono da Companhia Jornalística Caldas Júnior) e disse: “Doutor Breno, fiz um desenho sobre o Franco, o que é que o senhor acha?”. O Breno respondeu: “Pode publi-

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Qual desses trabalhos que mais te trouxe satisfação? E o que mais te trouxe problemas? Sabe que problemas, por incrível que pareça, apesar de alguns ficarem indignados com desenhos bastante críticos, eu nunca tive grandes problemas. Tive alguma censura nos jornais no tempo da Folha da Tarde, várias vezes me cortavam os desenhos, eu ficava brabinho, mas depois passava, não era muito importante. Não muito.


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car, rapaz, publica que não tem problema nenhum”, e o Sampaulo ainda ficou meio assim porque o Breno Caldas era descendente de espanhóis, mas o Breno disse que não tinha nada a ver, e no final das contas saiu o desenho no outro dia – que era muito bom por sinal. Quando cortavam um desenho meu na Folha da Tarde, eu sabia que ia ser sucesso no Pasquim, então no outro dia eu botava num envelope e mandava pra eles. Eram charges que tinham veneno, e o Pasquim queria veneno.

burro que segue o Bolsonaro, extremamente ignorante. Então não dá para discutir porque tu és sem vergonha, tu és isso e aquilo. Não fica nenhuma condição para um debate racional, debate político. Então de certa forma é bom até estar dentro de uma bolha para não estar também sendo alvo de críticas que são baixo nível, que são adjetivadas ou então até do cara mandar te matar, próprio do momento de fascismo hoje no Brasil.

Com as redes sociais agora, a reação do público mudou muito da época que tu estavas na mídia tradicional ou mesmo nos jornais e revistas segmentados? Recentemente a gente teve a proibição da exposição lá na Câmara de Vereadores da Capital. Então como é esta essa questão das redes sociais e do patrulhamento das charges e dos cartuns? Tocaste no ponto importante, porque as redes sociais permitem uma resposta imediata. Naquele tempo apareciam cartas de leitores e era complicado, porque tinha que escrever a carta, ir no correio, para o jornal publicar. E hoje não, hoje imediatamente tem a reação do leitor, e aí tem dois fenômenos dos nossos tempos aqui: essa da resposta imediata do leitor e tem também o seguinte, as redes sociais criaram uma coisa, eu acho que ambiciosa, que são as bolhas. Tu entras numa bolha, te botam numa bolha e só os caras da tua bolha te leem, no Facebook pelo menos é assim e eu acho que o Instagram também, e tu ficas dentro da bolha das pessoas que te aplaudem e tu até corres o risco de não crescer artisticamente, por só receber aplausos, porque as pessoas concordam com aquilo que tu faz. Fica tudo na sua bolha. Quando aquele desenho sai da bolha, bom aí é o outro lado da moeda, são umas pauladas de imediato que vêm, mas tudo bem a gente está aqui trabalhando com crítica. O desenho de humor é pura crítica e ele está preparado para receber crítica também, deve ter algumas críticas. O problema que eu vejo nessas redes sociais é que as respostas dos indignados, por exemplo agora para o governo Bolsonaro, são de baixíssimo nível e daí dá para bater no baixo nível, porque não vem argumentação desse povo

Voltando um pouco na entrevista, tu disseste que desenha com música. Como fazes isso? Faz parte de um processo? A música só entra lá na hora da parte executiva do trabalho, porque na parte de pensar não dá, a gente tem que pensar, porque tem que espremer o cérebro, o Moa até tem um desenho muito bom sobre isso, que é uma autocaricatura dele espremendo o cérebro para ver se tira uma ideia interessante. Para espremer o cerébro não pode ter interrupções, nem telefone que toca. Depois, aí a música pode entrar, e deve entrar. Na hora que estou desenhando eu ouço muita música.

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Qual é um trabalho que tu lembras que aconteceu algo muito bom? Que foi muito especial na tua vida Essa ceia mostrada aqui eu gostei muito de ter feito, e acho que ela está bem, não teria muita coisa a retocar se fosse refazer. Mas olha, eu completo 70 anos em setembro, imagina quantos desenhos eu fiz, de quando eu comecei profissionalmente, aos 23 anos, para cá. Eu quase que todos os dias fiz um desenho novo. Então, não sei quantos mil desenhos eu já fiz. Eu não posso dizer o desenho de que eu gosto não, eu tenho que falar dos que eu gosto. E os que eu gosto, que eu acho que eu fiz bem legal, têm uma mensagem boa e tal, esses são desenhos que eu quero reunir em um livro, era para fazer para essa Feira do Livro deste ano, mas agora com a pandemia ficou suspenso. Mas tem uma coleção de 120 desenhos que realmente vão ser os 120 que eu gosto muito, vão aparecer no livro que eu estou esperando para fazer.


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Algum deles é Prêmio ARI? Não, porque o problema do Prêmio ARI é que são sempre desenhos do momento da notícia, que não perdura, quase todos os desenhos do prêmio ARI que eu fiz não tem muita força hoje em dia, porque a notícia ficou muito ultrapassada. Tem, por exemplo, um desenho inesquecível do primeiro prêmio ARI que eu ganhei que foi a agonia do generalíssimo Franco, e foi também na mesma linha do Sampaulo, do General Franco. Era um desenho que até hoje eu acho engraçado. O Franco, que era um ditador bandido, morreu de uma forma sofrida, então o desenho tinha vários órgãos dele, o rim que era uma máquina, o fígado era outra uma máquina, só tinha a cabeça dele no travesseiro. Eu acho que ele funciona até hoje, porque ele é engraçado e ele registra o momento histórico, é um momento de nossa história. Mas realmente os do prêmio ARI foram muito ligados a fatos do ano/do momento que, infelizmente, vão ficando gastos com o tempo. É por isso que a gente chama o desenho do momento de charge e o desenho permanente de cartum, para diferenciar uns dos outros.

mundo. Mas a comunicação é uma boa definição. A comunicação é arte ou não é? A música popular, que também tem um caráter popular, um caráter de imediatismo, ela seria arte? Não seria arte? Então é uma discussão muito longa, começaria por nós termos que definir o que é arte. Hoje em dia, as instalações, muito na moda, são consideradas arte, na Bienal do Mercosul, aqui, alguém fez uma instalação com cabelos humanos pendurados. Era uma obra de arte. O cartum seria ou não seria obra de arte? Está também na mesma linha da discussão se a história em quadrinhos seria literatura ou não. Barbosa Lessa várias vezes me disse isso, chegou a publicar no jornal uma entrevista que dizia que a história em quadrinho é uma forma moderna de arte. Ele a reconhecia como arte. Então a discussão fica aberta, mas a definição de Laerte é boa, é comunicação, uma forma de falar, só que está dando a impressão que a comunicação seria uma coisa volátil, que passa em seguida, o que não é verdade porque tem cartum que vai ser compreendido, apreciado daqui a mais de 50 anos ainda. Se a comunicação é tida como uma coisa efêmera, aí eu diria que ela não é comunicação.

Terias como comentar uma frase, dita por Laerte, muito inquietante: o que faço (cartum/charge) não é arte é comunicação. O que tu achas disso? Laerte é uma pessoa muito preparada, culta e acho interessante essa colocação. Mas talvez esteja divergindo um pouco daquela corrente que diz que o cartum e a charge seriam uma mistura do jornalismo com as artes plásticas. Então, é arte? Não é arte? É difícil dizer. Mas a gente tem um exemplo na história do jornalismo mundial/da arte mundial que o desenhista Saul Steinberg, dos Estados Unidos, conseguiu levar os desenhos dele para as galerias de arte. Hoje, se tu tiveres um original do Steinberg na tua casa, tu terás alguns milhares de dólares na mão, porque ele levou o cartum dele, claro que o cartum dele não era para tomar de fácil entendimento, é um cartum filosófico, e ele levou para as galerias de arte. Então, nesse caso, pode-se dizer que ele foi arte. Pelo menos está sendo tratado e vendido como tal nas grandes galerias do

E como tu vês o papel do chargista nessa imprensa? Nesse novo formato, novas plataformas de imprensa mesmo. Como é que tu vês o chargista nesse contexto novo? Eu não cheguei à conclusão sobre essas novas plataformas porque ainda não consegui me acostumar direito com isso, o impresso ainda é uma referência muito forte, o papel que tu tocas é muito forte para mim. Estou tentando me adaptar botando meus desenhos no Facebook, mas ainda continuo sonhando muito com o impresso. Claro que tem que ter consciência de que o impresso já está terminando, está com os dias contados. Mas não seria muito diferente de trabalhar no impresso. Talvez o que possa acontecer é que haja mais ou menos controle dos editores, não sei se vai haver maior ou menor controle, porque é aquela coisa: na TV um desenho venenoso dava uma explosão enorme, já no jornal não acontecia nada, um desenho que servia para o jornal podia não servir para TV. Não sei, a verdade é que esses meios modernos, os

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meios eletrônicos, eles têm coisas que são desbravadas, tu podes fazer um desenho animado, o cartum pode ser animado, dominar algumas técnicas de alguns programas de computador dá para ter um desenho no jornal, o que seria impensável no jornal impresso, pode se ter no jornal digital hoje uma figura que se anima, que se mexe. Já vi até alguns exemplos desse tipo de coisa. Falando do futuro, é interessante essa ideia sobre o desenho animado. Nota-se que é uma coisa que tem muito potencial, porque é o que o pessoal está fazendo. Mas falaste também sobre Instagram, desenhos em formato de vídeos animados e cartum. Muitos gostam de desenhar, mas não seguem a carreira de chargista porque têm senso crítico da realidade. Muito do que se faz no momento são modelos efêmeros. O que pode mudar nessa área? Eu não sei o que vai acontecer no futuro. Eu acho que o desenho não vai morrer nunca, porque o primeiro homem das cavernas pegou um toco de carvão e saiu desenhando o horizonte. Representar as figuras atrás de linhas é inerente ao ser humano. É muito forte no ser humano essa necessidade de fixar as figuras, as formas, através da linha. Não sei muito o que vai acontecer pela frente. Eu posso dizer que no Século XX o desenho foi salvo pela história em quadrinho, pela publicidade e pelos cartunistas, porque os artistas plásticos do Século XX já não sabiam mais desenhar. O desenho foi salvo nesse Século XX pela publicidade, pelo cartum e história em quadrinho, onde se mantiveram os grandes desenhistas, as grandes figuras habilidosas, figuras criativas que usaram a linha. Pessoas que mantiveram a linha viva. Então eu acho que nós vamos ter essa missão de salvar o desenho.

falsa, tu reforças aquela notícia falsa, então é muito perigoso. Porque a charge reforça. Tu não tens publicado as tuas charges no Instagram? Às vezes sim, mas eu acho o Instagram menos prático de comunicar do que o Facebook. Todos os desenhos que eu faço hoje são digitalizados, eu puxo eles, boto no Facebook e imediatamente já estão lá. E no Instagram eu preciso manipular ele no celular porque eu não domino direito. Então pouca coisa eu ponho no Instagram. E a reação é boa no Facebook? É boa, eu não tive um sucesso estrondoso, mas eu já tive desenho que teve 1.400 curtidas e em geral os desenhos que eu coloco lá têm tido isso aí.

Nessa questão das fake news, a charge é a única coisa que não cai nisso porque é a opinião de uma pessoa, é interpretativa, mas é diferente do texto que as pessoas podem manipular. Mas eu acho que também tem a oportunidade de a charge cair na fake news quando tu fazes o desenho a partir de uma notícia que é

Em uma palestra, o desenhista Rafa (Rafael Corrêa), antes da pandemia, mas com boa parte da sociedade preocupada com a questões políticas, declarou que “as charges também servem pra levantar o moral da tropa, da nossa tropa”. Concordas? Eu acho que falou bem o grande Rafael Corrêa, a reflexão dele é boa, eu acho que é para isso que a gente tem que trabalhar: para levantar o moral da tropa, da nossa bolha; porque a gente tem uma. Tu vês aí, nós estamos há 70 dias no meio da pior crise da humanidade, pior crise da história do país, há 70 dias sem ministro da saúde. E vem um desânimo, começamos a achar que não tá valendo a pena fazer alguma coisa. E o que eu estou falando é para uma bolha que já sabe que isso é um absurdo e um horror. Se eu começar a falar pra bolha do lado de fora, o lado de lá só reage com estupidez e agressões. Acaba dando um certo desânimo. Mas por esse lado é muito bom o pensamento do Rafa, a gente tem que manter a tropa animada. Mas esse negócio da crítica, a charge, o cartum, a gente está achando que vai melhorar o mundo, pensando que vai melhorar o mundo e ver as coisas se repetirem. O Quino já falou sobre isso, ele disse que os desenhos que ele fazia da Mafalda,

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lá na década de 60 e 70, são atuais hoje, que os problemas continuam, que todas as formas de estupidez do ser humano continuam sendo repetidas, na política e em tudo mais. E aí perguntaram para ele: mas então não adiantou ter feito isso? E ele disse: eu fiz, era meu dever fazer. Eu acho que o nosso dever é fazer, dizer e denunciar. Agora, se vai ter grande efeito...bem eu já estou achando que não vai ter grande efeito nas pessoas, mas o dever da gente é fazer. E o papel das mulheres na charge? É um universo basicamente, masculino? É verdade. A causa eu desconheço, mas é verdade. Poucas mulheres entram na área. Agora nos últimos tempos apareceram algumas excelentes cartunistas, chargistas e quadrinistas também. Mas é muito um universo masculino, mas o porquê disso eu não sei. O Edgar tem uma teoria longa sobre isso, que tem umas partes boas, outras partes que talvez não sejam tão verdadeiras, mas eu não tenho teorias sobre isso. Eu acho que, em princípio, talvez o humor seja uma coisa muito mais estimulada nos meninos do que nas meninas. As meninas não podem contar piadas fortes, talvez seja alguma coisa por aí, mas não me atreveria a afirmar isso. Na verdade, o humor, talvez hoje - modernamente - não tanto, mas no meu tempo de guri, ele era censurado. As meninas não contavam piadas.

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A EDIÇÃO DIGITAL PATRÍCIA COMUNELLO

“O jornalismo digital exige um envolvimento maior”

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atrícia Comunello é uma jornalista versátil. Catarinense de Capinzal, ela concluiu o Ensino Médio em sua terra natal e resolveu fazer vestibular em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde apaixonou-se pelo jornalismo e pelo chimarrão. Começou a trabalhar na rádio da UFSM, teve uma breve passagem pela fotografia e acabou sendo contratada como correspondente de Zero Hora na cidade interiorana. Foi seu grande aprendizado: “É preciso pensar nas pautas, ir atrás, saber de todos os telefones e fontes, escrever, tirar foto, e fazer vídeo. É completo. Depois disso, tu fazes qualquer coisa”. Em mais de 30 anos de profissão, ela já fez muitas coisas interessantes, até se tornar Editora Digital do Jornal do Comércio de Porto Alegre, condição em que concedeu esta entrevista recheada de dicas para os jovens iniciantes na profissão. Patrícia Comunello viveu a transição do impresso para o digital, atuando como repórter e editora nos jornais do Grupo RBS no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, no Clic RBS, no Portal Terra e até mesmo, por um breve período, como assessora de imprensa no Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. No momento desta entrevista, em plena pandemia, ela renovou seu amor pelo jornalismo e afirmou que sua maior gratificação continua sendo descobrir e publicar boas histórias, que impactem a vida das pessoas para melhor.

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O que um jovem tem que fazer para ser um bom jornalista, em primeiro lugar? Eu acho que para ser um bom Jornalista tem que saber das coisas, tem que ter curiosidade de perguntar. E perguntar com um sentido que não seja só para uso privado. Tem que perguntar com a ideia de querer contar isso para o mundo. Aí, sim, trata-se de alguém que quer ser jornalista, porque é essa nossa função: levantamos informações, perguntamos e depois escrevemos, falamos. O formato disso vai mudando conforme o andamento da história. Tem que ter esse senso de querer levar para as pessoas uma informação que vai ajudá-las, em relação à sua cidade, governo, sobre a pandemia, por exemplo. Alguém que queira mais do que só dar a informação, queira explicar também. Jornalista é isso: tem que ter um senso, uma disposição. Claro que existem vários outros fatores, mas, na essência, é isso.

reportagem sobre economia, que é a coisa que eu mais gostava e gosto até hoje, e eu lembro que o Marcelo Rech foi na nossa ilha para me parabenizar por ter topado. Disse que o mundo da tecnologia estava só começando, e isso era nos anos 2000. Eu digo que eu voltei para internet porque eu sou nativa das primeiras turmas que lidaram com isso, e naquela hora eu pensei que não podia dizer não porque tinha alguma coisa acontecendo, eu não podia ficar de fora. É claro que vão acontecendo várias coisas e a gente pode se frustrar, mas eu acho que a minha experiência hoje é muito melhor, muito mais rica do que se eu tivesse ficado naquela posição e talvez eu demorasse muito mais tempo para entrar nesse processo. O que eu sou hoje vem muito dessa riqueza de experiências adquirida em algum momento desse processo, e a internet estava lá no começo. Eu tenho um chipezinho que tá sendo atualizado. Já dá para distinguir se há mais leitores nas plataformas digitais do que no jornal impresso? Com certeza, acho que sim. Hoje são milhões de usuários que consomem informação por meio digital, dependendo do mercado. Até porque, comparando com o jornal e olhando para o assinante, acho que o impresso foi caindo. Hoje em dia cada vez tem menos essa disponibilidade, e imagina agora na época da pandemia, as pessoas deixaram de ir a lugares como, por exemplo, consultório médico, onde tinham jornais, e só isso deve ter reduzido muito a leitura de jornal. E são experiências diferentes. A informação que está no digital está em vários outros sites, tu tens a possibilidade de acessar vários canais. Para poder acessar vários jornais impressos, tu terias que assinar cada um deles. Então o físico não é o limite, o limite é o que está circulando na grande rede.

Por falar em história tu já passaste por reportagem e por várias áreas do jornalismo. Essa história a gente planeja ou ela acontece? Eu acho que isso não se planeja. Eu até admiro colegas que são extremamente organizados e conseguem pensar: “quero ser isso, quero fazer aquilo”. Mas eu não consegui planejar no sentido desse andamento, talvez mais geral. Mas a gente vai meio que sendo levado, porque a área da comunicação é uma das áreas que mais sofre mudanças ao longo das décadas. Nós fomos atropelados pela tecnologia, pelas novas condições técnicas e isso foi oferecendo novas opções. Existem pessoas que preferem ficar fazendo jornalismo impresso porque acreditam nisso. Eu fui vendo que as coisas foram aparecendo, as novas possibilidades, tecnologias, coisas que fazem parte da nossa área de atuação e pensei: “ok, vamos lá, vamos encarar”. Eu lembro de um momento que foi bem especial, quando eu saí da economia para ir para o Clic (ClicRBS). Fiz parte daquele grupo inicial, e eu lembro que me convidaram para liderar a formação do grupo de Santa Catarina, porque precisavam de alguém que entendesse daquilo. Eu tinha dúvidas, porque estava fazendo

Como foi a tua transição do impresso para o digital? Na verdade, eu saí do impresso para o digital, aí eu fiquei dois, três, quatro anos trabalhando com digital, porque eu trabalhei no Terra e depois no Clic. Fiquei um tempo fora com assessoria e tal e voltei para

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o impresso em 2009. Já em 2016, fui para o online; foi um tempo picotado. Quando eu trabalhei no digital, no início, eu tinha que montar as páginas com HTML, e ali eu entendi a linguagem. Tu não tinhas que ser só jornalista, mas tinha que ser um programador quase. Então, resumindo, foram várias idas e vindas. Isso é uma coisa reveladora do teu espírito, da tua vontade de aprender e de inovar. O que tu fizeste para, como profissional, te adaptar do impresso para o digital, não só na questão da programação, mas também como repórter e depois como editora? O digital exige de ti um envolvimento muito maior com todas as pontas. Quer dizer, desde a apuração do repórter e do momento de fazer a entrevista, seja por WhatsApp, telefone, entrevista no zoom, e depois todo o processo. Tu fazes tudo em um só, é aquela história do multimídia. Tu tens que dominar tudo, te exige muito mais visão do negócio. E, quando tu és repórter, ficas mais delimitado ao que tu estavas fazendo. O editor pegava e transformava, apesar de que eu sempre me metia muito. Eu consigo visualizar muito as coisas, quando eu começo e quando eu termino, então sempre lidei muito com isso, mas, ainda assim, quando tu estás no impresso, tu tens um lugar muito mais claro. Nunca fui editora do impresso, até fui na casa Zero Hora em Santa Maria quando eu comecei, mas ali a gente fazia reportagens. No digital, tu tens muito mais coisas que precisam ser dominadas, como as métricas, por exemplo. Eu gostaria de estudar muito mais isso, porque hoje se tu não entenderes isso tu já estás fora. No final das contas, se tiveres uma estrutura boa de resolução de conteúdo, como saber apurar e escrever, isso faz muita diferença. Não consigo muito separar as coisas, quando tu vês alguém que não sabe dominar um lado tu percebes que a pessoa precisa entender esse conjunto de habilidades ligadas à tecnologia, porque tudo passa pela tecnologia. Temos que dominar o conteúdo que estamos colocando no ar.

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O que te levou a fazer jornalismo? Tu acreditas que esse modelo, no qual tu já estás há muito tempo é o jornalismo do futuro? Essa coisa que eu falei no começo, sobre ter curiosidade e querer saber das coisas, ser “cricri” e estar sempre atrás. Isso é uma das coisas que me fez ir para essa área, gostar de escrever, de ler. Acho que foi isso. Nunca pensei muito, mas quando vi eu fui levada para essa área. Não tive uma grande influência, meu pai e meu irmão são agrônomos. Tinha essa coisa da curiosidade e era mais de humanas mesmo, então existem essas afinidades. Aí tu vais te encontrando. Daqui a pouco, percebes que é isso mesmo e não consegues fazer outra coisa. Qualquer outra coisa que eu faça é mais conhecimento para me tornar alguém com mais condições de trabalhar. Agora, na questão do impresso que eu estava falando, também sou do tempo do impresso! Eu sempre pensei que tem lugar para ele, por mais que a onda da internet tenha fechado muitas edições impressas. O New York Times, por exemplo, é um grande jornal que consegue crescer e cresce no online também. Não sei se a gente vai ter jornal impresso por muito tempo, porque não é um problema só do jornal, mas sim uma questão de leitura. As gerações que estão vindo estão lendo mais ou menos? Eu vejo que tem muitos segmentos que estão lendo mais, como minha filha, que nem é da área de humanas, lendo 1984, e no livro mesmo, não num kindle. É uma geração que gosta de ler e do conhecimento, e ele vai estar impresso ou em um kindle, em outro formato digital. Eu acho que os jornais não estão tão próximos dessas gerações. É um problema muito mais de proximidade do que ser impresso ou digital. Eles leem os livros, mas o que vai fazê-los ler também jornal e dar continuidade a esse produto de que a gente tanto gosta é outra coisa, porque é um ritmo muito louco. Eles não têm tempo! Têm o celular. E até mesmo a gente às vezes não consegue ler. Eu não consigo parar para ler um jornal às vezes. O que os jornais que estão migrando para o digital precisam fazer para se destacar? Eu acho que essa coisa do furo, de dar antes a notícia, claro que 81


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isso continua, mas agora é importante levar as coisas de maneira mais instantânea. Se tiver um parágrafo, vai para o ar com um parágrafo. A gente vê isso porque é muito legal, tu consegues acompanhar, se tu postas no Facebook ou no Twitter, tu já começas a ver que as pessoas estão acessando. Se é um assunto que as pessoas querem ler sobre e que está em alta, bem ajustado, isso é da linguagem da internet. Não é nem da linguagem, mas da estrutura de como se organizam esses conteúdos todos. A gente não pode ignorar que existe o robô do Google que busca isso. É essa estrutura que está por trás, não é uma rede neutra, e isso também é importante porque gera mais retorno. Se tu tens mais acesso, tu tens muito mais chance para ter argumento para um comercial. E dizer que tem, por exemplo, 10 milhões de acessos é como tu dizer: “tenho mil assinantes no físico”. Existem vários tipos de informação: aquela que tu sabes que tem pouca coisa mas sabes que vai interessar, então coloca no ar logo e vai ampliando. Como jornalista, então, tu tens que sempre estar com o smartphone no bolso, bisbilhotando os assuntos mais comentados? O twitter é uma rede que eu não domino muito. Não sou uma pessoa muito usuária. É uma rede que, para várias áreas, tipo política, é muito apropriada. Eu me organizo para monitorar alguns assuntos e alguns temas que me interessam mais, mas no dia a dia, se eu estou trabalhando, não tenho como não monitorar e não ficar procurando o que os jornais estão publicando. Isso não muda, porque quem está no jornal está fazendo isso o tempo todo. Acho que agora temos mais ferramentas para usar, e isso não é algo só meu como jornalista, mas as pessoas hoje, com essa coisa de home office, estão trabalhando mais e ficando em um território onde se mistura tudo. A tecnologia e o celular te ocupam muito mais. É só pensar quantas horas por dia tu costumas te dedicar às redes, até mesmo o celular nos avisa quanto tempo ficamos conectados. Todos fazem isso agora, o servidor público, o cara que trabalha no posto de gasolina. Mas também temos essas tecnologias nos ajudando, já que facilita no processo de apuração. Acho que cada 82

tempo é um tempo. No tempo em que estávamos no jornal, o processo era de estar mais na rua. Existe um conflito entre o jornalismo ético responsável e o caça-cliques? Eu imaginei que vocês iam trazer isso e eu acho que é inevitável. Vou dar a nossa experiência: a gente não tem muita capacidade de fazer isso porque precisa produzir um conteúdo que tenha uma razão de ser, que as pessoas queiram saber mais. Tem caça-clique pelo caça-clique com vários artifícios, mas a gente não faz isso, porque mal vencemos o dia. Sempre há coisas muito boas sobre as quais falar e nem isso conseguimos fazer. Tem algumas que a gente faz porque é interessante e vai ser lido, mas normalmente está dentro do nosso perfil de conteúdo. O Jornal do Comércio não é tão aberto em termos de tipo de conteúdo. Se tu comparares com a Gaúcha ZH, então, é diferente. Na nossa experiência, não somos tão praticantes disso. Acho que o caça-clique é complicado, ficamos meio bravos. Agora, há títulos que eu não entendo e acho ruim, porque não vai indexar nunca. Quando há muito volume de acesso, tu tens que manter esse volume de acesso, tem que ter um limite ético nisso. Não sei até que ponto escolhemos isso, estamos operando, mas aquela autonomia que o impresso tinha com uma blindagem maior não tem mais tanto no digital. Ficamos mais suscetíveis a muito mais coisas. Tocaste num ponto interessante que é a questão da sobrecarga do trabalho do jornalista hoje, principalmente do mundo digital. A Larissa Roso, também entrevistada pela ARI, fez uma imagem do homem-banda, lembrando que o repórter-banda tem que carregar e fazer cinquenta coisas. Ao dizer que “nós não temos pernas para fazer isso”, estás criando o “jornalista-centopeia? Sim, muitos pés e braços, mas uma cabeça só.

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Deves estar convivendo com colegas que se atrapalharam bastante nesse momento usar a tecnologia para trabalhar em casa. Tiveste algum pedido de ajuda? Para as pessoas que têm me procurado com essa intenção estou sempre disponível. É que existem várias coisas envolvidas, porque o sistema que a gente usa, por exemplo, é uma coisa mais complexa. É uma coisa muito própria, algo que o Jornal do Comércio usa, como a Zero Hora deve ter também. De resto, usamos o celular basicamente. E, como edito no celular, vou buscando ferramentas novas que podem ajudar e já passei para várias pessoas algumas dicas básicas. Isso é o que eu faço às vezes, em alguns momentos. Da parte do jornal, a maioria está em home office, e eu me conecto mais com a galera do site, porque ficamos o dia inteiro funcionando. Tem um esforço do jornal de trazer mais a galera do impresso para fazer essa conexão e dividir coisas para que eles também possam entender mais o que é o veículo online, porque cada vez vai integrar mais. Na pandemia, aceleramos a integração demais, as pessoas precisam manejar mais o digital e saber como funciona, colocar coisas lá que vão para o impresso, fazer todo o processo de indexação. Isso aproximou, mas não sei como vai ser no retorno, talvez não tenha volta, acho que vai ser cada vez mais.

pre tem gente que acha que devemos falar de outras coisas. Isso traz uma questão de segmentação. Nesta semana, minha filha me deu uma provocada: ‘’por que tu não assistes o Emicida no Roda Viva?”. Estava falando sobre a questão dos negros, comunidades periféricas, coisas com que pouco lidamos. E nós trabalhamos muito pouco com esses conteúdos, conteúdos para as pessoas que estão nessa diversidade. A gente vê, quando produzimos isso, o resultado que tem. São conteúdos que podem ser na área de música, entretenimento, cultura, como também na área do empreendedorismo, que é mais sério. Então, acho que a gente tem públicos que buscam diferentes conteúdos. Sabem onde buscar o conteúdo. O que eu me preocupo mais, que é o que falamos o tempo todo, são as notícias com conteúdo que não é verídico, baseado em informações erradas. Tem tanto conteúdo que é direcionado para as fake news. Esses dias estava ouvindo um cara falando que ele não gosta de dizer que fake news é igual a notícia falsa, porque na verdade fake news na tradução deveria ser uma notícia que tem essa característica de ser uma informação que tem problemas de legalidade, de ser uma informação que direciona as pessoas para o “crime”, e pode pôr pessoas em risco.

De que forma o jornalismo tem agido no sentido midiático? Anda pelo caminho do que o público quer ler ou tenta traçar um caminho mais ético e responsável? Depende do público sobre o qual estamos falando, com quem estamos conversando e quem acompanha nosso conteúdo. Vivemos em um mundo em que também não dá para estabelecer muito o que as pessoas vão querer ler. Não significa que não vamos ter o conteúdo que achamos mais relevante e vai ter que ser prioritário. Claro que vamos poder produzir conteúdos mais “lights”, porque a vida das pessoas é feita da economia, política, cultura, diversão. Ninguém vive só de uma coisa. As pessoas querem a diversidade, claro que não podemos escolher tudo. Em nosso caso, temos um padrão de conteúdo e sem-

O que te dá mais prazer na tua profissão e o que te causa mais desconforto? Dá prazer quando conseguimos fazer um conteúdo completo, com vídeos, personagens e bem organizado, para que as pessoas possam conhecer as diversas nuances que englobam aqueles assuntos, quando produzimos conteúdos que vão ajudar as pessoas a compreendê-los. Estamos no perrengue todo da crise, empresas fechando e o pessoal perdendo emprego, e tem toda essa coisa do programa federal, e minha frustração é não trabalhar tanto esses conteúdos, porque isso tem que influenciar os caras lá em cima. Isso é como a história do auxílio emergencial, cobrimos pouco porque não conseguimos fazer, mas tem toda essa coisa das pessoas sofrendo na fila. É legal quando a gente consegue mostrar as histórias e elas impactam as pessoas. Eu sou muito

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dos conteúdos que ajudam as pessoas a conseguir se apropriar mais de assuntos que vão ajudar na vida delas. No momento agora que estamos vivendo, isso é muito relevante. Também há uma boa justificativa para não abrir o comércio, e sabemos disso. Eu sinto falta dessas pautas, isso nos interessa. É uma decisão de gestão de conteúdo, de priorizar conteúdos específicos, porque quando tu fazes isso tu tens um retorno e tem a ver com a sobrevivência do seu veículo. Tu nunca vais fazer tudo bem feito, mas algumas coisas, se forem bem feitas, vão te dar retorno. Isso é uma coisa que o jornalismo tem hoje e eu acho bem importante. Nós precisamos entender mais como funciona o processo de sustentação dos lugares em que a gente está trabalhando, e nós somos, sim, muito fundamentais nisso. Não significa fazer matéria para vender, porque o conteúdo que tu fizeres, diferenciado, vai te dar possibilidade de novos produtos, novos conteúdos. É um processo tipo uma roda girando, e a gente, talvez, nunca foi tão relevante em relação a isso. Nós que temos o domínio da informação, e nós que sabemos fazer. A cabeça tem que estar a milhão, pensando coisas e bolando coisas, botando para fazer. Somos cobrados por isso. Sabemos que tudo que fizermos tem alguém olhando para ver o retorno que está dando, em mais ou menos acessos. É um pouco isso, e eu acho que a gente vai sendo levado por isso, e tem que entender mais para poder realmente ter um trabalho que tenha mais sentido quando a gente fala disso. Acho que vai ganhando mais relevância quando conseguir se integrar nesse processo, que é uma empresa ou startup, alguém que está apostando em conteúdo, por exemplo.

a gente dominou geral. Como a Malala disse, as mulheres iam saber como ninguém resolver a pandemia no mundo. Só falta colocar e dizer que já estamos resolvendo, falta os caras reconhecerem que a gente faz a diferença. Tem muita coisa ainda para mudar. Às vezes eu fico ouvindo rádio, tenho ouvido muita cobertura esportiva, futebol e tal, dá vontade de entrar no rádio e arrancar o pescoço de alguns, porque falam umas coisas que, não sei se não se dão conta, são inconcebíveis! Eu como jornalista procuro equilibrar. Tem colegas minhas que são feministas e supermilitantes, mas eu procuro equilíbrio, só que, quando os caras não fazem isso, é complicado. Mas é isso, acho que cada vez vai ter mais mulheres, se bem que a economia perdeu bastante espaço como área. A economia se misturou com outras coisas. O que tu dirias para a gurizada fazer no sentido de se preparar para a profissão? Tem que dominar áreas, tentar entender as coisas e ter um conhecimento sobre as áreas mais importantes, passando pela economia, política…

As mulheres estão ocupando as redações, até já são o maior número. Percebes uma tendência de as mulheres irem mais para a economia? Não sei se há tendência, porque há mulher em todas as áreas. Não sei se para a economia. Talvez porque as mulheres acabam aparecendo mais, tem uma imagem melhor. Porque há muito repórter. Se tu fores olhar editores. Agora, no site só tem um homem e é estagiário! É isso,

Achas importante a especialização do jornalista? Dirias, por exemplo: “te especializa em economia”, “te especializa em negócios, esporte, polícia…”? Ou dirias para fazerem um pouco de tudo, porque precisam estar preparados para qualquer necessidade? Acho que tem que fazer o que se gosta. Talvez as áreas que lhes desperte mais interesse. Pode-se pensar um pouco no que se quer especializar-se, mas acho legal ter uma ou outra área de conhecimento mais profundo, para se inserir quando surgir uma oportunidade. Eu vejo que hoje cada vez tem menos da especialização. Me chamou a atenção na notícia da morte do apresentador da SporTV, o Rodrigo Rodrigues. Ele começou com música e daqui a pouco foi parar no esporte. Então, de repente alguém da economia pode ir para o esporte. Isso te ajuda porque dominar coisas na área mais de contas às vezes te ajuda a ter outras habilidades. Normalmente quem gosta de algumas áreas que lida

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muito com conceitos e coisas mais precisas, essa pessoa as vezes consegue entender mais outros tipos de conteúdos de uma outra área, então acho que tu acabas te adaptando. Mas sem querer fugir da resposta, eu acho que há aparentemente vários conteúdos e áreas que as pessoas podem tentar fazer. A questão é que hoje está mais difícil escolher e não se consegue escolher tanto. Tu cais no meio do troço e tens que entender dele! Qual a transição que tu percebes em um jornalista que sai do ambiente acadêmico para o estágio? Muitos aprendem a coisa de lidar com o lado prático com a gente. Tu tentas passar um pouco da tua experiência e valores que tens. A academia tem que ser boa nisso também, em passar um conteúdo legal e uma formação boa. A minha faculdade foi muito ruim tecnicamente, porque também era fraca a formação dos meus professores. Eu fiz muito mais na rua, mas tive uma formação teórica boa no sentido de ter contatos bons. Isso me motivou a buscar mais conhecimento, então eu não acho tanto que uma faculdade tem que ser tecnicamente boa, mas tem que te preencher como ser humano. Jornalista tem que ter essa capacidade de entender as coisas, e aí tu vais usando aquilo que acha que tem que usar em cada momento. O pessoal vem e a gente se preocupa muito porque temos um estilo de trabalho. A gente precisa que a pessoa entenda como é o trabalho e possa fazê-lo. A pessoa que vai dando o ritmo da coisa, se quer escrever mais, se quer fazer matéria. Aí a gente dá corda. Se a pessoa mostra que tem capacidade e consegue dominar aquilo, porque é uma informação que vai para o ar, não se pode ficar brincando. É como médico em residência, site é treinamento. Mas também enchemos o saco, e tem algumas coisas que eu não entendo porque tem sido assim. Vemos que a galera tem receio de falar no telefone na frente da gente, e isso para mim não entra na minha cabeça. Fico pensando se as pessoas sentem medo de lidar com as pessoas, se esse futuro jornalista tem medo de lidar com as fontes. Mas eu vejo, no final das contas, que essa galerinha que começa com a gente sai com mais 88

preparo e prática. Tem que se buscar conhecimento, mas eu me preocupo que muitas vezes eu vejo que poucos são aqueles que têm vontade de perguntar e querer saber. Isso me surpreende negativamente. Sempre digo: “o que gostarias de saber?” Pergunta! As pessoas vão querer saber o que tu vais querer saber. Vejo que a galera quer complicar antes de fazer o feijão com arroz, e não entendo porque é assim. O jornalismo influencia a sociedade? E se pudesses dar uma nota, qual seria a da influência? Acho que influencia muito, para o bem e para o mal. Esse é o mundo em que a gente vive. Os veículos, os profissionais estão inseridos em uma sociedade que tem suas imperfeições. Hoje influencia com recursos técnicos, de como fazer essa influência aumentar, e aí usa-se o jornalismo para outras coisas. Acho que hoje é muito impactante isso, porque vemos o quanto influencia, tanto que os veículos continuam sendo instrumentos de exercer poder. Não é à toa que os meios de comunicação são ferramentas de exercer poder econômico, político e nós estamos no meio disso tudo. Tem que ter muito cuidado com o que estamos dispostos a fazer no meio disso, saber o lugar onde estamos é importante. A nota acho que é 10, porque as pessoas cada vez mais consomem mais conteúdos, é só ver a atividade das pessoas em redes sociais, já que a maior parte do conteúdo que passa ali é gerado por sites de notícias. Hoje as coisas estão entrando mais diretamente na vida das pessoas, e não em um consumo de massa, há um grande nível de interferência. Precisamos ter essa noção das coisas. Mandamos listas de conteúdos por WhatsApp, por exemplo, e se a pessoa está assinando aquilo nós temos um nível de responsabilidade muito grande. O nível de influência é alto e cada vez maior. Se tu cometes qualquer erro, as pessoas te detonam no Facebook, e se tu não estiveres em um dia bom tu ficas deprimido. A gente influencia e isso tudo está nos influenciando. É como uma das teorias da comunicação que fala que é uma rede. Hoje a minha vizinha me influencia mais talvez do que meu editor.

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A EDITORIA DE POLÍTICA PEDRO GARCIA

“Não existe imparcialidade porque não somos robôs” Ele formou-se e construiu sua carreira jornalística no Interior do Estado. Quando concedeu esta entrevista à ARI, estava completando uma década de jornalismo com experiências na reportagem, na edição de pauta, na revisão e nas duas funções que exerce atualmente na Gazeta do Sul: articulista e editor de Política. Pedro Piccoli Garcia, graduado em Comunicação Social/Jornalismo e com Mestrado em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul, começou cobrindo férias de outro jornalista no suplemento cultural do jornal quando ainda era estudante e tinha predileção por cinema, música e literatura. Convidado para fazer estágio no Portal GAZ, mostrou desembaraço com o jornalismo multimídia e logo foi efetivado como repórter de geral. Em pouco tempo, passou para a editoria de Política, de onde não saiu mais. Respeitado por seu trabalho na região de cobertura dos veículos do grupo, Pedro Garcia é um bom exemplo de profissional que não precisou sair de sua cidade para alcançar reconhecimento. “Eu sou um entusiasta do jornalismo do Interior, que é socialmente muito necessário. Nós cumprimos um papel muito importante, tendo esse vínculo com a comunidade” – afirma, com o respaldo de suas reportagens premiadas, entre as quais a do Prêmio ARI de 2019. 90

Numa cidade menor, a pressão sobre os jornalistas é quase física. Como tu encaras isso no teu trabalho? Isso é permanente. A Gazeta é uma empresa que tem uma história muito longa de 75 anos e uma penetração muito forte na comunidade. Isso até vem mudando um pouco com a transformação digital, mas nós ainda temos essa característica de ser o veículo da comunidade. Nós somos muito procurados fisicamente pelo nosso público para todo tipo de demanda. E aí quando entra nessa parte de pressões, constrangimentos, realmente é uma dificuldade em alguns momentos para mim, que lido com política. Eu sinto isso regularmente. Independentemente de governo, isso sempre existe. Muitas vezes é uma pressão que se dá diretamente sobre a direção da empresa, às vezes nem passa pela Redação. Vai diretamente na direção até por questões de relações da própria comunidade. As relações sempre passam pela direção, a comunidade é sempre muito próxima. Quando nós vamos tratar de um assunto mais polêmico, mais delicado, nós sabemos se vai ter reação. Tudo precisa ser feito com muito cuidado, com muita discussão. Eu, na minha posição, não posso me censurar, tenho que levar adiante até onde eu conseguir. Eu não posso previamente receber um assunto achar que não vai dar certo. Eu tento ir levando até onde consigo e tento exercitar ao máximo o meu poder de convencimento. Certos assuntos são delicados, há a questão da verba publicitária. A receita é muito vinculada à questão da comercialização de anúncio. Ainda mais nesse momento de dificuldade que nós vivemos, tanto internamente quanto de mercado, essas coisas ficam ainda mais pesadas. Quando alguém se incomoda, vem aquela ameaça com o corte de verba. É imediato, isso pesa muito no contexto. Eu tento não me auto sabotar em função disso. Meu papel é sempre defender a publicação, é sempre defender o jornalismo. E se em algum momento eu não conseguir avançar, aí paciência, está fora do meu alcance. Mas é assim que nós tentamos levar essas situações todas que estão muito presentes na nossa rotina.

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Que recomendação tu dás para estudantes de jornalismo que querem começar suas carreiras no Interior, sem ter que correr para a Capital em busca de oportunidades? Realmente existe muita dificuldade no Interior neste momento. Empresas, especialmente as pequenas, muito dependentes de alguns setores, estão com dificuldades. Nós percebemos que assim como acontece nas grandes empresas, existe um enxugamento, não é um encolhimento. Há poucas vagas nesse momento, mas ainda assim sou um entusiasta da profissão, apaixonado pelo jornalismo local, hiperlocal, porque, embora muitas vezes pareça ser uma cobertura de assuntos muito pequenos, são coisas muito relevantes. Parece muito ruim porque eu saio muito pouco, mas, na verdade, existe uma relevância porque se lida com os pequenos problemas do dia a dia das pessoas. Então aquela coisa que nós sempre usamos para ilustrar, o buraco na rua, parece uma coisa muito pequena, mas, ao mesmo tempo, ela faz uma diferença enorme na qualidade de vida das pessoas. E existem muitos locais com carência de jornalismo para se tratar de temas locais. Então eu acredito que o jornalismo do interior não deixa de ser uma escola, porque nós acabamos experimentando um pouco de tudo. Muitas vezes não é só uma equipe menor, a gente passa por várias editorias ao mesmo tempo. Então, é um aprendizado. Eu penso que tem muito a se fazer de jornalismo, muito avançar em jornalismo no Interior. Eu penso que o Interior precisa de bom jornalismo. É uma coisa que me preocupa. Eu já tive muitos colegas de empresa, que quando tiveram uma oportunidade de sair para empresas maiores, se foram. E isso é uma coisa natural, querer entrar na profissão e ir para um local maior. Mas, ao mesmo tempo, a empresa do Interior muitas vezes acaba perdendo bons talentos. Então, quando alguém me convida na Unisc para conversar com alguma turma, eu sempre recomendo que não se deixe vencer pela ansiedade porque a nossa geração - e aí eu me incluo, apesar de alguns anos a mais _ é uma geração muito ansiosa, que muitas vezes já quer começar a carreira fazendo as grandes coisas. Mas muitas vezes temos que começar a fazer as coisinhas pequenas e depois partir para a especialização. E, na 92

medida em que se está mais calejado, fazer coisas maiores. Muitas vezes as pessoas não dão esse tempo. Às vezes até desistem da profissão e vão fazer outra coisa. Eu acredito que tem uma questão de dar o tempo para avançar, para aprender, para ficar mais experiente. Sou um entusiasta do jornalismo do interior, que acho socialmente muito necessário. Eu sinto que nós fazemos isso e cumprimos um papel muito importante, tendo esse vínculo com a comunidade. E quanto à formação técnica e cultural, com o que o jovem deve se preocupar? Eu penso que primeiro é o consumo de jornalismo. Isso é uma coisa que nós percebemos nas redações, por incrível que pareça. Uma carência disso. São jornalistas que consomem muito pouco jornalismo. Leem muito pouco jornal e, muitas vezes, não estão bem informados ou suficientemente informados. E isso é uma coisa elementar. Um jornalista precisa consumir jornalismo constantemente. Na minha opinião, não é uma opção, é uma necessidade e nós percebemos essa carência. A primeira dica é se tornar consumidor constante, voraz, de jornalismo. Outro problema que é muito comum é a questão do Português. As pessoas chegam ao mercado com deficiência muito grande de Português, de gramática. As pessoas têm que buscar conhecimento geral, todo o tipo de conhecimento cultural, histórico. Enfim, tudo isso ajuda muito no dia a dia, muito mais do que nós podemos imaginar. Mas mais fundamental é se aprofundar no jornalismo mesmo. Ser um consumidor de notícias, e, principalmente, um consumidor crítico de notícias é o mais fundamental de tudo. Com a tua experiência multimídia, quais dos veículos (tevê, rádio, jornal, digital) cumpre melhor essa missão de chegar nas comunidades, numa cidade tipo Santa Cruz do Sul? A minha companheira, minha namorada que é colega da empresa, trabalha no rádio diretamente e então eu, através dela, tenho conhecido um lado da rádio que eu não conhecia, porque eu nunca fui fixo nesse 93


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veículo. Eu sou de jornal e contribuo com rádio, mas nunca exclusivo de rádio. O rádio tem um poder impressionante, a relação que as pessoas estabelecem com o rádio é enorme. O rádio atinge um setor mais popular do que o jornal, que parece atingir um público um pouco mais elitizado, não sei se é bem a palavra. O rádio é muito forte, atinge mais o pessoal de bairro. É impressionante a relação que as pessoas estabelecem com o rádio. A ponto de muitas vezes as pessoas ligarem para cá para falar com os locutores, para desabafar, para falar de problemas pessoais. Quando os locutores são abordados pelas pessoas nas ruas ou quando as pessoas vêm aqui, demonstram uma intimidade em relação a eles. E aquela coisa da companhia, da pessoa que escuta o rádio o dia inteiro, ouve aquela voz e então se sente quase como um membro da família. Então o rádio tem um poder muito forte. E, ao mesmo tempo, tem aquela coisa da instantaneidade. Está com problema, liga para o rádio, o locutor já fala na hora, aí tem alguém da prefeitura que tá ouvindo, que já se mobiliza para atender aquela situação. Por outro lado, o jornal ele tem aquele peso do registro histórico, aquilo que está ali no papel fica, ao contrário do rádio, que se perde. A gente percebe que para as pessoas ainda é muito importante serem mencionadas no jornal, ainda é muito importante quando fazem algum determinado projeto, algum determinado feito, e atingirem aquele reconhecimento do jornal para guardar. Então eu acho que jornal e rádio têm esse poder muito forte, cada um no seu perfil. Como é a relação com as fontes num universo menor? É complicado fazer uma denúncia, por exemplo? Por conta dessas relações comunitárias, todo mundo se conhece, muitas vezes de família, de amizades, mas isso não nos impede de fazer denúncias. Temos feito nos últimos anos diversas. Menos do que eu gostaria, mas talvez mais do que outras pessoas também gostariam. Atualmente existe um vereador aqui que está sendo cassado. Parte da denúncia que pesa contra ele foi feita por nós, pelo jornal. Eu me preocupo sempre com a minha postura como repórter, procuro man94

ter sempre o máximo de distanciamento. Existem aquelas ações, por exemplo, com políticos que são amigos antigos dos meus pais. Existe isso numa cidade pequena, mas eu, mesmo assim, procuro manter um distanciamento, não ser amigo de ninguém, não ter nenhuma relação do ultrapasse essa relação de jornalista e fonte, justamente para conseguir manter essa postura e não ser acusado de estar defendendo um lado ou outro. Então, penso que é possível manter uma postura de profissionalismo. E como se livrar dos chatos quando eles estão tão próximos? Isso é o pior de tudo, encarar os chatos E aí entra muitas vezes a questão comercial da empresa, se é anunciante ou não. Se dá apoio. Às vezes até foge um pouco da minha ingerência. Mas isso realmente é constante, e da parte dos políticos é quase um inferno. Eu passo o final de semana inteiro recebendo ligação e conversando. Como não quero queimar a fonte, não quero parecer intransigente, então fico ouvindo. As pessoas brigam por espaço, brigam por vaidade, um monte de coisas. E nós vamos administrando, dentro do possível, tentando equilibrar o interesse jornalístico com o interesse institucional da empresa. Faz parte. O negócio tem que se viabilizar e não adianta a gente só fazer o que quer. Infelizmente tem que equilibrar as duas coisas e é o que a gente tenta fazer. Às vezes consegue equilibrar bem, às vezes desequilibra um pouco para um lado ou para o outro, e assim a gente vai levando. Como vocês trabalham a questão das redes sociais? Tem pressão nas redes sociais sobre o trabalho de vocês? A gente tem sentido, principalmente desde que o novo governo assumiu o país, uma carga muito pesada de redes sociais sobre qualquer tipo de conteúdo que, de alguma forma, constranja o grupo que está no poder. Algum tipo de notícia negativa que às vezes nem envolve diretamente o governo, mas algo que atinja o ideário, vem uma carga muito pesada, com e-mails, mensagens, comentários, principalmente 95


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em redes sociais. Isso já existia antes, com governos anteriores, mas agora a gente percebe uma carga de violência muito forte, às vezes são comentários muito agressivos, até assusta um pouco, embora nunca tenha acontecido nada fisicamente, nada mais grave. Vocês publicam todos os comentários? Os comentários são permitidos e quando há alguma coisa que extrapola algum limite, algum tipo de violência, agressão e ameaça, ou alguma ofensa realmente muito pesada, aí alguém faz a moderação. Há algum uma empresa chegou a registrar um boletim de ocorrência e uma pessoa ficou mandando mensagem dizendo que viria aqui na empresa e ia pintar a fachada de vermelho, porque era uma empresa comunista não sei mais o quê. Mas acabou não acontecendo nada. Enfim, nós temos percebido nesses últimos meses um volume muito grande, principalmente de simpatizantes do atual governo. Uma situação bem recente foi a de um professor da UNISC que fez uma postagem no dia em que foi anunciado que o presidente estava infectado. Ele fez uma postagem comemorando a infecção do presidente, meio que desejando a morte. E houve uma repercussão grande. Aí, a gente fez uma matéria. Então também teve uma carga do pessoal da esquerda nos xingando, nos acusando. A gente fica nesse fogo cruzado. Então realmente fica um clima muito ruim, parece que nada agrada. Qualquer coisa que se coloca as pessoas estão sempre xingando e de uns tempos para cá esses xingamentos parece que têm um tom mais pesado, mais agressivo. Como é que vocês tratam a questão das fake news? Vocês têm um cuidado especial de verificação? Desmentem? Sim, já em 2018, na cobertura eleitoral, criamos uma ferramenta que chamamos de Gazeta Explica, que é um serviço de fact checking. Sempre que tem algum conteúdo duvidoso, a gente usa esse método que agora está sendo muito comum, de checagem. Nada mais é do que a boa e velha apuração, mas agora tem essa roupagem nova, de pegar o conteúdo duvidoso, ir atrás e descobrir o que é verdade e o que que não 96

é. A gente fez isso na campanha de 2018, principalmente, e retomou agora com bastante intensidade quando começou a pandemia, especialmente naqueles primeiros dois meses. Era quase diário que a gente se dedicava a desmentir fake news que circulavam. E teve um retorno muito bom, porque logo depois que a gente começou, como as pessoas estavam muito inseguras com tudo em função do coronavírus, elas nos encaminhavam muita coisa, conteúdos sobre os quais tinham dúvida, encaminhavam para a gente fazer a checagem. Então temos feito isso e agora, recentemente, também passamos a participar do Projeto Comprova com uma coalizão nacional de veículos. A gente tem participado de checagem até mesmo de conteúdos que não necessariamente viralizaram aqui, mas que circularam nacionalmente. E a leitura? Já dá para celebrar um bom número de leitores online ou o papel é o preferido ainda? O portal Gaz cresceu muito nesta última década. É, possivelmente, um dos maiores portais do interior do Estado. O número de acessos é muito grande. Houve um crescimento nesta última década. Quando eu entrei, estava começando, as pessoas mal conheciam, tinha pouquíssimos acessos. E houve um crescimento gigante ao longo desses 10 anos, mas o jornal ainda tem muita força. Não existe nenhum tipo de plano aqui, pelo menos que a gente saiba, por parte da empresa de suspender o jornal. Não existe nada disso. O jornal tem muita força, inclusive do ponto de vista de público, mas do ponto de vista de receita também ainda é de longe a principal fonte da empresa. O jornal ainda tem um público bastante expressivo, com uma tiragem diária de mais de 10 mil exemplares, o que é significativo para uma cidade de 120 mil habitantes; Então o jornal ainda tem força, tem uma penetração bem forte, até porque a população do interior ainda é bastante expressiva e tem regiões aqui onde mal tem sinal de celular. Mas o jornal chega, então ainda tem isso bastante forte, embora exista uma migração de público de um veículo para outro.

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Quanto à independência editorial, a pressão maior é da área política ou da área econômica? Eu penso que elas são equivalentes, até porque as coisas se confundem na medida em que o poder público também é um grande anunciante. No mundo Ideal não deveria ser, mas é. A prefeitura representa uma receita publicitária, não dá para negar, e isso é sempre utilizado como um instrumento de pressão, de alguma forma, por sucessivos governos. Sempre que existe algum tipo de atrito maior, algum tipo de incomodação, surge a pressão por meio da retirada de verba. Isso acaba pesando, mas faz parte da rotina. Isso também acontece no setor empresarial. Mas a pressão mais forte é a pressão política, que acaba se confundindo com a questão econômica em função disso. As ações do poder público também são uma importante fonte de receita para empresa. Achas que o jornalismo está saindo fortalecido ou fragilizado desta cobertura da pandemia e deste momento que nós estamos vivendo? Num primeiro momento, eu achei que o jornalismo estava se fortalecendo, justamente pela questão da das fake news. É porque no primeiro momento as pessoas estavam muito nervosas, muito inseguras com todo tipo de informação que chegava até elas. E a imprensa se dedicou a esse trabalho de separar o joio do trigo e apontar o que era verdade, o que era confiável e o que não era. Em vários momentos a gente conversou sobre isso e achava que íamos sair fortalecidos desse processo porque as pessoas iam se dar conta de que não dá para se informar com qualquer um, que tem muito conteúdo de baixa qualidade circulando. E nós estávamos fazendo esse trabalho de separar o joio do trigo. Já no segundo momento eu penso que o debate sobre a pandemia e sobre as saídas para a pandemia ficou tão absurdamente ideológico que eu não sei até que ponto a gente se fortaleceu, porque a gente entrou num momento em que as pessoas literalmente acreditam no que querem. Boa parte da população não está interessada em ciência, não está interessa98

da em fatos concretos. As pessoas querem acreditar no que elas acham mais interessante. Aí é muito difícil de lidar com isso. Por exemplo, eu percebo assim diversos conteúdos que nós postamos nos últimos dias, nas últimas semanas, sobre a questão os medicamentos, da cloroquina. É é uma coisa meio maluca porque a gente está prestando um serviço importante, mostrando que não tem nenhum estudo científico de que esse medicamento é seguro, e somos xingados porque as pessoas querem que se diga que o medicamento é seguro, que dá para tomar. Então é complicado se lidar com essa com essa ideologização extrema do debate público. E aí eu não sei até que ponto o jornalista, na medida em que mantenha a postura correta, recebe este reconhecimento. No primeiro momento eu pensei que a gente ia sair mais forte, hoje eu já tenho dúvidas infelizmente. Começaste na área cultural e foste parar na política. Como isso ocorre numa redação de jornal, como os jovens podem aproveitar as oportunidades? Foi uma coisa bem de oportunidades que foram surgindo. Eu cheguei num momento de reestruturação, o começo do portal Gaz e também da redação online. Aí a pessoa que até então fazia política assumiu a responsabilidade pela coordenação da equipe do portal. Acabei me encaminhado para essa área e acabei gostando. É uma coisa que eu sempre falo quando eu converso com os estudantes na faculdade. Eu queria fazer jornalismo cultural, da metade do meu curso para o final, todos os trabalhos que eu fazia me levavam para essa área. Eu encasquetei que não ia fazer outra coisa, achava que a minha praia era essa. E, no fim, eu descobri que podia fazer outra coisa. Em nenhum momento eu pensei em me candidatar para ir para área de Cultura, pois acabei gostando muito dessa parte política. A gente faz um pouco de Economia também. Enfim, experimentar outras coisas foi um caminho natural conforme as oportunidades foram aparecendo e acabou dando certo.

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A versatilidade é uma das características do jornalismo no Interior. Ao entrar, foste exclusivamente para o impresso ou já entraste para o digital? Eu entrei primeiro como estagiário exclusivo do portal e depois fui chamado para o impresso. Aí fui efetivado como repórter do impresso. É que naquele momento as redações não eram integradas, cada um trabalhava no seu canto. Havia muito pouco diálogo, como se fossem empresas diferentes. Eu tinha vontade de trabalhar no impresso, até porque naquele momento a redação do portal era uma coisa bem incipiente, uma equipe muito jovem. Então, os jornalistas mais experientes estavam no jornal e naquele momento existia uma coisa que hoje não existe mais, ir para o jornal era meio que uma promoção. A pessoa se destacava no portal e ia trabalhar no jornal, aquilo era visto como uma diferença, um reconhecimento. Hoje, como é tudo integrado, a gente trabalha tudo junto, a equipe do online é muito maior, já tem gente experiente ali. Hoje já não existe mais essas coisas, mas na época tinha. Então, eu entrei muito com a perspectiva do impresso e eu gosto muito do imprenso, principalmente de reportagens especiais. Eu ainda penso que é o melhor canal. O online acaba sendo muitas vezes a leitura mais superficial. As pessoas não mudam tanto, mas o papel ainda tem aquela coisa de leitura, de se aprofundar.

do conteúdo, acaba sendo o próprio conteúdo reproduzido no online. Em outras vezes se agrega vídeo, se agrega áudio ao conteúdo que saiu no Jornal e é assim a gente vai moldando o mesmo conteúdo completo da plataforma.

Como tu trabalhas uma matéria nas diversas plataformas? A gente vai se organizando. E ajuda bastante a questão de todos os veículos ocuparem o mesmo ambiente, pois a gente vai se comunicando e se organizando para aproveitar o mesmo conteúdo nas diferentes plataformas. Por exemplo tem um conteúdo especial para o jornal da semana, aí o pessoal do rádio ali junto sabe. Então já vem conversar comigo. Eu digo está bem, pode fazer versão em texto dessa matéria e tu mesmo grava. E aí a gente tem pauta na rádio de manhã, ou então me convidam para ir a um dos programas para eu mesmo falar ao vivo sobre a matéria, dar algumas informações e remeter para o impresso e online. Em boa parte das vezes não existe tanto assim uma adaptação

O que mais te gratifica na tua profissão de jornalista e o que mais causa incômodo? O que mais me gratifica é ter a sensação de que eu estou contribuindo para documentar a história da sociedade de alguma forma. Sempre que faço alguma matéria de cunho mais histórico, quando tenho que pesquisar os arquivos da Gazeta, fico olhando os jornais antigos e vejo ali a história da cidade, a história da região sendo contada, sendo registrada. Aí eu gosto de imaginar que talvez daqui a alguns anos, algumas décadas, vai ter alguém folheando e vendo o que eu escrevi e se utilizando do que eu apurei e transformei em conteúdo para saber a história da cidade. Fica a sensação de estar acompanhando eventos históricos. Por mais que sejam coisas muito locais. Por exemplo, nesses últimos meses teve um furacão aqui na política, vereador sendo preso e, pela primeira vez, vereador sendo cassado. Tudo isso eu pude acompanhar de perto. Tem um valor isso. Depois, quando chega em casa, pensa: que legal, acompanhei e vi com meus próprios olhos uma coisa que é parte da História. Eu julgo que isso é o que mais me gratifica, especialmente quando a gente pode ajudar as pessoas de alguma forma. E, às vezes, é nas pequenas coisas. Outro dia um contemporâneo meu da universidade postou no facebook uma foto mostrando que na rua dele tinha um fio de poste de energia elétrica caído há meses e eles tinham muito medo. Era uma rua sem saída, então sempre tinha criança brincando. Medo de que acontecesse alguma coisa grave. E ele pediu para concessionária para resolver e não resolveu. Aí, eu fiz uma notinha no espaço que a gente tem para isso, dizendo que na rua tal tinha esse problema e tal. No outro dia, 9 horas da manhã, a concessionária tinha ido lá e consertado. Ele ficou muito agradecido, pois o jornal resolveu o problema. É uma coisa pequena, mas interfere na qualidade de vida

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das pessoas. E o que mais me desaponta acho que é quando a gente não consegue fazer nada disso, quando a gente sabe que não está fazendo tudo que a gente poderia, seja por algum constrangimento externo, seja por preguiça mesmo dos profissionais, porque faltou mais interesse e mais tempo. Quando um assunto não é suficientemente debatido ou suficientemente esclarecido, eu penso que a gente não cumpriu o nosso papel e isso me desaponta muito. Quais os cuidados que o estudante interessado nessa questão da política deve ter quando quiser ingressar nessa área? Eu acho que primeiro a gente tem que ser obcecado por consumir informação. Para mim a coisa mais básica que existe é ler jornal diariamente, é estar bem informado, é conhecer a fundo a realidade da nossa profissão em termos de mercado. É uma coisa difícil de fazer no dia a dia. Não tem como ler todos jornais, ouvir todos os programas de rádio, do site, mas eu penso que a gente tem que perseguir isso, sim, ser um consumidor obcecado de informação. Isso faz toda a diferença na hora de escrever uma coluna, na hora de escrever uma matéria. A gente pode não sentir, mas está adquirindo conhecimento, ficando mais calejado, mais preparado para fazer um bom texto. Também acho que se deva ter cuidados na relação com as pessoas, manter distanciamento necessário para que nunca sejamos acusados de estar pesando para um lado ou para o outro. Em todas as áreas, mas especialmente na política, a gente sempre tem que se preocupar em contextualizar a informação que estamos publicando. Isso talvez seja o fundamental no jornalismo de política porque nunca é de graça uma coisa que acontece na política, uma declaração que um político faz, um movimento que um político faz de aproximação com alguém. Em tudo existe um interesse por trás. Talvez o trabalho mais importante de um jornalista de política seja dar esse contexto. É fácil dizer que o projeto de lei foi aprovado na Câmara, escrever contra o vereador fulano ou a favor do vereador beltrano. O importante é explicar porque os vereadores votaram a favor, porque votaram contra, o que aquele projeto significa, o que representa 102

politicamente para o governo, de que forma essa movimentação toda se insere num contexto pré- eleitoral, por exemplo. Ou seja, ir além do que dizem os releases. Então esse contexto me parece que é o mais fundamental de tudo, como a gente oferece uma informação mais qualificada para as pessoas, mais próximas da realidade. E isso se consegue primeiro conhecendo ao máximo a história política, ou seja, o passado político. O que aconteceu para se chegar até aquela votação que teve esse resultado. E sempre estando em contato com as pessoas. Às vezes os políticos me xaropeiam, ligando, conversando, mas isso tudo é importante porque a gente acaba sabendo o que realmente está acontecendo, o que foge ao declaratório, além do discurso oficial. E para isso a gente tem que ter contato com as pessoas o tempo inteiro, a maior parte do meu tempo eu estou em contato com pessoas da política, seja por telefone, pessoalmente ou por WhatsApp, para perguntar o que está acontecendo. Às vezes aciono as pessoas: alguma novidade? Te reuniste com alguém nesta semana? Como foi a conversa? E aí a gente vai pescando as coisas e consegue construir um contexto por trás da informação mais bruta. Em termos de linha editorial, como é que vocês fazem para deixar bem claro para o público o que é opinião e que é informação? A Gazeta não tem editorial, isso é uma opção de muitos anos e décadas. Nem vou entrar no mérito do que eu penso a respeito disso, mas a Gazeta tem alguns posicionamentos editoriais muito claros, que são assumidos até às vezes por meio de campanha. Um exemplo é a questão da cadeia produtiva do tabaco, que é o principal motor da economia local. E a Gazeta tem um posicionamento muito claro, que é favorável ao setor, ao desenvolvimento do setor, às demandas do setor. Isso é uma coisa muito marcante porque a maior parte da cobertura da Imprensa geralmente tem um caráter mais negativo em relação à indústria do tabaco. É compreensível, afinal é uma questão muito controversa produzir um produto que faz mal à saúde. Mas a gente segue isso, nada é escondido sobre a defesa dos interesses da cadeia. Como separamos a 103


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informação da opinião? Temos os nossos articulistas com sua opinião. Não temos editorial, mas na maior parte dos assuntos buscamos um posicionamento neutro. Mas existe assunto como esse, por exemplo, em que o posicionamento institucional da empresa fica mais evidente. Enfim, a empresa também publica o anuário do tabaco, uma publicação para discutir a realidade do setor. Como um profissional administra o seu conflito de consciência trabalhando numa empresa favorável ao fumo quando ele é antitabagista, por exemplo? É complicado. Eu acho que, nesse caso, não trabalha. Ou tenta administrar de uma forma a ficar afastado desses assuntos. Eu penso que é uma questão de profissionalismo. Eu tenho essa sensação na política, talvez possa estar me iludindo um pouco. Eu não posso dizer, como cidadão, que não tenho nenhuma opinião política ou que não tenho nenhuma preferência política. Eu tenho. Eu não deixo de votar, por exemplo. E escolho o candidato que penso que é o melhor. Aí, alguém pode perguntar: mas consegues separar isso totalmente do momento em que escreves matérias sobre política? Isso é uma coisa que eu me perguntei durante muito tempo: será que eu estou conseguindo? Será que não estou deixando me levar pela minha preferência? Mas eu cheguei à conclusão de que eu consigo, porque chega uma hora em que o profissionalismo fala mais alto. Além disso, quanto mais eu convivo com políticos menos diferenças eu enxergo entre eles. A gente vai percebendo que todos têm as suas contradições, têm as suas fraquezas. Todo mundo tem os seus problemas, ninguém é totalmente bom ou totalmente ruim. Então, chega a hora em que tu consegues separar as coisas.

Eu acho que imparcialidade é um mito. Eu penso que não existe imparcialidade por uma razão muito simples: nós não somos robôs, somos seres humanos. Tudo o que sai no jornal, no rádio, é fruto de uma decisão. A gente senta e conversa, vê o que deve ser a manchete. Isso não é uma decisão objetiva, é uma decisão subjetiva, óbvio. Então não existe objetividade, imparcialidade, porque não somos robôs. O que existe é profissionalismo e o equilíbrio, isso é o que a gente tem que buscar.

Outro dia, numa entrevista, a colunista de ZH Rosane de Oliveira foi questionada sobre imparcialidade. Ela disse que prefere a palavra “independência”, até para poder ser parcial quando tem que dar uma opinião. O que te parece isto?

Sobre a aproximação das redações online e impressa, como funciona a dinâmica entre ambas? E em relação à fotografia, vocês utilizam mais agências ou profissionais locais? Hoje as redações todas, de todos os veículos, tanto jornal quanto rádio quanto online, e agora mais recentemente a editora Gazeta, a última a se integrar, que trabalha principalmente com publicações na área do agronegócio, todos trabalham no mesmo ambiente. Então a gente trabalha junto, todos os veículos trabalham juntos. A maior equipe é a do jornal. A gente se esforça para que esta divisão de veículos seja a menor possível. A ideia é que todos trabalhem para todos os veículos, que todos colaborem com todos. Isso está se intensificando. Hoje, se eu tenho uma informação da área política, algum furo, qual é a minha orientação? O que eu devo fazer de imediato é escrever um texto, encaminhar para publicação no portal, avisar o pessoal da rádio ou eu mesmo fazer um boletim, e então vou escrever a matéria para o jornal que sai no dia seguinte. Então, eu estou trabalhando para todos os veículos ao mesmo tempo. Sobre fotógrafos, temos atualmente três fotógrafos aqui na redação, dois bem jovens, e um colega já bem veterano. Mas também os repórteres fazem fotos quando não há como o fotógrafo acompanhar ou numa situação em que está sozinho por qualquer motivo. Você faz foto com o celular mesmo. Eu, por exemplo, acompanho as sessões da câmara de vereadores toda semana e não levo sempre fotógrafo junto. Se for preciso, eu mesmo faço a foto aí ou solicito para a assessoria de

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imprensa da câmera. Sobre agências também temos contrato e utilizamos Agência Estado atualmente para assuntos nacionais e internacionais. Não fazemos a cobertura própria de assuntos nacionais, a nossa atenção é para assuntos locais. Quando tem algum interesse particular aqui da população da região em assuntos nacionais ou quando alguma coisa que se sobrepõe, por exemplo quando houve o impeachment de 2016 aí a gente fez uma cobertura nossa. Eu fui para Brasília, inclusive. Mas no dia a dia ficamos com material de agência.

interessante de tudo, é como a gente chega mais próximo de uma realidade E estar sempre consumindo informação, lendo jornal, também é muito importante.

Como tu te preparavas para o teu trabalho quando eras repórter e como fazes agora que és editor? Primeiro, eu sou editor, mas sou repórter também porque lido com reportagem diariamente. Eu sou editor de mim mesmo. A principal matéria-prima do conteúdo é o contato com as fontes, que são basicamente todo mundo do meio político, vereadores funcionários da Prefeitura, secretários. Então, o que eu faço? Às vezes até no domingo de noite ou na segunda de manhã, para começar a semana, aciono todo mundo no WhatsApp, faço umas ligações, pergunto de algum assunto que estava em pauta nos últimos dias, pergunto se tem alguma novidade. Eu estou sempre assim, enchendo o saco. Eu digo que eles me xaropeiam mas eu os xaropeio também. Estou sempre perguntando alguma novidade, sobre o que está acontecendo. Assim vai surgindo uma informaçãozinha ali, uma aqui. Uma hora vai render uma matéria. Toda segunda-feira tem a sessão da Câmara de Vereadores. Há 10 anos eu acompanho todas as sessões do início ao fim, às vezes são chatíssimas, mas eu acompanho porque ali estão aprovando os projetos de lei, ali a gente enxerga todas as movimentações políticas, partidárias, dali sai muito conteúdo. Recentemente, fui buscar dados sobre o número de filiados de cada partido em Santa Cruz para dar uma ideia de como estava a estrutura de cada um para a eleição. Fui buscar esses dados junto à justiça eleitoral e assim a gente vai conseguindo. Mas eu penso que o mais fundamental de tudo é estar sempre em contato com as pessoas, aí surgem as melhores informações. A informação extraoficial é o mais

Alguns jornais europeus têm promovido muito a questão do debate civilizado entre pessoas com visões diferentes. Temos chance de chegar nesse nível de diálogo aqui no Brasil e até mesmo em cidades do interior, como Santa Cruz do Sul? Às vezes eu vejo coisas que me deixam desesperançado, realmente a gente está num momento muito difícil, as pessoas estão muito fechadas ao diálogo, muito fechadas ao contraditório, muito apegadas ao que elas acreditam e pouco apegadas muitas vezes ao que é mais concreto. A gente acompanha diariamente um debate muito improdutivo em rede social, em que ninguém se mostra muito aberto a ouvir ponto de vista contrário ao seu. Acredito que isso é o momento, é uma fase motivada por uma série de circunstâncias. Mas penso que a gente não vai aguentar para sempre assim porque é insuportável. Acho que as pessoas estão emburrecendo por causa disso. Então, não faço a menor ideia de quando esse diálogo vai acontecer, penso que a gente está muito longe ainda disso, infelizmente. A crise e as mudanças na indústria da comunicação indicam que o futuro do jornalista é ser um profissional independente, um eterno freelancer. Como tu vês esta perspectiva numa comunidade do Interior? Eu tenho a impressão de que esse movimento ainda não chegou no Interior, ainda não é uma realidade. Mas não há dúvida de que existe uma transição do modelo de mercado de grande empresa, de grande grupo, para uma situação de pequenas empresas jornalísticas especializadas. Ao invés de grandes grupos como vários veículos e com grandes equipes, que tratam a cobertura generalista de tudo, a gente vai ter, talvez, uma pequena equipe de jornalistas que se juntam para fazer uma pequena empresa só para cobrir esporte, ou só para cobrir cultura,

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ou só para cobrir política. Isso a gente já vê um pouco, principalmente com coisas até mais especializadas, mais segmentadas, como é o caso do Jota, que é ultra especializado e faz um trabalho sensacional na cobertura do Poder Judiciário. Isso vai acontecer, o que é uma coisa boa. A gente falava antes sobre os constrangimentos que envolvem a geração de receita publicitária: eu penso que essas pequenas empresas podem criar um modelo de não depender tanto de publicidade e mais do leitor, da assinatura, de pessoas que estejam dispostas a pagar por um conteúdo especializado e qualificado. Mas isso recém está começando no Interior, ainda não é uma realidade. Teve uma ocasião em que o jornalista Carlos Wagner veio aqui conversar com a gente, anos atrás, e disse uma coisa que me marcou: vocês têm que se dar conta que não estão trabalhando só para Gazeta, vocês estão trabalhando para vocês, para história de vocês para o currículo de vocês. É verdade. Eu não estou só a serviço da empresa, eu estou trabalhando para mim, para eu ter história para contar para os meus netos, para o meu currículo. Eu estou somando para mim, para que eu possa levar junto para onde quer que eu vá. Tenho pensado nisso nesse momento em que faço uma pesquisa que, se tudo der certo, vou transformar em livro-reportagem. Tenho muito desses possíveis projetos para além do trabalho da Redação, eu penso que esse é o caminho.

A EDIÇÃO DE JORNAL GUILHERME KOLLING

“O editor precisa dominar o texto e estar muito bem informado”

A

crônica esportiva perdeu um promissor repórter, o Direito um profissional não vocacionado, mas o jornalismo impresso ganhou um editor experiente, com formação na prática diária das redações. Graduado em Jornalismo pela PUC e em Letras pela UFRGS, Guilherme Kolling, orgulha-se de cada etapa da sua trajetória, do início na Editora JÁ à temporada de estudos na Espanha; das colaborações para publicações como Amanhã, Placar, Veja, Caros Amigos e Carta Maior, à autoria do livro Lanceiros Negros, juntamente com Geraldo Hasse. No Jornal do Comércio, onde ingressou em 2007 como editor assistente de cadernos especiais, assumiu depois a editoria de Política, foi secretário de redação e, desde dezembro de 2017, é o editor-chefe do jornal especializado em Economia e Finanças do Rio Grande do Sul.

O que te levou para o jornalismo? A minha relação com o jornalismo começou com o rádio. Comecei a ouvir programas de rádio e talvez o primeiro de que eu tenho mais memória tenha sido o Sala de Redação que na maioria das vezes o meu pai ouvia em casa, ou no rádio do carro me levando para o colégio. E aí gradativamente eu fui ampliando esse hábito como ouvinte mesmo, então passando para jornadas esportivas também. Talvez tenha sido 108

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grandes reportagens, um mensário. E aí eu fazia praticamente tudo no jornal. Foi um aprendizado incrível. Desde a pauta, fazia reportagem, fazia edição. Depois a gente ia lá imprimir no Grupo Sinos. Aí tive uma noção bem interessante do fechamento. Porque tem horário a ser cumprido. Como a gráfica era terceirizada, a gente tinha que terminar num horário mais cedo. Aí tinha horário de fechamento e buscava profissional que ajudasse na distribuição. E outra coisa importantíssima também foi uma efervescência de talentos, pessoas que iam lá ou para trabalhar ou para digitar ou que eram colaboradores. Existia muitos grandes jornalistas, que eram colaboradores. Então, eu curtia muito, sempre tive muito apreço assim pela sabedoria e pela experiência de jornalistas mais veteranos. E eu tive um aprendizado incrível. Primeiro eu tive experiência em jornal de bairro (na questão de texto e informação). E aí também de texto e elaboração de reportagem jornalísticas. O JÁ Porto Alegre era mensal e só tinha grandes reportagens. Então tinha mais ou menos dez edições por ano, 11 às vezes. E cada edição tinha umas seis gritantes reportagens. Eram umas 50 grandes reportagens por ano e aí as melhores a gente escrevia no prêmio ARI. Foi uma coisa até relativamente precoce assim. Eu me formei em 2002, embora trabalhe desde 1999 como jornalista. E em 2003 teve uma reportagem que a gente fez sobre a revisão do plano diretor e tirou segundo lugar. Então foi o primeiro prêmio ARI que eu participei, fiz toda a edição.

até anterior ao Sala de Redação. Às vezes, estava ouvindo o programa esportivo e ia para o programa seguinte. Era jornalismo geral e eu acaba ouvindo também. Enfim, eu sempre tive essa relação muito forte com o rádio. E, naturalmente, fui tendo essa relação com o jornalismo. Eu tenho dois tios jornalistas, já falecidos, o Ivandel Godinho que o Iron Godinho. Os dois tiveram trajetórias aqui no Rio Grande do Sul e depois no Rio de Janeiro. Mas, embora tenha essa referência na família com jornalistas, não foi tudo influência deles. Foi mais essa relação com o jornalismo esportivo mesmo. O jornalismo na faculdade nem foi minha primeira opção. Até pensei primeiro em fazer Direito. No final, acabei cursando jornalismo e pensando em fazer jornalismo esportivo. Mas nunca trabalhei com jornalismo esportivo. Primeiro eu fazia letras e aí fui bolsista nos acervos literários lá da PUC. Na época Maria da Glória Bordini me convidou para trabalhar no acervo Érico Veríssimo e fui bolsista por dois anos. Estava ansioso para trabalhar em jornal. Eu fazia um trabalho meio que de assessoria de imprensa. Eu ajudava na organização geral dos acervos, na divulgação. E morava no Bonfim. E aí um dia eu comprei o JÁ. E me apresentei no JÁ. Mas acabou que eu não trabalhei no jornal. Acabei trabalhando no Ambiente JÁ, que era um informativo. Fazia uma clipagem de todos os veículos sobre meio ambiente, mais uma edição diária exclusiva para empresas e gestores dessa área ambiental do Sul. E foi um aprendizado imenso porque desde então eu adquiri o hábito de ler todos os jornais todos os dias. Assim fiquei sete anos e fiz diversas funções. Aí foi clipagem, repórter do JÁ. Depois fui editor do JÁ. Daí me formei e fui para o jornal do JÁ mesmo. Na época havia uma edição meio mesclada de reportagens de bairro. Ai gradativamente foi retomando o projeto do jornal reportagem também. Foi um aprendizado incrível. E o jornal de bairro também é uma coisa muito interessante, que é o aprendizado assim da precisão da informação. Tu erras o nome da fonte e o cara é vizinho ali, o dono do botequim da esquina, todos os dias tu vais te encontrar com ele. Então, eu fiz muitas coisas lá e como repórter editor e aí o Interessante foi a volta do JÁ PORTO ALEGRE, que era um jornal de reportagens,

Como foi tua passagem para outros jornais, outros projetos, depois da tua passagem pelo JÁ? Tem outra faceta interessante para quem anda no mercado e que quer ser jornalista, que é o livro-reportagem - uma grande reportagem em formato de livro. O primeiro de que eu participei foi o ‘Pioneiros da Ecologia’, de 2002, em que entrevistamos gente como Lutzenberger, Augusto Carneiro, Flávio Lewgoy. Ouvimos os depoimentos deles, com a trajetória de cada um, mas também fui atrás de documentação e de todo o histórico sobre eles e o tema. Esse é um outro ofício jornalístico, que pode ser até uma outra profissão e já tem muita gente que se dedica

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o desafio do Industrial, que a gente só pega quando trabalha com o jornal impresso: o horário da gráfica. Por mais modernizadas que estejam os sistemas, todos os processos, desde a gestão do conteúdo até a colocação do material das páginas, o layout prévio e a diagramação para fechar a edição, o jornal tem horário para ir à gráfica. Sim ou sim. No tempo da CPI nosso horário de fechamento da primeira edição era nove da noite, mas algumas sessões acabavam às 7/8 horas da noite e aí a corrida era para fechar a edição a tempo. Esse desafio de correr contra o tempo de certa maneira é uma precariedade. Tu tens que dar a melhor informação, mas tem essa limitação de tempo. Então, a gente tem que produzir o melhor noticiário possível para entregar o jornal a tal hora. Se não, era comum alguém da redação que era do interior te sacanear: “...o jornal não vai chegar lá em Livramento, fecha isso…”. Ou seja, não vai adiantar nada tornar o jornal maravilhoso e não chegar ao leitor. Questão de entrega mesmo.

a isso em diversos níveis, eventualmente até sob encomenda para ser feito em um ano. Tive esse aprendizado lá no JÁ, mas também da importância de ler todos os jornais, saber o que que tá saindo nos outros jornais para não dar notícia velha e até ter ideias de outras pautas; da importância da pressão de informação do jornal de bairro; da noção da grande reportagem tanto no JÁ, quanto nos livros reportagens. Assim, ainda no primeiro ano acompanhamos o projeto Fronteiras do Pensamento, que é um outro formato de jornalismo. Várias empresas estão produzindo conteúdos, uma coisa relativamente recente, mas é um mercado muito interessante e promissor. Funciona quase como uma espécie de agência, que faz desde matérias, como se fosse um freelancer para jornais e, inclusive, matérias para revistas específicas. Produzimos o conteúdo da primeira edição do Fronteiras do Pensamento, ainda pelo JÁ. Em 2007 fui convidado pelo Pedro Maciel para trabalhar no Jornal do Comércio. Inicialmente, a função era editor-assistente de cadernos especiais, que são feitos em datas temáticas e normalmente com grandes reportagens ou painéis de determinado setor. Exemplos: especial da Expointer ou sobre a Construção Civil ou ainda sobre o Dia do Meio Ambiente. E aí, nessas oportunidades que acontecem, o editor de política do JC na época, o Carlos Bastos, assumiu a Comunicação da Assembleia Legislativa e, com cerca de três meses no jornal, assumi como interino tampão na editoria, uma vez que o editor assistente, o falecido Egídio Gamboa, estava em férias. Acabei ficando na editoria de Política, que foi um grande aprendizado e um enorme desafio porque é uma área onde se exige muita precisão nas informações. Claro que isso é importante em todas as áreas do jornalismo, mas na Política mais ainda, a responsabilidade é brutal, pois uma informação equivocada pode comprometer a vida de uma pessoa. Assumi na época a CPI do Detran (NE: governo Yeda) e todo dia o noticiário era basicamente de denúncias, investigação do Ministério Público, da Polícia Federal. Era esse o desafio diário. E aí tem a questão que agora cada vez mais está presente no jornalismo digital, da instantaneidade de informação, mas tem também

O que faz e quais são as habilidades que precisa ter um editor? Para o editor a primeira coisa é dominar o texto, já que o texto final é do editor. Então tem que ter um domínio muito grande da Língua Portuguesa, até para ter uma versatilidade como para dar uma informação num espaço curto. No caso, fazer um título, às vezes, é um desafio, como ter uma informação muito difícil de explicar no espaço pequeno e, às vezes, em um tempo absolutamente curto para achar a melhor solução. O editor tem um tempo pequeno para ler a matéria e ajustar a matéria, botar ela no tamanho adequado e fazer o título. A primeira dessas habilidades é um pré-requisito básico: ler muito, escrever muito, e ter uma capacidade da coesão e coerência em relação ao texto e também a precisão da linguagem. Esse é um atributo básico. Em segundo, lugar precisa estar muito bem informado. Tem casos de pauteiros específicos para a pauta geral. No Jornal do Comércio, em geral, o editor responsável pela editoria define a pauta. Por isso necessita estar muito bem informado. Um exercício que fazia todos os dias, quando era editor de Política, eu lia todas as páginas de política de todos os jornais

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e registrava: “Esse dia a gente não deu tal e tal informação”. Tentava, então, colocar sempre tudo que saía nos outros nos nossos jornais, dar a mesma informação e não a informação depois, antes até, de preferência, ou junto pelo menos. Então essa era uma cobrança importante. Dois pré-requisitos fundamentais são domínio total da língua, do texto, e estar muito bem informado. Quais eram as tuas atribuições como editor no dia a dia? Como era a rotina? Bom, o meu expediente na redação era nos horários da tarde e da noite, mas, na verdade, começava de manhã quando eu já lia todos os jornais em casa, ouvia rádio e me informava sobre tudo que estava acontecendo. Depois, era ter ideias, fazer relações entre as coisas para sugerir pautas, pegando algum “gancho” do dia: Exemplo: agora apareceu a discussão em Porto Alegre sobre o processo de impeachment do prefeito. Aí cabe fazer relações, ter uma noção de todas as repercussões. O processo vai demorar 90 dias e a eleição é no dia 15 de novembro. Opa, aí tem uma pauta! O processo de impeachment acaba antes ou depois da eleição? Então tem que fazer essa relação entre as coisas para poder ter essa atribuição que é definir as pautas. A pauta pode ficar simplesmente vinculada à agenda. Exemplo: tem sessão hoje na Assembleia Legislativa e vai haver uma entrevista coletiva sobre determinado assunto. O ideal, porém, é, além de estar atento à agenda, também propor novas pautas vinculadas ao noticiário. Essa é outra atribuição importante. Outra característica importante também é ter uma certa frieza ou equilíbrio para poder fazer as coisas no tempo certo, sem se apavorar com a pressão do tempo, que é inerente à atividade especialmente no jornalismo impresso. Tem que ter essa frieza para fazer uma coisa de cada vez e fazer o melhor possível no horário de fechamento, e também com muita responsabilidade, uma vez que o jornal impresso vai ser algo irreversível. No online até dá para ir lá e mexer, atualizar a informação, mas no impresso é irreversível. No caso de denúncias, se a informação estiver errada, causa um dano irrecuperável à pessoa atin114

gida. Então, é preciso muita responsabilidade em cada caso. Uma coisa que eu sempre falava para os repórteres era usar o exemplo dos livros do Elio Gaspari, a série de três volumes sobre a ditadura brasileira, em que a cada parágrafo ele colocava uma nota de pé de página. O que aquilo significava? Era a fonte daquela informação. Assim, cada vírgula tem que estar no lugar certo e cada informação tem que ter uma fonte e estar checada. Esse é um desafio diário também. Como é que se define a manchete, como se escolhe a manchete? É um processo assim: às vezes a gente já tem um plano, encaminhado na véspera ou antevéspera para a manchete, porque a gente sabe que vai ter uma matéria especial/específica naquele dia. A definição da manchete primeiro depende muito do veículo. Todo texto tem relação com um contexto. No Jornal do Comércio, o contexto é que se trata de um jornal de economia e negócios. Então, o primeiro pré-requisito para o assunto virar manchete é que seja uma informação relevante para essas áreas. Eventualmente não é de economia porque tem um fato realmente extraordinário; eleições, por exemplo, na área política; ou alguma situação muito importante do cenário internacional; ou mesmo local, como no episódio da boate Kiss, por exemplo, que não temos como ignorar. Mas, de uma maneira geral o nosso contexto é esse: uma informação econômica relevante e - de novo – no contexto do Rio Grande do Sul. A indagação a ser feita é: qual a informação que a gente tem melhor do que os outros? É a informação econômica do Rio Grande do Sul. Portanto, esse é o nosso carro-chefe e é isso que temos que privilegiar. Quando eu falo que a manchete já começa a ser feita no dia anterior é porque já temos uma pré-pauta. Os repórteres e editores e mais a agenda já nos sinalizam o que vai ter de matéria no dia seguinte. A partir daí a gente já tem uma sinalização do que que pode ser manchete no outro dia. Depois disso, depende do que vai render o trabalho que foi feito, a reportagem que foi produzida, sem contar que o noticiário às vezes nos atropela. Por exemplo, a informação de que uma carga de frango, exportada do Brasil para China, estaria contaminada 115


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com coronavírus é a notícia do dia, não tá no nosso radar, nem na nossa pré-pauta e não seria candidata à manchete. Como entrou no nosso radar, ao longo da produção do dia e da reunião de pauta que a gente faz no início da tarde, se tem uma noção mais exata do que que pode ser a manchete do dia. Pode ter duas/três matérias que são candidatas a manchete principal; até que no fim da tarde ocorre uma consolidação do material, as matérias já estão escritas, já estão elaboradas, apuradas, tomando uma dimensão do que são. E aí se define a manchete, que é uma decisão em conjunto com os editores, mas a palavra final é minha que sou o editor-chefe que faz a capa e escolhe a manchete.

o presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, o ´presidente da Câmara dos Deputados, nome do vice-governador, de que partido era, esse tipo de questionamento para ver se o candidato está acompanhando o noticiário. Outra pergunta importante era: como se informava? Entendo que esses são requisitos fundamentais numa seleção: ter muita vontade, demonstrar conhecimentos gerais e querer fazer jornalismo mesmo. Depois da contratação é partir para a avaliação do trabalho em si. Normalmente são chamados os estagiários ou freelancers que tiveram um bom desempenho nas colaborações para o jornal, nos cadernos especiais ou então reportagens especiais, quando a gente convida o pessoal para fazer reportagens. Os que se saem bem nesses casos acabam sendo convidados para trabalhar no jornal.

Quais os requisitos que tu exiges para a contratação de novos profissionais? Vale o mesmo para vagas de estágio. Normalmente é um processo natural. O JC trabalha historicamente com estagiários e free-lancers. Assim, os profissionais que são efetivados/contratados são aqueles que já são colaboradores, que já escreveram no jornal e que a gente já conhece. No caso do estágio, uma entrevista de estágio normalmente tem basicamente dois ou três pré-requisitos fundamentais. A primeira é que seja estudante de jornalismo. Um pré-requisito técnico muito importante - que eu pelo menos considero sempre - é demonstrar vontade. O candidato tem que realmente gostar e estar querendo muito fazer jornalismo, seja para qual função a seleção esteja ocorrendo. Se chega sem muita vontade já é um ponto negativo. Uma grande qualidade de um repórter, por exemplo, é ter vontade. A pessoa pode não ter um texto brilhante e pode não ser um bom conhecedor do assunto, mas se tem vontade, vai lá e pode fazer um trabalho bom. Outra coisa importante e que, normalmente, é uma forma de desempate muito comum é a dos conhecimentos gerais. Por exemplo, quando eu era editor de Política, eu fazia uma seleção com os estagiários e pedia para levar alguns textos escritos, não necessariamente publicados em jornais. Normalmente, textos de cultura que o pessoal gostava mais, e já dava para ter uma noção do texto em si. Aí eu fazia uma seleção de perguntas de conhecimentos gerais: quem era

Como tiveste inspiração de familiares vinculados ao jornalismo esportivo, de que forma isso impactou na tua carreira? Sempre me interessei por jornalismo esportivo, (influência dos tios Ivandel e Iron Godinho, que atuaram na área) mas acabou que eu nunca trabalhei com isso pelas oportunidades que foram surgindo ao longo da vida. Foi a partir do jornalismo esportivo que eu comecei a me interessar pelo jornalismo. Quando eu fui fazer vestibular, pensava em trabalhar com o jornalismo esportivo. Na verdade, inclusive já ganhei até prêmio ARI com matérias de jornalismo esportivo, mas foram coincidências. Eu trabalhava no JA e fiz uma grande matéria sobre o clube Força e Luz, mas sobre o negócio imobiliário do bairro (bairro Rio Branco, onde ficava o estádio do clube). Depois acabei fazendo uma matéria sobre a história do clube, mas isso foi uma exceção também, como as matérias que fiz para a revista Placar. Eram matérias mais ligadas à saúde, como uma pesquisa do Hospital de Clínicas. Com isso eu fiquei sabendo que os ex-jogadores tinham mais hepatite do que a população em geral, porque na época em que jogavam compartilhavam as seringas, tomavam injeções de vitamina nos treinos. Aí ocorreu uma incidência muito grande de ex-jogadores dos anos 50/60 (do século passado) que tinham hepatite. No final, acabou que eu nunca traba-

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lhei muito jornalismo esportivo, mas foi o fator decisivo para que eu entrasse na carreira jornalística e seguisse trabalhando. Foi uma etapa de outros temas: primeiro meio ambiente, depois jornalismo de bairro no JÁ, grandes reportagens políticas e agora sou editor-chefe do jornal de economia. Como é esse caminho de política, economia e editor? É legal de seguir? Politicamente dá para ser imparcial? Como a gente escolhe o caminho? Eu acho que é importante sempre ter uma um horizonte amplo para os jornalistas, no sentido de sempre estar buscando outros conhecimentos e mais informações. Tem gente que já nasce sabendo exatamente o que quer fazer. Eu sou formado em Letras também e é uma coisa que me ajudou incrivelmente com texto. Então, não tem um caminho único e exclusivo, não tem uma receita, uma regra. Algumas coisas relativamente se repetem: a remuneração do editor – em regra - é melhor do que a do repórter. Hierarquicamente, o editor está acima do repórter. Numa sequência natural do jornalismo, sempre se começa como repórter, chega-se a repórter especial e eventualmente, depois, vira editor, que é uma maneira também de ascender na carreira. Entretanto, não é uma regra geral. Tem gente, por exemplo, com um talento excepcional para repórter, mas não é necessariamente um bom editor e pode trabalhar sempre como repórter e se realizar com isso. A dica que eu daria é a seguinte: tentar buscar sempre uma formação mais sólida, seja em tema que for e, eventualmente fazendo um outro curso, ou ler mais sobre determinado assunto, se especializar em determinado tema. Um pré-requisito para o jornalista é ter um horizonte amplo, ter conhecimentos gerais sobre tudo. Claro que sendo setorista de uma área, naturalmente tu vais aprender mais sobre ela. Por exemplo, no tempo da editoria de Política, quando eu tinha uma relação mais direta de trabalho e decisão dos estagiários e de quem estava começando, partia com um tema bem pontual, uma agenda. E aí, gradativamente, ia avançando e acompanhando aquele tema todos os dias. Naturalmente, 118

a pessoa vai assumir mais conhecimento. Então, acompanhando todos os dias a Câmara Municipal de Vereadores, a pessoa vai saber quem são os vereadores, os projetos que estão tramitando. Vai aprender sobre o Regimento do Legislativo: como funciona, como não funciona. Só que não é um pré-requisito saber isso para fazer cobertura lá, mas sabendo isso é uma vantagem, larga na frente. Da mesma forma, ter uma pauta sobre mercado financeiro e dar para alguém que é cru no tema fica muito mais difícil do que para alguém que já tem uma formação. No Jornal do Comércio, por exemplo, vários repórteres fizeram o curso de especialização da B3 (Antiga Bovespa). Foi um curso de um ano em que se vai à São Paulo, fica lá uma semana e se aprende mais sobre mercado financeiro - coisas mais específicas que a gente não aprende na faculdade de Jornalismo. Porém, se ler todos os dias o Jornal do Comércio, nas páginas de Economia, a pessoa vai aprendendo gradativamente. E se gostar mais de um tema, quanto mais se especializar, melhor. Tem agora especializações também em práticas jornalísticas. Por exemplo, eu morei um ano na Espanha e fiz um curso de Jornalismo de Dados. Foi um curso curto, mas abriu minha cabeça para esse tema. É uma outra maneira de se especializar. Assim posso fazer matérias sobre gastos dos parlamentares, de quanto que as empresas da bolsa ganharam ou perderam ao longo de um período. É um mar de possibilidades e é um tipo de especialização que não é específica de um assunto. Então, eu acho que tem que ter essa abertura para saber sempre mais sobre tudo, para estar sempre aprendendo. Somos muito desafiados, porque a toda hora vão mudando as formas de trabalhar e as exigências. Antes funcionava assim: fechava-se a edição agora, amanhã a gente retoma e fecharemos de novo outra edição. Hoje já não é assim. É uma constante, tem as edições online, tem que ser ágil, tem uma série de novas aptidões e exigências. Então temos que estar sempre abertos para aprender, pois o que você faz hoje talvez não seja o que precisa fazer amanhã. E mais essa coisa básica do conhecimento que é muito importante mesmo.

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O que de repórter de jornal utilizas diariamente na função de editor? E quando tu achas que o repórter tem que ser editor? A função do repórter pode ser considerada a mais importante, porque é a essência, a alma do jornal. Posso ter a melhor edição do mundo, mas se eu não tiver bons repórteres, não vou ter boas informações. Então, a função do repórter é decisiva. De uma certa maneira, o repórter pode atuar um pouco como editor, pautando-se ou fazendo uma matéria tão bem feita que o editor só vai ter o trabalho de baixar aquela matéria, colocar ela na página e não precisar mexer ou retocar. O repórter tem a tarefa diária de buscar informação e escrever um texto, mas ele pode fazer mais do que isso. Um repórter especializado, por exemplo está, possivelmente, mais bem informado do que qualquer editor, porque ele está acompanhando tudo sobre determinadas informações. A matéria que ele publicou é uma parte pessoal de tudo o que ele absorveu para escrever. Se é um bom repórter ele obtém todas as informações. Pode ser também um bom pauteiro para si mesmo e sugerir assuntos, como dar continuidade de uma reportagem por outro viés. Se for uma ideia boa, o editor vai achar ótimo e vai aceitar. E também o repórter pode ajudar muito nessa feitura do jornal se trouxer uma informação bem apurada e garantir: “está aqui a manchete, começa por aqui.”. Aí, se estiver correto, o editor não vai mexer, pelo contrário, vai ficar feliz por uma informação bem apurada. Como editor eu valorizo muito repórter. E eu tenho uma experiência, uma prática - que eu acho bom que é assim: quem escreveu tem uma autoridade sobre aquela matéria. Então, se eu, como editor, vou mexer, eu pergunto: “mas dá pra ser por aqui?”, “é isso aí mesmo?”. Tem que ter essa troca ideias. Ter trabalhado como repórter me trouxe esse aprendizado que é importante, e que eu uso agora como editor, que é essa abertura. Isso porque, às vezes, como editor a gente interpreta uma coisa, ou esquenta demais, ou eventualmente até esfria a matéria. Uma informação que está quente/explodindo o editor vai lá e dá uma atenuada, uma refrescada, buscando esse tom ideal. Essa troca de ideia com o repórter é muito importante.

O editor tem que tomar muitas decisões no seu dia a dia. Por isso, a pergunta: o que para ti caracteriza uma boa edição e uma má edição? E o editor tem conflito com que áreas - comercial, com os próprios repórteres, com a diagramação, com quem? Realmente são muitas as decisões que cabem ao editor. Para mim, uma boa edição é equilibrada, que tenha diversidade de informações. Ou seja, que pode atrair vários leitores, que tenha muitas informações boas, mas nem todas as informações disponíveis. O jornal, quando é bom, entram as melhores informações e não todas as informações. Essa seleção passa por “N” decisões: desde tamanho sobre o que vai entrar ou não vai entrar. Já os conflitos, divergências ou exclusões são inerentes à atividade. Existe uma cobrança diária em todos os aspectos. E volto à questão que já abordei sobre a troca de ideias com repórter: às vezes o repórter não gosta e reclama: “fiz um texto imenso de uma atleta maravilhosa e saiu só esse trechinho aqui”, ou então, “esfriaram a minha matéria”, ou “ah, isso não era bem assim, esquentaram minha matéria”. Isso acontece em todos os setores. Temos que lidar com uma série de variáveis no dia a dia, que nos exigem uma série de decisões, a começar pelos nossos limitadores, que é o tempo para fechar o jornal, a quantidade de material disponível e o espaço reservado para ele. Tudo isso vai se definindo e exigindo decisões ali na hora. São pressões e temos que saber lidar e conviver com elas, administrando da melhor forma possível. Em resumo, penso que uma boa edição de jornal passa por esse equilíbrio, por informação precisa e bem selecionada.

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Um complemento da pergunta anterior, no caso, a relação com o comercial. O JC é um jornal especializado. Como tu vês essa relação que hoje em dia está bem tensa entre as duas áreas, a redação e o comercial? Eu vejo assim como uma coisa natural que a gente precisa enfrentar no dia a dia, que é sobre como fazer o jornal equilibrado e sem comprometer a parte editorial. É natural assim do dia a dia ter um diálogo no sentido de saber o que que está sendo feito. Por exemplo, o JC tem


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produtos especiais, como a cobertura das eleições e todos temos que saber como vai ser a nossa programação, o que vai ser publicado para o comercial poder colocar no mercado. Ou seja, vai ter podcast, vai ter uma entrevista em vídeo com os candidatos e vai ter uma seção sobre determinada área. Exemplo: “vamos fazer agora uma coluna sobre urbanismo no jornal. Quem é que pode patrocinar essa coluna?” Considero que no Jornal do Comércio temos uma relação muito boa, de diálogo mesmo. O importante é esse processo não interferir nas questões editoriais, não dar uma informação errada ou omitir uma informação em função da questão comercial. Isto é muito importante e não tem como transigir. Mas é viável e importante ter um diálogo com o comercial para viabilizar economicamente o jornal. O jornal precisa de patrocínios e anúncios. E eu acho produtivo esse diálogo que a gente tem no Jornal do Comércio de forma a saber o que que a gente está fazendo, exatamente para poder viabilizar comercialmente o veículo.

coronavirus. Mas de manhã eu vejo como está a apuração, o que estão levantando sobre determinado assunto. Até porque isso depois vai ser consolidado ao longo do dia e também vai ter efeitos na edição impressa, mas sempre um editor responsável pelo turno da edição online que está respondendo. Então, em última análise, tenho ingerência sobre tudo, mas não fico tanto no baixamento. Se eu edito uma matéria, eu já público direto no online - depois ela vai ser aproveitada pelo editor no impresso. É essa relação e também nas diversas plataformas, com uma atenção total à edição digital todos os dias, toda hora olhando a audiência para ver o que que está tendo mais leitura, se a audiência está melhor do que ontem, está melhor do que a semana passada, do que ano passado. Isso é uma coisa boa do online: a gente sabe quantas pessoas leram aquela matéria, quanto tempo ficaram lendo e quantos computadores ou smartphones diferentes acessaram aquela matéria. A interação é total com o online.

Qual é a tua ingerência na edição digital, nas mídias digitais que o jornal tem usado? E nos vídeos? Como funciona isso no teu caso? Como editor-chefe eu sou responsável pelo conteúdo tanto do impresso como do digital. Se tem alguma informação importante que não está no ar na nossa edição online, é responsabilidade minha. Assim, tenho que cobrar as pessoas: “ó, isso aqui é um negócio importante e a gente tem que colocar no ar logo”. Cada vez menos é dissociada a edição impressa da edição digital. O que a gente fez lá no jornal é uma espécie de casa de papel: são as pessoas que realmente lidam com papel, os editores que vão fechar a edição impressa, mas a grande maioria das pessoas está produzindo conteúdo. E conteúdo é para qualquer plataforma: primeiro no digital e depois no impresso. No baixamento do digital, ou seja, na colocação das informações no ar, não tenho tanto contato. A ingerência maior é no olhar, página por página, do impresso, porque o dia tem 24 horas e é impossível olhar tudo. Mas eu vejo agora, por exemplo de manhã hoje - como é que está a informação, que eu tinha comentado, recebendo a carga de frangos para China com

Tens um cuidado diferenciado na edição do impresso? Com é a questão da checagem da informação? No online tem a instantaneidade, não pode ficar sem dar a notícia, mas precisa ser bem apurada, não é? Na verdade, funciona uma divisão de tarefas. No período em que estou presente no jornal, mesmo envolvido em outras coisas, chega uma hora em que eu fico exclusivamente no baixamento da edição impressa. A consolidação, a abertura das editorias, o que a gente vai dar na capa, tudo isso demanda um tempo. Por isso, boa parte do período em que estou no jornal, fico focado na edição impressa. Na divisão de tarefas, assim como temos editores em cada área para o baixamento do impresso, temos também os editores de turno. Cada turno tem um editor da edição online, mas a comunicação é permanente e constante. O ideal é que toda informação seja checada e a gente busca ter essa responsabilidade também com o formato online. No exemplo do caso da carne de frango para China, se chegar no final do horário de fechamento da edição impressa e a gente não tiver condições de apurar e checar muita

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coisa, vai sair uma notinha. O máximo que a gente conseguiu apurar e checar, a gente vai dar. E no online não. No online saiu, já coloca lá, com um título. Se é uma informação mais importante pode ter um parágrafo e pode ser manchete no online. E vai ter mais informações em seguida. Então pode ter essa diferença de peso. Já no jornal impresso tem essa hierarquia do aprofundamento e da qualidade da informação, ao passo que no online a informação é mais instantânea e pode ter um destaque grande. Mas essa busca e responsabilidade por checar e dar a informação correta vale para os dois. No impresso, se tiver uma informação errada, você só vai poder corrigir no outro dia. E no online tu podes colocar lá a atualização, correção, tal hora, tal hora essa informação está errada, atualiza e está resolvido. É mais fácil, com a tecnologia disponível hoje, fazer essa apuração bem feita e com essa rapidez, ou ainda demanda tempo? Tudo depende do tipo de informação. Se é uma informação internacional, como a mega explosão lá em Beirute, pode não conseguir entrevistar alguém lá no Líbano, mas pode receber uma informação das agências ou até na CNN Internacional que dará uma nota e a fonte. É a forma de ter a informação muito rapidamente. Se é uma informação local, a nossa principal informação, se é o nosso conteúdo exclusivo, nosso conteúdo especial mais aprofundado, aí o ideal é buscar o máximo de informações e o quanto antes. Aí tem “N” possibilidades. Hoje tem muita gente que recebe informação por WhatsApp, telefone, e-mail, nota oficial. Tem a entrevista que é o básico, o tradicional de jornalismo. A gente sempre busca informações por diversos canais, mas o importante é sempre buscar checar e dar fonte. Essa rapidez tem várias maneiras de se fazer, mas sem dúvida, no online existe uma rapidez maior, o ideal é que pelo menos o básico seja dado logo. É preciso, porém, muito cuidado. Até porque estamos numa fase em que circulam muitas fake news. Todo mundo está recebendo informações pelo WhatsApp e aí a pessoa vai entrar no jornal para ver se a informação procede, tem uma fonte confiável. É importante, ainda que seja só um 124

registro, a gente dá aquela informação primária, para confirmar em seguida o que realmente está acontecendo. Como é que tu cuidas, como editor, das tuas próprias ideologias para não interferirem na edição do jornal? Olha, tem uma coisa que independe de ideologia e subjetividade, que é o fato. Então tem duas questões que são muito importantes. Primeiro: a gente saber o que é o fazer jornalístico profissional. Dar uma informação correta, precisa, baseada nos fatos. Isso não abre muita margem para discussão. Claro que a maneira como vai ser dada tem todo tipo de subjetividade. Por exemplo, “...eles deram só uma redação pequena sobre determinado assunto que é importante…”. Isso acontece por outras razões, por questão do tempo e tantas outras. Mas, sem dúvida, vai da formação de cada um e tudo isso influencia a maneira como vai ser dada informação. Acho, porém, que tem dois aspectos que são definitivos e que norteiam essa informação e que garantem que ela seja correta e profissional. A primeira é se ater aos fatos, a objetividade; a outra é estar atento ao contexto. E depende também do veículo e não só do profissional, ou seja, depende do veículo em que a gente está reportando, escrevendo, trabalhando. O meu contexto, vale lembrar, é a informação econômica do Rio Grande do Sul e isso já indica duas informações que vão nortear essa informação e eu vou privilegiar essas informações em detrimento de outras. Aí pode ter a ideologia que for, a pessoa pode ser de direita e fazer uma boa entrevista com alguém de esquerda e reportar aquilo muito bem, e o contrário também: pode ser de esquerda entrevistando alguém de direita, mais conservador, e fazer uma bela entrevista, dar ótimas informações. Esse também é o nosso papel, promover um pouco dessa mediação, recebendo a informação e editar pensando também no público. Se tu fazes movido por alguma tendência, ou puxando para um determinado lado, automaticamente, tu estás te afastando de um público que poderia estar lendo a matéria, caso houvesse precisão, com a informação mais bem encaminhada.

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E a questão da fake news? Como o Jornal do Comércio está lidando com isso? A questão da fake news é um tema interessante, porque, às vezes, mesmo a gente publicando a informação correta, recebemos comentários e nos damos conta que é importante esclarecer aquele tema, embora não esteja na nossa pauta. Penso que tem dois aspectos importantes nestes casos: os jornais devem estar atentos para publicar a informação correta e assim as pessoas terão uma referência e não ficarão só com as fake news; outro aspecto é que eventualmente pode servir até para pautar aquele assunto. Tem também as agências de checagem que fazem um trabalho magnífico e analisam a fake news e destrincham o caso. São os dois aspectos que influenciam bastante nosso trabalho em relação às fake news: ter responsabilidade com a informação correta; e outra eventualmente até entrar para esclarecer em temas que estão sendo difundidos e que não são corretos. Na relação do jornalista com o veículo, no caso de surgir uma notícia que tu queres publicar, mas o veículo te trava porque tem outros interesses. O que tu farias e qual dica tu darias? Uma coisa que se deve sempre ter mente, inclusive para essa situação referida, é, primeiro, tentar fazer chegar a informação mais precisa possível, ou seja, muito objetiva, muito correta, tendo checado com fonte. Não dar margem para essa contestação, por outras razões. Evitar o “ah não, isso aqui em frente é subjetivo, está errado.”. Então, a primeira coisa é fazer um trabalho profissional mesmo e a outra é estar atento ao contexto, sabendo que cada veículo tem a sua linha e o seu assunto mais importante, o tema que é predominante. Tem temas relevantes em todas as áreas, mas ficar atento, planejando “ah, vou pensar numa boa pauta sobre esse aspecto.” Acho que esse é um bom caminho, um antídoto. Se tu tens uma informação que é corretíssima e é relevante fica mais difícil que ela não seja aproveitada. É mais difícil negar uma informação correta. E sobre a reação do editor com as pressões que podem vir tanto 126

da área comercial quanto da direção, do público e das redes sociais, das diversas pressões que o editor sofre? É uma parte bem difícil porque é um teste diário. O trabalho de jornalista é meio como um trabalho de formiguinha. Todo dia tem que dar a informação correta, mas um dia se passa alguma informação equivocada, vira um problema. No caso das pressões, às vezes, mesmo tu dando a informação correta ainda assim tu sofres uma pressão brutal. Assim, é importante desempenhar um pouco o papel de mediador. Receber pressão, mas não usar ela para se omitir, com coisas do tipo “ah, não vou mais publicar esse tipo de coisa porque o pessoal reclama”. O tema coronavírus, por exemplo, provoca uma grita enorme, tipo “ah, a Covid-19 não é tão sério assim.” Publicamos diariamente informações sobre o número de mortos e infectados pelo vírus e tem leitores que ligam ou mandam e-mails com reclamações, com coisas bem pontuais, como “ah vocês tão esquentando muito”, “são sensacionalistas”, “está dizendo que morre muita gente, mas não é tanto assim.” Isso se bateu o recorde de mortos, mas as mortes não foram naquele dia, mas foram registradas naquela data. Dá um trabalhão lidar com isso. Certo dia fiquei respondendo uma a uma as mensagens de leitores, assim: “Desculpe, mas a informação está correta. Entendo, está dizendo aqui que morreram do dia 10 ao dia 30 de julho, e não todos no dia 30 de julho, mas o indicador oficial é esse, porque tem um delay tanto no que sai no município, depois no Estado, depois no Brasil, depois no mundo e tem que ser feito o teste....” É uma pressão, mas não é por isso que a gente vai deixar de publicar a informação e tem que usar isso a favor, tendo muito cuidado na hora de publicar para ser preciso e dizer que foi registrado naquele dia. Para a informação estar correta e para a gente ter essa força para poder responder. As pressões são naturais, fazem parte da rotina, todo mundo tem a sua opinião e os seus interesses, mas dá para fazer um jornalismo correto e profissional tendo uma mediação. Na verdade, isso também é um desafio e algo muito difícil, visto que mudou totalmente a nossa realidade. Há 15 anos, era completamente diferente a pressão que se recebia em relação ao que a gente recebe hoje, mas tem que saber lidar com isso. Não dá para se 127


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abater ou mudar em função das pressões. O que nós precisamos fazer é nos desafiarmos a fazer uma coisa tão bem feita que eu posso defender isso aqui e sustentar que tá correto. Acho que o caminho é por aí, de um lado a precisão e do outro a mediação. Como é que tu vês a questão do home office e dessa flexibilização de padrões, onde um leitor pode te mandar umas fotos que ele editou para tu publicar, por exemplo? Sempre gostei muito do barulho da redação, rádio ligado, TV ligada...tem gente que quer um silêncio total, mas não é o meu caso. Vou para o jornal diariamente, ainda que quase 90% da nossa equipe esteja em home office. Acho que vai ter, sim, uma mudança porque essa situação nos impôs uma série de adversidades, seja de deslocamento ou de reunião de pessoa, mas acelerou outros processos. Por exemplo, a nossa reunião de pauta agora é um encontro virtual e está funcionando muito bem. A gente segue tendo muitas trocas de ideias e acredito que isso é irreversível. Quando a situação se estabilizar e tivermos uma vacina acho que vai voltar muita coisa, mas ainda assim acredito que vai ser diferente. Não sei ainda como será, porque isso ainda está em andamento, mas a produtividade das pessoas é uma coisa inegável, está muito boa, segue boa e as pessoas continuam fazendo matérias, seja aqui, em São Paulo ou em qualquer outro lugar do mundo. É claro que o ideal é o presencial, como na reabertura do comércio em Porto Alegre, por exemplo. A gente teve que ir lá no centro, tem que ir na Azenha, tem que olhar e ver como é que está, porque não tem como fazer isso de casa. Em outras frentes, porém, esse novo contexto abriu e acelerou uma série de possibilidades, como essas lives e entrevistas ao vivo que a gente vem fazendo e que criam outros produtos. A entrevista que poderia ser gravada com o deputado em Brasília pode ser feita agora daqui, então acho que vai mudar sim, sem dúvida, só não sei exatamente ainda como. Haverá ganhos e algumas perdas, mas quando estivermos na situação ideal de novo acho que as coisas boas virão para ficar e acredito que essa situação do home office vai se intensificar. 128

EDIÇÃO DE JORNAL NO INTERIOR MICHELE FERREIRA

“O jornalista tem que levantar da cadeira e ir para a rua”

J

ornalista pelotense, graduada em 1997 pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Michele Ferreira escolheu o jornalismo porque tinha o sonho de transformar a realidade. É o que a move ainda, depois de mais de 20 anos de carreira, sempre como repórter do Jornal Diário Popular, com passagens pelas editorias de Zona Sul, Cultura e Cidades. Embora tenha construído toda a sua carreira no interior do Estado, já tem experiência de cobertura internacional. Em 2004, por exemplo, acompanhou comitiva do Governo do Estado à China, como representante da Associação dos Diários do Interior (ADI). Além dos troféus do Prêmio ARI de Jornalismo, já conquistou outras premiações. Destaque ao 1° lugar na etapa nacional do Prêmio Sebrae de Jornalismo, em 2012; ao 2° lugar no Prêmio de Jornalismo da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul em 2018; ao 1° lugar na Região Sul do Brasil do Prêmio MPT de Jornalismo também em 2018 e três Menções Honrosas no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, nos anos de 2007, 2014 e 2017.

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Quando tu percebeste que queria ser jornalista? Descobri na adolescência ainda, naquele momento em que a gente fica pensando várias coisas que tem vontade de ser. Nas turmas de mais de 80 alunos dos dois terceiros anos do colégio, só eu e mais uma colega havíamos optado pelo jornalismo. Quando ingressei na Universidade Católica, isso era 1994, a turma que tinha se formado antes de mim, contava apenas com quatro pessoas. As turmas ainda eram muito pequenas. A partir daí, seguiram-se turmas com um número bem maior de estudantes, ou seja, as turmas começaram a ganhar um peso a partir de então. E o que te inspirou a escolher o jornalismo? Tu achavas que tinhas vocação? O jornalista sempre quer transformar a realidade. A gente tem essa intenção, esse sonho, essa utopia de poder contribuir nesse processo de transformação da sociedade. Isso que me motivou: esse desejo de olhar para o lado e ver que as coisas podem ser melhores e a gente pode contribuir. E o jornalista é essa ferramenta. A gente tem esse compromisso social. No dia a dia, a cada pauta… todo tempo! Nós temos esse poder, óbvio que não se consegue em todas as matérias, mas temos esse compromisso e isso é o que nos move. Com certeza acredito que a gurizada que faz o jornalismo hoje também é movida por isso, por essa intenção, de garantir direitos. Estamos em um momento na nossa sociedade com constantes ataques a tantos direitos e eu acho que o jornalista pode contribuir nesse processo de garantir os direitos, de fazer as denúncias, de buscar uma sociedade melhor para todos.

que hoje é uma referência, mas a rádio já existia; era bastante antiga. Eu fiz um estágio na rádio Universidade por dois anos, sou apaixonada pelo rádio e também fiz uma formação na época, na RBS TV – no programa chamado Caras Novas. Foi a última turma que teve em Pelotas, lá em 1997. Aí me formei, aquela sensação: eu acho que a grande maioria dos jovens, se forma e sempre tem a mesma ansiedade, passamos o curso estagiando, bastante ativos, e aí se forma e não tem um emprego. E aí eu naquela batalha, enfim, buscando, fazendo testes, andando de um lado para o outro, no estado e fora do estado também, buscando uma vaga. E aí, de tanto vai de lá para cá, fiz também um freela no Diário Popular e acabei ficando no jornal. Mas acabou assim, surgindo, eu sempre gostei bastante de escrever, mas quando me formei eu não tinha exatamente esse desejo. Não, naquele momento eu estava aberta para as oportunidades que surgissem. Tinha essas experiências anteriores como aluna - tanto no rádio, quanto na TV -, acabei migrando para o impresso. Porque a gente tem essa coisa de bastidor, de não ficar tão exposto, e acho que hoje eu me identifico bastante com essa habilidade.

O Diário Popular é uma referência aí na tua região. Tu pensavas em trabalhar no Diário Popular, era o jornal o teu objetivo? Quando eu estava fazendo a minha formação, nenhum dos meus dois estágios da época foi no jornalismo impresso. Eu fiz um estágio de dois anos na rádio da Universidade Federal de Pelotas. Naquele momento, a Universidade Federal ainda não tinha o curso de jornalismo,

Pelotas sempre se caracterizou por ser uma cidade formadora de bons profissionais de imprensa. Enfim, é uma cidade que forma muitos profissionais, alguns deles muito bem avaliados e bem sucedidos em Porto Alegre, em outras capitais, inclusive Brasília. Esse caldo de cultura ainda existe? Pois bem, o próprio Diário Popular tem sido uma referência e tem há bastante tempo essa parceria com as universidades onde o pessoal tem feito estágios. Há mais de 10 anos que o jornal está aberto para esses estágios e com certeza tem sido uma referência na formação. Mas Pelotas não é diferente dos outros municípios do Estado, as redações têm sofrido bastante. Um enxugamento, uns cortes, não está diferente do restante do estado, tem sofrido bastante com isso, inclusive com fechamento de sucursais - a própria Zero Hora, por exemplo, tinha uma sucursal, teve por anos uma sucursal em Pelotas -, as emissoras de TV também foram fechando/enxugando. Hoje a gente tem um mercado

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bastante encolhido, infelizmente, em Pelotas, perdemos bastante força nos últimos anos em função deste mercado, desse enxugamento geral que nos afeta profundamente, apesar de ter um investimento. Ao mesmo tempo, a gente cresceu na parte da formação acadêmica - com abertura do curso (de jornalismo) da Universidade Federal, que não existia antes. Então, ganhamos e nos fortalecemos por um lado. Mas o mercado se encolheu bastante com a redução do mercado. A gente que está no interior tem se ressentido muito dada a possibilidade de, por exemplo, fazer conteúdos especiais. Porque o próprio Diário Popular sempre teve uma relação de poder trabalhar conteúdos especiais, mesmo que em alguns momentos isso não podia fazer parte do nosso dia a dia, até por uma questão estrutural, mas a gente conseguia identificar alguns momentos do ano em que conseguia reservar um período para fazer alguma reportagem especial.

perto, observar, trazer esse ambiente para os textos, ouvir as pessoas de perto. Às vezes, a gente nem tem a possibilidade de conversar com alguém, mas a gente está naquele ambiente, podendo observar e trazer esses elementos para o nosso texto; esse vai ser o diferencial do nosso trabalho. É muito importante esse aluno não ficar preso aos exemplos que ele vai buscar através das redes sociais. Eu vejo a gurizada, às vezes: ah, mas onde eu vou conseguir dar o exemplo? Onde eu vou conseguir alguém que me fale sobre isso? Porque ficam preocupados em buscar esse exemplo pelo Facebook, pelo Instagram, ouvindo e monitorando o Twitter. Enfim, são ferramentas extremamente importantes, mas elas não podem limitar esse trabalho, de olhar para o lado, de vasculhar nas redes sociais; se eu não encontrar essa resposta eu acho que, então, a minha pauta não existe. Na verdade, preciso é me levantar da cadeira e ir para rua, ver de perto a situação, ouvir as pessoas. Precisamos ter essa consciência de que a tecnologia é uma ferramenta de trabalho, mas ela não vai nos dizer se é possível ou não de fato cumprir uma pauta.

Como os estudantes devem fazer para se preparar para a profissão, na tua visão? Uma coisa que eu sempre converso bastante com o pessoal, como a gente tem os estudantes estagiários na redação do Diário, gosto sempre de trocar ideias com eles. Acho que é um momento de aprendizado e nessas conversas deixo claro que é válido para estudantes de qualquer lugar do Brasil e do mundo, é que estamos em um momento voltados a questão digital e a tecnologia nos permite, tanto que hoje em dia estamos trabalhando em home office. E mesmo com limitações, conseguimos fazer um jornalismo com poucas saídas… Então, acho importante que o pessoal tenha a consciência de que independentemente do nível de tecnologia em que eles estejam inseridos (eles podem estar em um veículo que concede essa possibilidade de alta tecnologia, de telefones com condições de fazer vídeos, entrar com lives, tantas possibilidades) independentemente dessas ferramentas que são importantes, e nos dão dinamismo e condição de fazer um jornalismo conectado, em qualquer lugar, que independente disso não haverá pauta tão bem feita quanto se eles estiverem no local. Eles devem buscar essa realidade, estar

Sabemos que os jornais do interior trabalham com equipes mais reduzidas. Nessa realidade, as mulheres estão sendo procuradas e obtendo vagas nesses jornais menores também? Sim, pelo que eu tenho observado, analisando, conversando com outros colegas e observando outras redações, embora tenha esse enxugamento, não percebo que as mulheres estejam prejudicadas nesse mercado. Do que eu tenho observado, de uma maneira geral, em redações, tanto de impresso, de rádio, nas próprias assessorias de imprensa, enfim no mercado de uma maneira em geral, não vejo que esteja acontecendo qualquer prejuízo nesse sentido das mulheres estarem em desvantagem nesse aspecto. Porque a gente sabe que muitas vezes acaba pesando um pouquinho. Já aconteceu, a gente sabe de relatos de situações: ah, de repente essa pessoa poderá engravidar, poderá ficar um tempo fora… aquelas coisas todas que às vezes pesa um pouquinho, na hora de dizer se eu vou contratar um homem ou uma mulher, mas não tenho observado nenhuma desvantagem nesse aspecto de as mulheres

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acabarem excluídas por algum fator, não. Para fazer uma grande reportagem, como é a tua preparação? Que tipo de combinação fazes com o fotógrafo? Até pegando um gancho um pouquinho do que eu já tinha falado antes, a gente tem, principalmente eu tenho falado da realidade não apenas do Diário Popular, pois tenho sentido isso também através de relato de outros colegas. Na impossibilidade de a gente produzir esses conteúdos, que nos dão esse sabor assim de poder, infelizmente não é como a gente vê nas grandes redações em que uma pessoa fica um mês trabalhando em apenas uma matéria. No interior, quando a gente fala que a gente consegue ficar em um assunto para fazer um conteúdo especial significa ficar duas ou três semanas quando muito, envolvida na produção de um conteúdo. Então esse é o primeiro ponto importante a ser analisado - a realidade do interior. A gente, infelizmente, não, mesmo quando recebe do editor a possibilidade de fazer um conteúdo especial, ele é especial dentro da realidade limitada que é poder correr para conseguir produzir algo diferenciado em duas ou três semanas, não consegue ficar reservado. Eu diria que essa limitação também acaba interferindo no processo de criação.

princípio, que também nos move, ou seja, dar continuidade nos temas e ir acompanhando, na medida do possível. Acho que uma coisa fundamental é a gente se guiar pelo interesse público; esse é um princípio básico, pensar se aquele assunto é relevante e, a partir daí, buscar as mais variadas formas: estar perto dessa comunidade, ouvindo os anseios, às vezes olho para uma pauta e volto para a redação já com sugestão de duas ou três só desse contato com a própria sociedade, onde passamos a ser uma referência: ah, vou te falar de outras demandas, vão surgindo outras pautas, contato com os conselhos municipais, também já que eles recebem muitas demandas da sociedade, então eles são também boas fontes, contato com Ministério Público. Todas essas são fontes e, muitas vezes, vão originar os conteúdos especiais que a gente vai gerar. Contato com os conselhos: Conselho Tutelar, Conselho de Saúde, Conselho de Educação, Conselho do Idoso; enfim, são fontes muito importantes. E depois com o tempo as próprias fontes também acabam nos procurando, e vão fazendo com que esses assuntos surjam.

Mesmo assim, com todas as limitações, tu venceste o Prêmio de Reportagem 2017 para essa matéria dos Encarcerados. Como é o teu processo para uma grande reportagem e como é o trabalho com o fotógrafo? Sempre é importante, na medida do possível, dar continuidade a esses temas. O Encarcerado foi um exemplo disso, de um tema iniciado em 2007, depois retornou em 2012, 5 anos depois. Em 2017 fizemos um fechamento, acompanhando um ciclo de 10 anos. Ali já tinha um ponto de partida, para inclusive fazer um paralelo, comparando o sistema carcerário daqui da nossa região. Poder mostrar as características, inclusive desses apenados: os tipos de crimes, a reincidência, a superlotação das casas prisionais. Enfim, toda essa questão. Esse é um

Como é a tua rotina de trabalho no Diário? O que tu ouves? O que tu lês? O que tu vês? E qual é tua relação com as redes sociais? A minha rotina é bastante alterada, mas posso falar agora um pouco de agora, antes da pandemia. Nesse momento, eu estou trabalhando de casa, como eu tinha comentado, saindo basicamente para pautas que fazem: exemplo, quando vou acompanhar um ato de algum agente comunitário de saúde em uma doação de sangue e cobrando algumas melhorias para a categoria deles, então vou para a rua acompanhar esse tipo de ato. Mas, neste momento de pandemia, a gente tem saído muito menos, o que de alguma forma também é ruim para o jornalismo, porque é importante esse contato, assim, de estar mesmo na rua. Mas, em geral, é isso, tenho que trabalhar de casa, saindo nos momentos que as pautas requerem. Quanto à minha relação com as redes sociais, até brinco um pouco, porque eu sou bastante analógica, sabe? Embora, eu seja jornalista e esteja inserida em diversos meios, nesse momento requer que se corra atrás e aprenda a usar todas as ferramentas. Não

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sou daquelas pessoas que estão sempre buscando baixar os aplicativos, comprar os melhores aparelhos. Não, realmente eu não tenho essa ligação, assim, tenho por aquilo que é necessário, mas, praticamente, vou ali, busco as informações, mas uso, basicamente, como fonte de informação, pra checar alguma coisa, verificar. Nesse momento, por exemplo, da pandemia, em que vários municípios postam óbitos. A medida que essas informações vão chegando eles vão postando ali, independentemente de já terem colocado um boletim do dia com as informações. Na medida em que chegam informações novas eles vão colocando nas redes. Quem me acompanha nas redes sociais sabe, eu posto pouquíssimo, basicamente eu entro, olho, comento alguma coisa nas redes de amigos/familiares, nas pessoas que eu sigo, mas sou bem quietona nas redes. Como se dá a pressão sobre o jornalista em uma cidade como Pelotas? Especialmente para quem faz essa cobertura no dia a dia, na prefeitura, como se dá? E como se lida com isso em um jornal como o que tu trabalhas? Realmente, não é nada fácil, não tem porque eu negar isso. E Pelotas é uma cidade bastante conservadora, ela tem essas coisas das tradições, das famílias, dos sobrenomes temos isso muito forte em Pelotas. E essa pressão existe, não tem porque eu dizer que ela não ocorre, ela ocorre sim. Por parte da política, das gestões dos hospitais, das cidades. Ela existe realmente. Eu diria que o “bom” é quando essa pressão ocorre de todo lado, da direita, da esquerda. De alguma forma, eu acho que quando essa pressão ocorre de todo lado, de alguma forma eu acho que é bom os alunos saberem disso; é como se ela fosse um indicador de que estamos trabalhando da maneira correta. Porque quando a pressão vier só de um lado, aí tu podes achar que está pendendo para cá ou para lá. Quando tu fazes uma matéria hoje que desagrada A e amanhã tu desagradas B, vem a pressão de um lado e vem a pressão do outro, um pede a tua demissão e o outro pede também. Enfim, fica aquele grande jogo, assim. Não é nada fácil, não; é difícil e isso faz com que a gente 136

trabalhe com muito compromisso da checagem da informação, da gente gravar tudo. Tu vais entrevistar pessoas, se for pessoalmente, tu vais gravar no celular. Na redação do Diário Popular alguns ramais gravam as ligações. E um dos ramais que gravam é o meu ramal. Porque em geral, como eu já estou há mais tempo na redação, não raro as matérias com maior potencial de incomodação acabam caindo para mim, talvez porque eu já tenha um tempo a mais de reportagem. Então, em geral, aquelas matérias que tem potencial de dar problema acabam caindo no meu colo. Por isso, é importante que o meu ramal grave também. Seguidamente, essas gravações têm que ser adicionadas, porque a fonte liga e tenta dizer que não foi bem assim que ela disse, que a gente distorceu e aí tu precisa demonstrar para pessoa que ela realmente disse aquilo, nada foi distorcido, que na verdade a pessoa pode não ter pensado, não se expressou da maneira adequada. É um grande desafio, eu acho que trabalhar em jornalismo é algo bastante desafiador em qualquer lugar, mas numa cidade do interior, conservadora como é Pelotas, acho ainda mais difícil. Depois desse alerta importante para estudantes de jornalismo, que nem sempre têm consciência de que alguém pode fazer uma afirmação e depois alegar que não disse nada daquilo, gostaríamos de saber qual o maior desafio que já enfrentaste na atividade? Agora eu fico pensando aqui, qual seria meu grande desafio. Algumas pautas, de fato, marcam muito. Uma das pautas que está sempre marcada para mim é a cobertura em que eu me envolvi na enchente de maio de 2004 em Pelotas. É que havia muitas pessoas em situação de risco, boa parte delas com as suas casas invadidas pelas águas, tinha que estar na rua. E estar lá naquele momento significava entrar - realmente - e ir em busca desses relatos. E eu não achei justo que ouvi aqueles relatos fosse eu ficar, porque embora a cidade estivesse toda inundada, mas naquele momento, não estava mais chovendo quando a água começou a descer, a invadir vários locais já não estava mais chovendo, sabe? Mas o nível das águas continuava subindo, e a gente considerou, 137


VISÕES DO JORNALISMO

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Os estudantes de jornalismo do interior do Estado, como em Pelotas, sonham grande, pensam em sair, em trabalhar num centro maior, em Porto Alegre? Ou as empresas locais e as assessorias de imprensa absorvem esses profissionais? Acho que ainda está bastante dividido. Eu diria, só voltando para o começo da pergunta, eu acho que ainda existe esse encantamento, essa coisa de pessoal fazer jornalismo. Enfim, eu também sonhei. Quando eu estava fazendo o curso de jornalismo, eu tinha essa coisa, eu queria ser correspondente de guerra. Tinha essa grande vontade, ou de poder me envolver na cobertura de uma Olimpíada. A gente se imaginava, se projetava, fazendo coberturas internacionais, eu também me motivei por isso e acredito que muitos estudantes ainda tenham esse desejo. Em Pelotas, grande parte dos alunos tem migrado para assessoria de imprensa, acho que é um mercado. A gente procura entender, é algo

que todos os jornalistas mais ou menos veteranos ou iniciantes, é uma pergunta que todo mundo está se fazendo: em como está se comportando esse mercado. Porque afinal de contas, as redações estão enxugando, está tudo tão restrito, e a gente pensa: mas tem tanta gente se formando, para onde vai toda essa gurizada? Porque a impressão é de que não vai ter oportunidade para todos. Mas ao mesmo tempo, o mercado está em transformação, dinamizando-se. Hoje em dia existem as agências de conteúdo, que era um mercado inexistente até pouco tempo, não havia tantas agências de conteúdo como hoje. As próprias instituições, os hospitais, as escolas, os sindicatos, eram entidades que até poucos anos não tinham essa preocupação de ter um assessor de imprensa. Então, eu acho que o mercado está se transformando. Está tudo muito dinâmico. Não é necessário do diploma para exercer nossa profissão. E ao mesmo tempo tem um mercado em transformação: por um lado ele enxuga, mas por outro reconhece a importância desse jornalista que faz a checagem da informação, faz esse filtro se é importante ou não, que cuida das questões éticas. Nesse sentido acho que a gente vê a importância da formação do jornalista. Porque nas redes sociais, as pessoas estão passando ali na esquina, tem um acidente de trânsito, para uma pessoa e já fazem uma foto, já fazem um vídeo, já colocam nas suas redes e não tem uma preocupação de saber se elas vão estar dando a notícia da morte daquele familiar para alguém, que eventualmente vai estar olhando aquelas redes sociais? E o jornalista ele tem todo esse cuidado, se é ético ou não, de que forma fazer, os cuidados, quais imagens usar, em qual momento? A gente sabe a forma de fazer. E, às vezes, se fica em dúvida troca uma ideia com o colega, com editor, a gente tem todo um cuidado, é preparado para isso, temos a formação. Também sabemos como se comportar nas redes, o que é importante ou não, o que deveria ou não ser notícia, então tudo isso. Mas voltando à pergunta: parte dos formados é absorvida pelas assessorias de imprensa, mas ainda tem vários alunos que se formam em Pelotas indo para os mais diferentes veículos. Hoje em dia a gente tem colegas trabalhando em Brasília, em São Paulo, em vários jornais do Brasil. Tem várias pes-

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naquele momento, que o correto não era ficar esperando as pessoas no sequinho, sabe? Lá junto, assim, onde tinham algumas pessoas aglomeradas... A gente achava que o correto era ir onde aquelas pessoas estavam aguardando serem resgatadas. E aí fomos em busca desses relatos, eu e o Carlos Queirós, que é um dos grandes companheiros meus de empreitadas, fomos conversando com alguns moradores, para saber onde que havia bocas-de-lobo, e fomos, então, em busca de relatos. Eu tenho até hoje imagens guardadas daquele dia, com água pela cintura. E depois voltei para redação, só pedi uma roupa seca, porque não dava tempo de voltar em casa para tomar banho/me arrumar enfim, só pedi que me levasse uma roupa seca para redação, me troquei e segui o baile até a madrugada. Não sei se eu posso dizer que ele foi maior desafio, mas foi um momento muito marcante da minha carreira que até hoje, apesar de eu já ter feito tantas outras pautas, matérias especiais, aquela era uma pauta de dia, não era uma pauta especial, tinha que ser feita rápido com as respostas rápidas para sociedade para retratar o que estava acontecendo na cidade, mas foi uma pauta bastante marcante, até hoje para mim.


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soas, inclusive, que passaram pelo Diário Popular e acabaram seguindo a sua caminhada, indo longe. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que é importante também ter essa noção de que o jornalismo que a gente faz em uma cidade, aqui, no meu mundo em Pelotas, numa cidade do interior, ele tem o seu valor. Não precisa estar no maior jornal do Brasil. E eu não sei se alguém abordou aqui com os alunos, mas tem a questão também dos salários. A nossa categoria tem alguns jornalistas no Brasil com grandes salários, como tem alguns poucos jogadores de futebol no Brasil e no mundo com grandes salários, mas a grande maioria não é valorizada, não tem grandes salários. O jornalista é que nem jogador de futebol, a grande maioria recebe pouco e poucos, que atingem um certo status, ganham muito. O que te gratifica na profissão? E qual a tua visão do jornalismo para o futuro? Eu estava comentando que sou uma apaixonada pelo jornalismo, pelo nosso ofício. Independentemente de saber que não é uma rotina fácil. Os salários não são uma maravilha, não é uma vida fácil. Ela é cheia de inconstâncias, da gente não saber muitas vezes aquelas coisas básicas. Tu vais para redação, tu não sabes se vai voltar pra almoçar, não sabe se vai sair cedo ou se vai sair tarde. Às vezes planeja toda uma questão familiar, é dia do aniversário de um familiar e tu não participa, trabalha domingo. Enfim, não é uma rotina fácil, a gente sabe, mas ao mesmo tempo ela é apaixonante. Eu acho que o jornalismo e a reportagem, em especial, a redação é para quem vai se apaixonando mesmo pela profissão e vai vivendo essa loucura. Porque ao mesmo tempo é muito gratificante. É gratificante pensar que podemos contribuir nessas pequenas transformações, sabe? Daqui a pouco tu pegas, um exemplo, uma família que precisa de um transplante pra um filho e vai te envolver em uma campanha, divulgando aquilo. Pra gente que trabalha no interior isso é mais forte e presente, é essa coisa de fazer uma matéria sobre uma campanha e motivar a comunidade. Daqui a pouco alguém que tem condições e paga, a campanha até deixa de exis140

tir porque alguém vê a matéria e paga uma cirurgia pra alguém, sabe? São pequenas transformações que não vão mudar o mundo, mas ao mesmo tempo nos deixam extremamente felizes de poder contribuir com aquilo, com pequenas coisinhas do dia a dia. Cobrar porque tem uma fila gigante de quase mil pessoas esperando para fazer uma cirurgia eletiva de traumatologia, aí tu vais lá e usa o exemplo de duas ou três pessoas que tão sofrendo na pele e força uma decisão. Coisas do dia a dia. Que uma categoria consiga um salário melhor, uma fila de espera ande, de alguém conseguir uma cirurgia, aí tu vais lá e cutuca o poder público e força uma solução para isso ou gera uma ação civil pública, no Ministério Público, a partir de uma matéria. Isso nos move, faz com que a gente queira sim estar em uma redação, não se importe de perder almoço e releve coisas do dia a dia. Aquela coisa da fonte que te liga e te xinga. Enfim, o nosso dia a dia é feito disso também, mas ao mesmo tempo alguém te liga para te agradecer de algo que deu certo, por uma campanha. Enfim, a gente faz todo tipo de matéria. No interior tem essa ligação a mais, por mais que no curso, quando estamos estudando, tenha aquela coisa do jornalista não se envolver, não poder se emocionar, essas teorias da faculdade? O jornalista não pode chorar… tem um monte de máximas que ouvimos na faculdade e que na prática… quando vou conversar com a gurizada no curso, sempre digo isso para eles: olha, eu acreditei nisso, pensava que isso era o certo, trabalhei tentando segurar isso, sabe? Está numa pauta e tem que ficar durinho ali, achando “não posso me emocionar, me envolver”, porque eu ouvi, isso é o certo. E aí a gente entende que não, vai ter momentos de se emocionar, faz parte do dia a dia. Eu acho o Jornalismo apaixonante por tudo isso, por tudo que somos capazes de fazer! E depois desse momento tão difícil, o que tu achas que vai mudar na relevância do papel do jornalista? Na forma de trabalhar? Com a presença mais constante da tecnologia, será que vai ficar mais difícil falar com as pessoas ou mais fácil?

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Várias perguntas, assim, têm nos provocado muitas dúvidas que não só como jornalista, mas a sociedade, “o que vai restar? Como vamos nos comportar? Quais valores teremos daqui para frente?” Eu acho que a gente pensa muito sobre tudo isso. De como vai ser essa sociedade depois que tudo isso passar, quais serão as prioridades? O que vai ser importante? Realmente, eu vou dizer que não consigo ter essa resposta. É engraçado tudo isso. Não imaginávamos que tudo fosse ser dessa maneira. Se me perguntassem lá em março, quando eu vim para casa achando que eu ia trabalhar duas ou três semanas em casa e já ia voltar para redação depois. Eu nunca tinha trabalhado de casa, nunca tinha pensado que isso era possível. Porque a gente é acostumada com aquele meio de trabalho? Se acostuma com aquelas ferramentas, daquele jeito e várias coisas que até eu condicionava, aquela coisa, assim: ah, pedir uma foto para fonte e essas coisas: “não, a foto tem que ser nossa, aquela feita por nós, que o nosso fotógrafo vai lá e produz”. Hoje em dia por tudo que está acontecendo precisamos contar com esse apoio da fonte. Que ele veja uma foto, se ele pode nos passar. Coisas que eu mesma questionava e achava errado de fazer, que era contra o “fazer jornalismo”? E hoje em dia a gente faz, por uma necessidade. Se é certo ou errado, se vamos deixar de fazer isso depois, eu tenho um pouco de medo de como vai ser? Se a gente vai se acostumar com essa forma de fazer? Será que as coisas podem continuar sendo simplificadas? Eu tenho um pouco de receio se vamos continuar achando que deve simplificar essas coisas, porque hoje simplificamos por uma necessidade. Mas eu não sei como vai ser depois; que prejuízos poderá provocar. Sinceramente é uma resposta que eu não sei.

sul ser a mesma, mas a gente, em todos esses anos, nunca tivemos um grupo no WhatsApp, por exemplo, com todos os assessores de imprensa. Claro que até uns anos atrás nem falava em grupo de WhatsApp, era um outro momento. Mas a gente não tinha isso, de ter uma relação tão estreita com os assessores de imprensa das prefeituras por exemplo, como temos hoje. Criamos um grupo de WhatsApp que todos os dias se comunica várias vezes durante o dia, com esses 22 assessores de imprensa da região para que eles possam ir nos abastecendo com as informações: do número de casos, dos óbitos, das ações que a prefeitura tá tomando, das barreiras sanitárias, das medidas que eles estão adotando. É algo que a gente já poderia estar fazendo, porque os municípios são os mesmos, o jornal é o mesmo, eu sou a repórter, por que eu não fiz isso há mais tempo? Hoje em dia fazemos isso por uma necessidade. Então eu acho sim que poderá também ter esse olhar um pouco mais colaborativo, poderemos ganhar por esse lado talvez perder por outros? Porque ao mesmo tempo, eu também não sei se os editores não vão compreender que podemos ter menos profissionais, porque como a gente consegue trabalhar de forma colaborativa com o assessor de imprensa de uma determinada cidade que pode me mandar material, “será que eu preciso mesmo do meu repórter?”. Então, não sei o que vai ser bom, ou vai ser ruim para o mercado, mas acho que a transformação vai acontecer, com certeza.

Você não acha que pode ser mais colaborativo continuando, inclusive nessa linha do interior, aí com essa proximidade maior com o repórter com a redação? Acha que pode ser mais colaborativo? Pois é, pois é. Talvez sim. Acredito que possa acontecer essa transformação nesse sentido. Hoje em dia, por exemplo, é uma coisa bem prática nossa aqui. Embora os municípios serem os mesmos e a zona 142

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A ASSESSORIA DE IMPRENSA NEUSA GALLI FRÓES

“A honestidade e a verdade são libertadoras em tudo”

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chefe de reportagem João Batista Aveline (conhecido como “o velho” no meio jornalístico) mandou a ¨foca¨ Neusa Galli Fróes ao aeroporto Internacional Salgado Filho para entrevistar o então ministro da saúde, Paulo de Almeida Machado (1974- 79). Ela voltou com a manchete do jornal Zero Hora. Isso foi no ano de 1975, quando o governo do “Milagre Brasileiro” vinha escondendo desde 1970 uma epidemia de meningite, a ponto de editar o Decreto-Lei 1077, de 20 de janeiro de 1970, proibindo médicos e sanitaristas a darem entrevistas. Mas quem conheceu a menina nascida em Erechim, que vivia lendo jornais - mesmo os atrasados -, não estranharia essa desenvoltura. Pois desde os nove anos ela já dizia aos familiares e amigos que seria jornalista. Não só dizia como atuava na sua escolha profissional, sempre pensando em relatar os acontecimentos. Quando não entendia alguma notícia, indagava até encontrar as respostas. Chegou em Porto Alegre decidida e assim que terminou o curso de jornalismo foi estagiar em Zero Hora, onde passou por várias editorias na redação. Aprendeu com certo encantamento as regras de cada setor que serviam como lições de vida. Mas o que 144

ela gostava mesmo era escrever sobre comportamento, tanto que já no primeiro ano, numa matéria de Geral, conquistou o Prêmio ARI, ainda que a maior parte de seu tempo em redação tenha escrito sobre economia. Mesmo assim, sempre foi teimosa, colocava alguma “deixa” da entrevista para situar o leitor, ressaltando a cor da gravata, o menu da reunião. Nunca deixou de ser jornalista e mesmo quando partiu dali para o outro lado do balcão, como assessora de imprensa, levou consigo os propósitos do bom jornalismo. E mesmo como assessora e agora, como empreendedora, vive perguntando para aprender e, com todo respeito, valoriza o essencial da profissão que ela tanto gosta e assumiu: a humildade.

O que faz um assessor de imprensa? Ele dá luz, coloca luz e foco em cima da empresa do assessorado. Para dar visibilidade. Ele trabalha em cima de fatos. Eu tenho até um parênteses para fazer porque na minha experiência de repórter, e agora como assessora, eu acho que ter frequentado uma redação, como foi o meu caso, dá uma condição muito diferenciada para o assessor, porque ele fica sabendo dos times. Eu acho que se eu, por exemplo, começasse de novo no jornalismo, eu não iria direto para a assessoria, faria o mesmo caminho já percorrido, porque acho que é importante saber como funciona o jornal, como é o processo lá dentro, que é um processo industrial, tem horário, tem que ter respeito pelos detalhes. Como se dá a transição do jornalista de imprensa para o assessor? Existe algum tipo de conflito entre os dois? Existe sim. Às vezes eu me deparo atuando como repórter e não como assessora e eu tenho que me controlar em relação a isso, porque eu sei o que o meu assessorado pensa e o que ele vai dizer, porque às vezes tem uma pergunta que ele não responde direito ou alguma que não foi feita que eu tenho vontade de fazer. É um conflito sim, mas a gente se acostuma, como tudo na vida.

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Como foi a tua trajetória de ter iniciado como repórter e ter passado para a assessoria? Eu trabalhei na Zero Hora por 17 anos, depois eu fui para o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), fui ser assessora de imprensa do presidente da instituição na reabertura desse banco de fomento. Eu fazia a área financeira na Zero Hora. Por que passaste de um para o outro? Porque eu fui convidada para ir para o BRDE. O presidente que estava assumindo na reabertura do banco era o Cairoli (José Paulo Cairoli), e aí aceitei, fui ganhar mais também, isso aí é uma coisa importante. Hoje já não sei mais como isso está, mas no nosso tempo era difícil, não se ganhava bem nas redações. Depois eu fui para o governo Britto (Antônio Britto, governador entre 1995/99), onde eu trabalhei na divulgação do programa de reforma de Estado, a venda da CEEE, da CRT. Eu trabalhei com o secretário Assis (Assis Roberto de Souza) na Secretaria de Energia, Minas e Comunicações, que era a Secretaria de reforma de Estado. Fiz a divulgação da venda da CEEE e da CRT no Brasil e no mundo. Foi uma experiência interessantíssima nos leilões, pois foi o primeiro leilão de uma estatal da área de telefonia que foi feito aqui no Rio Grande do Sul, o primeiro do Brasil também. Ainda no governo Britto, fui para a campanha dele, do segundo turno, que ele perdeu. Então, também a convite, fui trabalhar na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, onde fiquei um ano com a presidente da época, a deputada Yeda Crusius. A experiência foi interessante. Eu trabalhava dentro da Comissão e atendia vários deputados, foi uma visão nacional que eu tive, porque eu tinha uma visão muito regional, com a venda das estatais. Foi em Brasília que eu realmente vi o todo, como é que é o Brasil, como que funciona lá também. É complicado a gente ser inserida lá, porque eu trabalhava dentro da Comissão, não conhecia quase ninguém, mas também a gente vai conhecendo, aprendendo. Quase que eu fiquei em Brasília. Só não fiquei porque meu marido estava em Porto Alegre e eu lá. Foi bem complica146

do esse ano de 1999 para mim. Aí voltei e pensei em abrir a minha empresa, que é a Fróes Berlatto. Na verdade era, porque hoje já não é mais Fróes Berlatto, hoje é NGF Comunicação. Fiquei 20 anos como sócia da Gládis Berlatto, e agora a Berlatto se aposentou, então eu estou fazendo uma nova empresa que a pandemia estagnou, no sentido de não conseguir formalizar ela ainda, porque as coisas estão fechadas. Eu ainda trabalho com notas fiscais e tudo mais da Fróes Berlatto, mas estou aguardando ser formal, já sou formal na verdade, só estou aguardando mudar o nome da empresa, que é NGF Comunicação Estratégica. Eu estou falando aqui pela primeira vez sobre isso. Dentro da Zero Hora passaste por três editorias. Poderias falar um pouco sobre isso? Comecei com meu grande mestre do jornalismo chamado João Batista Aveline. Esse cara foi o cara que me ensinou. Ele me mandou fazer um negócio no aeroporto e eu fui fazer, já estava formada. Eu cheguei e ele disse assim “Quantas laudas?” Daí eu disse “Seis” e ele disse “Tá louca?! É uma lauda!” Eu me confundi e ele me deu um cascão na cabeça e disse “Não, não, o que é isso? É uma lauda apenas. Aí eu me lembro que nesse dia eu dei a manchete sem querer, sem realmente querer, porque não sabia direito. A manchete era do ministro da saúde chegando e falando sobre a questão da meningite. O Brasil estava com surto de meningite. Eu acho que a faculdade ensina, mas a gente aprende mesmo na redação. Isso é uma coisa da qual eu tenho absoluta convicção. A gente tem talento, porque acho que tem que ter talento para ser jornalista, não pode ser simplesmente “Eu quero ser jornalista”, não. Tem que ter jeito, tem que ter um olhar diferenciado, a faculdade ensina as técnicas, mas esse olhar você traz consigo. E aí depois eu fiquei na editoria Geral, daí fui para Economia. Não gostei da Economia, fiquei uns três meses e pedi para voltar para a Geral. Então chegou a Eunice Jaques na redação, que assumiu a Geral. Quando ela foi para o Segundo Caderno ela me levou junto, aí sim eu era uma repórter especial do Segundo Caderno, tão bom! Entrevistei Gilberto Gil, Caetano Veloso, ah era muito bom! 147


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A Eunice foi para a Economia e aí ela me levou também para lá e ali eu fiquei. Foi um grande aprendizado, colocar o ponto nos “is”. O maior tempo no jornal eu fiquei na Economia. Então a ordem foi Geral, Variedades, que hoje é o Segundo Caderno, e aí Economia. Mas na Geral fizeste coberturas extremamente importantes no começo, como no caso da Fazenda Annoni, quando os colonos ficaram acampados no Parque de Exposição de Esteio. Na hora que foram enviados para um assentamento, as repórteres que estavam diariamente lá, como foi o teu caso, foram preteridas, mandaram repórteres homens acompanhar os colonos para o Mato Grosso. Como tu encaraste isso? Olha, senti pela primeira vez o machismo. Foi a primeira vez, não tinha sentido nada nesse sentido assim de gênero antes. Nesse dia eu senti. Fiquei muito triste, muito triste. Em outras ocasiões, chegaste a ver isso de uma jornalista mulher ser preterida nas redações? Como foi isso? Olha, não consigo localizar nesse momento, mas houve outras ocasiões, sim. “Ah, uma mulher, pensei que era um repórter, mas era uma repórter”, tive coisas desse tipo, quando chegava para entrevistar algum empresário ou figurão! Mas eu realmente não lembro de algo em específico. Mas na Economia eu já tinha uma certa experiência para lidar com isso, porque eu já tinha feito Geral, eu fazia desde o ministro até uma vila, a Geral dá isso para a gente. Eu já vim mais madura para a Economia, acho que é importante estar mais madura para fazer Economia. Então, eu tinha respostas melhores, eu era mais firme também, tinha mais segurança. A palavra é segurança.

no outro lado do balcão do jornal. A gente precisa realmente ter informações. As coisas mudam. Assim que entrou a era digital eu tive que rebolar, porque eu sou de uma geração que já pegou a informática na redação da Zero Hora, então já estive há muito tempo na informática, mas a velocidade das redes sociais, tudo é muito diferente. Dentro desse contexto, com essa nova tecnologia digital, viste esse desafio e acreditaste que isso veio para somar. Consegues lidar bem com essa situação na medida que tens o benefício do “antes”, com toda a tua trajetória, toda a tua experiência de trabalho? É o seguinte, eu acho que só soma. Sempre o jornalismo teve que ser rápido, e agora está a jato, supersônico. Eu acho que isso aí, claro que soma, soma muito, e a gente tem que estar disposta, pronta e preparada para mudar. Ser resiliente, essa é a palavra, ainda mais uma geração como a minha que começou ainda na máquina de escrever, eu inclusive comecei na máquina de escrever, depois foi para os computadores e agora está nas redes. Eu acho que isso é evolução, eu gosto disso, gosto muito.

A assessoria de imprensa é um termo que se usa atualmente? Não é produção de conteúdo, imagem? É impressionante como a assessoria de imprensa vem mudando e como a gente precisa ser rápida e precisa estar antenada, quase como

O assessor vive num dilema permanente, que é conciliar a necessidade de ser facilitador para seus contatos na mídia e ao mesmo tempo existem aquelas situações em que precisa esconder (ou blindar) o seu assessorado. Como lidar com essa situação? Eu penso assim. Quando um jornalista procura, ele tem que ser rápido, por isso é importante passar por uma redação para ser assessor. Tem que ser rápido para responder, e eu faço isso, sou muito rápida para responder, e os meus assessorados sabem que é importante ter agilidade. Às vezes, a oportunidade é um espaço que a gente ganha por ser ágil, por respeitar essa urgência da informação. Mas eu acho mais difícil não aparecer do que aparecer. Agora, eu sou muito sincera, os jornalistas com quem eu lido para mandar matéria, e até fora do Rio Grande do Sul, eu sou muito sincera e digo, “Olha, ele ou ela não vai falar, porque não é o momento para falar”. Eu sou

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muito honesta, acho que a honestidade e a verdade são libertadoras em tudo. Tem que dizer para não dar mal-entendidos. Além dessa sinceridade referida, qual a estratégia para lidar com os nossos colegas da mídia? Como tu fazes para selecionar quando quer gerar uma notícia e escolher os veículos de mais audiência? Isso é quase como um jogo de sinuca. Mas eu tenho um negócio, é incrível o que tem na minha cabeça. Quando eu era repórter, fazia entrevista e quando eu voltava de carro (naquele tempo a gente saía para fazer matérias, hoje em dia não sai mais, é muito raro sair), eu já tinha a matéria pronta na cabeça, quando eu estava conversando com o cara, entrevistando ele, eu já estava escrevendo e engatilhando a próxima pergunta e no que ele falou eu já sabia o que era o lead. E depois eu via que nos outros jornais também saía algo parecido, então meu faro estava certo. Então, é um jogo difícil quando eu preciso colocar uma notícia, mas eu penso em quem tem mais familiaridade com o assunto. Por exemplo, se é economia eu vou para economia, eu não vou para outros departamentos, eu vou direto, não uso outras portas, e se não abrir eu tento outra. Definir o que é para todos também e o que é uma exclusiva também é uma coisa complicada, também é outra sinuca, mas na hora que as coisas estão acontecendo eu já vou pensando no que divulgar e já faço isso na minha cabeça. Por exemplo, eu fiz há um ano o lançamento de um banco do sistema SICOOB que veio de uma cooperativa de Cascavel, a partir de uma expansão que começou pelo Rio Grande do Sul e depois foi para São Paulo. O que eu pensei, o cara precisava de visibilidade, precisava colocar um grande refletor em cima dele para dizer que ele estava chegando, então eu peguei e dei a informação para uma pessoa que lida com economia e que usa bastante as redes sociais, conversei com a pessoa, expliquei o que era, disse que era exclusivo e saiu ali. Foi uma jogada que eu fiz que poderia ser arriscada. A gente está sempre se arriscando, não é uma profissão tranquila, é uma profissão de alto risco. 150

Como consegues conciliar as demandas recorrentes das coletivas da assessoria de imprensa? Eu sou uma das poucas jornalistas que eu conheço que faz uma coletiva por semana. Ainda tenho aquele frio na barriga e me empenho da seguinte maneira: eu confirmo e faço follow up, tenho esse hábito, aliás, isso é até bom de dizer para o pessoal que quer seguir a carreira de assessor. Não dá para simplesmente pegar o release e mandar, a gente precisa estar em cima, perguntar, explicar o que é. Eu sempre procuro colocar no aviso de pauta alguma coisa além do que esse entrevistado vai dizer, uma coisa que seja sedutora em termos de “vai dar notícia ali”. Coletiva é dureza, eu se pudesse não fazer coletiva não faria. Como lidar com aquela pessoa que faz a tese, mas não faz a pergunta, que quer puxar para si mesma a atenção de toda a coletiva? Eu lido com a maior educação. Acho que não dá para brigar, reprimir ou censurar, tem que deixar. Essas pessoas estão nas coletivas somente às vezes, não estão presentes em todas. O fato de eu conhecer o perfil de alguns que estão ali já ajuda bastante na hora de lidar com eles. Os verdadeiros clientes da assessoria não são os clientes que te pagam (os assessorados), são os jornalistas. Um assessor de imprensa às vezes é obrigado a ocultar informações e a mentir? Mentir não, mas ocultar sim. Mentir eu nunca menti, acho que nem se deve mentir. Só que ocultar às vezes é relevante, porque a empresa pode estar fazendo um lançamento ou estar num momento que ela simplesmente não pode dizer o que ela está pensando. A empresa pode estar prestes a apresentar seus resultados, mas ela não pode falar nada sobre isso ainda, senão ela é interceptada. Então é preciso omitir. Nas tuas relações, existe algum contrato de confidencialidade que faz parte desse processo sobre o qual estás falando? Não tenho. Acho que, dependendo do trabalho, isso precisa ficar 151


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no momento da negociação. Eu faço isso. Gosto muito de fazer jobs na assessoria, gosto de começo, meio e fim. Isso é ainda uma coisa do repórter. Lembro que quando eu pegava uma pauta eu ficava enlouquecida por aquela pauta, e quando a terminava, terminava também o casamento. Quando saía no jornal já era velho para mim. O que dirias para um jovem que pensa em ser assessor? Primeiro de tudo eu diria para ele ir para uma redação para aprender como as coisas funcionam nela. Eu sou muito radical, talvez isso nem seja mais importante hoje em dia, mas quando a pessoa é um assessor que foi repórter, que trabalhou em jornal, eu já vejo com outros olhos. Acho que é importante saber como é o fluxo, o processo, saber o que é uma notícia. Às vezes tem uma reunião onde devemos dar o posicionamento da entidade, dos clientes. Eu estou na reunião com eles e já começo a escrever o posicionamento. Quando a reunião termina eu já estou com a coisa mais ou menos elaborada. Às vezes nem sai o posicionamento, porque nós percebemos que não é negócio fazer isso, mas outras vezes é importante fazer o posicionamento. Eu, no entanto, acho importantíssimo que uma entidade se posicione, acho que ela tem a função de se posicionar, ela não pode ficar em cima do muro. É diferente assessorar o assessorado da economia e o assessorado da política? São personagens diferentes para o teu trabalho ou há um ponto comum entre os dois? São diferentes. O ponto comum é a vaidade, ela é uma coisa impressionante na nossa profissão de jornalista e se evidencia ainda mais na assessoria de imprensa. A gente precisa ser muito firme. A coisa mais importante que precisa existir entre assessor e assessorado é a confiança, sem ela não se faz nada, absolutamente nada. Em relação às diferenças, o empresário é mais assertivo, vai muito mais em cima da informação, enquanto o político é mais “acho que”, “pode ser”, e eu tenho muita dificuldade em lidar com isso, com projetos que ainda não estão prontos, que estão somente na cabeça, porque na empresa eles 152

precisam estar prontos para ser divulgados. O político planta muito mais notícias do que os empresários, ele precisa da simpatia, precisa aparecer na mídia para ser lembrado, isso é tudo muito louco. As redes sociais mudaram o teu trabalho tanto com os empresários quanto com os políticos? Mudou no tipo de enfoque que eu dou, por exemplo em coisas mais sintetizadas como o Twitter, mas não mudou o olhar, esse é o mesmo. Não adianta se for em rede social, em jornal impresso ou em qualquer outro lugar, notícia é notícia, não vai ser diferente porque está na rede social, ela vai ser notícia nas redes e no jornal da mesma forma. Hoje ficou tudo mais rápido. Ficaste muito tempo na redação e agora estás há bastante tempo na assessoria. O que te deu mais satisfação? São duas coisas boas, diferentes e que dão prazer e satisfação. Eu não gosto de voltar, retomar. Não gosto de ter horário para trabalhar aos finais de semana, isso foi uma coisa que eu adorei quando passei para a assessoria. Eu trabalhei bastante também aos finais de semana como assessora, mas hoje já não trabalho mais tanto assim. Às vezes eu escrevo os artigos para o meu assessorado aos finais de semana, mas não é igual como eu fazia na redação. O que eu digo aqui é que é bom não ter essa obrigação de trabalhar aos finais de semana, pois quantos almoços e churrascos em família que eu perdi, quantas coisas que eu parei porque tinha que trabalhar. É isso que eu achava ruim na redação. Na época eu nem achava ruim, mas hoje, vendo o que eu perdi de convivência com a minha família, eu vejo que não era bom. Mas se precisasse fazer de novo eu faria, sem dúvida. Como fazes para escolher quem vai trabalhar contigo? Quais as questões que levas em consideração na hora da contratação? Se a pessoa passou por uma redação – qualquer redação, não necessariamente de jornal, mas de rádio e rede social, por exemplo, enfim, 153


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se ela pegou esse pique, porque redação dá pique e eu gosto de gente que tenha pique – eu já olho diferente. Esse é um critério. Por exemplo, nariz de cera eu não aguento. Tem muita gente que faz nariz de cera, que é quando o texto escrito fica muito contextualizado, não é enxuto. Poderias dar um conselho para as pessoas que estão estagiando e que querem agradar com seus textos, mas acabam exagerando? Como já começar a conquistar esse feeling de fazer um texto enxuto desde o estágio? Incorporando aquelas cinco regrinhas: o quê, quando, onde, quem e porquê. Na faculdade a gente incorpora isso aí igual pai de santo. Eu acho que essa regrinha já está presente em mim em todos os momentos, já é normal como andar de bicicleta. Tem que ter essa regra em mente, não dá pra fazer uma notícia sem ela, a não ser que se vá fazer, por exemplo, uma crônica ou uma reportagem mais de comportamento, que eu gostava muito de fazer. Aliás, o meu prêmio ARI foi sobre uma matéria de comportamento. Eu meio que vivi, entrei dentro dessa matéria para poder entender o que estava acontecendo, mas aquela regrinha estava na minha cabeça. As firulas só cabem quando é uma reportagem grande, porque hoje em dia quanto mais a notícia for objetiva, mais eficiente ela é.A s íntese é importante.

para o leitor as condições para que ele forme a própria opinião. Não é fácil nesse país ser empreendedor, mas por outro lado é o país que mais empreende, e eu acho que tem as suas razões para isso. Acho que o emprego formal está ruim, as coisas estão ruins, então você precisa empreender. E empreender significa que você vai entrar num mundo onde não é só montar uma empresa e achar que vai fazer tudo acontecer, não é assim. Eu acho que você precisa, para empreender, saber um pouquinho de contabilidade e uma série de outras coisas que são diferentes do jornalismo como a gente conhece. É preciso acrescentar várias outras facetas em você mesmo, porque eu acredito que, como seres humanos, nós temos várias facetas. Mas, empreender, no jornalismo, tem a ver com isso. Não é fácil, eu sei porque eu sou uma empreendedora. Muitas coisas que eu como repórter de economia dizia, como custo social, peso disso e daquilo, enfim, quantas vezes escrevi essas coisas, e hoje eu sei realmente o que isso significa. Na época eu ouvia o que alguém dizia, eu compreendia, mas só hoje eu consigo ver realmente a extensão disso tudo. Nós temos que nos adaptar.

Nesse momento em que as redações de jornal estão encolhendo e os jovens já saem das faculdades orientados para ser empreendedores, qual é a dificuldade para se transformar em um empreendedor? Pergunta difícil essa. Eu acho que para ser jornalista a gente precisa ter coragem também. Eu acho que é preciso ter um certo talento e ter coragem também, porque não é fácil para a gente aprender, fazer, se incorporar, entender o processo, saber o papel, saber como é importante aquilo que se vai relatar (e não opinar), e isso aí é uma coisa que eu sinto hoje que há uma certa confusão, porque a gente narra as coisas, não somos colunistas, colunistas opinam. Acho que não podemos tirar julgamento do fato que se tem na mão; é preciso narrá-lo. É preciso dar

Tu és a assessora do líder da instituição, mas esse líder quer todas as luzes dos holofotes para ele. Como lidar com essa questão, especialmente no serviço público, já que nos serviços privados essas coisas não acontecem tanto? Eu acho que quando a gente senta para negociar o trabalho, a gente já tem que colocar que é importante ter um porta-voz. Tudo é um presidencialismo, os presidentes ainda tem a luz. Quem é que vai falar? Se tem uma entrevista e eu já imagino que o presidente não pode falar, eu pergunto para ele antes da mesma forma. Eu sempre gosto de compartilhar, porque o trabalho dos assessores de imprensa é o de compartilhamento. Eu acho que se difere um pouquinho do repórter do outro lado do balcão, porque o repórter escreve e narra o que ele viu, já o assessor não, ele compartilha as coisas com quem contratou ele. Mas eu acho que, logo de cara, quando vai começar o trabalho, tem que definir quem vai falar. Essas são as regras mais elementares da assessoria.

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Quais são os recursos necessários que uma boa assessoria de imprensa física precisa ter? Bons computadores, boa internet e pessoas que já passaram pela redação. Uma assessoria de imprensa precisa ter feeling de notícia, se não tiver alguém ali com esse feeling será um fracasso. A pandemia me trouxe hábitos muito interessantes que eu incorporei na minha vida, como por exemplo não entrar mais de sapatos em casa e lavar bastante as mãos, e eu não vou mais para o escritório pela manhã, faço meu trabalho e participo de lives e essas coisas que estão acontecendo enlouquecidamente nesse período em casa. Isso eu adotei e estou gostando muito. Mas, é importante para mim ter um lugar como o escritório para ir, me traz saúde mental, porque ficar o tempo inteiro em casa não é para mim. Tem gente que se adapta bem, mas eu não, eu preciso sair. Então uma assessoria precisa ter feeling de jornalismo, bons computadores, boa internet e compartilhamento da notícia com alguém que você confia, tanto para o lado do cliente quanto para o lado de quem trabalha com você. E disposição para trabalhar, porque a gente trabalha muito. Não é só cobrir duas ou três pautas, acabar, fechar o computador, levantar e ir para a casa, não mesmo, pois às vezes você está indo para casa e o assessorado liga no telefone e fala “como ficou aquilo, vamos colocar mais aquilo” e coisas do tipo. O trabalho não acaba nunca.

coisas. Mas eu prefiro homem porque homens ouvem melhor, não que as mulheres não ouçam também, mas elas têm os seus porquês. Homens são mais objetivos, pragmáticos. Se fosse para escolher um ou outro eu escolheria homem. Mas eu tive editor homem e editora mulher, gostava dos dois, só que em assessoria eu prefiro trabalhar com homem. Agora, no entanto, eu assessoro uma mulher jovem super criativa na Federasul que é super pragmática. Ela é empreendedora, e isso é muito importante.

É mais fácil trabalhar com homem ou com mulher? Já identificaste machismo na redação e como assessora de imprensa? Eu prefiro trabalhar com homem, apesar de que as mulheres também são interessantes para se trabalhar, pois são criativas e pensam muito nas

A tua empresa está no mercado há quanto tempo? Ela é considerada como uma pequena empresa? É uma pequeníssima empresa. Tudo é uma questão de experiência, a gente vai indo, vai experimentando, vai adotando, vai cortando e vai agregando. Hoje, por exemplo, sou só eu, NGF, Neusa Galli Fróes, e mais uma única pessoa que trabalha comigo, que é o Felipe. Ele estava na Fróes Berlatto e eu trouxe ele comigo. Somos somente dois, nós nos entendemos bem. Ele trabalha em home office, eu acho bom e acho que vou adotar isso, porque o nosso trabalho é possível fazer de dentro de casa, além de termos menos despesas. Fiquei 20 anos na Fróes Berlatto, mas agora sou NGF, só penso na NGF, só trabalho para a NGF, só quero que a NGF tenha mais clientes. Na Fróes Berlatto nós sempre trabalhamos muito na reputação e fomos muito focados na eficiência, tivemos grandes clientes, alguns deles que eu mantenho até hoje. Gosto deles, mas não faz muita diferença para mim ser um grande ou pequeno cliente, embora às vezes seja mais difícil emplacar o pequeno do que o grande. Mas é um desafio maravilhoso. Eu gosto muito do que eu faço, e isso é uma coisa que eu quero dizer para os estudantes: é importante amar aquilo que a gente faz, aquilo tem que dar prazer, não é o dinheiro ou o que você vai ganhar, é aquilo que você faz, gosta e fica satisfeito. Eu sou uma pessoa satisfeita agora e fui uma pessoa satisfeita quando estava do outro lado do balcão trabalhando como repórter. Eu continuo sendo jornalista, isso que é importante. Se a gente não gosta do que faz é preciso pegar o violão, colocar no saco e ir para outra tribo, porque essa não vai servir.

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Como se dá a relação com o assessorado? Às vezes é uma relação de anos e só com o olhar você já sabe como tem que reagir? Eu não extrapolo, eu vou até um ponto e fico. E só pelo jeito de olhar às vezes eu corto alguma coisa que o assessorado esteja falando errado, daí ele se dá conta e para. Mas eu acho que amizade com gente que te contrata não existe, tem que ter uma diferenciação, é profissional.


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O EDITORIALISTA ROBERTO BRENOL ANDRADE

“A opinião é importante, mas a notícia é mais”

A

em inglês, na Faixa de Gaza, para garantir o acordo de paz entre Egito e Israel. Costurou um acerto com o diretor da Guaíba, Paulo Caldas Milano, para poder mandar notícias direto do acampamento. Terminava seus plantões e saía direto em busca de mais informações, enviando notícias nos aviões da ONU até Beirute, de lá, pela Panair do Brasil, até o Rio, sucursal da Caldas Júnior, para a Rádio Guaíba e os três jornais da Caldas Júnior. Ele ainda lembra das saudades da família, da namorada Tânia com quem se casaria no retorno e com quem teve quatro filhos. Mas recorda, sobretudo, da alegria ao retornar e ver todo seu material aproveitado pelos jornais. Antes de viajar, Roberto Brenol havia passado num concurso para a Prefeitura de Porto Alegre, quando José Loureiro da Silva era prefeito. Tão logo Thompson Flores assumiu, pediu ao arquiteto Telmo Magadan uma indicação para a Assessoria de Imprensa. Como Telmo e Brenol foram colegas no Julinho e por sua trajetória na mídia, ele foi o indicado. Acompanhou a radical mudança pela qual a cidade passou, com a abertura de viadutos e perimetrais, tudo entre os anos de 1969 a 1971, sempre fazendo a linha de frente entre a Imprensa e o prefeito.

ntes de assumir a responsabilidade pela editoria de Opinião do Jornal do Comércio, posto que ocupa há cerca de 20 anos, Roberto Brenol Andrade foi numa missão de paz ao Suez e de lá alimentou com notícias dos acontecimentos no front a Rádio Guaíba e os três jornais da Caldas Júnior na época (1963): Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Tarde Esportiva. Ele estava com 20/ 21 anos, mas já tinha um faro apurado para a notícia. Tanto que, mesmo estando havia pouco tempo na Rádio Gauíba, num plantão dominical, em 17 de dezembro de 1961, interrompeu uma jornada esportiva liderada pelo reconhecido Mendes Ribeiro, para dar a notícia do incêndio criminoso do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói (RJ), que tirou a vida de cerca de 600 pessoas. Ele vivenciou, ainda, a “barriga” produzida por um colega de trabalho que anunciou a morte do cardeal Dom Vicente Scherer. E viu o bispo adentrar no departamento de notícias para o desmentido. Como tinha realizado um concurso para Cabo, tão logo encerrou a prestação de serviço militar, ele integrou a Missão de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Oriente Médio, como parte da Força de Emergência das Nações Unidas, Unef, na sigla

Poderias começar a falar sobre o início da tua carreira? O meu irmão, Renato Brenol Andrade, entrou na Rádio Guaíba em 1957, quando da fundação da emissora. Ficou lá e, em 1961, no departamento de notícias, o Flávio Alcaraz Gomes tinha duas ou três vagas e, cada um, fez, digamos, um “concurso” para pôr pessoas indicadas, amigos, companheiros e conhecidos. Eu havia recém saído do serviço militar obrigatório, onde havia feito o curso de datilografia para ser cabo burocrata, e, obviamente, no departamento de notícias, o principal, era movido a máquina Remington ainda, com teletipo e telex. A Guaíba estava no auge do auge, com Mendes Ribeiro em 1958, com Copa do Mundo, 1962, aquela história toda que vocês conhecem bem. O curso de datilografia me garantiu a conquista da única vaga dispo-

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nível. Fiquei lá. Em 1962, início de 1963, o departamento de notícias da Guaíba estava muito bem estruturado, vários colegas muito competentes. Tinha o Pedro Carneiro Pereira, o Mendes Ribeiro, o Adroaldo Streck e vários outros que, eu, como moço, com 20, 22 anos, ficava encantado só de estar no meio deles. Ali eu consegui me organizar, fui aprendendo muito e fiquei na Guaíba até 1968, quando, então, o Jornal do Comércio, em grande expansão lá na Avenida João Pessoa, convidou o Renato, meu irmão. O Homero Guerreiro convidou o Renato. O Renato estava há muito tempo na Guaíba e disse “não, eu não vou, mas o Roberto, que é mais novo, acho que ele vai querer ir”. Eu acabei, então, indo para a sede nova da João Pessoa.

os leitores mandam, principalmente na primeira palavra do leitor, um texto legenda e com foto e, ali, cabe a mim selecionar. A retaguarda que está no Jornal do Comércio atualmente, os plantonistas - poucos, mas estão lá -, o site ou o impresso faz a seleção finalíssima e baixa para sair no outro dia.

Há muitos anos estás responsável pela opinião do Jornal. O que faz um editor de opinião? No caso do Jornal do Comércio, onde eu substituí o Homero Guerreiro depois de alguns anos, eu comecei como repórter, evidentemente. Acabei chefe de reportagem, editor-chefe e, no final, como auxiliar do Homero Guerreiro, que era o diretor-editor do Jornal do Comércio. Eu substituía o Homero nas suas eventuais ausências e acabei ficando como editor. O Jornal do Comércio recebe uma média de 10 artigos pedindo publicação, fora os que a gente encomenda, principalmente agora na pandemia. Então, o trabalho de editor de opinião é fazer a seleção. Como o jornal tem por norte economia e negócios, evidentemente que há uma certa preferência para artigos sobre economia e negócios, mas também abrimos espaço para advogados, engenheiros, médicos e entidades empresariais. Enfim, procuramos diversificar, o que tem provocado uma boa receptividade. Agora, com a pandemia e as pessoas em casa, houve um aumento muito grande de artigos. O editorial está há quatro meses, mais ou menos, com assuntos ligados à pandemia e ao problema das vacinas. O Brasil está ultimando gestões para trazer uma vacina, para atacar essa pandemia que teima em insistir e já vai para o quinto mês e não tem resolvido. Então, eu tenho que selecionar o editorial, frases, artigos e palavra do leitor, pegando, também, o que

Como é que tu achas que deve ser a formação do responsável pela seção de opinião de um jornal? Antes de mim teve o Homero Guerreiro, que foi integrante da ARI. Ele dava algumas diretrizes e eu fui aprendendo, evidentemente, a mecânica. O principal do editorialista é saber a orientação, a filosofia do jornal. No caso do Jornal do Comércio, é óbvio que é um jornal que pleiteia a livre iniciativa, um sistema de mercado. Ninguém assina o Jornal do Comércio nem o lê por engano. Todos sabem o que vão encontrar nas suas páginas. Não quer dizer que seja antidemocrático. O JC já publiou editorial propondo a abertura do comércio; e também publicamos artigo da presidente do Sindicato dos Comerciários condenando abertura do próprio comércio. Hoje mesmo estamos publicando o artigo do presidente do Sindicato dos Empregados do Comércio de Porto Alegre, colocando a opinião dele. Nós não vetamos artigos pela opinião em si. Os artigos bem escritos, sem ofensas, sem coisas gratuitas desmerecedoras sobre autoridade, sobre o outro, não tem problema nenhum. O editorial, como eu disse, vai na linha do jornal. Eu tenho a pretensão de dizer que até hoje - eu já estou fazendo o editorial tem 20 anos - nunca me foi vetado um editorial, nunca, nunca. Olha o que eu estou dizendo, nunca. Nem pela direção. Eventualmente, alguns colegas, obviamente, dizem “ó, Brenol, nessa obra aqui, o bairro tal está reclamando que a RS 118 até hoje não está concluída, não deslancha”, então a gente vai lá, pega o carro, o Jornal vai lá, vê a 118. Isso foi a cinco ou seis anos atrás e, até hoje, a 118 não está pronta, mas tem muito comércio na área e o pessoal pediu. Então há uma interação entre a linha editorial do jornal e o editorialista, que tem que ficar ciente do que é interessante, do que não é interessante, mas volto a dizer eu nunca

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recebi, a não ser dos próprios colegas de redação qualquer “faz aquilo, não faz isso”. Nesse período de pandemia, a editoria de opinião está com um papel fundamental. Nunca se buscou tanto a opinião como nos dias atuais, em função da covid-19. Como é que tu vês isso? Nós estamos numa fase agora em que o foco tem que ser a pandemia. Por exemplo, primeiro eu recebo o jornal em casa, evidentemente, além de pelo site e vejo a manchete, os principais assuntos de economia e por ali. Eu acordo às sete da manhã para pegar o jornal e já começar a ver. De manhã, principalmente, que eu vou me estruturando e, no início da tarde, termino o editorial. Nessa hora, já selecionei os artigos. O problema do jornal é um problema bom, no caso de opinião de artigo. Temos mais artigos do que a capacidade de publicação. Hoje em dia, ainda temos artigos para o site, além daqueles dois que saem e do palavra do leitor. Eu tenho, por exemplo, hoje, artigos até o final da semana tranquilamente. Não haveria problema nenhum se não chegasse mais, mas chegam quatro, cinco, seis por dia, além daqueles que a gente encomenda para pautas específicas. Não há problema, o problema bom, e que não deixa de ser problema, é que eu não tenho como publicar tudo! As vezes faço até três editoriais em um dia, porque começo, de manhã, pensando num assunto muito interessante, mas o noticiário, que eu tenho que acompanhar, obviamente, às vezes, no decorrer do dia, acaba mudando, acaba vindo outra opinião e, para evitar que saia uma opinião contrariando todo noticiário, a gente tem que monitorar. Então já teve dia que eu fiz três editoriais e o último que acabou sendo aproveitado, sendo enviado para publicação. As frases é garimpo também, eu sigo aqui pelo Twitter, pelo Facebook, por tudo que é possível, todos os jornais que eu posso e nossos dirigentes do estado, da prefeitura, em nível Federal, o presidente (risos), que não para de botar coisa no Twitter, no Facebook para sacar dali. Eu tenho a pretensão de dizer que todas as frases que eu pego, nunca alguém disse “não, essa frase eu não disse”, o que seria um desabono para mim, mas nunca houve nada. 162

Eu pego de fontes confiáveis. Agora também, conforme eu disse em relação aos artigos editoriais, às vezes começa com elenco, só sai cinco, seis, no máximo sete frases por dia, às vezes eu tenho dez, doze, quinze frases. Vou colocando novas, vou selecionando e, quando eu mando, mando na ordem que eu julgo ser a melhor aproveitada. Atualmente, o editor-chefe faz a revisão finalíssima, digamos assim, antes de enviar para a publicação. Na maior parte das vezes, tudo que eu mando é aproveitado. Qual é o critério para selecionar os assuntos, os artigos e as frases? Tu partes de onde? As frases são de acordo com a filosofia, tanto para os artigos, quanto para o editorial e a palavra do leitor. Elas seguem a pauta do dia - quando digo “do dia”, não quer dizer especificamente do dia. Nessa semana o problema é sobre as vacinas, sobre a bandeira vermelha, o problema é que os comerciantes de Porto Alegre querem voltar, estão em choque com o prefeito Nelson Marchezan. Então, para amanhã, digamos, as ideias são exatamente isso: o que falou o prefeito, o que falou o pessoal do mercado público, que está preocupado com esse fechamento, enquanto os supermercados, segundo eles, estão abertos com as medidas de precaução padrão e eles poderiam adotar essas medidas. Então, a gente vai, mais ou menos, pegando essas frases de acordo com o noticiário do dia. Como exemplo, eu não vou botar o prefeito que disse que a primavera é uma época bonita. Quer dizer, tudo bem, ninguém é contra, mas não tem nada a ver com o noticiário de hoje, com o noticiário da semana, com o noticiário da pandemia. É pegar frases de acordo com as pautas que estão no noticiário, tanto no Jornal do Comércio como da mídia em geral. Como é coordenar a opinião de um jornal ao longo do tempo? Em relação à tecnologia, como o jornalista se molda para coordenar esses avanços no meio da opinião? O problema é o seguinte - a frase está meio gasta e velha -, tem que 163


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haver uma adaptação, é inexorável. Não se pode lutar contra a modernidade. Eu comecei, conforme eu disse no início, com a máquina remington, aí peguei a estrada - tive a felicidade de pegar uma fase de expansão do Jornal do Comércio com a modernidade. O Jornal do Comércio adotou a offset. Vi a offset entrar em operação e vi a chegada da internet, tanto para diagramação como para revisão. Hoje em dia continua tudo igual, peguei agora a segunda onda ou terceira onda de modernidade: criação do site. O Jornal do Comércio tem uma equipe muito competente para trabalhar diretamente no site. Infelizmente, por um lado, a tecnologia enxugou muito as redações. Não há tanta necessidade de manter equipes grandes de diagramação, equipes grandes de revisão, equipes grandes para impressão. Peguei tudo do offset e fui promovendo uma adaptação. Eu não nego que até hoje, eu apelo para os colegas mais novos (como o Cassiano) e me oriento, “olha aqui, como é que fica isso aqui? Como é que baixa aquilo?”. Mas não há problema nenhum, porque os jovens estão totalmente integrados e o Jornal do Comércio tem uma equipe muito jovem e muito competente, com gurias muito iinteligente. Tem o diretor novo, Giovanni Tumelero, que com certeza será o futuro presidente da empresa e que está em sintonia. Eu sou agradecido ao Jornal e também a alguns colegas da época do famoso almoço da FIERGS, que saíram do Jornal do Comércio. Eu gosto do que eu faço, preciso do dinheiro pelo que eu faço. Não tem porque eu ficar parado em casa, a não será agora, devido à pandemia, mas estou trabalhando para o jornal em home office. Vou continuar enquanto der, mas, evidentemente, mais cedo ou mais tarde, vou ter que me recolher e abrir espaço para os mais novos. Quando saio de férias vejo gente muito competente. Os que me substituem para fazer o editorial, geralmente os editores ou o editor-chefe, são editoriais muito bons e eu até brinco na volta, mas brinco com a verdade, “não posso sair de férias, daqui a pouco vai ter gente muito melhor que eu para fazer o editorial”. Há uma dificuldade na seleção, mas também deve existir uma 164

dificuldade em descartar. Deve haver categorias recorrentes, pessoas recorrentes, como os médicos, que adoram escrever, adoram enviar artigos. Quais os critérios utilizados?

Concordo plenamente, eu chamo de “ilustres conhecidos”, porque tem os presidentes das entidades, prefeito, governador, secretário de estado, secretários municipais. Mas nós temos os ilustres conhecidos para os quais o Jornal do Comércio abre espaço, que são engenheiros, advogados, médicos e até simples leitores que não tem uma posição de destaque. Destaque, eu digo, ocupando cargos em entidades. Escrevem pro jornal e pedem que seja publicado. Nós já publicamos semana passada artigos de médicos falando sobre a pandemia, sugerindo algumas medidas e temos, também, advogados e engenheiros nas suas especialidades. Há muito pedido direto e há muito telefonema, então eles perguntam aquelas coisas básicas, como qual é a preferência. Aí eu cito, como já disse, uma certa preferência para assuntos de economia e negócios, mas não quer dizer que se publique só isso. Telefonam, pedem, postam e, um problema que eu enfrento além de tudo, é o tamanho. Embora a gente publique e informemos o tamanho padrão - até 2400 caracteres com espaço -, muitas vezes vem três mil, três mil e quinhentos. Eu logo respondo ao autor que não julgamos, não achamos ruim, mas não vamos publicar. É questão de padrão. É raro mexermos no texto. Vou dar um exemplo. Eu digo que o Roberto Andrade é um caloteiro, que tá fazendo isso, não está fazendo aquilo, como que pode, a justiça não toma atitude. Quer dizer, já houve caso, muito tempo atrás, em que publicamos artigo agressivo e o ofendido foi na justiça. A opinião de um cidadão no bar, na família, numa roda de amigos, ele diz o que bem entender, sobre quem bem entender. No momento em que o jornal publica, ele encampou. Deu uma dimensão social que o cidadão que escreveu não tem na sua vida privada, e o jornal, então, torna-se igualmente responsável. Ele tem que avaliar e publicar ou não. Geralmente é porque tem vocabulário grosseiro, mal educado e acusatório. Não se pode confundir com crítica. É preciso haver uma avaliação dos 165


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termos usados no artigo. Isso sim pode impedir a publicação, mas é muito raro que um artigo enviado para o jornal ou encomendado pelo jornal não venha dentro dos padrões, vamos dizer, civilizados, com português apropriado. E sobre a polarização da sociedade, manifestada também nas redes sociais com intensidade, como um editor dos artigos e também dos leitores percebe e administra isso? É um fenômeno de agora, de 2018 até aqui, ou, ao longo dos anos, tu já vens notando essa polarização? Ela começou realmente, eu não posso negar, com o advento do PSL, do presidente Bolsonaro e o partido que antes ocupava cargos importantes, na presidência principalmente, que é o PT. Aqui no jornal, eu até já publiquei artigos totalmente contrários à orientação do jornal. Se sair um dizendo que a pandemia não é nada, no outro dia a gente recebe um dizendo que a pandemia é tudo – e publicamos. Procuramos contrabalançar artigos a favor e contra uma determinada situação, seja na pandemia, seja na política, seja no comércio. Evitamos dar enfoque somente para um lado. Tenho recebido apoio de pessoas importantes da área política aprovando nossa política editorial.

pessoas dizendo que assinavam o Jornal do Comércio justamente porque não tinha, que se colocássemos iriam parar de assinar imediatamente. Pensamos em colocar no fim de semana, mas o jornal de sábado e domingo acabaria chegando na casa do assinante na segunda, o de fim de semana e o de segunda. O que o leitor vai ler? Nada mais velho que um jornal da véspera, então desistimos. Mas realmente, não existe uma pesquisa direta…a gente tem de maneira genérica. Noventa por cento dos nossos leitores são assinantes. O interessado assina pensando em receber aquilo que é o histórico do jornal. O JC foi aprimorando-se durante os anos, colocando a coluna social, abrindo mais espaço para política, esporte. Mas economia e negócios continuam sendo a nossa marca. Temos cadernos de contabilidade, de empresa e negócios, temos vários cadernos que respondem por essa sintonia com o nosso leitor e que precisam ser mantidos. Eu acho que o jornal tem que ter um perfil, tem que ter uma maneira de ser. Agora, realmente, não posso negar. O editorial não é o mais lido do jornal. É uma característica de quase todos os jornais impressos. Atualmente, os jornais impressos também estão passando por dificuldades. E a crise chegou antes da pandemia. Com a pandemia se acentuou. As equipes estão sendo reduzidas. A tecnologia, nesse caso, atropelou as redações. Antigamente, quando é que alguém ia fazer fazer alguma coisa de casa, mandando, como eu estou fazendo? Esta é a realidade - ou se adapta, ou vai ter problemas.

Algumas personalidades argumentam aos seus assessores que “ninguém lê os editoriais, por que a gente perde tempo com isso?”. Os assessores replicam dizendo que o editorial atinge uma camada muito especial de leitores - o chamado formador de opinião. Gostaria que tu comentasses isso. Qual é o perfil da pessoa que lê o editorial e como se dá a relação com esse tipo de leitor? Esse é um tema que eu até brinco com os mais novos. Quando dizem “gostei do editorial de hoje”, eu falo “acabaste de ganhar um automóvel! Uma pessoa leu o editorial”. Porque, realmente, em tese, em princípio, o editorial dos jornais - talvez pelo título ele chame mais atenção -, de maneira genérica, não está entre os textos mais lidos. A economia é a essência do JC. Há 20 anos colocamos noticiário policial. Recebemos

Como é que tu lidas com as pessoas que esperam que os artigos sejam publicados e, no fim, eles não são? Eles ligam muito, incomodam? Como é essa cobrança das pessoas que querem a publicação do artigo e tu não consegues em função da demanda? Eu procuro sempre dar um retorno para a pessoa, um “recebido”, pelo menos. Alguns perguntam se não gostaram do artigo, mas eu sempre alerto: a demanda é imensa. Eu não tenho como publicar todos, de imediato é quase impossível. Digamos, só como exemplo, eu estou programando dois artigos para amanhã, de pessoas ilustres, artigos bons. Aí chega, digamos, um artigo do governador sobre a bandeira

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vermelha. Vai sair amanhã, é evidente que eu não tenho como deixar de dar preferência. De maneira genérica, eles entendem. Eu alerto para a quantidade, alerto que a gente tem que alternar os artigos e vou procurando, conforme eu disse, de acordo com a pauta, de acordo com o texto bem escrito. De maneira genérica, a gente publica quase todos. E temos, hoje, um recurso que é o site, muitos artigos vão direto para o site. Antigamente, até antes da pandemia, pediam para sair no site, e o que estão pedindo para sair agora? No jornal, no escrito, no impresso. Insistem e pedem e, as vezes, saíram no site artigos bons. Eu não sei se é a sensação documental, da pessoa poder guardar, poder mostrar - embora na internet possa fazer isso -, acho que essa sensação de documento é importante para o autor do artigo. Eu tenho que respeitar isso, evidentemente. Eles me perguntam a pauta, o assunto, a periodicidade, o tamanho e tudo isso eu vou informando. Muitos mandam e ficam telefonando para perguntar, para saber e a gente tem que responder. E o fominha de artigo, aquele que quer publicar o seu artigo toda semana, como tu lidas com esse personagem? Isso aí acontece também. Tem cidadão que tu publicas um em um dia, aí tem uns que vão pegando gosto, vamos dizer assim, e mandam um por semana. Evidentemente, aí não dá. Pede que no mínimo de 15 em 15 dias, se não vai ficar muito monótono publicar a opinião de uma pessoa. Acontece isso, com certeza. A pessoa manda, “pega o gosto” por ver a publicação, é bom isso para ele e é bom isso para nós. Só que a pessoa começa a ter uma periodicidade além do normal que a gente pode atender, aí a gente explica e a maioria, senão todos, aceita. “Estamos alternando, mande de 15 em 15 dias, uma vez por mês - que seria o ideal”… Isso acontece, principalmente, - sem qualquer crítica à profissão - com advogados que tem muitos assuntos em pauta. Mandam um, mandam outro, sobre o problema do fundo de garantia, o auxílio emergencial, o fundo de garantia. São artigos grandes, mas muito bons e eu fico incomodado de pedir para reduzir, então repasso para o Jornal da Lei, que tem bastante espaço, e aí eles também fazem a avaliação e, 168

em 90% ou mais das vezes, publicam o artigo. O que acontece com a preferência dos artigos quando surge algum imprevisto? Por exemplo, de repente está programado para publicar dois artigos hoje, aí surge algo como a explosão lá em Beirute, no Líbano. Vocês deixam de publicar um já programado para publicar outro sobre o Líbano, ou algo assim? É uma questão de pauta. Esse problema em Beirute, por exemplo. Digamos, hipoteticamente, que o cônsul do Líbano envia um artigo falando do assunto, tendo em vista esse foco na pauta do dia, no assunto, numa tragédia, claro que aí entra o do cônsul do Líbano e escalona o artigo que sairia para amanhã. Volto a dizer, não posso nunca fugir da pauta. Nesse caso específico, foi uma tragédia que tem repercussão mundial. Teve algum editorial que te marcou por alguma curiosidade? Conforme eu disse, às vezes eu começo de manhã pensando no editorial, lá pelas 10, 11h já passei para outro e no início da tarde já estou no terceiro. Como a gente acompanha a pauta, nada sai assim. O editorial do pessoal indo para a lua foi uma coisa que chamou a atenção do mundo inteiro, os programas do governo Lula, o “Minha Casa, Minha Vida”, o Bolsa Família, são assuntos que interessam muito à comunidade. Agora, o Jornal do Comércio tem uma característica: não é um jornal a rigor de banca, de venda avulse; ele tem o assinante, de perfil totalmente identificado. A gente procura fazer de acordo com esse perfil, de acordo com esse padrão. O Plano Real foi uma coisa que marcou muito. Para o combate à inflação que aconteceu naquela época. De acordo com a pauta, tem muitos que marcaram bastante, mas, de maneira geral, volto a insistir e me torno repetitivo, a pauta é que dita a orientação do editorial. O que tu achas mais relevante para um modelo de jornal como o Jornal do Comércio? 169


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Há um excesso de opiniões - principalmente divergentes -, o que causa um problema. Em princípio, a notícia sempre é mais importante. A opinião é importante, mas o fato, a notícia é para ser levado ao público. Hoje em dia, a concorrência é muito grande, juntamente com o Twitter, o Facebook. Políticos, então, estão usando demais esse sistema, mas aí recebem críticas, pessoas atacando até grosseiramente ou defendendo a opinião. A opinião é muito instável, ela não dá o norte. A notícia é o fato. Nós, jornalistas, sabemos que, contra o fato, não há argumento. Tem que dizer. O fato sempre é mais importante, é o principal de uma mídia do jornal, do rádio e da televisão. O resto, a opinião cada um tem a sua, então a gente aceita, concorda, discorda. Contra a notícia, ninguém pode discordar ou concordar, a notícia é o fato. Depois de tantos anos de atividade jornalística, o que tu dirias para os jovens sobre o que te gratifica e o que te dá mais dissabores na nossa profissão? É uma profissão fascinante e agora está passando por uma transformação fantástica. Fico chateado que o pessoal está criticando muito, tem colegas nossos que dizem que não adianta mais tirar a faculdade, não adianta mais se formar, que o jornalismo está em extinção. Eu acho que não está. Há modificações, adaptações a situações novas, muita tecnologia envolvida na atividade da mídia, mas eu acho que a função jornalística é muito importante. Para a democracia, a comunicação é super importante. Nós temos essa brigalhada por causa das notícias falsas, mas não pode liquidar com as opiniões transitando, opiniões sendo colocadas, opiniões divergentes, desde que respeitosas. Não pode ser com grosseria, com ataques e palavrões. Eu acho que o jornalismo está aí há tantos anos, desde tanto tempo. Aos jovens eu digo o seguinte: não desanimem, ninguém vai ficar rico com jornalismo, mas com certeza é muito gratificante. Eu estou no jornalismo até hoje, volto a dizer, sem falsa modéstias, porque eu gosto, acho que tenho feito um bom trabalho - não é o melhor, mas é um bom trabalho -, e, enquanto eu puder, vou ficando. O editorial normalmente é a voz do dono. Então, é legítimo que o 170

proprietário, o acionista majoritário ou a direção da empresa peçam privilégio para alguns temas. Isso tem ocorrido? Com que frequência ocorre? Cheguei a conhecer o fundador do Jornal do Comércio. Entrou, em 1996, o atual presidente, Mércio Tumelero. Hoje já é o filho dele, Giovanni Tumelero, que está assumindo, bastante em contato com a nova diretoria. Uma vez eu recebi um pedido de reclamação de comerciantes de uma área da Zona Norte, que estavam com problemas de obra lá. Primeiro passei para o pessoal da economia, o pessoal da geral e, depois, fui trabalhando. Mas nunca me ocorreu de ter que escrever algo contra ou a favor. Nunca, graças a Deus, nunca me falaram “faz contra” ou “faz a favor”. Eu recebo, às vezes, sugestão de assunto, mas não contra ou a favor. A orientação é fazer o melhor. Eu faço com todo empenho em fazer o melhor que eu posso na seleção dos artigos, nas frases, na palavra do leitor e, principalmente, no editorial. Até hoje, nunca um editorial meu deixou de ser publicado. Nunca houve um bloqueio, um editorial que falassem para eu fazer a favor ou contra - nunca. Qual é o melhor caminho para seguir na editoria de opinião? Qual é a “receita” para se tornar um escritor de opinião em um jornal? Basicamente, tem que entender e se identificar. Não trabalhar irritado ou bravo. Pegando um exemplo bem grosseiro e genérico: se eu sou a favor do comunismo, eu não posso ficar no jornal que, em tese, é a favor do capitalismo. Tem que se identificar com a orientação do jornal de maneira genérica. Não é gostar do mesmo clube, do mesmo filme, não. Genericamente, de maneira geral. Tem que se identificar com aquela linha editorial que o jornal tem. O Jornal do Comércio tem três ou quatro editores além de mim. Editores de economia, de finanças, de política, editor-chefe que, quando eu saio de férias, fazem editoriais muito bons. Não é uma característica só da pessoa, é da pessoa que se identifica com aquela linha, pega um assunto da pauta e consegue transformar aquele assunto de acordo com a filosofia do jornal. Em resumo – tu não podes trabalhar contrariado. 171


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O que tu dizes para esses jovens que estão na faculdade, que vão entrar no mercado de trabalho? O que que tu destacas de qualidades para que eles consigam manter uma carreira tão longa quanto a tua? Há uma desconsideração – não digo desprezo - pelo Português. O pessoal da revisão corrige; e eu mesmo corrijo. Não são erros genéricos, que todos podem cometer - eu cometo. Falo de erros básicos, emprego de verbo, de acento, enfim. Tem que gostar do Português e procurar ser claro. Agora, nós estamos passando por uma época de transição muito grande, muito instável na mídia geral, jornais, rádios, TV, pelos problemas que estão ocorrendo, pela queda grande na publicidade, que se reflete, obviamente, no jornal. Se eles gostam, tem que insistir e persistir. Agora, como minha vó já dizia, o futuro a Deus pertence. Como profissional, como pessoa, como quem gosta de fazer aquilo que está se propondo, mantenham e persistam, porque problemas todas as profissões têm, tiveram e, com certeza, terão no futuro.

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A DIAGRAMAÇÃO E A MULTIMÍDIA JONATHAS COSTA

“Fazer jornalismo é que vai salvar o jornalismo”

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le ainda estava cursando Jornalismo na Faculdade dos Meios de Comunicação Social (Famecos-PUC) quando decidiu fundar o jornal o Alvoradense, na cidade de Alvorada, onde morava. Naquele ano de 2012, Jonathas Costa tinha 22 anos e atuava há dois anos no Correio do Povo, como auxiliar de redação, vinculado à editoria web. As duas frentes de trabalho, como estagiário e a outra como empreendedor, exigiram muita responsabilidade, estudos e dedicação do jovem que atualmente é coordenador Multimídia do jornal mais antigo e um dos mais prestigiados do Rio Grande do Sul, o Correio do Povo. Com o nascimento do filho Inácio, também em 2012, Jonathas optou por ficar um tempo somente com o Alvoradense, veículo que superou as suas expectativas, com uma demanda de leitores ávidos por notícias da sua cidade. Dessa relação, conquistou a confiança da comunidade onde escolhera viver, pois nasceu em Porto Alegre e na adolescência, com 17 anos, mudou-se para Palhoça (SC), onde iniciou o curso de jornalismo na Unisul e trabalhou no setor de eventos da universidade. Tanto que, arrumando a Casa - ou a Empresa Jornalística Soares da Costa, editora do jornal O Alvoradense -, voltou à Caldas Júnior em dezembro do mesmo ano de 2012. Desde então a carreira paralela deslanchou. 173


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Atuou com colegas na editoria web, elaborou infográficos que depois passaram a ser também publicados na edição impressa. Dedicou-se à diagramação, aprendendo com os colegas que ali já estavam com muita bagagem. No Alvoradense - em 2014, diante de uma enchente histórica na cidade - conquistou o seu primeiro Prêmio Ari Banrisul de Jornalismo com a cobertura da tragédia, mostrando mazelas antigas da falta de infraestrutura urbana e o sofrimento da comunidade, respeitando a fragilidade de cada entrevistado. Uma matéria ao mesmo tempo técnica e humana. Como editor de arte, elaborou a reforma gráfica do Correio do Povo em 2015 e a reformulação da edição dominical em 2016, criando o + Domingo. Arrojado, o jovem Jonathas Costa decidiu fazer um livro sobre “perfis” de moradores de Alvorada. Chamou colegas para auxiliar nesse trabalho e o livro “Gente Nossa” foi um sucesso. Em 2017, encerrou as atividades em Alvorada para dedicar-se exclusivamente ao Correio do Povo, agora no cargo de Coordenador Multimídia, onde tem atuado especialmente em coberturas especiais ao vivo e na produção de conteúdos multiplataforma. Ao todo, já conquistou quatro prêmios Ari de Jornalismo e representou o Correio do Povo no Publico Editors Lab, em Portugal. Em 2020, a Empresa Jornalística Soares da Costa, editora do jornal O Alvoradense, foi vendida.

em um conteúdo responsivo no celular, porque para o repórter todo o conteúdo que ele escreveu é imprescindível. Não tem como deixar algo de lado; tem que entrar tudo. O editor já pondera e vira a informação do avesso, mesmo para web ou não. Hoje dispomos de ferramentas que medem e mostram que nem todo mundo lê todo o conteúdo que é publicado. Então se tu quiseres que realmente a pessoa interaja com aquele conteúdo, que ele seja apreciado, alguém vai ter que elaborar essas informações e deixá-las no tamanho considerado. Daí é preciso pensar na forma como tu vais colocar nesse espaço, o diagramador é mais do que simplesmente fazer desenho, é também saber negociar esses multi-interesses que existem em torno do conteúdo e pensar o que é principal no caso.

O que faz um diagramador? A diagramação é uma maneira simples de dizer que a gente desenha os conteúdos, seja para a parte impressa ou para web. Mais do que simplesmente pensar no desenho e desenhar aquilo e fazer caber na página, diagramação é pensar na hierarquia do conteúdo e facilitar porque isso é sempre uma negociação, tu nunca fazes isso sozinho, o diagramador está ao lado do repórter, do editor, da editoria, na hierarquia do processo. É preciso ter essa visão. Existem diagramadores que vendem só desenho, mas o diagramador completo é o que consegue hierarquizar informações e esses desejos, e fazer tudo caber dentro daquele espaço, pode ser um papel, pode ser um página na web, pode ser

Como foi a tua preparação na faculdade para chegar pronto no mercado de trabalho? Eu acho que o mais importante nesse processo é a gente aprender a ouvir e a observar. Eu brinquei esses dias na redação conversando com o colega Alfredo Possas e descobri que ele entrou no Correio do Povo um dia antes de eu nascer, eu nasci no dia 13 de setembro de 1990 e ele entrou no correio do povo para trabalhar como jornalista no dia 12 de setembro de 1990. Então imagina, são gerações muito diferentes e é um exemplo de tantos outros que vivem isso. Eu acho essa troca importantíssima. Às vezes a gente fica na faculdade pensando em pacote Adobe e tem que dominar tudo, mas tem jornais como o Correio do Povo, que não editam com pacote Adobe e usam programas exclusivos específicos, caso do Correio, do Estadão. Em breve, serão outros nesse modelo. Então, para que tu vais te especializar no programa que daqui a pouco vai ter uma nova atualização e vai mudar completamente? Eu acho importante essa busca por aprender com quem já fez, e eu acho que aprender pelo exemplo é muito importante, mas não necessariamente aprender assim, porque eu aprendi muito com Pedro Dreher e meu trabalho gráfico é muito diferente do dele, pois isso não é copiar, é aprender com os profissionais experientes.

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Como adquiriste essa noção de diagramação? Todo tipo de conhecimento, de curso de especialização sempre vai agregar, isso é fato. Nunca eu vou dizer que isso não é importante; tudo que tu conseguires aprofundar é diferencial e é um ótimo conhecimento. No meu caso, as circunstâncias da redação me levaram para essa área, no site existiam várias possibilidades de fazer coisas novas. Eu comecei a fazer gráficos, infográficos para o site porque não havia isso no Correio do Povo, mas se tivesse alguém fazendo, talvez eu procurasse outra coisa, então foram as circunstâncias da vida que levaram para isso. Foi uma coisa que ninguém estava fazendo e às vezes precisava; eu comecei a mexer naquilo até encontrar algum resultado. Ia mexendo uma coisa mexendo outra até chegar no ilustrador e começar a trabalhar com ele, o que é imprescindível. Quem quer trabalhar nessa área tem que procurar um curso bom, então vai se aprofundar, vai procurar um curso de especialização e buscar mais experiências. O que mais te gratifica na tua profissão e o que gera desconforto? Eu acho que eu consigo responder às duas perguntas numa resposta e com uma mesma situação, que é o retorno do público, da audiência, seja como ela for. As vezes não é gratificante, mas outros nem tanto; pode te colocar para cima e da mesma forma te incomodar. O prêmio Ari que eu ganhei pelo Alvoradense foi uma matéria sobre uma tragédia histórica que aconteceu na cidade, seguido de um desabastecimento de água durante uma semana, o que gerou um caos. Alvorada tem 230 mil habitantes e virou de ponta cabeça durante uma semana. Sempre lembro é que lá pela quarta ou quinta-feira, assim no meio da semana por causa da situação que estava, não havia água em nenhuma região da cidade, as pessoas ligando para nosso jornal, contanto, pedindo ajuda. Então, com isso eu me dei conta de que eu estava ali, tinha escrito sobre isso tudo e consegui dar voz a essas pessoas que não conseguiram nada naquele momento. Isso também representa um enorme retorno.

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Tem espaço para criatividade na diagramação? Atualmente a gente cada vez mais se prepara em todos os formatos, as coisas já estão prontas pelo mercado. Mas tem duas coisas que eu considero importantes: uma é o fato de que no caso do Correio, por exemplo, como jornal diário, é um canal de notícias, não existe padrão, não é uma matéria por página, é uma página com várias matérias. Então fazer isso e ficar bom visualmente, às vezes, dá mais trabalho, mas é prazeroso e eu acho que é o que diferencia o profissional. Então eu acho que tem que ter essa noção assim de habilidade para criar. Como tem sido trabalhar no home office? Olha a gente conseguiu criar um processo no Correio agora na pandemia com a função do home office. Ali funciona muito bem tanto que o Correio mesmo depois de tudo se manteve, e foi inesperado para todo mundo. Algumas edições trouxeram pessoal de casa para a redação, mas ninguém voltou 100%. Mas tem gente que prefere trabalhar na redação também; então, o pessoal vem se organizando para produzir melhor nessa situação, no geral vem funcionando bem e agora temos um novo modelo de trabalho que não tínhamos antes. Vários jornalistas dizem que deixam de trabalhar com vídeo porque é muito trabalhoso. É fácil ou difícil? Nos dias de hoje é desculpa esfarrapada. Eu pego o jornal de 1971, do Correio do Povo por exemplo, como estou fazendo agora para pesquisar a explosão que houve no bairro Navegantes - quando um depósito de fogos de artifício explodiu e tentar relacionar com outros casos, especialmente para trabalhar a matéria sobre o que houve em Beirute no dia quatro de agosto último - e vejo como era trabalhoso fazer um jornal naquela época, fazer a foto, fazer a chapa, era tudo muito trabalhoso, custoso mesmo sob todos os aspectos de tempo, recurso. Hoje com um celular eu consigo fazer jornal. Eu faço foto, eu faço vídeo, eu faço texto. Posso até mandar imprimir no celular. Eu posso diagramar no celular. Não existe desculpa nenhuma para que a gente não volte 177


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para a redação com um material farto. E acontece às vezes. Existe uma queixa na redação, porque uma foto não ficou tão boa, um texto não ficou tão bom e isso demandou tempo do repórter, do fotógrafo, e o editor, ou eu, decido que não vai ser publicado. Vai ser publicado um outro material. Aí vem aquela questão corporativa, natural: mas como, o nosso repórter perdeu tempo fazendo isso? O nosso fotógrafo perdeu tempo fazendo isso? A minha resposta padrão é: o leitor não tem culpa. O leitor precisa do melhor conteúdo, independente dos problemas que a gente tenha enfrentado para fazer. Então, não ter conseguido a melhor foto, não ter conseguido o melhor texto, não ter conseguido a melhor abordagem editorial, não ter conseguido a melhor diagramação, nada é desculpa para fazer desse jeito, porque o leitor não vai saber disso. O leitor vai ver o material pronto. E ele merece o melhor conteúdo. Eu tenho um fotógrafo do Correio, o Mauro Schaffer, hoje ele vai entrou em UTIs de Porto Alegre, vendo a situação complicada por causa da pandemia. Não tem como todo mundo entrar e fazer foto. Então, vai uma negociação muito grande para conseguir fazer imagens. E o Mauro conseguiu negociar com o Hospital Conceição para ele entrar na UTI e fazer algumas fotos. Só que para ele fazer isso, ele ia usar o tempo que o assessor do hospital usa para fazer as imagens para as outras TVs. Então, para compensar isso, ele levou a câmera do jornal para fazer as fotos do Correio do Povo, mas pegou a câmera do assessor para fazer algumas imagens em vídeo pra mandar para as TVs de todo o Rio Grande do Sul. Ele estava com o celular do assessor, mais a máquina do Correio do Povo, mas ele percebeu que seria muito importante que o Correio do Povo tivesse um vídeo. Então o que ele fez? Ele pegou um plástico, colou no pescoço com durex, porque ele já estava no hospital quando teve a ideia, e pegou o próprio celular e colou no pescoço. Aí, enquanto ele estava caminhando com o celular do assessor e a câmera do Correio do Povo, ele colocou para filmar e ficou 25 minutos filmando do pescoço dele. Esse material entrou esta semana no ar, num vídeo muito bacana. Eu entreguei e disse: a gente vai ter que fazer render esse vídeo. Olha o esforço que ele fez. Ele tinha todas as descul178

pas do mundo para voltar do hospital com 10 fotos e dizer: consegui 10 fotos. Para a gente seria maravilhoso. Mas ele conseguiu 20 fotos, ele conseguiu pagar a negociação que ele fez com o assessor de fazer o videozinho de que ele precisava, mas trouxe um conteúdo de 25 minutos com uma médica que explica todo processo da UTI e a gente fez um vídeo especial que mostra a luta contra a Covid direto do front. Não existe essa história de não deu para fazer. A gente tem que dar um jeito. Esse exemplo do Mauro mostra como a gente, com esforço, consegue trazer um material sensacional, que nenhum outro jornal tinha. Enfim, não tem porque a gente não fazer isso hoje, porque recurso a gente tem. Pode não ficar aquela imagem full HD, o vídeo ficou tremido. Não interessa. Para a gente o que valeu, no caso, foi a sensação de a pessoa estar dentro. Porque quem assiste ao vídeo parece que está caminhando pela UTI e conversando com a médica. Isso é que ficou interessante no vídeo dele. Pode não ser fácil, mas a gente tem que conseguir fazer. Qual o caminho para o jornalismo sobreviver e qual o caminho para os jornais sobreviverem nesse caminho pós-pandemia? Olha, pode parecer simplório, mas eu acho que a resposta para o jornalismo sobreviver na situação de pandemia é fazer jornalismo. Por mais que saibamos que são realidades muito distintas entre Estados Unidos e Brasil, interior do Rio Grande do Sul e capital, cada comunidade, cada coisa, é um exemplo de uma situação em um local diferente, mas nada muda. Seja no interior, seja na capital, seja no exterior, fazer jornalismo é que vai salvar o jornalismo. Quando digo isso é porque hoje cada vez mais existem conteúdos na web nas redes sociais e nesse espaço estão as fake news. Então, é preciso estar atento, cuidar as fontes e muita ética no trabalho são formas de fazer o jornalismo manter-se sempre. A população precisa do jornalismo como fonte de informação com uma certificação da fonte e da relevância do caso, então a receita é fazer jornalismo de verdade.

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A REPORTAGEM DE RÁDIO

a infância, ele recortava o jornal que seu pai lia para narrar os textos num gravador. Quando o pai ficou cego, em 1994, ele decidiu que seria jornalista e trabalharia em rádio para poder informá-lo. Foi com esta disposição que Luiz Alcides Teixeira Martins concluiu a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, em 1996. Antes de tornar-se o consagrado e premiado repórter Cid Martins, da Rádio Gaúcha, ele passou pelas redações da Rádio Bandeirantes e do Jornal do Comércio, além de fazer um estágio de Jornalismo Investigativo durante um mês na rádio Deutsche Welle, em Bonn (Alemanha), em 2007. Atua na editoria de Cidades e Polícia da rádio Gaúcha (RS) desde 2001 e tem no seu currículo dezenas de prêmios, entre os quais o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2002), categoria Rádio, por Viagem sem Retorno – Famílias ainda aguardam pela volta de dez caminhoneiros gaúchos, e pelo menos uma dezena Prêmios ARI/Banrisul de Jornalismo. Integrante do Grupo de Investigação da RBS (GDI), repórter da Rádio Gaúcha, de Zero Hora e de GaúchaZH, em fevereiro de 2020 deu um novo passo na sua exitosa carreira profissional, assumindo como professor do curso de graduação em Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), campi Fapa e Zona Sul.

Como é que tu te preparas para fazer uma reportagem? Eu vou dividir a resposta em duas partes: para reportagem especial e a reportagem do dia. Eu trabalho muito com fonte. Então, a gente ou acompanha o trabalho de alguma instituição ou tem a nossa própria reportagem e depois até posso falar um pouco mais disso. Eu tenho que entrar no ar, eu tenho que ter a foto, se não fizer a foto, tenho que estar tuitando. Eu não uso Instagram para isso, é mais o Twitter, mas as redes sociais em si. Se não tiver também que fazer um vídeoselfie para RBS TV e ainda por cima atender aquelas mensagens dos editores: “me manda dois, manda dois parágrafos”. Eu me divido em duas partes. Na primeira, recebo as informações de fontes, vou atrás, pesquiso gosto muito de ver o Diário Oficial do Estado. Sempre tem alguma informação boa ali, gosto de ver isso. Toda segunda-feira não tomo mais café, não tenho mais tempo direito, mas procuro sempre mandar um whats, ligar para um delegado. E deixo fluir, as informações vêm vindo. E aí vou montando uma matéria, eu vou montando alguma outra informação que possa surgir. Então esse tipo de trabalho eu vou conciliando com o que a chefe de reportagem pede. Por exemplo, tem a reunião de pauta da RBS, GaúchaZH, sempre, toda manhã. E ali discuto algumas pautas, sugerem, aí eu faço algumas adaptações, surgiram algumas coisas também, então é trabalhar com que a fonte te passa e trabalhar com o que a chefia de reportagem te passa. Para o dia a dia, geralmente duas ou três fontes, no máximo. Uma, só porque aquela matéria é para publicar. E geralmente a gente tem que ter todo o cuidado. A gente tem o nosso «news” para editar na Zero Hora. Então eu já divido em duas partes: rádio e site. Pego o texto do rádio e já vai ser o meu lead do texto do site. Eu tenho uma particularidade que é começar com o título. Eu tenho que fazer o título, o título tem que ser minha primeira frase, eu já sei que eu posso dar continuidade para o resto. E aí eu falo assim: o título vai ser meu assunto principal. Se for para o site, a minha linha de apoio já é o assunto secundário, que eu vou colocar no lead com mais o quê, o quando, o onde, o como, o porquê e está feito meu boletim da rádio. E o News ali que a gente usa na Zero Hora eu já calculo assim

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CID MARTINS

“Um repórter não pode ter constrangimento de perguntar”

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umas 4/5 linhas. Eu estou falando isso porque é legal para quem for trabalhar, isso economiza tempo. Imagina se está faltando 40 segundos para começar, tu tens que ainda preparar foto, tens que conectar para entrar, agora remoto. Estás recebendo foto, recebendo Whats, tens que fazer o teste, ver se está bom. Então eu deixo entre quatro a cinco linhas porque vai dar mais ou menos 30/40 segundos. Se passa disso, eu não faço mais para rádio. Aí já começa a virar um texto para jornal, o porquê vai ficar longo e é muito interessante, tens que trocar a linguagem. É engraçado. Eu escrevo “Segundo o titular da delegacia de roubos de cargas, a situação piorou nos últimos anos. O delegado tal...”. E é uma coisa interessante porque parece meio simples, mas no dia a dia, se tu pegas essas manhas, se tu consegues conciliar isso, tu ganhas tempo, tu ficas mais ágil, tu te acostumas. Hoje a gente tem facilidade muito grande, tem o Google. Já vai pesquisando. Antigamente eu tinha que me lembrar da matéria, eu tinha que descer lá na Zero Hora nos arquivos para ver matérias antigas, eu tinha que fazer o arquivo, era mais trabalhoso. Hoje, já vais fazendo perguntas, crias aquelas hipóteses que podem ser assunto depois. E aí tu fazes uma pequena análise. Tem que pensar assim: bom, isso é mais importante, mas só que já saiu. Ah, mas esse aqui pode ser. Onde é que pode repercutir? E aí a gente já sai, já vai para a para a pauta, já vai pesquisando, já vai ligando. E às vezes tu nem chegas no local e já entraste no ar. É muito interessante assim. Isso é agilidade. Mas eu sempre digo assim: fez tudo certo, antes de divulgar, antes de ler, antes de entrar no ar, se tu consegues antecipar, tira dois ou três minutinhos para ler o texto. Sempre tem uma concordância verbal, tem um acento, sempre tem alguma coisa. Lê, porque é muito ruim quando tu já publicaste [com erro]. Alguém vai printar e vai mandar depois pra ti. Alguém de fora, né, que manda. Quais as habilidades necessárias para um profissional ser um bom comunicador de rádio? Ah, perfeito. A primeira caiu. Comecei a falar nos anos 90 na verdade, mas ali por anos 2000, na Gaúcha, havia aquela coisa de ter vo-

zeirão. Tem que ter entonação. Então a primeira dica para o rádio é básica: faça frases curtas. E há uma regrinha: SVO, sujeito-verbo-objeto. Sabe, faz essa regrinha. Tira muita vírgula, às vezes tem alguns ganchos “além disso”, para fazer uma ligação de uma frase e outra. Outra coisa é respirar pelo diafragma. É importante. Existem os fonoaudiólogos, que dão várias explicações. Tu tens mais tempo para ler uma frase então inspira e tem muito mais ar. Se respirar pelo diafragma fica muito mais prático para poder falar no ar. E hoje eu digo que para trabalhar em rádio o cara tem que trabalhar em tudo. Sabes que vais trabalhar nas redes sociais, entrar na televisão, fazer texto para o jornal e para o site a toda hora. Tudo isso começou a ficar cada vez mais multimídia há uns seis, sete anos, uma coisa básica. Lá antes da profissão, do vestibular, porque você escolheu o jornalismo? Eu gosto de falar, gosto de escrever, gosto de história, tenho curiosidade e gosto de jornalismo. Então, não vai reclamar que tem plantão, pode lutar por um salário melhor também, tudo bem. Mas não reclama de plantão, não reclama que tem que fazer um monte de coisa. Tem uma tarefa, vou fazer. Quando eu entrei, havia jornalistas mais antigos que eu gostava de ler. E eu acho que estudantes de jornalismo devem perguntar: o que está faltando mais hoje em dia? A gente ler bastante. Ah, todo mundo fala isso. Mas é verdade, porque a gente vê o mapa de calor ali de GaúchaZH e é o lead. E aí veio outra: saiba mexer com tecnologia, saiba dos aplicativos porque se a pessoa fica em média 40 e 50 segundos na tua matéria, se tu colocares um vídeo de um minuto, ela vai ficar mais um minuto. Se tiver um tempo de fazer um gráfico, ela vai ficar mais um tempo. Então já tem que pensar dessa forma. E em rádio? Eu vou dar um pequeno exemplo de hoje. Teve o Gaúcha Hoje às 7 horas, depois tinha o Correspondente às 8 horas, tinha o Notícia na Hora Certa às 9 horas e o Chamada Geral às 11 horas. Peguei uma informação que entrou única no site, dividi em várias partes com algumas chamadas e fui atualizando. Ter material, ter agilidade, pesquisar antes e socializar responsabilidade. Isso é uma palavra importante. Divide com teu chefe de reportagem, divide com os editores. Não fiques que tu sabes tudo. Eu

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Os registros pessoais contam que teu pai ficou cego. Eu queria saber como que isso te influenciou na maneira de fazer reportagem, de contar histórias no rádio. É bem interessante essa questão. Meu pai, quando eu estou meio mal, ele diz assim “o meu filho, o que você faz na primeira coisa quando

acorda? Espreguiça, levanta? Não. Abre os olhos e eu não faço isso, e não quer dizer que meu dia vai ser ruim”. Eu sempre me lembro disso. Às vezes a pauta está complicada, não estou conseguindo, me lembro dessa frase. E meu pai diz “olha a voz, a entonação, tomou chimarrão demais de manhã antes de entrar no ar, olha aí. Chimarrão tem cafeína” e assim começa. Água, maçã, fazer aqueles exercícios para a voz, com as cordas vocais, que melhora um monte. E não como chocolate, não tomo café ou chimarrão muito perto de entrar no ar. Arranha as cordas vocais e não fica um som bom para rádio. Meu pai está sempre falando: “Essa voz não está boa, essa entonação está ruim, melhora isso, fez uma frase longa demais”. E isso é legal. E quando é uma reportagem especial, matéria investigativa, ir atrás que a gente deveria fazer todo dia se possível, procurar um conteúdo diferenciado. Pesquisar mais. O Cyro Martins, que foi meu chefe por muito tempo na rádio, dizia que tem que espancar a pauta. Tem que buscar algo novo, tem que ir atrás de uma informação. E quando eu faço isso em uma matéria especialmente em áudio, vai ter mais voz, uma edição, aquela coisa. E eu procuro fazer de uma forma que agrade meu pai. A gente sempre brinca. Ele diz assim: “consegui enxergar nessa matéria”. Então fico feliz, né? O repórter de TV está mostrando uma cena, como um locutor de futebol. O da TV só dá uns detalhes e o de rádio tem que descrever a cena. E eu acho que esse é um desafio para fazer live entrando ao vivo. Descreva a cena. A live é um acessório, tu estás na rádio. Então descreve assim igual, mesmo que as pessoas estejam vendo. E isso é importante para mim, a gente conversa bastante sobre matérias especiais. Fico feliz que consegui chegar em uma meta que tinha na minha vida: 10 prêmios ARI em primeiro lugar. Fiquei muito feliz em 2019 com o décimo prêmio, em parceria com Vitor Rosa. Foi muito legal, vocês não imaginam a felicidade que é. E eu posso dizer que eu tinha vindo de Brasília, que tinha vindo do prêmio CNT de Jornalismo e para mim tem um peso enorme. São 10 de Primeiro lugar, eu acho que 12 de segundo lugar, e mais um monte de diplomas de menção honrosa e eu mostro isso com muito orgulho e gosto de ver quando meus filhos olham tudo. Cada

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acho que se a gente trabalhar em equipe, o teu trabalho fica melhor. Eu gosto de socializar essa responsabilidade. Se uma pessoa dá uma dica, tu podes não concordar. Por exemplo, é uma informação que não tem ainda, que pode chamar atenção. E eu digo assim: não tenha preguiça para fazer títulos. Hoje em dia a gente tem que fazer título chamativo. Sim, faça! Sem ser sensacionalista. Faça um título criativo, depois crie ferramentas e táticas. Primeiro, tem um texto. Primeiro a informação, é a fonte. Conseguiu? Procura, não tem que escrever rápido um texto assim, que seja um pouquinho mais elaborado. Te coloca do outro lado. Tu gostarias de ler isso que estás escrevendo? Seja sincero contigo mesmo, olha no espelho e diz assim “eu leria isso? Isso chamaria atenção?”. Queres fazer uma boa matéria? Quando fores apresentar a tua sugestão de pauta para o teu chefe, tu estás ali vendendo o peixe. É esse peixe que tu tens que vender para o teu leitor. Olha, eu tenho essa pauta assim, assim e assim. Sinto minha matéria. Depois, queres elaborar, queres fazer uma frase melhor e às vezes tu foges do tema. Defina em dois ou três assuntos, explica bem. Se fugir disso, faz uma nova matéria. Eu digo isso para quem está começando: domine a tecnologia, saiba que vais trabalhar multimídia. Em 2015 eu fiz uma pós-graduação em Letras, Revisão e Produção Textual. Ou seja, eu comecei a escrever. Não só a falar e anotar no bloquinho. Não, comecei a escrever para site. Então fiz uma pós-graduação de dois anos, revisão e produção textual, para melhorar a escrita. Quem dá aula sabe, a gente aprende ensinando; então, cada vez mais, tenho aprendido nisso. Eu dou um exemplo lá na Bandeirantes, quando eu trabalhava em 97. Eu era o repórter da cidade. Dizem que era eu e o Bira Valdez os que mais recebiam ligação. Ele porque era o diretor da empresa, eu porque eu atendia as pessoas.


VISÕES DO JORNALISMO

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prêmio que ganho eu pego essa estatueta e levo para o meu pai, ele toca e diz assim: “e essa aqui é douradinha, né?”

menos assim, a relação com a fonte eu procuro sempre na questão de trabalho. Se foi um trabalho bem feito, ela vai te procurar de novo. Ela pode querer manipular? Pode! Pode querer. Vale saber escolher as boas fontes.

O que é mais gratificante: ganhar prêmio ou retorno do público? Retorno do público, retorno do público e das tuas fontes, retorno de um colega, de um chefe, sabe. O repórter corre, tem aquela trabalheira que é entrevistar, decupar, e as coisas não andam e aí tu consegues traduzir isso de uma forma boa. Seja compreensível, agradável, chame a atenção, e tem reflexão e mexe com a sociedade. Isso para mim é um retorno importante porque o prêmio ele coroa, ele vai coroar aquele retorno que tu deste ao teu público. É importante porque assim a fonte que eu vi vai querer de novo. O teu chefe vai passar essa pauta de novo. E tu vais criando isso e é com tempo. É o dia a dia. Então eu digo para muita gente que está começando. Tem a regrinha do “ex”. Eu vejo muitos reclamando da “exploração” e eu digo veja como “experiência”. Claro, se passar muito tempo, aí tu tens que analisar. Ou estão explorando muito ou estás avançando. Eu aprendi muito com isso. Então o retorno do público, o prêmio, é importante. Porque as pessoas vão querer ver o teu trabalho.

E sobre as redes sociais? Como elas interferem no teu trabalho? A gente usa bastante e eu recebo muita informação pelas redes sociais. Nesse ponto ajuda muito, mesmo. Se tu estás no local de trabalho, ela pode prejudicar em algum momento, porque você vai perder algum tempo para publicar, vai ter que captar foto, vídeo, e às vezes vais perder o momento daquela situação que tu estás narrando. Mas, por outro lado, elas também ajudam um monte. E eu acho que elas vêm para tu teres um termômetro de como está teu trabalho. As pessoas vão interagir mais. Além de ser fonte também, a rede social vira uma fonte, é uma fonte até para pesquisar uma coisa, para receber informação. Tem gente que eu não conheço e fala comigo há anos e é seguidor no Twitter. Então tem ajudado bastante para passar pauta e passar informação. Às vezes teu trabalho não tem uma repercussão muito boa e tu podes medir pelas sociais.

Podes falar um pouco mais das tuas relações com as fontes? É preciso cultivá-las para dar furos? Concordo plenamente. Primeiro, eu digo até nas aulas ali na UniRitter que nunca vão me ver comendo um churrasco com a fonte. É uma forma de trabalho. Tem que saber separar. Mas tem que saber quando a fonte quer alguma coisa, ver quando ela tem algum interesse. Eu vou deixar bem claro, hoje em dia até se está mais institucional, tem uma chefia de reportagem, a gente tem uma reunião de pauta. Se for interessante, eu vou fazer. Se não for interessante, desculpa. Eu vou divulgar o que é de interesse social. Se não é da minha área, eu repasso. Tem outra questão, eu sempre socializo a responsabilidade. Às vezes eu posso estar com a visão errada, e tem aquela pulguinha atrás da orelha. Eu pergunto “olha, me mandaram isso. Será que vale?”. Então é mais ou

Na tua opinião, é diferente fazer rádio e fazer podcast? Bom, eu acho que pode unir, sabe. Eu acho que pode unir. No meu caso, a gente está falando de várias matérias especiais. Tem pessoas que me perguntam “eu vi que tu ganhaste um prêmio ARI lá em 2001, com a matéria Democracia tardia. Onde que eu acho? Onde é que eu posso conseguir esse material?”. Eu acho que é bom. Poderia usar o podcast para fazer arquivos, reportagens antigas, e para debater mais temas. Um espaço a mais e, por exemplo, eu acho que até falta a gente trabalhar mais nisso. Um mea-culpa aqui. Mas seria um bom trabalho de arquivo até para estudante. Um trabalho especial, um advento, um complemento do rádio. Eu sempre brinco que o rádio é meio camaleão, sabe, aceita tudo, troca de cor toda hora. Eu entrei na faculdade em 1988 e pessoal dizia que a internet agora vai terminar o rádio. E não,

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só vai se somando. O rádio tem foto, rádio tem vídeo, rádio com texto, rádio imagem e o rádio pode estar no podcast também. Sabendo conciliar, dá para trabalhar com os dois. São formatos, mas o rádio é o que mais se adapta. Como é a tua relação com os ouvintes? Quais os mecanismos que vocês utilizam, já que o rádio, especialmente, está abrindo muito espaço para interação com os ouvintes? Para repórter, tu estás no bastidor ali. Quando vais entrar no ar, não vais utilizar ali na hora. Tu vais usar no trabalho mais pesquisa, no trabalho mais offline, vamos dizer. Para apuração, para receber a informação, para trabalhar com a fonte. Então a relação que a gente tem é saber bem quem está entrando em contato. Quem está buscando. Às vezes coloca alguma informação, e te retuítam te criticando e tu vês que era uma coisa mais pessoal, uma opinião da pessoa. Política, religiosa, entre outras questões. Bom, geralmente reclamam muito quando a gente não coloca nome e eu digo “tô tentando”. Eu até tento responder, quando tem educação. “Lei de abuso de autoridade, não estão divulgando, a gente não conseguiu ainda”, aquela coisa toda. Isso para o repórter.

ou até pelo whats. Tu já foste no trabalho com ela, tu já acompanhaste um trabalho, tu já olhaste cara a cara. Conversou, bateu um papo, e ela confiou no teu trabalho. E em termos de distanciamento social, muito remoto, tu perdes isso. Eu acho que o jornalismo precisa estar no local. Quando tiver uma informação importante, ela vai se lembrar de quem estava lá. Vai ter o material para todo mundo, mas aquela cereja do bolo, aquela informação a mais, aquela informação de cocheira, que a gente fala. Aquele off ali que vai chegar, vai chegar para quem vai no local. Então esse é o único problema do trabalho remoto. Acho que a vida inteira vai mudar nesse ponto. Mas o jornalismo, a gente tem que estar no local. Tu tens que transmitir, sabe, a gente é o repórter. Eu tenho que reportar. Então vou estar reportando. Se eu sou um grupo de comunicação, se eu sou um repórter, eu tenho que reportar o que eu estou vendo.

A quarentena fragilizou a qualidade do Jornalismo. Como tu vês o futuro do radiojornalismo e do próprio jornalismo depois deste episódio que estamos vivendo? Em termos de fontes, eu acho complicado. Às vezes o repórter quer uma informação privilegiada ou trabalha muito com release. Sabe, eu tenho conversado com as fontes e tem os grupos da polícia, grupo da Brigada. Eu pergunto: quantos ligaram para ter mais informação? “Só tu ligaste para saber mais uma informação, um detalhe a mais.” Então eu acho que facilita receber todas as informações, está tudo explicado. A Polícia Federal faz muito isso. Mas, mesmo assim eu vou lá, eu ligo. Eu quero ter a minha forma de trabalhar. A forma da RBS de trabalhar. De buscar uma informação a mais. De não ficar só no que está ali no geral. E às vezes tu consegues, aquela pessoa vai te atender por telefone

Outra questão, principalmente para estudantes de jornalismo, é não ter constrangimento em perguntar. Tem que perguntar, você não deve ter constrangimento de perguntar. Mas, por favor, dá uma pesquisada antes. Eu já vi coisas assim: “Tenente” e não “Tenente Coronel”. Deus do céu, chamar Tenente Coronel de Tenente. Às vezes a pessoa é afoita e está numa coletiva, por exemplo, o entrevistado ali falando, e tá no fio da meada, está contando a história. Chega alguém com aquela pergunta pré-pronta e já quebra aquilo ali, sabe? Eu acho que o repórter tem que ter esse sentimento, tem que saber se o entrevistado naquela coletiva está desenvolvendo um assunto, e aí não vai lá e corta. Às vezes até numa entrevista normal. A gente tem que saber ouvir, e eu acho que está faltando porque não tem tempo, não tem isso, não tem aquilo. Esquece, ouve a pessoa. Às vezes eu fico 40 minutos batendo um papo para ouvir 10 minutos. E a pessoa te conta histórias maravilhosas. Mas tem que perder um tempo, não é? E às vezes ignoram um pouco o editor. “Manda informação, manda informação”. “Calma que eu vou mandar, vou mandar boa”. Surgiu uma vaga, um estágio. Tem alguma hierarquia? Tu en-

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tras como redator, tu entras como produtor, como repórter? Seguramente não como âncora, porque isso requer um pouco mais de bagagem, de tempo. Qual a hierarquia deste processo e o que tu recomendarias? Hoje, geralmente, no rádio entras como produtor para dar um assessoramento. Também vai preparar uma notícia, geralmente de site, um resumo, uma coisa assim. Eu estou falando e lembrando dos produtores novos que começam. O produtor tem que ler bastante. Assim como o apresentador, tem que se informar. A primeira coisa é saber que os testes são amplos lá. Tem inglês, tem questões de história. Conhecimento tecnológico, treinar até o momento de receber a informação, ter calma, saber todas as etapas dos processos e buscar um nicho diferenciado. O lugar de errar é na faculdade, mas se está começando, vai ser um pouco protegido também. Não vai para o ar também. E procurar ver com os outros tão fazendo. Tentar o máximo possível. Acho que esse é um diferencial para quem está começando. Dizer que não deu tempo só quando não deu mesmo. Eu acho que a gente está com muito pouco tempo hoje em dia. Já falei muito isso do tempo, não é? Está com muito pouco tempo e muita demanda. Então tem chefes mais compreensivos, tem chefes menos compreensivos e eu não quero esperar aí para ver isso, então já vou tentar fazer o máximo antes.

dia. E depois tem uma coisa pessoal, não é um hard news. Mas o futebol, sabe, o rádio tem muito espaço nisso. Eu acho muito legal quando eles pedem buzinaço na frente do Beira-Rio, da Arena. O rádio vai ter sempre esse espaço no esporte, no hard News. O pessoal de rádio tem muito mais seguidor no Twitter do que o pessoal de TV. Deem uma analisada nisso. O pessoal busca a informação porque o rádio está sempre na rua. Repórter desconhecido tem dois mil a três mil seguidores e uns de rádio tipo o Cid com quase 50 mil. Mas tirando a questão do distanciamento social e da pandemia, eu fico um pouco preocupado é em ter uma informação. Acho que o hard news tem espaço se adaptando. Aquilo que eu falei, a rede social tá divulgando, mas tu vais querer ouvir na Gaúcha, ou na Band, ou na Guaíba para ver se é verdade. Para ver se é certo, assim como nos grandes sites. Para evitar as fake news.

Qual o futuro do rádio em hard news, sendo um meio tão antigo? Ainda tem uma maneira de inovar o radiojornalismo? O rádio surpreende a gente. O meu pai fala que os dinossauros dominavam a terra e quem sobreviveu foram as baratas. Então, o rádio é a barata dos jornalistas. Acho que o rádio ganhou com as redes sociais. E com a importância do diploma. Todo mundo pode divulgar, mas com confiança, com responsabilidade, tendo todos os preceitos jornalísticos, respeitando ética e a nossa boa língua portuguesa. Eu acho que hard news em rádio sempre vai ter futuro, porque ele é muito ágil. Com as cidades cada vez mais paradas, todo mundo está ouvindo o trânsito, principalmente no horário das sete, oito horas da manhã e final de 190

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O APRESENTADOR DE RÁDIO OZIRIS MARINS

Estás completando 30 anos de rádio? Já bati nos 30 anos. Eu tenho umas passagens antes da Gaúcha, ainda quando eu era militar. Tive umas passagens por rádio no Interior, só como “frila”. Mas rádio mesmo eu ingressei em 91 na Gaúcha como produtor executivo do Antônio Carlos Macedo no Plantão Gaúcha, da noite.

om mais de 30 anos de rádio, o rio-grandino Oziris Marins começou como produtor de programas noticiosos, virou repórter local, fez coberturas internacionais e transformou-se num apresentador multiplataforma, sintonizado ao mesmo tempo com a história do veículo e com as novas tecnologias. É um profissional reconhecido e capacitado para falar sobre o rádio de antigamente e sobre sua evolução para o que é hoje, um meio de comunicação que alia instantaneidade, interatividade e até imagem, sem perder o essencial, que é a prestação de serviço e a transmissão de informações. Oziris é jornalista formado pela PUC/RS. Começou como produtor executivo na Rádio Gaúcha em 1990, passou a atuar como repórter local e foi escalado para importantes coberturas internacionais, entre as quais a Guerra do Iraque, eleições no Uruguai e na Argentina, além de viagens presidenciais ao Chile, Estados Unidos e Japão. Também atuou como âncora de televisão, nos programas Manchetes do Dia e Primeira Edição do Jornal da TVCOM. Depois de 15 anos no Grupo RBS, transferiu-se para o Grupo Bandeirantes de Comunicação, acumulando as funções de âncora na BAND AM 640 do Jornal Gente, do Tempo Real e do Redação Bandnews na FM 99,3, e da BAND TV Canal 10. Oziris Marins ganhou duas vezes o Prêmio ARI.

Como foi a passagem de repórter para apresentador? Eu sou do tempo do rádio antigo. O rádio hoje está dentro desse aparelho pelo qual estamos conversando, que é o celular. O rádio acabou se renovando nesse processo, mesmo em meio à pandemia, quando os veículos tradicionais começam a ganhar um pouco mais de força e retomar essa força da credibilidade da informação. Eu sou do tempo do rádio antigo, em que o Ranzolin olhava e dizia: “Um bom repórter sai de um grande produtor e um bom apresentador sai de um grande repórter”. Isso não mudou muito; é preciso, sobretudo, aperfeiçoar-se, aprimorar-se, estudar, manter-se informado. O que mudou foram as plataformas com que a gente trabalha hoje. O âncora, antes, tinha que ler todos os jornais, coisa que eu fazia porque sempre foi necessário manter-me bem informado. Isso hoje ainda é fundamental, só mudou a plataforma. Mas, sobretudo, é preciso hoje ter ideia do que ele tem para utilizar no ar. O rádio mudou. O rádio hoje também tem imagem. Antigamente, o repórter de rádio saía para a rua e usava o celular como quem faz uma ligação para entrar no ar. Isso mudou: hoje, ele faz com o celular para colocar uma imagem e o áudio no ar. O apresentador de rádio também, hoje ele tem três, quatro, cinco, seis telas na frente, o celular, mais um computador na frente e mais um celular no tripé para fazer a geração das imagens no Instagram, no Facebook, no YouTube. Ou seja, o apresentador é multiplataforma. Não basta mais só que ele tenha a informação, que ele tenha o cabedal para fazer as entrevistas, para poder ser generalista - porque o apresentador de rádio é um generalista. É diferente, muitas vezes, de um profissional do jornal de televisão, que é mais específico. O apresentador de rádio tem que estar preparado

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“O rádio tem que voltar à sua origem e cobrir o buraco de rua”

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para entrevistar as mais diversas fontes, nos mais diversos momentos do dia. Ele tem essas plataformas todas associadas hoje, porque é preciso conteúdo, pois hoje você tem menos repórter, você tem menos produtor. As redações, que antes tinham 70, 80, 90 pessoas, hoje tem 20, 30, 40, no máximo. O número de profissionais é menor, o número de fontes que ingressam no ar também, infelizmente. Então, hoje você se realimenta. O rádio, hoje, é a realimentação de todas as plataformas. Eu estou no ar com o Jornal Gente, daqui a pouco eu ligo o BandNews TV. Eu estou no ar com o Jornal Gente das 8:30 às 10:30 da manhã na Rádio Bandeirantes FM/AM e, daqui a pouco, você linca com outras plataformas e vai fazendo essas junções. Tem que ter em mente que você também está no ar ao vivo, a sua imagem está no Facebook, no YouTube e no Instagram. Então ele (rádio), hoje, é a convergência destes processos todos e, ao âncora de rádio hoje não basta só dominar a palavra - e é importante dominar a palavra, o conteúdo e tudo que está acontecendo -, mas precisa saber também que está transmitindo imagem e que o seu comportamento no estúdio, seu gestual, tudo faz parte do contexto do produto que está colocando no ar. O rádio, assim, se renovou com as plataformas.

dava a opinião dele em seguida. Isso faz parte da ponderação que a gente tem no dia a dia. Nós preservamos o editorial da empresa e lidamos com a nossa opinião de uma forma ponderada. Procuramos lidar de uma forma ponderada, se é que os momentos atuais permitem a ponderação. Muitas vezes não, já que somos alvos de tudo que é tipo de ataque através das redes sociais. Mas isso é lidado no dia a dia, sobre como preservar o posicionamento da empresa e o pessoal de cada âncora. Cada âncora tem que saber lidar com esses processos todos. Eu fiz uma migração em novembro, dezembro do ano passado: passei a ser gestor das rádios do Grupo Bandeirantes aqui no Rio Grande do Sul, da BandNews, da Bandeirantes e da Ipanema (na plataforma online). Então você também tem a posição de gestor. Tem a minha opinião pessoal, tem a posição de gestor e tem a opinião da empresa e você tem que fazer a ponderação e saber separá-las. Sempre quando entro com o editorial, digo: “essa é a opinião da Bandeirantes, essa é a opinião da empresa”. Às vezes eu concordo, outras vezes não. Você tem que saber separar esses processos todos. No dia a dia, operacionalmente, você tem que ter ponderação para fazer isso. A idade nos ajuda nessa ponderação, para, então, fazer a separação de uma forma mais fluida, de forma tal que o ouvinte perceba que o apresentador pensa de um jeito, a empresa pensa de outro e assim por diante.

O âncora de rádio, de TV também, mas o de rádio especialmente, é um opinador. Ele tem suas convicções, tem suas posições, tem as suas ideias, tem as suas versões. Às vezes, essas posições são conflitantes com as da empresa. Como é que se lida com isso? Para mim, isso é muito fácil. Eu estou completando 15 anos de Grupo Bandeirantes e, eu tinha antes, 15 anos de Grupo RBS, depois fui para Bandeirantes, em 2006. A Band sempre deixou isso muito tranquilo para os seu âncoras. Ela tem uma posição editorial e preserva a posição do seus âncoras. O Grupo Bandeirantes possui vários âncoras e eles têm as mais diversas opiniões. Boechat deixava isso muito claro quando, nos seus editoriais da BandNews, ele lia o editorial do Grupo Bandeirantes e, depois, dizia: “esse é o editorial do Grupo Bandeirantes”. E, muitas vezes, ele dizia: “não necessariamente eu concordo”. E

O Flávio Alcaraz Gomes dizia: “Você tem sempre que pensar que o ouvinte tem uma idade média de 12 anos”. Hoje, com as redes sociais, a entrada do público é maior, a interatividade é maior. Ainda existe esse pensamento? O Flávio Alcaraz foi um grande apresentador, fora de série. Era meio irascível, mas era um grande talento. Conhecia muito o rádio para a sua época, mas isso tudo mudou (e mudou muito). Eu peguei essa passagem de geração, peguei o surgimento do e-mail e, depois, o surgimento das redes sociais todas. Fui resistente, em determinado momento também, com redes sociais. A gente sempre é. Aquela máxima de que ouvinte ouve, aquilo foi por água abaixo. Hoje ele não tem 12 anos,

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ele é inteligente, ele quer a resposta imediata e ele quer participar dos processos. Por isso, é importante estudar as plataformas virtuais. Hoje, ele interage com o programa o tempo inteiro, com a sua opinião, com a crítica. Você tem que saber, também, fazer o filtro desses processos todos, entender que o ouvinte é inteligente, independentemente da posição ideológica que ele tenha. E ele quer participar. Ele só vai te dar audiência se você citá-lo por muitas vezes. Claro, isso não é uma regra, mas é o que a gente está vivenciando. O rádio mudou dessa forma. Antes, o ouvinte, ou mandava um e-mail, ou ligava para produção. Hoje ele entra direto na timeline da tua rede social, porque, quando as pessoas estão no Instagram, tem o chat embaixo. Se eu estou no Facebook, tem o Messenger embaixo. Se estou no YouTube - e o rádio está no YouTube -, o chat fica embaixo, com eles se manifestando das mais variadas formas. Eles querem participar. Eles têm opinião e fazem parte do novo rádio que surgiu dentro das plataformas e dentro do celular.

e saber lidar com todas as plataformas virtuais, fazer a ponderação com a rede social na participação do ouvinte. Além dessa preparação técnica, desta preparação de tecnologia e de línguas, qual é a preparação ética e de formação para ser um bom jornalista? Tem que ler bastante, procurar boas fontes, valorizar o tempo que passa dentro da Universidade. Eu sei que a Universidade mudou também, nos meus tempos eu passava na biblioteca, hoje eu não sei se eles vão na biblioteca, mas eu lia muito. É importante esse processo ético todo, você formatar e respeitar valores, respeitar seus semelhantes, respeitar os profissionais que estão dentro de uma redação, respeitar os que estão no seu entorno. Isso é uma construção de valores, você adquire com leitura e justamente assistindo às aulas da Universidade.

O que um estudante de jornalismo hoje tem que fazer para ser um Oziris Marins? Como é que ele tem que se preparar para chegar onde vocês chegaram? Hoje é diferente. Precisa mais preparação, mais leitura, falar línguas, sobretudo isso: falar línguas. Se puder, falar inglês, espanhol e mais uma língua, ótimo, vai ajudar e muito. Nós somos de uma geração que viajava para fazer as coberturas. Hoje essas viagens são mais raras, devido ao custo e à formatação. Nós somos uma geração que mirava o Ranzolin, o Mendes Ribeiro, o Flávio Alcaraz, porque tinha ali o estereótipo do grande apresentador. Eu, em especial, olhava muito o Daudt, no primeiro Gaúcha Repórter, antes do Lasier ainda. Ele tinha a capacidade de pegar a manchete do dia e ali traduzir audiência, era um apresentador capaz de chamar o intervalo comercial e sair correndo para pegar um telefone, um orelhão, na frente do Presídio Central para, de um orelhão, ancorar um motim no presídio. Era isso que a gente via. Hoje não, hoje é diferente. O estudante tem que se preparar muito, tem que ouvir muito rádio, se ele quiser entrar no rádio. Ouvir muito rádio

Antes os âncoras não tinham um contato direto com o ouvinte, não ouviam o ouvinte diretamente, não aceitavam ou tinham medo de que, numa ligação direta, saísse alguma coisa inconveniente. Continua acontecendo isso ou corre-se risco ao colocar diretamente alguém no ar? Antigamente era até mais fácil. Hoje tem a figura da mensagem de áudio, que entra via WhatsApp. O WhatsApp, hoje, é o principal instrumento, a principal forma de ingresso de opiniões no programa de rádio. Você tem que fazer a filtragem, não pode jogar uma mensagem de áudio direto para o ar. A filtragem existe e ela é cada vez maior, à medida que a gente vive um momento de muita polarização, de muita guerra ideológica, qualquer coisa que você fale você vira comunista, direitista ou bolsonarista. Às vezes, tem até pegadinhas que o pessoal manda, eles estruturam a pegadinha. Tem que haver filtragem e ela é feita. Se você vai botar um ouvinte no ar, por exemplo, já existe o equipamento que tem o chamado delay, então você pode cortar, aí não vai vazar no ar. Tem um delay de 50 segundos e você consegue tirar o ouvinte do ar, sem que o impropério que ele diga vá “vazar” na trans-

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missão, digamos assim. O principal risco ainda é a mensagem de áudio do WhatsApp, a gente tem a norma de jamais colocar no ar sem ouvir antes, porque, senão, você corre o risco de cometer até crime. Isso continua operacional, só se acirrou mais ainda.

agronegócios também entra no processo, aí você começa a unificar as mídias. Depois tem BandNews TV e BandNews Rádio. Essas coisas estão todas convergindo para uma linguagem. Muda um pouco quando elas se desapegam, saem desse link, mas a força do momento faz com que a gente unifique um pouco essas linguagens todas em busca do público.

Da reportagem para apresentação, inclusive da televisão, o próprio comentário, como tu fazes para mudar de repente? Até da Band AM para Band News FM. Como é a tua linguagem? Tu és o mesmo o tempo todo, nos diversos espaços? A gente vira um pouco camaleão, né? A Rádio Bandeirantes tem uma linguagem, a BandNews tem outra, a linguagem da BandNews é um pouco diferente. A BandNews permite-se ser um pouquinho mais “descolada”, entre aspas. Você tem um público um pouco mais jovem, mais feminino também, é o público da BandNews. O público da Rádio Bandeirantes, a nossa FM 94.9, é um público de 45 para cima, mais masculino do que feminino, então a gente tem que fazer essa transposição. A televisão está um pouco se aproximando do rádio na sua linguagem. Até por força da pandemia, nós não podemos receber entrevistados, tem que colocar via Skype ou outras plataformas. Você vai se aproximando um pouco de rádio na TV, com a transposição um pouco mais fácil, até. Essas mídias estão convergindo muito, a gente está aprendendo, em meio à pandemia, a lidar com o distanciamento. Desde o início, o Grupo Bandeirantes executou os protocolos. Eu mandei 90% da nossa força de trabalho para casa, então você fica só com a parte técnica e não pode levar ninguém para entrevistar. Todas as entrevistas são feitas via Skype, com distanciamento e usando a plataforma virtual. Você se obriga, também, a aproximar as linguagens e a televisão vem aproximando, cada vez mais, a linguagem do rádio. Em São Paulo, por exemplo, a Band já tem uma redação inteira de YouTube, convergindo para o YouTube. Todos os seus veículos estão no YouTube e todos os veículos convergem. Por exemplo, amanhã cedo tem o Jornal da Band News, que linca com a Rádio Bandeirantes. A Rádio Bandeirantes entra dentro da TV, a TV entra dentro da rádio e, em seguida, o canal de

Como é que tu lidas com o entrevistado? Qual é a tua relação com as fontes? Aquele mais manhoso, aquele que tende a ser manipulador. E essa questão da polarização? É preciso entrevistar alguém da esquerda e contrabalançar com alguém da direita? Isso é uma regra antiga, do puxa e estica, que a gente usa cada vez mais. Tem que equilibrar a balança e fugir do radicalismo, não se deixar contaminar por isso. Eu vou começar pelo entrevistador manhoso - e isso eu aprendi lá atrás ainda, com o Ranzolin, que a gente nunca dá a pancada direto. Depois fui aprender na Rádio Bandeirantes. Quando eu cheguei, fiz uma entrevista - não me lembro com que ministro - e foi aquela coisa meio prepotente de você achar que tem que emparedar o seu entrevistado. Eu nunca vou me esquecer. Me disseram: “não, aqui a gente não faz Band Inquérito”. E realmente, a gente não tem que fazer inquérito. Às vezes a gente tem essa ânsia e se deixa levar nesses processos de tentar emparedar, ao invés de só perguntar. Não tem pergunta que não possa ser feita de forma educada, e a gente pode fazer determinadas perguntas, que às vezes parecem mais ácidas, mas de uma outra forma. Daquele que você quer retirar algo, quer dar uma emparedada, você começa justamente costurando pelas beiras, começa a fazer uma entrevista mais propositiva. E, lá no meio, você dá a emparedada, você é um pouco mais crítico, mas sempre com educação. Primeiro o traz para você, depois você entra onde quer, dá uma “rodeada” nesse processo todo. Isso a idade vai ajudando a gente a fazer. Tente fugir do estereótipo do inquérito.

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Quem acompanha a Band, a Jovem Pan, em São Paulo, percebe essa coisa da câmera no estúdio. O próprio programa do Boechat, do Barão, do Reinaldo Azevedo. Há diferenças de características entre o rádio paulista e o rádio gaúcho? A gente tem características bem próximas às do rádio em São Paulo porque, justamente, a marca da prestação de serviço deles lá é bem maior, eles têm aquela overdose de trânsito, tempo. Nosso rádio ainda é mais condicionado, mais calcado na herança que a gente tem da Argentina, do Uruguai. Um rádio mais de opinião, mais forte, é um talk radio, mais falado. São Paulo usa muito a reportagem no ar, com muita frequência, usa muito trânsito, muita prestação de serviço. Isso é uma marca deles, não é à toa que, por exemplo, no Rio de Janeiro, a rádio mais ouvida dentro dos táxis ou dos Uber é a BandNews, que é o rádio em rede e a rádio que tem os espaços locais, dando a prestação do serviço do trânsito, que eles usam muito. O nosso aqui ainda é muito em cima do âncora, muito em cima da informação, óbvio, mas a informação é mais editorializada dentro dos programas. A gente até pode separar um pouquinho o que é a BandNews e o que é a Rádio Bandeirantes. A Bandeirantes é uma rádio mais editorializada.

ali só para massacrar o âncora ou tentar impor uma ideologia, uma opinião, no caso. O que traz mais gratificação, sinceramente, é quando você entra no supermercado e vem uma cidadã lá dizer: “eu ouvi hoje, foi muito bacana aquilo que o senhor falou…”. E eu atendo a todos no supermercado, sempre que eu vou. Isso traz uma satisfação muito forte, é um carinho, e eu dedico um tempo para conversar com essas pessoas.

O que te dá mais gratificação, como um jornalista de rádio, e o que te dá dissabor? A gente tem a realização profissional, obviamente, mas o dissabor é diário. Hoje, o que me traz mais dificuldade é lidar com as redes sociais, com a cobrança de alguém que tu sabes que se esconde atrás de um pseudônimo ou de um perfil para te atacar diariamente. Isso traz um desgaste muito forte, porque, daqui a pouco, tu terás uma gama de robôs te atacando, chamando de tudo que é tipo de coisa. Não sou só eu que vivo isso, o Rogério vive, o pessoal da Gaúcha vive, o pessoal da Guaíba vive, a BandNews também. Isso traz dissabor, faz a gente gastar energia nessaes processos todos, por mais que a gente abstraia um pouco - eu até aprendi a abstrair um pouco esses ataques -, separar o que é um ouvinte mesmo e o que é um hater, um robô que está

A televisão não tinha a agilidade que o rádio sempre teve. Agora passa a ter também, é uma concorrência. A duas mídias estão muito parecidas, porque o rádio está se tornando visível. Você acha que nós caminhamos para essa paridade entre essas duas mídias? Acho que sim. Nesse momento sim, em função da pandemia, em função de o ouvinte querer cada vez mais ver o bastidor do apresentador. Eu faço meus programas de casa, o Rogério faz de casa, o Marco Antônio faz em casa, o Sérgio Boaz também, todo mundo está fazendo de casa, assim como as outras emissoras. As pessoas têm a necessidade de ver. No primeiro dia, eu instalei a live do Instagram, não tinha feito ainda – e, quando fui ver, tinha mais seguidor na live do que ouvintes, era um troço meio maluco. As pessoas queriam ver o meu bastidor. Aí eu comecei a mostrar meu equipamento, meu estúdio e tudo mais. Só aumentava o número de pessoas ingressando na live, porque elas querem, justamente, participar do seu cotidiano, elas ficam esperando você entrar na live do Instagram/Facebook/YouTube. Isso tem um limite também, cabe-nos impor o limite. As vezes entra alguém fazendo uma pergunta que você não quer responder, aí faz de conta que não viu. Tem isso também. Alguém pediu para mostrar alguma coisa que você não tem que mostrar. Tem um limite esse processo, a gente está aprendendo a fazer home office também, em meio à pandemia. O home office também tem limitações. Eu fui aprender que, trabalhando em casa, trabalho muito mais do que na empresa, por exemplo. Você está 24h envolvido nos processos, então, por incrível que pareça, isso também está acontecendo e, ali adiante, a gente vai ter que estabelecer limites. É uma invasão de privacidade, claro que é. Daqui a pouco você

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transporta o seu ouvinte para sua casa, para o seu escritório. Tem que saber lidar com isso. E essa questão do rádio prestador de serviço, o rádio que atende a questão do trânsito, do clima, o alagamento, o buraco na rua? É uma tendência sem volta? Eu sempre gosto de dizer que nós somos muito impregnados por Brasília, pelo Piratini, pela Assembleia, pela prefeitura e, muitas vezes, o rádio tem que voltar à sua origem e cobrir o buraco de rua, sim! Cobrir a necessidade da sua comunidade lá no interior da Vila Safira, na Restinga, no extremo sul da capital. A gente não pode esquecer dessas pessoas, o rádio começou por aí e tem, também, que manter esse espaço aberto. Não pode achar que só interessa o que acontece em Brasília, ou só interessa o que acontece no Piratini, ou por aí afora. A pauta de política e economia é muito importante, mas o rádio tem que cobrir sua província na raiz, lá na vila também. Atender o seu ouvinte mais pobre, atender os ouvintes da comunidade, cumprir esse papel - e tem espaço para cumprir esse papel. A pandemia está nos ensinando que os veículos tradicionais retomaram sua força, porque as pessoas precisaram ir em busca da credibilidade, ir em busca de quem faz checagem de informação, porque a gente está recheado de fake news nas redes sociais, ninguém sabe mais em que informação confiar e, quando alguém quer informação, ele vai buscar no rádio, na TV e no jornal. É ali porque você sabe que tem checagem da informação e, no caso da prestação do serviço de atendimento à comunidade, tem a cobrança sobre o poder público. Tem que ter essa cobrança, justamente para o serviço chegar naqueles mais carentes que estão lá. O rádio está retomando esses processos todos. Essa vocação jamais vai ser abandonada.

São Paulo, Rio de Janeiro e até aqui, em Porto Alegre, tem aumentado bastante. O rádio antigo, AM, que está representado na Rádio Bandeirantes FM 94.9, sim, esse ainda tem menos vozes femininas, mas como hoje nós temos uma redação integrada, não existe mais a redação da TV, a Redação da Rádio AM, a Redação da Rádio FM, a redação do virtual. Hoje é uma redação só para todas as plataformas, aí todos circulam nessas plataformas. As meninas do rádio também entram na televisão - em nível nacional na BandNews TV para todo o país -, ou, às vezes, até na Band TV. Aos poucos isso vem mudando, mudando bastante. A Band News ajudou muito isso. Em São Paulo há mais mulheres do que homens, Rio de Janeiro também. Porto Alegre está caminhando nessa direção. Aos poucos teremos mais mulheres na BandNews do que homens. No microfone também. A gente tem a Eduarda, a Gabi, a Ana Cássia. Tenho quatro ou cinco meninas que se alternam ao longo da programação na BandNews, no caso. A Rádio Bandeirantes, não. Na Rádio Bandeirantes são mais homens, programas com homens âncoras. Mas realmente, o futuro é ter mais espaço para mulheres. Aquela ideia antiga de que “a voz feminina não se adapta bem ao rádio AM” foi por água abaixo há muito tempo, até mesmo porque hoje se exige muito mais competência e conteúdo do que a voz propriamente dita.

O público da Bandeirantes é um público feminino, mas a gente não vê muito as mulheres nas redações de rádio. Por que o protagonismo no microfone continua sendo dos homens? A Band News tem mais meninas hoje trabalhando do que homens.

O que um jovem jornalista, que está chegando agora no rádio, tem que fazer para percorrer uma trajetória semelhante à tua, de produtor, repórter e apresentador? Hoje ele tem que estar estudando permanentemente. Bem informado e estudando, procurando aprimorar-se em conteúdo, em forma, em operação prática nesses produtos todos. A trajetória vem ao natural, não adianta programar muito. Eu sempre brinco que o Ranzolin me dizia: “tu tens mais sorte do que juízo”. Eu sou de um tempo que você tinha que rezar para ser escalado para a cobertura internacional e ali você jogava sua Copa do Mundo. Ali, ou sua carreira despencava ou crescia. Hoje essas coisas são mais raras, você constrói a carreira dentro de um processo de redação, de aprimoramento. Eu levei quase um ano

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para pegar num microfone dentro da Gaúcha, porque eu era produtor e produtor não falava. Hoje, o menino entra na redação e, dois, três dias depois, se ele está apto em linguagem, ele já vai para o microfone. Acabou o mito da voz, não existe mais. Hoje é conteúdo. Tem conteúdo, domina a língua, responsabilidade, alguma empatia? Vai para o ar. Quanto à especialização, economia, política, etc, achas interessante para um estudante de jornalismo entrar para uma rádio com uma especialidade que ele curte mais e na qual ele investe? Eu acho bom que ele faça isso, mas não é fundamental. Já foi, no passado. Hoje não é mais. Se ele for um generalista, ele vai ter mais oportunidades. Tem que dominar bem as generalidades, porque, durante o dia ele vai oscilar muito nas pautas que ele vai cobrir, assim como âncora vai oscilar em quem ele vai entrevistar. Ele tem que estar apto nesses processos todos e isso é importante. Se ele quiser se especializar, não tem problema nenhum, não é problema, mas ele tem que dominar um pouco de cada coisa. É importante ser generalista no rádio de hoje, o momento impõe isso tudo. A gente migra de uma pauta científica, em busca de uma vacina, até uma crise em Brasília e até o buraco da rua. Então a gente tem que passar por essas pautas todas, podendo dominá-las minimamente. Mais do que nunca, é preciso ler, dominar a língua, estudar, aperfeiçoar-se. Esses processos não mudam, eles estão cristalizados. No passado, especializar-se em algo era muito importante. Hoje já não é tão importante. É bom? É bom, mas se você puder ser um generalista e configurar sua carreira a partir dali, vai ser melhor. Se puder ter uma passagem no exterior, também é importante, porque é um referencial a mais.

O esporte já foi formador de uma geração inteira que fez jornalismo. Eu não vim do esporte, já fui direto no jornalismo e fiz esportes temporariamente, uma ou outra vez. Hoje o jornalismo não depende mais dos esportes, o profissional que entra no jornalismo vai ascender, vai virar repórter, âncora e por aí afora. O esporte está mais segmentado, a gurizada que vai fazer esporte geralmente não quer fazer jornalismo geral. Na Bandeirantes, esse fluxo até inverteu-se um pouco. O coordenador de esportes veio do jornalismo, fazia jornalismo e foi ser coordenador de esportes e comanda programas de esportes. Não que isso seja uma regra, é o momento que isso acontece. Como eu ouço: “ah, hoje não precisa ter voz”. Claro que precisa! Se tiver uma voz boa, bem empostada, bonita, melhor ainda! Mas não é só isso, se ele tiver uma voz regular e uma boa interpretação, uma boa leitura, um bom conteúdo e um bom carisma, também vai ser um bom profissional. As coisas mudam nesse processo. O esporte hoje está mais segmentado. Ele ainda tem grandes profissionais, é formador, mas o jornalismo não depende tanto desse processo. O jornalismo forma o seu time e ainda cede para o esporte depois. Todos acabam se unindo nas grandes coberturas, com numa eleição, por exemplo. Todo mundo vai para a bancada trabalhar junto, isso é uma regra que não muda. Como as redações são menores e agora, em tempo de pandemia, isso também ajuda que todos sejam mais colaborativos, todos aprendem juntos nesse processo. Hoje o jornalismo é mais independente do que já foi no passado e forma seu próprio escrete mas estamos ainda colaborando na mesma redação.

Antigamente, uma das virtudes para entrar em rádio era ter uma boa voz e saber ler sem errar. Uma das fontes de formação de bons âncoras, e bons profissionais de rádio, sempre foi o setor de esportes. Você acha o esporte continua fornecendo mão de obra para televisão e para o rádio de um modo geral,?

Como é ser mediador entre colegas de várias ideologias? E como tu achas que será o futuro do jornalismo pós-pandemia? A primeira pergunta a gente resolve com a regra básica do bom senso. Para fazer a mediação nesses processos que envolvem colegas que são de um lado, colegas que são de outro, a gente tem que ter uma posição de bom senso, e a idade ajuda um pouco nesses processos todos, ajuda a gente a fazer essa medicação no dia a dia. Eu sou apresentador e sou gestor. Às vezes eu me sento na cadeira e me lembro do Ran-

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zolin, olho, lembro como é que o Ranzolin faria nesse momento para chamar um colega e adverti-lo, ou para chamar o colega, elogiá-lo, e assim por diante. Eu busco sempre a referência em quem me ajudou na minha formação. A minha formação foi feita a partir do Ranzolin, ele é o primeiro grande sucesso de gestor e jornalista numa empresa de comunicação, os dois juntos, diretor de uma emissora de rádio e também jornalista âncora, vindo do esporte e com o sucesso que tinha como um dos maiores narradores do país. Ele tinha um senso de justiça muito forte e de ponderação também, quando sentava atrás da sua escrivaninha, quando aconselhava, chamava, tentava mediar essas questões todas. Então eu busco essa referência para mim. Quanto ao jornalismo, acho que o jornalismo vai sair fortalecido desse processo todo. Jornalismo às vezes tem que ter lado, lado da ciência, da medicina. A gente vive algo que nunca viu, é diferente de uma guerra, que a gente só vai descobrir lá no fim de todos os processos, através da investigação, que não havia armas químicas em Bagdá, nem no Iraque, mas aquilo se prestou para o Bush acabar se reelegendo. Isso a gente só vai ver depois, a história vai contar para a gente anos depois, na hora você vai registrar os fatos. A pandemia é diferente: a gente nunca teve uma crise sanitária desta proporção, nem a minha geração, nem a de vocês, e nem a mais nova. A gente tem que se apegar na ciência e, a partir dela, fazer um trabalho jornalístico sério, absolutamente sério. Acho que o jornalismo vai sair fortalecido, pelo menos as fontes tradicionais vão sair fortalecidas, porque até as fontes tradicionais, que eram mais ligadas às redes sociais, hoje, ponderam o efeito Fake News, que é visceral e mina a boa informação. Nós hoje resgatamos a boa informação e acho que o bom jornalismo vai sair fortalecido. Em alguns programas de rádio, as pessoas falam muito da vida pessoal, coisa que a gente não ouvia antes. Na BandNews, muito raramente alguém fala da sua vida pessoal. É uma orientação? Esse é um fenômeno potencializado pela pandemia e pelo estúdio em casa, onde as pessoas têm a necessidade de mostrar sua sala como 206

se fosse uma revista Caras. Eu sempre preservei, e muito, minha privacidade e a minha intimidade, o nosso relacionamento, minha companheira, meu filho, meus cachorros, tudo isso. Sempre preservei muito e gosto de manter isso preservado, gosto de não expor esses processos. Eu noto que o ouvinte tem a necessidade, muitas vezes, de invadir a tua sala, de ver os cachorros, ver tua companheira, isso, aquilo, a tua casa e isso tem um limite. Há âncoras, nesse processo todo, que gostam de mostrar. Eu, pessoalmente, acho que não, acho tem que ter uma barreira nisso tudo, tem que ter um limite, até porque eu gosto de privacidade. Eu, quando tiro férias, desligo mesmo. Desligo o rádio, desligo tudo e vou fazer outras coisas, para fazer higiene mental. Liberar a mente, boa leitura, boa música para poder renovar-se. E a gente tem que se renovar como ser humano, como profissional, como esposo, como pai, como filho, como tudo. Quanto ao ouvinte invadir a tua sala, tem gente que gosta e permite. Eu, particularmente, não gosto e procuro fazer uma barreira, um limite. O limite do home office é o escritório. O pessoal do microfone se julga celebridade? Isso está muito associado à rede social, que transforma essas pessoas em celebridades, em ícones. Isso está sendo realimentado pelo Face, pelo Instagram, pelo YouTube. O Instagram usa muito isso porque é muita imagem, só agora que a gente está fazendo lives no Instagram. O Instagram usa muito imagem e menos texto, o que acaba celebrizando muito. O Facebook também celebriza as pessoas. Isso, às vezes, acaba retirando o foco do conteúdo, que é fundamental e que deve ser preservado. São momentos que a gente vive, vamos ver como é que isso vai evoluir ali adiante. Tudo isso tem uma linha de extensão e linha de saturação também, chega um ponto que acaba virando. Assim como agora as pessoas resgataram os veículos tradicionais, deixaram um pouco de lado a informação através das redes, ali adiante esse formato também pode acabar mudando. Essa coisa da celebrização sempre vai existir, o problema sempre é o excesso.

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A APRESENTAÇÃO DE TV

Portal de Egressos da FABICO/UFRGS registra que Luciane Kohlmann Pulz concluiu em 2004 o curso de Comunicação Social / Jornalismo. No Linkedin, ela se apresenta assim: “Jornalista por formação, sou uma repórter apaixonada por contar histórias. A versatilidade acompanha minha trajetória profissional. Da reportagem, passei também pela apresentação de telejornais. No ambiente das redes sociais, construí um perfil de influenciadora digital, assim como de produção de conteúdo na área da saúde e aventuras.” No Facebook, mescla muitas fotos sorridentes (como aquela em que garante estar “Me sentindo bem blogueirinha de moda com este blazer alongado, que é a cara da estação”) com outras que mostram coberturas jornalísticas para televisão ou revelam a paixão por “Aquele homem que faz aniversário no dia das crianças e ainda carrega uma alma de menino”. Um perfil bem amplo foi escrito por Patrícia La Puente para Coletiva.net e lá descobre-se que Lu nasceu em Porto Alegre e adora viajar, já foi ultramaratonista de montanhas e morros, sua banda favorita é Coldplay e estava no aeroporto de Congonhas em 17 de julho de 2007 quando aquele avião da TAM caiu, matando 199 pessoas.

Vamos abrir questionando aquilo que os alunos sempre perguntam. Como é que tu chegaste no jornalismo e como construíste essa carreira que hoje é reconhecida? É verdade, os estudantes sempre perguntam «por que escolheu o jornalismo, como é que conseguiu chegar na TV?». Então vou tentar resumir um pouquinho. Quando eu estava no colégio não pensava em fazer jornalismo. Eu, na verdade, pensava em fazer Direito, porque eu sempre gostei muito de buscar pela justiça, pelos direitos das pessoas. Mas no terceiro ano do ensino médio eu percebi que jamais ia ser feliz fazendo Direito, porque minha irmã fazia, enfim. Era algo extremamente solitário, não era nada do que eu achava que poderia ser. E aí eu lembro que eu fiz aqueles testes com a psicóloga e ela disse “olha eu acho que você tem uma concepção um pouquinho diferente, acho que no jornalismo você vai conseguir ajudar mais pela comunicação, usando sua voz para dar voz a quem precisa”. Bom, daí fiz o Jornalismo na UFRGS, e desde o início eu já busquei estágios. Nunca escolhi muito lá no início, fiz estágio inclusive na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Alvorada, depois eu fiz estágio no Terra, que na época era uma inovação em portal de notícias, isso lá pelo início dos anos 2000. Mas sempre tive um sonho de trabalhar em veículo, então teve um semestre que eu fui muito atrás disso. Eu lembro que fiz uma entrevista de emprego na época para trabalhar no antigo Clic, seria de madrugada. Até que eu cheguei lá no André Machado, que era o chefe da Rádio Gaúcha. Um dia ele me chamou para fazer uma entrevista para estágio. Na verdade, era tipo um teste, eram vários candidatos. Passei, fiz o estágio lá durante um ano e aí estando lá dentro eu me apaixonei por rádio, me apaixonei pelas mídias. E eu sempre sonhei muito trabalhar em TV, mas eu não fazia ideia na verdade do que era TV. Na faculdade a gente acaba não vendo essa prática, a ideia de como realmente a coisa funciona. E aí quando terminou o meu estágio eu me formei, e na época o Cezar Freitas era gerente de jornalismo na RBS e me chamou para fazer um trabalho como freelancer e nunca mais saí. Isso em agosto de 2004, quando eu comecei na televisão. Daí eu tiro uma experiência

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LUCIANE KOHLMAN

“A estratégia é contar a história para uma pessoa, não para uma câmera”

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própria. Desde o início da faculdade, mesmo estudando na UFRGS, que eu tinha às vezes aula de manhã, de tarde, de noite, eu já procurei fazer estágio e não escolhi muito. E estava sempre de olho, sempre de olho, sempre atrás, e me envolvia com um monte de projetos. Porque eu sempre acho que quanto mais network que a gente tenha, é sempre melhor. Depois, fui para São Paulo fazer um freela na TV Globo. Depois fui para o Canal Rural, voltei para o Grupo RBS, fui para Brasília, fiquei quatro anos em Brasília na RBS TV de lá e pedi para voltar para Porto Alegre. Fiquei mais um tempo na RBS daqui e fui para o SBT. Resumidamente, dei mais enfoque para a parte da faculdade, que sempre costumam perguntar.

chefe me dizia “Lu, tu estás no SBT, aqui tu podes rir. Se errar, tu podes fazer uma gracinha”. Eles estavam desde o início do ano com muita falta de apresentador mulher e começaram a fazer alguns testes com alguns repórteres e apresentadores regionais. Acabei fazendo, eles gostaram. Eu fui três vezes, apresentei quatro ou cinco vezes o SBT Brasil. Agora eles contrataram apresentadora que faz só os fins de semana. Com a pandemia, não teria como ter alguém para ir, ficar em hotel, enfim. A gente tem toda essa questão da pandemia, da contaminação. Mas muito bacana assim; acho que é a realização de um sonho e acaba abrindo portas. Mostrando que é possível, também ser visto mais ali no eixo Sudeste. Muito bacana.

Mas aí tem mais um aspecto importante, que é explicar para os alunos a questão do teu pulo nacional. Como é que foi a tua ida para o nacional? Eu no SBT sempre tive oportunidade de fazer reportagem. Uma emissora aqui, menor, então a gente acaba tendo mais possibilidade, por exemplo, de entrar no próprio SBT Brasil como repórter. Fazendo reportagens, enfim, nacionais. Isso já desde o início, quando eu comecei a trabalhar no SBT aqui no Rio Grande do Sul, que foi em 2015. E então eu sempre fiz muita matéria nacional para o SBT Brasil. Não sou a repórter fixa, é o Andrei Rossetto, mas a gente acaba se entrosando muito, enfim, equipe reduzida. E eu acabei sempre tendo uma boa relação com o pessoal lá em São Paulo. Eu fui uma vez, em 2016 eu acho, para fazer algumas reportagens para o Mas Bah!, que era entretenimento, daí já conheci a redação de lá. Eu já tinha alguns conhecidos também na redação de lá, e aí eu acho que a gente começou a ter relação. E, como eu falei, acho que a minha escola de jornalismo assim, em TV, acabou sendo lá no início com a RBS, com aquele padrão mais quadradinho. E aí quando ele estava precisando de um apresentador para o SBT Brasil, para o nacional, eles estavam procurando justamente este tipo de perfil. E no SBT a maioria dos apresentadores são bem mais coloquiais, e eu inclusive tive que mudar quando eu entrei lá. Meu

É que tu eras repórter. Teve o pulo para a apresentação? Sim, é que no SBT eu sou repórter, sou apresentadora, sou repórter do local, sou repórter do nacional, faço de tudo um pouco. Mas, realmente, não sou apresentadora fixa. E pelo que sei, acho que fui a única a apresentar o SBT Brasil que não era apresentadora. Mas eu acho que valoriza também o mercado aqui do Rio Grande do Sul, porque assim como eu, também foi o André Haar, que apresentou algumas edições também. Mas ele é apresentador aqui. E ele também tem esse perfil que se encaixa muito bem com a bancada.

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As equipes de televisão tinham repórter, cinegrafista, auxiliar (o famoso pau de luz), o motorista. Com o tempo foram encolhendo e hoje tem casos de que é só o repórter com sua câmera. Como é que tu enxergas essa involução ou essa evolução? E é verdade. Mas, por incrível que pareça, ali no SBT a gente continua com o motorista e com o cinegrafista. O motorista não é auxiliar, mas a gente acaba tendo essa equipe completa que acaba facilitando bastante. Ao mesmo tempo, já passei ano passado por uma experiência com um grupo tradicionalista aqui no Rio Grande do Sul que fez uma caravana Farroupilha nos Estados Unidos. Atravessaram os Estados Unidos de motorhome e eu acompanhei sozinha. Então eu fui, como


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estar em qualquer lugar. Mas, ao mesmo tempo perde-se em qualidade e TV é imagem.

a própria CNN chama, de vídeo-repórter, ou seja, eu, meu celular e só. Minha opinião é de que são formatos diferentes, quando a gente está sozinha limita-se bastante a captação de conteúdo. É possível, mas eu acho que jamais vai ser a mesma coisa no momento em que você tem o cinegrafista junto. Tem gente que diz que vai ser o fim dos cinegrafistas, e eu acho que não. Acho que na verdade a gente está ampliando as opções. Ou seja, o celular com a internet, a gente está conseguindo chegar onde a gente não chegava antes. Eu vejo hoje pela nossa cobertura frente à pandemia. A gente está com as equipes muito reduzidas na TV porque tem muitas equipes que estão afastadas por serem grupo de risco, em home office. E quem está em home office acaba entrando como um vídeo-repórter. A gente consegue fechar conteúdo, vai atrás, grava muitas entrevistas por Skype, por Zoom, onde talvez, com equipe, não chegaria. Eu acho que essa é a vantagem. A gente consegue ter mais acesso assim, por exemplo, como o rádio, que você liga e fala com a pessoa e já entra no ar. Isso a internet, o celular, começou a permitir. Mas eu acho que para televisão eu acredito que a gente nunca vai perder a figura principalmente de um cinegrafista, de uma boa profissão, porque isso faz muita diferença na televisão. Um vídeo-repórter, com essa ferramenta da internet, pelo celular, consegue ter mais agilidade, consegue chegar mais a pontos distantes, tem essa agilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Hoje a gente usa muita imagem que chega via WhatsApp. Inclusive as grandes emissoras. Acaba usando também entrevistas, vídeos que chegam pelo Whatsapp, mas perde qualidade. E eu acho que nunca vai chegar perto de uma imagem feita com um bom cinegrafista. Então eu estou trabalhando aqui na TV, presencialmente, quando a gente faz as imagens. Quando o repórter está lá no local é completamente diferente, tem a qualidade da imagem, consegue mostrar detalhes, consegue mostrar ali que está acontecendo com os nossos olhos. Claro que eu poderia estar lá no centro com o celular, mas nunca vai chegar aos pés da qualidade de ter um cinegrafista fazendo isso lá. Então eu acho que tem essas duas frentes: uma é a agilidade na informação, essa velocidade, agilidade, a facilidade de

A matéria de TV geralmente tem 3 minutos, 4 minutos. Mas tem todo um trabalho para apresentar esse pouco tempo. Como é que fica essa relação, se não fica um ar de frustração e como é isso na cabeça do repórter? Olha, quando a gente começa na televisão a primeira coisa que precisa fazer é virar a chave. Por exemplo, quando você está no rádio não pode ficar pensando imagem. Levanta o telefone, grava com a pessoa e deu. É essa questão do trabalho e que às vezes não chega a 3 ou 4 minutos. O padrão da TV era um minuto e meio com cabeça, hoje é 2 ou 2 e meio. Mas é realmente um trabalhão, às vezes a gente passa a tarde inteira trabalhando para a reportagem entrar no ar ali no jornal da noite. A matéria do hardnews, o diário, sempre o assunto do dia. E eu não sei, eu não tenho mais muito isso daquela frustração, de um trabalhão. Porque a gente já foca muito naquilo, né? No início, quando a gente começa a entender, a gente acha que a reportagem boa tem que ter cinco minutos, mas a gente também tem que se colocar como telespectador, se a matéria não é muito boa. Se tem cinco minutos e você vai ver no SBT Brasil, no Jornal Nacional, ela é uma matéria que teve uma produção de uma semana. É a grande diferença, e ela precisa ser boa para conseguir captar a atenção do telespectador. Então, a gente tem que se colocar também como espectador. Quem está consumindo aquela notícia. Se é muito grande, precisa mais de atenção. Então é um exercício que hoje eu já absorvi. Acho que dois minutos, dois minutos e meio é um tempo bem satisfatório para a gente passar mensagem. Até porque na TV há detalhes, há números, que às vezes não vale a pena a gente investir, porque a gente está focando na imagem. A pessoa ouve, ela vê, então a gente tem que sempre buscar e focar no mais importante na matéria. Quando a gente começa a trabalhar mais em TV capta isso de que não adianta uma matéria cheia de números. Não adianta colocar todos os números, a pessoa que está assistindo depois do segundo

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já esqueceu qual era o primeiro número. Então quando chega algum estagiário lá na TV, às vezes vai fazer alguma nota coberta, eu chamo e digo “quando você falou no primeiro número, ok, mas aqui no segundo a pessoa já não lembra do primeiro, do terceiro ou quarto, então...”. Qual é o mais importante? A alta, então vamos focar na alta. Aumentou, dobrou, triplicou. E aí então eu acho que é um aprendizado, eu não me frustro mais. Eu me frustrava muito quando a reportagem tinha um minuto e meio. Aí sim, eu lembro inclusive da época da RBS, que inclusive já mudou. Aí tu tens um oposto. Imagina, uma matéria de um minuto e meio é um suspiro. Eram sonoras de cinco segundos. Então às vezes eu entrevistava uma pessoa durante 15 minutos para ela falar “realmente, é muito complicado”. Como foi a tua primeira experiência na frente das câmeras? O que fazer e o que não fazer na primeira vez que vai ao ar? Bom, a primeira vez que eu fiz uma reportagem foi no Canal Rural, em São Paulo. Porque na verdade quando eu comecei aqui, eu era pauteira e depois eu fui produtora, depois eu fui editora. Meu sonho era ser repórter. Na época, inclusive, eu ficava muito frustrada por não ser repórter, mas foi muito bom. Então uma dica: às vezes a gente quer trabalhar em TV e quer ir para frente das câmeras, mas é muito importante a gente passar também pelas outras etapas. Porque dá mais bagagem e segurança. E lá em São Paulo eu era produtora e queria ser repórter. A minha primeira reportagem foi sobre café. E eu acho que essa minha bagagem ajudou na produção e na edição da matéria. Por que a gente aí monta a matéria, na hora de fazer o texto, ajuda a construir o texto, isso me ajudou. Então por mais que eu tenha ficado nervosa na hora de gravar o boletim, a passagem, aquela parte em que a gente aparece, eu já tinha uma noção de como construir um texto. Era sobre café, era sobre a produção, e eu entrevistei alguém da associação lá do café, entrevistei alguém de uma cafeteria e consumidores. Então eu já sabia que eu precisava pelo menos uns dois consumidores. Como a gente diz, o fala povo ou o case, que consome café. Eu sabia que eu precisava da 214

imagem do cafezinho, então claro que eu saí com um cinegrafista que já tinha experiência. E eu já tinha uma noção do que eu precisava para construir aquela reportagem: alguém do setor, eu precisava de imagens de café, então precisava de uma cafeteria. Eu precisava de uma história, alguém que estava consumindo café. Eu precisava de um barista ou do dono da cafeteria. Então eu te digo assim, quando a gente começa em TV, eu acho que isso é muito importante. Às vezes eu vejo estagiários e estudantes meio frustrados com a profissão, mas é onde a gente vai aprender. É o que vai te dar mais segurança e vai deixar mais seguro na hora de ir para rua. Outra coisa, a minha primeira entrada ao vivo, isso sim eu quase morri. Porque não foi no Canal Rural. Eu trabalhava no Canal Rural, mas foi bem na época que caiu avião da TAM, em São Paulo, e aí eu entrei ao vivo no Bom Dia Rio Grande de São Paulo. Foi muito tenso, eu fiquei muito nervosa. E olha, vou ser bem sincera, a grande dica é saber o que você está falando. Na época eu decorei e isso é horrível, porque na época a gente tinha que entrar com o texto que estava previsto e graças a Deus isso caiu. Claro que a maioria dos jornais mais ou menos passa um texto, mas você pode improvisar. Então hoje eu daria a dica para alguém que vai entrar ao vivo: fazer um texto, mas entender. Hoje, o que eu faço quando eu vou entrar ao vivo: eu tenho um texto, mas aquele texto me serve como um caminho. Aí eles me passam o texto para entrar ao vivo. Eu pego umas duas matérias e leio inteiras e então eu vou pesquisando. E essa é a minha estratégia para conseguir entender o que tá acontecendo e aí sim, conseguir entrar ao vivo com mais segurança, mais confiança. E quando eu estou falando, eu estou contando. Então eu sempre penso que eu estou contando aquela história para uma pessoa ali na minha frente, não para uma câmera. Isso dá mais um toque de informalidade, que parece uma conversa e não uma pessoa ali despejando um conteúdo. O meu primeiro vivo não foi nesse sentido, foi bem decorado, bem nervoso e o nervosismo faz parte. Acho que a adrenalina faz parte, nos dá foco, aí a gente aprende a lidar com ela.

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Normalmente os jornalistas iniciantes querem mudar o mundo. Ainda é possível ter esse sonho de mudar o mundo? Olha, é o que me move e até hoje eu acho que todo jornalista acha que tem condições de mudar pelo menos o seu mundo ali ao redor. E eu acho que sim, tem que ser essa a grande motivação por trás da nossa profissão, do nosso trabalho diário. Nós não precisamos ter a ideia de que a gente vai mudar a situação de todo mundo porque às vezes a gente acaba mudando a situação de uma rua. O jornalista diz “eu não vou fazer matéria de buraco de rua”, mas fazendo a matéria do buraco de rua vai conseguir ajudar aquela comunidade. Dá para ajudar os aposentados que não estavam conseguindo fazer a perícia no INSS. Então, quanta coisa que o jornalismo trouxe que conseguiu mudar alguma estrutura, algum processo ou facilitar a vida de alguém. Pode ser uma coisa pequenininha, podem ser coisas maiores. Mas sim, é uma batalha diária. Por mais que a gente esteja hoje nessa questão de fake news, pessoas que não são jornalistas despejando informações falsas em redes sociais, eu me apego muito à informação que tem de ser apurada. Essa semana mesmo estava conversando com minha colega, a Gabi Lerina, por que a gente sofre quando dão alguma informação que não é correta. Eu acho que têm que sofrer mesmo sabe, eu acho que a gente tem que ter esse preciosismo. A minha responsabilidade é com a informação, a apuração. Às vezes os estudantes chegam, e eles não vem daquela fase em que a gente estava muito telefone, ligando, e usam muito o WhatsApp. Mas não tem problema, tem que ser uma informação bem apurada. E sim, eu acho que a gente tem que ter esse sonho constante de conseguir mudar o mundo e pode ser através da informação. Às vezes você tem uma população inteira falando uma determinada informação, você sabe que é errado aí você pensa, meu Deus do céu, as pessoas não param de falar isso, é errado! E você vai lá, faz uma matéria bem explicativa, mostra que não é aquilo. Então, sim, é o que nos move.

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A TV tem espaço, especialmente para quem vai para a frente da câmera, somente para quem é bonito e de boa voz, ou tem espaço para a diversidade e outros tipos? Acho que tem, eu acho que cada vez mais as emissoras estão tentando dar dessa diversidade. Porque elas estão enxergando que as pessoas que assistem elas também buscam se sentir representadas por quem elas veem. Por muito tempo a televisão foi sinônimo de rostinho bonito, e como você disse, da voz impostada. Até o rádio antigamente era assim. Mas eu acho que sim. Mas às vezes tem algumas limitações. Então por exemplo, eu já trabalhei em sucursais e até no SBT que tem equipes enxutas, na sua estrutura. Mas eu fico feliz, por exemplo, em ver emissoras do canal fechado como Globo News, CNN, que estão buscando cada vez mais, com diferentes olhares, diferentes representações, dar mais representatividade para a população. Não sei se era isso que você estava me perguntando... Vale para os estudantes que acham que não têm esse perfil mais bonito e querem uma chance na TV? Eu acho que sim, que tem espaço para todo mundo. E por exemplo, se você assistiu o próprio Jornal Nacional, assistiu o SBT Brasil, que são jornais nacionais, a gente já não tem mais aquela preocupação em relação ao sotaque. Antigamente tinha que ter tudo padronizado, hoje não. Hoje é bonito mostrar todos os sotaques diferentes. Mas eu acho que a gente está tendo mais espaço. Antigamente os jornais que eram nacionais tinham que ter uma padronização, um sotaque mais para o paulista. E hoje não, assiste-se aos jornais e os repórteres que entram dos mais variados lugares do Brasil. E eu acho muito bacana a nossa representação da diversidade que é a população brasileira. Na verdade, a brasileira não é toda magra, de cabelo toda certinho. Acho que tem alguns padrões que eu não digo nem de beleza, mas são padrões para que o repórter não chame mais atenção do que a notícia. Então às vezes é mais uma questão de roupa de uma cor, por que a gente está ali para passar a notícia. 217


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Sobre a produção da reportagem e na condição de editora, o repórter continua com poder de mexer no texto, de fazer sugestões? Isso é uma coisa que quando a gente está na faculdade é bem diferente do que a gente encontra no mercado. Eu acho que cada televisão tem um perfil. Na Globo São Paulo, quando eu trabalhava lá, por exemplo, eu senti algo que na RBS não era tanto: o poder do editor. Ou seja, o editor era meio que a pessoa que conduzia toda matéria. Não sei como é hoje, isso foi lá em 2006/2007, mas na RBS e no SBT é o que

o repórter produz, até porque é a gente que está na rua, e a gente está enxergando, é a gente que está dando a informação e acho que tem que ser essa relação bem estreita. Então eu vou dar um exemplo como é que funciona hoje no SBT e era muito semelhante como funcionava também na RBS. Vou falar um pouquinho das etapas, porque às vezes os estudantes não têm essas etapas. Como é que funciona: a gente está lá numa reunião de pauta que vai mais ou menos decidir o que que a gente vai fazer naquela tarde ou naquela manhã do jornal. Então o produtor é quem vai atrás, vai ver, vai apurar a matéria para ver se realmente vale. Vai marcar as entrevistas, hoje tem muita entrevista por Skype, às vezes presencial. Vai atrás de alguma história, com case, para conseguir exemplificar aquela matéria. Aí o repórter vai lá executar, vai apurar in loco, pegar as informações. E o editor, enquanto isso, que está lá na redação, ele vai pegar a pauta, vai também atrás de materiais adicionais e vai conversar com o repórter. Durante a reportagem sim, se conversa, claro que depende muito da demanda. Então vai ter emissoras em que o editor está fazendo mil e uma coisas ao mesmo tempo, não só aquela reportagem. Vai ter emissoras em que o editor vai estar só contigo. No SBT Brasil o editor normalmente está com os dois VTs, então ele vai estar direto conversando com o repórter, ele vai estar orientando “o que você acha disso, eu já vou adiantando aqui o material de arquivo, quem sabe fazer uma arte”. Porque em São Paulo existe uma dificuldade muito grande de deslocamento que a gente não tem aqui em Porto Alegre. Então lá, naquela época que eu trabalhei lá, e ainda é assim, você tem muito o serviço do motoboy junto com a equipe. Aí você está lá gravando com secretário, separou, o motoboy já tá no Whats e já entregou assim a fita. Hoje já se gera pelo LiveU, hoje você pode estar gravando e o editor já estar recebendo, decupando. E aí você já manda lá a sugestão do off, do texto, o editor daqui a pouco já vai adaptar porque ele viu que a sonora melhor para encaixar já dizia tal coisa. Então claro que essa é a situação ideal, essa conversa constante. Como eu disse, nem sempre isso é possível porque cada vez a gente está mais sobrecarregado, fazendo várias coisas ao mesmo tempo. O editor está vendo o teu VT,

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Parece recorrente as repórteres usarem um amarelo limão, um verde limão, amarelão. Quem escolhe a roupa? Eu acho que é muito mais uma questão de cor. Não sei se tu estás falando de estúdio ou de rua, mas a gente tem uma figurinista. A maioria, acho que todas as emissoras, tem uma figurinista, e às vezes se dá por cores. Para quando a gente está no frio, a gente usa cores mais escuras e então vai fazer uma matéria de noite, você fica tudo da mesma cor. Às vezes é o fundo do estúdio, ali no SBT no jornal do meio-dia o fundo é laranja e de noite é azul. Você vai ter uma preocupação para ter cores que irão destacar aquele fundo, não ficar tudo igual. Inclusive na Globo, Record, isso acontece. O fundo é azul e na hora você diz “meu Deus, estão combinando com o cenário” (risos). Os jornalistas aqui não usam o “tu”. Falam “você”. Existe alguma orientação? Na verdade, eu peguei esse “você” na época que estava em São Paulo. Na época que eu estava lá, Deus me livre falar tu. Nunca me orientaram, e aqui no SBT alguns colegas falam “tu”, mas eu acho que talvez porque parece informal. E ninguém nunca disse aqui para eu usar o “você”. Mas como eu peguei lá de São Paulo e depois de Brasília, nunca mais perdi. Sei lá, no meu inconsciente o “tu” parece algo meio impositivo, além do informal, assim. Que é fácil também da gente conjugar errado, que a gente conjuga errado aqui e eu acho terrível a gente conjugar errado na TV.


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está fechando uma nota coberta, está falando com uma outra praça, do interior. Então a gente continua conversando, mas depende muito do dia, da situação. Em algum momento da tua carreira, fazendo reportagem, entrando ao vivo, já passaste por alguma situação de risco ou adversa, de perigo? E como mantiveste a calma, se é que é possível manter a calma nesses casos? Já, várias vezes. Olha, na hora, quando a gente está ao vivo, a gente fica meio que naquela adrenalina, ao mesmo tempo que ela dá um nervosismo ela dá foco. Então, eu sempre quando estou ao vivo, estou lá com meu fone, o mundo pode estar desabando, eu fico muito focada ali no que estou falando e tal. Mas, sim, já passei por momentos de risco, por exemplo em manifestações. Hoje a gente até tem protocolos diferentes para fazer cobertura de manifestações, exatamente por isso. Já tivemos muitos problemas de cobertura desde a época da RBS, já fui ameaçada em protesto, já tomei tapa nas costas. Quando eu estou ali no vivo, eu confesso que já fiquei muito tensa, às vezes você está ao vivo ali e a coisa começa a esquentar e você tem que dar a real. “Olha, a coisa começou a esquentar, voltamos para o estúdio”. Já passei por uma situação complicada que não foi ao vivo. Eu lembro uma vez que eu estava fazendo uma matéria para a RBS que era a despedida do Olímpico. Eu fui fazer uma matéria meio comportamental e a gente teve que atravessar a cidade. E aí foi bem complicado porque tinha muitos torcedores, eles foram para cima, tentaram me agarrar. Foi horrível, eu cheguei na parte da assessoria de imprensa e tremia. E nessa época não tive muito apoio. Talvez agora eu tivesse tomado outra atitude. Não é porque eu estava assim tremendo, não era assim novata sabe. Porque a gente não está acostumada a ser assediada. E não foi nada light. Talvez hoje eu tivesse tomado outra atitude. Hoje, a gente já tem algumas orientações, como por exemplo, quando vai fazer alguma operação policial, vai de colete à prova de balas. Não que isso garanta alguma coisa, mas enfim. Tem locais em que a gente só entra com polícia. Isso dá medo e acho 220

até que às vezes quando a gente está trabalhando tem uma falsa ideia de que é imune no momento em que está com microfone na mão e com a câmera? Até tem que tomar um certo cuidado disso, porque às vezes se acha um super-herói porque está com microfone, com uma câmera, mas é só um ser humano. Então, sobre a forma de lidar, eu digo que é muito pessoal e cabe também a nós exigir algumas mudanças para proteger os profissionais. E quando é uma matéria que te emociona. Como é que seguras a emoção? Olha, eu não seguro. Agora, claro, se o repórter ficar aparecendo do início ao fim chorando, as pessoas de casa vão falar. Então a gente se emociona, os cinegrafistas se emocionam. Fui fazer uma matéria sobre o Sino da Conquista, quando as crianças que recebem alta do câncer tocam. Nossa, eu olhei para trás e estava o cinegrafista com os óculos embaçados de tanto que chorava. E eu assim “vamos parar um pouquinho, vamos recuperar”. Mas eu sou bem chorona. Quando a gente é repórter, primeiro se sente que, para reportar um fato, é meio que um agente da informação. Apura para daí passar para as pessoas o que está acontecendo e às vezes até a gente adquire ao longo do tempo uma não sei se proteção ou barreira, mas está ali fazendo a cobertura de um acidente ou de alguma tragédia e fica tão consumida em passar a informação que às vezes não se dá conta que está reportando ali. Então, isso é muito comum, na frente de uma tragédia, me perguntam “nossa Lu, mas já fizeste coberturas tão tristes. Não se emocionou?”. Eu não sei, mas eu acho que quando a gente está fazendo uma cobertura, por exemplo, muito séria, precisa se dar totalmente conta de que está ali para passar a informação. Então, quanto mais seriedade tiver na hora de passar isso para o telespectador, mais credibilidade vai ter. Se eu estiver fazendo uma cobertura de uma tragédia e ficar chorando o tempo inteiro, as pessoas não vão ver a mesma credibilidade daquilo que estou passando. Mas é claro que às vezes a gente não segura, né?

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sa. E eu acho que nos últimos cinco, sete anos consegui equilibrar um pouquinho mais. E isso faz muito bem porque traz mais calma também para o nosso trabalho, não vale só para o jornalismo, mas a gente é jornalista 24 horas por dia. Hoje eu voltei até a tocar violão.

É muito bom que tu passes essa dica aí para as pessoas porque obviamente o repórter/jornalista é um ser humano igual aos outros, ele não é um robô. Com uma vida de jornalista tão ativa e que te absorve tanto, como tu exerces o teu lado mais pessoal de gostar de cantar e de praticar esportes? Sabe que durante muito tempo da minha vida eu meio que abdiquei de quase todos os meus hobbies. E aí claro que eu entrei em um momento de muito stress, porque o jornalismo a gente não trabalha só na hora que a gente está na redação. Então se acorda ouvindo rádio, depois você já está nas redes sociais lendo as notícias, daqui a pouco já passou uma hora, você só está lendo ali o que está acontecendo. Eu sou assim. Durante muito tempo eu abdiquei das coisas que eu realmente gostava de fazer, porque isso vem da minha adolescência, gostei muito de música, de praticar esportes. Quando eu comecei a trabalhar no jornalismo quase parei de fazer tudo e obviamente isso não foi nada bom. Então eu vi o período da minha vida em que estava sempre doente. Amigdalite, gripada, e foi quando eu vi que eu precisava voltar a fazer as coisas para relaxar, para que me fizessem bem. Até a própria quarentena hoje me fez resgatar muita coisa. Mas antes mesmo, eu lembro que eu estava na RBS, em 2014, foi quando eu comecei a rever algumas coisas da minha vida. Eu estava sempre no médico, e tem muitos jornalistas assim. A gente tem uma pressão muito grande por aquilo que vai informar, hoje tem questões políticas de todos os lados e tem que ter muito cuidado. E eu estava assim no momento de muito estresse. Foi quando eu pensei “não, é preciso, por mais que eu não tenha horário”. Na época trabalhava de manhã, às vezes de madrugada, mas eu vou fazer as coisas que eu gosto, eu preciso achar um tempo para fazer as coisas que eu gosto. Voltei a fazer muita coisa que faz bem para mim. Voltei a praticar esportes. Lá por 2016 eu voltei a correr, eu corria pouco, mas depois comecei a correr bastante, até que tive de parar porque comecei a ficar estressada porque eu estava correndo demais. Eu gosto muito de música, eu gosto muito de viajar. Quando a gente está ali no nosso mundo jornalístico, às vezes acaba não pensando muito na nossa vida pessoal, mas preci-

O que estás prevendo daqui para a frente após a pandemia? Nessa questão das entrevistas por Skype eu acho que as emissoras vão manter, porque isso facilitou muito trabalho. A equipe de TV tem essa questão de deslocamento. Então, por exemplo, às vezes se preciso entrevistar o presidente da associação dos produtores tal é 30 minutos até lá, depois mais 30 minutos para voltar, depois mais 30 minutos para ir lá na outra entrevista. Claro que a gente acaba perdendo o olhar de estar presente. Então eu acho que é aquilo que te falei: eu acho que nunca vai sumir a figura do cinegrafista. Ou pelo menos que nas emissoras sempre vamos ter alguma equipe completa porque não se conta uma história em TV sem uma boa imagem. Claro que hoje a gente já vê várias alternativas. As assessorias de imprensa fazem as imagens lá, mas eu acho que a gente deve manter. Acho que é uma tendência que não volta mais as entrevistas por Skype, acho que se viu que apesar da imagem de qualidade fazer muita diferença na televisão às vezes é mais importante a informação, que se usa do jeito que ela chegar. Antigamente a gente não dava uma informação porque a gente não tinha imagem. E às vezes a gente sofria, então isso hoje dá um pouquinho de alívio também. Mas a gente perde também pelo fato de não estar presente às vezes no local. Eu gosto muito de estar no local. Eu gosto muito de ver com os próprios olhos e isso faz uma diferença enorme. Então eu não sei se daqui a pouco as emissoras vão começar a ver também que a figura do repórter em home office também dá certo. E eu acho que talvez a gente comece a ter um mix de possibilidades, equipes presenciais, vídeo-repórter, repórter em casa. E a CNN é um exemplo disso: ela tem equipes completas e ela tem equipes sozinhas, de vídeo-repórter. E talvez essa seja uma tendência assim, mas se isso é bom, aí eu já não sei. Mas eu acho que é uma tendência que não tem mais volta.

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Alguns professores sugerem aos estudantes que quiserem seguir no rádio procurar um fonoaudiólogo. Quando tu foste para a TV, quando começou, tiveste uma preparação desse tipo? Sim, a RBS, por exemplo, ela tinha. Atualmente não sei se tem mais, mas ela tinha uma fonoaudióloga. Algumas emissoras têm parceria, ou às vezes te pedem para fazer fonoaudiologia, usar o convênio. Mas não existe mais aquela preocupação de antigamente. Por exemplo, quando eu trabalhava na Gaúcha, quando fui fazer estágio lá, todo mundo tinha que ir passar pelo Domingos que te ajudava como falar e tal. Hoje já mudou um pouco isso Então, na verdade a fonoaudióloga é muito mais para te ajudar a respirar, a falar as palavras. A gente tem a mania de comer as palavras quando está falando. Eu mesmo às vezes na TV, engato uma que o pessoal diz “Lu, respira”. Mais por isso. Na TV também tem a questão de entonação. Porque a gente está ali, está para passar informação. Não é mais para você falar bonito, não tem mais essa coisa de impostar a voz. Que antigamente na rádio você tinha que impostar a voz e hoje você ouve e incomoda. Então a TV também, mas sim, eu fiz fonoaudiologia na RBS. E quando eu estava em São Paulo e Brasília eu acabei não fazendo porque tinha contato com minha a fonoaudióloga daqui; a gente conversava muito por telefone e era mais para ajustar a questão de entonação, falar.

e dar voz para a população. Tem bastante coisa que nos incomoda, né. Mas há a questão das fake news, porque a gente tem trabalho em dobro. Tem o trabalho de informar e também de apurar para dizer o que não é verdade. Como a gente é jornalista 24 horas, tem que estar sempre apurando para falar com os amigos, com a família. “Não gente, isso não é verdade”. Aí você vai lá, tem que apurar, está sempre fazendo um trabalho em dobro para mostrar que aquela informação não é verdade. Aí você tem que fazer uma matéria para mostrar a verdade, mostrar qual é a realidade. Isso acabou sobrecarregando os jornalistas, aumentando o estresse. E acho que também é um incômodo muito grande que a gente virou, mas isso também não é de agora, mas a gente virou alvo. Tudo sempre é culpa da imprensa. Então quando, independentemente de quem esteve no poder, a gente sempre é culpado, a gente vai ser o alvo das críticas e precisa aprender a conviver com isso. Não é de hoje, mas eu acho que com as redes sociais isso aumentou bastante. Hoje gera muitas críticas, enfim, mas ao mesmo tempo a gente tem que aprender a conviver com isso e exatamente estar sempre munido da informação. Eu acho que é importante estar munido pela apuração. Não tem fake news em cima de fatos bem apurados.

O que te gratifica mais e o mais icomoda na tua atividade? Eu acho que o que mais me deixa feliz assim, o mais gratificante na profissão do jornalismo é conseguir dar voz para quem não tem voz na sociedade. São as pautas que mais me dão prazer em fazer, quando eu faço uma pauta que mostra claramente ali o papel social do jornalismo, que é muito importante. Então foi por isso que eu escolhi essa profissão, não foi pelo glamour, eu acho que quando a gente entra na TV tem aquelas coisas “ah, vou trabalhar assim, assado”. E eu tive que desconstruir. Agora a televisão é cada vez menos glamour e mais trabalho. Então para mim o que mais me gratifica é o papel social. A gente consegue colocar em prática isso que é tão importante. Ou seja, informar, educar

Tu acreditas no jornalismo, tu achas que o jornalismo tem futuro? Eu acredito que sim. Eu acredito. Acho que o jornalismo tem passado, presente, futuro. E eu acho que ele sempre tem um papel muito importante na sociedade. Talvez mudem os formatos, muda-se a forma de se fazer jornalismo assim como já mudou ao longo da história. Mas a gente precisa ter pessoas dispostas a ir atrás, a detectar alguma informação que ninguém viu, apurar alguma informação. Então eu acho que sempre vai ser muito válido o papel do jornalista. Estamos aqui para contar histórias, mas não é uma historinha de conto infantil, são histórias da vida real. O olhar do jornalista consegue mostrar a realidade, aquilo que está acontecendo, ouvindo diferentes fontes, diferentes lados, diferentes ideias. Porque acho que uma história às vezes não tem só dois lados, tem uma série de visões.

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A PRODUÇÃO EM TELEJORNALISMO LÉO NUÑEZ

“Qualquer mídia que não tiver suporte das redes sociais vai se ferrar”

A tua formação é graduação em Jornalismo pela PUCRS. Por que mestrado em Sociologia? Também foi pela PUCRS, o curso se chama mestrado em Sociologia da Sociedade Industrial. Naquela época, início dos anos 90, só havia duas pós-graduações na área da comunicação. Se não me falha a memória, era uma na UFRGS e outra na Unisinos. Eu optei por fazer Sociologia para aumentar minha bagagem crítica, minha visão crítica da sociedade. Tive aulas com grandes intelectuais, e foi muito importante para mim do ponto de vista de compreensão da sociedade.

Com mais de três décadas na televisão, Léo Flores Vieira Nuñez passou por todas as funções da operação e da produção em telejornalismo: assistente ‘pau de luz’, montador de caminhão, editor-chefe, pauteiro, chefe de reportagem. Também atuou como repórter durante algum tempo, mas confessa que não gostava da função cotidiana de sair para a rua com uma equipe. Preferia funções de retaguarda, como edição e produção de pauta. Graduado em Comunicação pela PUCRS, em 1985, começou profissionalmente na TV Guaíba e, dois anos depois, foi para a TVE. Convidado pela RBSTV, manteve os dois empregos durante algum tempo, participando da produção de programas líderes como o Bom Dia Rio Grande e o Jornal do Almoço. Quando surgiu a oportunidade de ingressar na vida acadêmica, como professor, deixou a RBS e ficou apenas na TVE. Após concluir o mestrado em Sociologia na PUC, lecionou durante 15 anos na Unisinos e foi também professor da ULBRA, professor substituto da UFRGS e estava lecionando no IPA quando concedeu esta entrevista. Casado com a apresentadora Laura Medina, Léo é pai de Rodrigo e de Izabel (de seu primeiro casamento).

Como é construir uma carreira nos bastidores da televisão e não na frente das câmeras, que é do que as pessoas mais gostam? Eu sempre gostei muito de trabalhar com o produto final, ou seja, pegar o material produzido por um repórter e junto com ele trabalhar o enfoque da matéria, a valorização da imagem, as ilustrações. Esse trabalho é essencial na televisão. Diferentemente do jornal, onde o repórter recebe a pauta, vai para a rua junto com o fotógrafo e depois é ele mesmo o responsável pela construção do texto – o editor ou subeditor apenas lê a matéria e corta algumas coisas, se for o caso –, na televisão esse processo necessariamente necessita de seis mãos, considerando a produção da reportagem em si. Oito mãos, na verdade. É o repórter na rua que recebe a pauta com determinado enfoque, mas tem o cinegrafista, o editor – com quem o repórter vai conversando durante a construção da matéria – e por fim passa pelo montador, que é o profissional que vai para a ilha de edição. Todo esse processo exige muito cuidado e atenção. Usando um jargão de redação, a gente diria que o repórter é o centroavante, mas o editor é o zagueiro central. Se passar por ele, é bola nas costas. Essa é a nossa responsabilidade, não deixar passar informações erradas, textos ruins ou com problemas de encadeamento. Há um conjunto de coisas que caracterizam uma boa reportagem onde o trabalho do editor é fundamental. Eu me senti muito mais atraído por esses fatores do que de ir para rua e vivenciar o cotidiano do repórter que, na minha opinião, é e continua sendo a função primordial do

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Esse trabalho de equipe, de retaguarda, é fundamental no jornalismo, principalmente na televisão. Como se dá esse processo de concepção da pauta de uma reportagem até o processo de edição e montagem? A produção de uma reportagem cotidiana para telejornal é diferente de uma matéria mais aprofundada, como no caso de um programa tipo o TVE Repórter. Na redação de uma televisão, basicamente, existe uma equipe de produção composta por um chefe de reportagem (em cada turno), e junto com ele trabalham, no mínimo, um ou dois produtores que são as pessoas que efetivamente recebem do chefe de reportagem a proposta de pauta e fazem a apuração. É claro que antes também é realizada uma reunião de pauta onde participam o editor-chefe, chefe de jornalismo e os chefes de reportagem. Geralmente são umas cinco ou seis pessoas que delineiam as matérias que vão ser feitas no dia no dia seguinte. Voltando aos produtores, são eles que de fato buscam a informação. Antigamente, quando comecei a trabalhar com jornalismo depois de formado, evidentemente não havia internet nem computador, e nós trabalhávamos com máquina de escrever. Toda a nossa apuração era feita, basicamente, via rádio-escuta. Nós sempre respeitamos o rádio por ter muito mais agilidade do que qualquer um dos outros veículos. Naquela época, fazer uma transmissão ao vivo pela televisão era quase um circo, muito complicado. O rádio sempre foi vibrante, sempre teve equipes muito rápidas. Então o rádio-escuta ouvia os noticiários da Guaíba, da Gaúcha, da Bandeirantes...dali tirávamos algumas coisas factuais que os produtores produziam, confirmavam e passavam para o repórter. É interessante ver essa evolução até os dias de hoje. O importante de se perceber nesse ponto de elaboração de pauta é que o repórter, ao receber a matéria, já pega ela mais “mastigada”. Ele tem um

roteiro de produção onde às 14h vai entrevistar uma fonte, às 15h outra e, se precisar, às 16h mais uma. Ou, se for uma manifestação, o repórter acompanha e tem os nomes de duas ou três fontes. Vale ressaltar que o repórter de TV precisa ter essa retaguarda porque ele nunca faz uma matéria só. É um suporte que ele e o cinegrafista têm, e a partir disso eles recebem o material mais pré-produzido e vão para a rua. É claro que, a partir daí, a autonomia é do repórter. Muitas vezes já aconteceu de nós darmos um certo enfoque para a pauta até que o repórter vai para a rua e a coisa é completamente diferente. O cara chega lá e a fonte dá uma declaração bombástica que não tinha como ser prevista, aí o repórter fica um pouco embananado ou preocupado, diz “Olha, não é esse o enfoque” e liga para a redação, onde a gente dá o ok para ele prosseguir ou não. Esse é o processo. Hoje a saída do repórter para rua está muito mais agilizada porque as câmeras são pequenas – pesam em torno de 2,5 kg –, então a equipe consiste em, basicamente, um motorista, um cinegrafista e um repórter. Dependendo da complexidade da pauta, às vezes um auxiliar vai junto. Portanto, no mínimo três pessoas. Sendo assim, o repórter capta as imagens, faz as entrevistas e acompanha o fato. A partir disso, ele grava o boletim – se achar necessário –, já vem negociando com o editor e, quando chega na redação, entrega o cartão com o texto gravado. Aí também depende muito da agilidade e do gosto de cada repórter. Alguns preferem gravar dentro do carro e chegam com o material gravado, enquanto que uma boa parte – por questões de segurança, especialmente se é uma matéria mais complexa –, chega na redação e escreve o texto em off junto do editor. Nesse processo eles também já montam a estrutura da reportagem, que consiste basicamente em boletim, passagem do repórter e entrevista, a ordem varia. Feito isso, o editor decupa o material, ou seja, encontra os pontos principais e elabora a estrutura da reportagem. Em seguida, passa para o editor de imagem editar tudo no computador. Percebam que é um longo circuito. Depois que a matéria está editada, o editor que trabalhou com o repórter faz o texto de apresentação, manda para o computador, o editor-chefe revisa e dá o ok para ela aparecer no telejornal. É

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jornalismo. Ele é a grande figura, toda a importância da produção jornalística passa por ele, mas não é o que eu mais gosto de fazer. A partir daí, trabalhei como editor e depois fui assumindo funções de chefia, como chefe de reportagem e editor chefe de telejornal.


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uma sequência muito interessante que é feita diariamente com toda a agilidade. E quando o repórter volta com poucas informações, ou o entrevistando não rendeu, ou por qualquer razão a matéria não ficou consistente, existe alguma forma de o editor salvar a reportagem? Sim, tem como salvar. Nesses casos, normalmente nós tiramos fora a entrevista e fazemos o que chamamos de nota coberta. Vamos supor que a fonte não rendeu, ou o outro lado que era obrigado a falar se recusou, ou o repórter não conseguiu contato por algum motivo. Uma das opções é derrubar a matéria, mas se for uma coisa muito factual a gente necessariamente transforma em uma nota coberta. A nota coberta é um outro critério de edição, pois consiste num texto lido pelo apresentador. Sendo assim, a gente faz uma nota coberta com as imagens captadas pelo repórter. Se a matéria pode esperar, ela literalmente vai para a gaveta e o repórter completa no dia seguinte.

impressionante como a televisão chama as pessoas. Se tu estás dentro de um supermercado onde tem um repórter que começou a trabalhar com televisão há 15 dias, e ao lado dele está o Carlos Wagner ou o Nilson Souza, as pessoas não vão reconhecer o Nilson – um cara que está fazendo história no jornalismo –, mas vão saber quem é o repórter de TV. Isso é meio ingrato. Não é questão de ego, mas sim o fato de as pessoas não valorizarem um grande repórter de jornal, enquanto que um guri que está há um mês na emissora e teve a sorte de pegar um assalto acaba ficando famoso. É meio esquisito isso, mas é assim que funciona.

O que os teus alunos de jornalismo mais manifestam como curiosidade em relação à atividade na televisão? Ainda continua sendo a coisa de aparecer na televisão. Isso tem uma questão de impacto muito grande para eles. Vários escolhem trabalhar na televisão pensando nesse aspecto, como se aparecer na televisão fosse a coisa mais importante na profissão. Só que, às vezes, eles não se dão conta de que é preciso ter toda uma estrutura de conhecimento. Para o repórter sair na rua, montar uma matéria de televisão que tenha uma estrutura informativa de lead e de construção da informação distinta da matéria impressa, é preciso muita perspicácia e tem que ser muito ágil para sacar onde está a informação principal. Mesmo assim, muitos alunos continuam querendo isso. Quando chega na hora de fazer as disciplinas de televisão, eles querem aprender a fazer boletim e essas coisas todas. Aos poucos, conforme vão entendendo toda a importância do texto off bem feito e bem apurado, o conhecimento vai entrando com uma certa naturalidade. Eu costumo sempre dizer em aula que é

Tu trabalhaste na TVE, que é uma televisão estadual, e na RBS, que é uma televisão comercial. Quais as principais diferenças entre as duas? São muitas. O conceito de “público” é quase científico e compreende a televisão que pertence à sociedade. Portanto, não teria a intervenção do Estado. Na prática, isso aconteceu na TVE em dois ou três momentos com alguns governos, como o PMDB com o Pedro Simon, por exemplo. A gente fazia jornalismo de muita qualidade no sentido de não ter nenhum tipo de ligação com o Estado. Contudo, houve muitos governos que tentaram puxar a brasa para o assado deles, e nós literalmente tínhamos que fazer um jogo de empurra-empurra praticamente. No último governo do Tarso Genro, por exemplo, vários assessores chegavam para mim dizendo “Olha, tem uma pauta aqui para fazer”, mas eu via que não era relevante. Isso provavelmente nem passa pela cabeça do Tarso, mas acontecia. E nessas situações eu literalmente enrolava. Naquela época eu era editor-chefe, então quando o Palácio mandava as coisas, eu derrubava a transmissão e cortava os links. Os caras me perguntavam “Pô, não chegou o link?”, e eu dizia “Bah, não chegou. Não vai dar tempo de colocar no ar”, porque a gente tinha matérias que eram muito mais importantes. Nós não éramos proibidos de fazer absolutamente nada contra o governo, mas havia a questão desse cuidado. Já na RBS TV, eu vivenciei algumas coisas muito interessantes. Um exemplo: eu estava lá na época que o Simon se elegeu governador

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A partir dessa última pergunta, tu registraste o conflito entre o interesse jornalístico e o interesse partidário em uma televisão pública, que é ligada ao governo. Na televisão privada, tu achas que existia esse tipo de conflito assim tão forte? Na verdade, esse conflito era explícito no sentido de que havia pautas que a gente tinha muita dificuldade para fazer. Eu me lembro dessa situação da greve do magistério, durante o governo do Pedro Simon, em que a gente passou 90 dias fazendo nota coberta porque o governo não queria se pronunciar, ou porque os professores mantiveram o mesmo discurso de confronto com o governo e aí a gente não usava. Mas não é uma situação em que as pessoas só podem fazer um tipo de matéria. Ao contrário, aliás. A televisão privada, por dispor da condição de fazer um jornalismo mais ágil, e esse era o caso da RBS TV, muitos furos se deram e são dados. Vou dar o exemplo do repórter

Giovani Grizotti, que faz matérias de todas as maneiras e com todas as apurações. É claro que sempre tem um enfoque muito grande contra questões de Estado, de governo, mas às vezes ele fala de outras dificuldades também. Mas eu não vejo um conflito propriamente disso, estou falando de questões pontuais. Outro exemplo que acompanhei foram as Diretas Já, em 1984. No início a Globo não mostrou a campanha, todo mundo sabe disso. Ela só começou a transmitir quando houve o famoso comício em São Paulo com um milhão de pessoas. Na RBS TV era a mesma coisa, não se mostrava. Sendo assim, havia algumas coisas que, por uma série de questões, acabavam não sendo feitas ou exibidas. Hoje, sinceramente, acho que isso está muito mais leve. Que preparo deve ter um aspirante a trabalhar na televisão, seja estudante ou profissional recém-formado? Que habilidades são requeridas para ser um produtor, um pauteiro ou mesmo um editor? Eu resumiria em uma questão essencial. Para quem está começando, e até fazendo um link com a universidade, nós professores precisamos fazer os estudantes aprenderem a gostar de notícia. Isso é fundamental. Quando a gente consegue fazer com que o aluno veja a notícia como uma cachaça de boa qualidade, aí a coisa está bem encaminhada. A primeira coisa que um recém-formado tem que fazer é ler/escolher, no mínimo, dois ou três veículos que ele goste e confie para chegar na redação bem informado. É isso que faz a diferença. Pega um aluno que está começando, por exemplo, e coloca ele como produtor de um repórter que vai fazer matéria na rua. Tu não podes ficar explicando para ele quem é o presidente da Assembleia, quem é a pessoa que está organizando tal movimento, qual é a importância disso; ele tem que saber tudo isso. Essa ainda continua sendo a essência do negócio. Um produtor não pode apurar uma informação de forma deficiente e deixar o repórter de saia justa na rua, podendo até passar uma vergonha terrível às vezes. Para o editor a preocupação é a mesma, senão maior ainda. Afinal, é ele quem supervisiona e discute o texto do repórter, trabalha o enfoque e principalmente os pesos e contrapesos da matéria.

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e aconteceu a grande greve do magistério – foram 90 dias. Naquele período, professor era proibido de falar. Então percebam que os dois lados, público e privado, têm as suas singularidades. No entanto, é óbvio que o jornalismo que se praticava na RBS era muito mais amplo, mais qualificado porque a gente tinha um conjunto de repórteres e equipes na rua. Na televisão pública, por exemplo, nós só tínhamos dois repórteres na rua, enquanto na RBS haviam quatro ou cinco equipes. Como não havia celular, as equipes trabalhavam com PX, um radioamador que permitia que os repórteres – com todo o suporte da estrutura da Zero Hora – se comunicassem sobre os fatos que estavam ocorrendo e chegassem ao local com muito mais agilidade. Logo, em termos de dinâmica, é evidente que uma televisão privada que dispunha de mais recursos fazia um jornalismo mais factual, com mais possibilidades de apuração. Por outro lado, o jornalismo da TVE sempre foi um jornalismo de contexto, ou seja, com matérias um pouco mais elaboradas e ouvindo mais fontes, por exemplo. A RBS sempre seguia o modelo Globo, onde as entrevistas duravam 30 segundos e às vezes nem isso. Cada lado tem suas diferenças e peculiaridades.


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O principal, portanto, é buscar ser bem informado. A técnica em si a gente vai aprendendo. Hoje as universidades ensinam muito bem isso, já que as câmeras e os equipamentos de edição estão cada vez mais fáceis e tranquilos de manusear. De casa os alunos já sabem a operar um software de edição, então isso não é um problema. No momento em que eles aprendem a técnica de decupar e editar, está resolvido. Essa parte é quase uma consequência natural do cotidiano de um produtor e de um editor de televisão.

outras. Depois que as abóboras se ajustaram na carroça, por assim dizer, nós percebemos que o governo não ia extinguir a televisão, pois o Leite percebeu a importância da TVE. No entanto, como política de comunicação, eles estão fazendo algo que na minha opinião é uma televisão totalmente estatal. Isso significa que a gente não tinha critérios de jornalismo. As nossas reportagens eram contextuais, porém nós não podíamos abordar política nem economia, apenas assuntos variados e de menor repercussão. Além disso, essas matérias entravam ao longo da programação no período da tarde, a gente não tinha um telejornal estruturado, com escalada, apresentadores, vinhetas, edição. Até que veio a pandemia, que por esse lado nos ajudou. Nós não somos mais uma fundação, agora somos um braço da Secretaria de Comunicação. Logo, é a Secretaria quem determina a política, e ela determinou que a gente passasse a fazer dois telejornais com enfoque único e exclusivamente na pandemia. É isso o que a gente tem feito. No início a gente contava com equipes de reportagem na rua, mas depois que a coisa apertou se optou por esse modelo híbrido de entrevistar por meio do computador, como outras emissoras também fizeram e têm feito. O problema foi que alguns dos nossos colegas pegaram COVID-19; então, por precaução, resolveram reduzir a atuação na televisão no turno da tarde. Com isso, nós ficamos com apenas um telejornal no final da tarde em rodízio de equipes. É assim que estamos funcionando. O TVE Repórter está fora do ar, os programas ao vivo sobre cultura estão todos fora do ar também. Estamos com pouca produção perto do que já teve.

Como está funcionando a TVE hoje? Vocês têm equipes de reportagem para fazer coberturas de matérias? Nós tivemos momentos de muita satisfação com governos que compreenderam a importância de uma televisão pública ou estatal mais livre para que pudéssemos fazer programas de qualidade, como o TVE Repórter e tantos outros. No entanto, infelizmente, no governo do Sartori houve uma tentativa quase que radical de terminar com a TVE. Talvez porque eles vissem ali um foco de oposição, ou por acharem que a comunicação pública não tenha valor nem importância. Eles também sempre tiveram muitos vínculos com a iniciativa privada, como RBS, Correio do Povo, Bandeirantes. Então eles fizeram de tudo para matar a TVE. Não conseguiram devido, principalmente, à resistência dos funcionários e ao fato de nós termos uma proteção legal na Constituição, que prevê a obrigatoriedade de comunicação pública. Quando o governo Leite entrou, nós já tínhamos sido desmontados. Uma boa parte dos colegas saiu, inclusive vários ganhadores do prêmio ARI de reportagem. O último presidente da televisão tirou várias pessoas e colocou em assessorias de comunicação, por exemplo. Isso deixou a TVE numa situação muito ruim, tanto do ponto de vista técnico quanto de pessoal. Aí quando o Eduardo Leite entrou, nós ficamos em dúvida sobre o que ia acontecer. Como ele assumiu já em uma situação difícil em função da crise do Estado, atraso salarial muito intenso e vários outros fatores, nós sabíamos que a TVE ia acabar ficando em segundo plano junto com outras fundações, como a Fundação Zoobotânica e muitas

Retornando a essa questão de relacionamento, o produtor tem que facilitar muito a vida do repórter e o repórter tem que facilitar a vida do editor. Como funciona a dinâmica entre esses três principais pilares de uma reportagem? É mais ou menos na linha de que um serve e ajuda o outro. De um modo geral, o produtor consegue falar com a fonte que o repórter vai entrevistar, ou pelo menos com um assessor, e aí nessa hora da entrevista surgem muitos detalhes que um veículo ou uma cobertura online

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fica cada vez maior se o telejornal estiver inserido em rede.. Um RBS Notícias ou um Band Cidade, por exemplo, não podem entrar cinco minutos atrasados. Quando o repórter chega na redação, o processo de edição leva 40 ou 50 minutos, entre o tempo que ele tem para gravar os offs, editar e o editor fazer a lauda para a apresentação. Logo, quanto mais perto do horário do telejornal, mais a corda está esticada, mais a tensão aumenta. Vocês podem observar nos telejornais que, às vezes, quando entra um acontecimento em cima da hora, eles abrem com uma nota coberta e lá no final é que oferecem a cobertura completa. Tu precisas de um tempo de edição, faz parte do processo.

não dão importância, mas que para nós podem ser muito importantes. Esse levantamento, essa apuração feita pelo produtor é fundamental. Geralmente, no caso do telejornal, o produtor escreve uma pauta de duas folhas, mais ampla, onde ele coloca as informações. Aí o chefe de reportagem lê e discute com o repórter o enfoque da matéria, dizendo “Olha, tem uma informação que a gente está acompanhando pela internet e não está bem clara, então isso é importante de ser abordado”. Portanto, existe esse trabalho de suporte e orientação do chefe de reportagem. Depois, quando o repórter está na rua, é que aparece a questão do improvável. Uma coisa é imaginarmos que a matéria vai sair de tal forma, até que chega lá e ela assume um aspecto diferenciado mais importante. Aí o repórter conversa com o editor e diz “Vamos por aqui, vamos por ali...vou fazer a minha passagem destacando essa informação”. Isso é um detalhe interessante. Às vezes as pessoas não sabem porque o repórter faz um boletim, ou seja, porque ele para diante da câmera e grava. Nem toda a matéria tem essa necessidade de fazer um boletim, mas é como se fosse a assinatura da reportagem. Se nós observarmos com atenção, o repórter sempre se coloca numa posição em que ele fique em plano americano, que é um plano de câmera clássico, para mostrar que ele está no local do fato. Isso faz com que a credibilidade da matéria seja outra. Por isso que, de um modo geral, os repórteres não usam só o texto em off, que é a voz dele editada com imagens, e entrevistas. Ele sempre coloca um boletim em torno de 30 segundos, que às vezes pode até ser o lead da matéria, porque aí ele mostra que apurou a informação. São esses detalhes que ele vai discutindo com o editor. Quando chega na redação, a primeira coisa que se faz é pegar o cartão de memória da câmera e colocar no computador para capturar as imagens, aí o repórter escreve o texto e o editor confirma. Nesse meio tempo, o repórter grava os offs e já sinaliza as passagens que ele acha que ficaram melhores. O interessante é que, de um modo geral, o repórter não usa papel ao gravar a passagem – exceto quando têm dados –, porque quanto mais falado, melhor. Se o telejornal vai ao ar às 18h30, por exemplo, ele tem que ir ao ar nesse horário. Essa pressão

Em relação ao teu trabalho no sindicato, como é que o Sindicato dos Jornalistas se baseia a fim de lutar pelos direitos da profissão quando não há uma legislação específica na Constituição referente aos jornalistas e ao jornalismo em si? Eu estava lá nessa época e foi um momento muito triste para nós. A base de um sindicato, os limites dele, as frentes em que ele pode atuar, tudo isso é o que a categoria dá de respaldo. E, de um modo geral, a nossa categoria tinha uma certa dúvida em relação à importância da formação acadêmica. A ameaça começou por um argumento muito fictício de relacionar a obrigatoriedade do diploma com a liberdade de expressão, que culminou na decisão maluca do Gilmar Mendes de nos comparar a padeiros. Isso é um negócio terrível do ponto de vista de formação, porque foi como dizer que você pode fazer jornalismo como quem assa pão. Nada contra padeiros, mas a nossa função social é inimaginável de ponto de vista de importância. O sindicato lutou contra essa decisão de todas as maneiras, mas naquela época se criou um lobby, principalmente entre a Folha de São Paulo e o grupo Globo, que foi avassalador. Houve muito debate em relação a isso. Vários jornalistas que estavam há muitos anos no mercado discutiam a importância da formação olhando muito pelo lado das deficiências, que existem sempre em qualquer faculdade, e nós acabamos perdendo o diploma. Foi uma derrota muito complicada, porque além de perder a formação

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como obrigatoriedade, a gente também tinha na obrigatoriedade um elemento fundamental de união da categoria. A partir dali qualquer um poderia ser jornalista. Eu conheço vários que entraram pela “porta dos fundos” e, mesmo os que obtêm sucesso, é algo completamente discutível. Hoje as universidades, inclusive as privadas e as mais tradicionais, como a PUCRS, estão matando cachorro a grito. Em parte, por conta da crise e da falta de financiamento, mas também porque os reitores não se deram conta que tinham que ir lá e fazer o seu lobby. Não pela situação de crise, mas pela importância, pela função social do jornalismo. O resultado é que os cursos, hoje, estão lamentavelmente atirados às moscas. Para fazer curso de jornalismo, a pessoa tem que ter muita garra, tem que gostar muito mesmo. Senão vai para outra profissão. Paradoxalmente, os grandes veículos do Brasil valorizam muito o diploma atualmente. A Zero Hora e o Estadão são dois exemplos. Pode até não ser o único critério, mas se estiver que escolher entre o que tem e o que não tem, a vaga vai para o candidato o que tem diploma. A própria Zero Hora pega estudantes de quinto ou sexto semestre de faculdade para ajudar na produção das pautas. Portanto, na prática, a não obrigatoriedade do diploma é uma tese que já foi derrotada.

carreira quando a pessoa se deslumbra mais. Nessas situações a gente chama o cara e diz “Olha, não acho que é melhor derrubar o teu boletim e colocar essa imagem bonita que tu tens aqui”. Esse tipo de vaidade acontece, é muito natural, mas depois as pessoas vão perdendo. A ilusão sai um pouco com o cotidiano. Contudo, vou dar uma de velho rabugento: acho que jornalista de vídeo não deveria ter Instagram da vida pessoal, por exemplo. O cara que faz vídeo e depois vai lá expor a sua vida porque é bonito e tal. A pessoa tem que se preservar.

Disseste que um repórter de televisão ganha muita visibilidade em relação a outros meios. Tu achas que o estrelismo e a vaidade interferem na atividade profissional em uma televisão? Interferem, sim. Há momentos em que a pessoa precisa ter muito cuidado ou ser advertida. A gente vê isso quando o cara começa a fazer as matérias onde toda informação principal o repórter se destaca e separa para ele dizer no boletim. Um exemplo: em um movimento de greve onde está acontecendo uma passeata de professores, a informação principal é o movimento em si. Não é o repórter diante da câmera dizendo que mais de cem professores vieram na frente do Palácio bater sinetas. Quando o cara faz isso, a gente percebe que ele está confundindo as coisas e achando que é mais importante do que a notícia. Não é algo muito corriqueiro, mas acontece, principalmente em início de

A presença das redes sociais e a capacidade que o telespectador passou a ter de influenciar mudaram a vida da televisão? A partir dos anos 2000, quando a internet permitiu a produção de áudio e vídeo em alta resolução e houve a ascensão das mídias sociais, eu fiquei me perguntando qual seria a função do telejornal nessa história toda. É evidente que, hoje em dia, talvez 90% das pessoas se informem primeiramente pelos portais e sites que gostam e aos quais dão credibilidade. Esses canais são multimídia, trazem imagens, som ambiente, tudo. Ali o sujeito vê a informação que interessa, mais uma ou duas, e se dá por satisfeito. O telejornal, por outro lado, continua no mesmo modelo de produção de reportagem, no mesmo formato com repórter, texto off...com o mesmo padrão praticamente rígido de apresentação com início, meio e fim – e não tem como ser diferente. Contudo, em um jornal de 40 minutos existe uma quantidade de informações que não são tão interessantes aos espectadores. Portanto, eu acho que o telejornal, como gênero informativo, correu vários riscos na comparação com a internet, e ainda está correndo. Mas ele achou o lugar dele, como aconteceu com todas as mídias e especialmente com o jornal – que talvez tenha sido a primeira a ser mais ameaçada. Acredito que o telejornal tenha perdido um pouco a relevância, pois era a principal fonte de informação da população. Todavia, nós também temos que nos dar conta de que é preciso pagar para se ter uma boa informação, e no Brasil a margem de pessoas que podem pagar uma internet de alta velocidade e ter um celular mais “robusto” é muito pequena. Logo, a

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televisão ainda tem a sua importância por ser de graça e também de ter mexido um pouco na sua forma de construir telejornal – hoje muito mais focada nas imagens, por exemplo. Qual a importância das contribuições dos telespectadores, como os vídeos enviados pelo celular? Esse padrão pandêmico, em que as pessoas enviam os materiais que têm com a qualidade que têm, veio para ficar ou vai retornar ao que era antes? O que a televisão faz é, de um modo geral, a mesma coisa que o rádio fez com muita inteligência, no sentido de agregar as redes sociais. A resposta de televisão e rádio sempre vai ser difusa, assim como a impressão de um jornal. Tu podes ter 100 mil impressões e uma parte ser de assinantes, mas uma boa parte tu não sabes quem está vendo ou quem está recebendo. Isso para nós é muito bom em alguns aspectos, porque de fato aumentou muito a audiência. A TVE, por exemplo, disputa segundo e terceiro lugar em alguns momentos. As pessoas entram em contato com as nossas redes. Hoje, qualquer mídia que não tiver um suporte e um aporte de mídias digitais e das redes sociais vai se ferrar, pois é por ali que o telespectador contribui, passa a pauta, informa as coisas que ele gostaria de ver e questiona. Às vezes nós recebemos algumas perguntas que não conseguimos nem responder, pois sabemos que tem um controle político ali e que não dá para falar muito sobre certos assuntos. E quanto maior a audiência do veículo, mais pressão ele sofre. Pessoalmente, vejo isso como algo muito positivo. Antes a gente escrevia e falava para uma multidão que não conhecíamos, e agora isso está cada vez mais claro. As pessoas estão dando esse retorno, mas tem que ser um retorno qualificado, com informação apurada pelo jornalista, pelo repórter. É completamente diferente do que estamos vivendo hoje com as fake news e os caras que publicam qualquer coisa e se dizem jornalistas. Não tem a menor dúvida de que isso mudou completamente a cultura das redações. Qualquer jornalista que não sabe respeitar as redes sociais atualmente está fora da realidade do mundo. Não é o caso dos jovens, que já nascem com esse conhecimento. 240

Em relação à questão da pandemia, acho que estamos vivendo uma incógnita. Evidentemente que as televisões - e aí vale ressaltar o caso da Globo, que tem um padrão de imagem mais qualificado - aceitaram colocar no ar entrevistas que frisam ou com um som pior. Sinceramente, acredito que isso também foi um avanço e veio para ficar. Tu podes até não implementar isso como padrão principal, mas acho que agora o repórter vai usar entrevistas feitas pelo celular, caso não consiga chegar em determinada fonte ou para usar uma de outro estado. É muito comum isso nas redes nacionais. Se o cara está em São Paulo e quer ouvir alguém em Brasília, ele vai botar entrevista do celular. O que importa é a informação. Contudo, em sua grande maioria e especialmente em matérias locais ou com produção de qualidade, a câmera e o repórter na rua ainda vão predominar como essencial. Com toda essa cadeia de produção, às vezes um lado não fica priorizado quando não se ouve o outro? Como se equilibra isso? Existe, naturalmente, um desequilíbrio. Quando o entrevistado fala ao vivo – ou no vídeo, como a gente diz –, ele tem um impacto muito maior do que o documento usado pelo repórter para fazer uma nota e destacar as partes que o cara falou na edição. É claro que há uma diferença. No entanto, eu acho que o jornalismo de televisão avançou muito nessa questão. Às vezes tu tens a palavra do outro lado apenas em áudio, por exemplo, quando a fonte não quer aparecer por questões de segurança pessoal. Aí a gente faz uma tela ou uma arte e coloca na televisão. Antigamente o telejornalismo era muito formal em função de uma cultura que a Globo trouxe, de certa forma. Essa coisa da imagem bem certinha, bem quadradinha. Hoje isso não vinga mais. A própria Globo já assumiu, e as concorrentes mais ainda, de que vão priorizar sempre a informação em detrimento da qualidade técnica. Tu já ganhaste vários prêmios com documentários, inclusive com os alunos. Tens alguma dica para fazer um bom documentário? Hoje, com a questão da tecnologia e das câmeras serem pequenas, a 241


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grande diferença é o padrão de narrativa. Apesar de a reportagem ter sido introduzida no Brasil na década de 70, com a Rede Globo, historicamente ela continua com o mesmo padrão de narrativa, se nós observarmos atentamente. Mesmo com câmeras pequenas e a opção do texto em off pelo repórter, nenhuma emissora resolveu essa questão da estrutura de narrativa. Já o documentário, nesse ponto, oferece a possibilidade de construir um conjunto de narrativas altamente superior a reportagem. Ele pode trabalhar com música, poesia, pode construir uma narrativa entrecortada de fontes que vivenciaram o fato. Eu diria que, hoje, se tu produzires um bom roteiro e contar uma história com uma câmera na mão ou com um celular é até mais fascinante do que uma reportagem. Infelizmente, a reportagem continua restrita a um quadradinho em que o repórter passa a informação, enquanto que o documentário te oferece um conjunto de fontes que podem contribuir muito mais para o teu produto final. Esse é o grande diferencial. Na tua opinião, qual o espaço que o documentário vai ter daqui para frente, sobretudo nas televisões fechadas? Eu acho que as TVs fechadas são o grande canal. No início dos anos 90, muitos documentários foram produzidos para canais fechados e cinema no Brasil. Atualmente isso não está acontecendo, infelizmente. Depende muito do governo vigente e dos financiamentos, é claro. Contudo, mesmo assim nós temos uma quantidade muito grande de canais em rede fechada que fazem documentários. Vale lembrar que não precisa ser feito por um jornalista, o documentário é, no fundo, uma visão de autor. Um canal de esportes, por exemplo, pegar alpinistas ou esquiadores que participam de campeonatos de alta técnica com risco de vida e produzir grandes documentários sobre essas pessoas. Portanto, como gênero televisivo é altamente importante para abrir mercados de trabalho e incentivar as produtoras a contarem histórias sobre os mais diversos ângulos. Eu vejo o documentário como um gênero que tem tudo para expandir-se graças às novas tecnologias, seja jornalístico, de esportes ou de quaisquer outras áreas. 242

A REPORTAGEM CINEMATOGRÁFICA MILTON COUGO

“É gratificante exercer um ofício pelo qual és apaixonado”

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m 45 anos de carreira, conquistou cerca de 40 prêmios jornalísticos nacionais e regionais, entre eles várias edições do prêmio ARI e o prêmio Esso de Telejornalismo. Sem dúvida um dos profissionais da imagem mais premiados e reconhecidos do país. Começou como “pau de luz”, quando as câmeras exigiam este tipo de equipamento. Passou a ser operador de VT, operador de câmera, cinegrafista, repórter cinematográfico especial. Trabalhou em quase todas as emissoras de televisão do Rio Grande do Sul, treinou uma geração de outros cinegrafistas, chefiou o departamento de captação de imagem por diversas vezes. Fez parceria com repórteres famosos, cobriu todo o tipo de pauta e evento, inclusive para além das fronteiras. Presidiu a ARFOC – Associação dos Repórteres fotográficos e cinematográficos do Rio grande do Sul. Nos últimos anos, atuou na Unidade de Comunicação do Sistema FIERGS. Inquieto, curioso, detalhista e obstinado, Milton Cougo é, antes de tudo, um grande colega, um “cara boa praça” com quem todos gostam de trabalhar e que tem ótimas histórias pra contar. Então vamos a elas...

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Como conquistaste tantos prêmios importantes do jornalismo e o que eles significam? Eu acredito que a premiação é a consequência do teu trabalho, do teu dia a dia, do teu comprometimento. Então, hoje, eu estou aqui conversando com vocês em função da premiação, da minha carreira profissional. Lógico, o prêmio é coletivo, a gente trabalha em equipe, mas eu tenho a satisfação de dizer que depende de ti. É uma questão de envolvimento, quando tu te dedicas tu consegues o resultado. Como foi o começo da tua carreira? Eu comecei como “pau de luz” no tempo do filme e já nos primeiros meses a paixão veio, eu digo: “Pô, é isso que eu quero”. Os teus colegas vão te ajudando aqui ali e aí fiz o curso de fotografia no Cine Gaúcho, em 1979. Depois comprei a minha primeira câmera. Então, é assim que tu começas a desenvolver uma carreira, se eu pudesse conciliar também teria feito o curso de jornalismo. Sou a favor do diploma, sou a favor da necessidade de cursar jornalismo. O curso não te faz um repórter cinematográfico, mas vai te dar as condições de ser repórter cinematográfico. A origem da gente é mais técnica, tem que conhecer lentes e câmera, todos os fundamentos de composição de imagem. Então, tornar-se um repórter cinematográfico leva um tempo. É preciso dedicação, comprometimento, informação e, também, aproveitar os colegas que vêm da vida acadêmica. Acho que deveria ter uma cadeira específica para repórter cinematográfico, uma especialização, um incentivo. Eu sempre tive uma câmera em casa. O ano passado comprei uma câmera 4K, eu estou permanentemente me atualizando independente de eu estar trabalhando em algum lugar. Então, hoje, eu estou fazendo mais um curso, eu estou sempre fazendo alguma coisa e pesquisando, isso é o que me mantém atualizado. Como é a relação do repórter cinematográfico com os colegas repórteres de vídeo (jornalistas)? A gente acaba ficando mais tempo no local onde a gente trabalha 244

e eu suponho que é muito importante exercitar também a tolerância porque nem sempre você é simpático e nem sempre você vai se dar com todo mundo, mas acima de tudo tem que ter o comprometimento com trabalho e não se achar melhor. Eu sempre procurei ficar à disposição e também ter a humildade de receber a ideia, porque muitas vezes acontece, o repórter não está se metendo, tá me ensinando. Eu suponho que a gente tem que ter a comunicação, a conversa, essa conversa tem que ser dos dois lados, eu julgo que o repórter cinematográfico tem que saber qual é a pauta, ele precisa ter esse envolvimento, ele não é um apertador de botão. Isso é de cada um, tu tens que ter esse sentimento e saber qual a melhor imagem e como ela é fundamental em TV. Fui instrutor cedo, comecei a dar treinamento, eu trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Depois, quando me tornei linha de frente, muito requisitado, com muitas viagens, então isso aí, tem que haver entrosamento, tu tens que escutar, não pensar que o teu trabalho realmente não tem importância. Tem muita importância. Que conselho tu darias para os jovens, para quem deseja trabalhar jornalisticamente num mundo em que todo mundo produz imagens? Fazer a faculdade de jornalismo. Durante a faculdade, tu vais fazer primeiro um bom curso de fotografia, antes de fazer vídeo, trabalhar com vídeo ou buscar referências, faz um bom curso de fotografia. Porque a fotografia, a imagem é instantânea ela é parada, ali tu vais aprender a usar a câmera, a usar as lentes, os planos. A partir daí tu vais ter que fotografar muito e, só então, buscar um bom curso de vídeo, que é imagem e movimento. Tu também vais ter que conhecer as lentes, hoje em dia tem uma grande variedade de equipamento. Na realidade, trabalhar com imagem envolve muita coisa, a parte estética, tem que entender de cores de roupa, de maquiagem, de cabelo. Quantas vezes a gente auxilia o repórter, teu cabelo está assim, vai lá e ajeita, essa roupa não está combinando, ela é listrada está dando problema no vídeo.

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a Band e além das imagens exclusivas consegui entrar no ar pela rádio e relatei o que estava acontecendo. Eu podia ter ido embora para casa. São essas coisas que diferenciam o profissional que tem isso como ofício, como paixão.

Quais são os maiores desafios e recompensas neste trabalho? Desde a época do filme que a gente passa por uma série de evoluções tecnológicas. Sempre que chegava um equipamento novo, a gente ficava com um pouco de medo. Será que vou aprender? Na realidade, vai passando o tempo e esse medo vai sumindo, vai mexendo ou fazendo um curso, ou vem um engenheiro e acaba passando as informações de tecnologia. Por outro lado, algumas coisas vão acontecendo como as premiações, quando tu recebe um prêmio fica tri feliz, pois tu estás tendo o reconhecimento do teu trabalho do teu dia a dia, uma equipe qualificada julgou o teu trabalho, ele é de equipe, mas tu te sentes recompensado. Porque, na realidade, a gente pensa que o jornalismo é pra dar um retorno pra sociedade. Quando for fazer uma reportagem investigativa ou quando for fazer o “buraco da rua” e consegui sanar esse problema é uma coisa que tu tens que ter disponibilidade. Ser jornalista independente de trabalhar com imagem. Não basta ser bom, se tu não tiveres disponibilidade de trabalho, se tu te esconderes ou fugir do trabalho as coisas boas não vão acontecer e muitas coisas que acontecem na vida da gente acontece porque tu estavas disponível. Vou contar um fato rápido. Eu estava fazendo um freela na Band num programa de variedades e fui entregar o equipamento. Entrei na redação e tinha acontecido um assalto ali no Menino Deus, num supermercado. Era uma “galera jovem” na redação que não me conhecia e eu era um freela, fui ali pra entregar o equipamento e eu ouvi a conversa. Eu poderia ter chegado e virado as costas e ido embora, mas resolvi, me prontificar para fazer a cobertura. Eu fui lá, peguei o carro e o equipamento, fui dirigindo porque não tinha motorista, não tinha ninguém, fui lá sozinho e fiz o registro. Tive a percepção, porque repórter cinematográfico também tem que ser estrategista, que a Brigada Militar estava entrando num Condomínio ao lado e eu entrei junto com a câmera ligada. Dentro do prédio, um dos bandidos atira e está com refém. Todo o local é cercado e fechado pela polícia e o único jornalista que está lá dentro sou eu. E aí, eu fiquei durante horas cobrindo aquilo, todo mundo na rua e eu lá dentro. Mais do que isso, liguei para

Qual é a diferença de trabalhar em coberturas ao vivo ou fazendo reportagens gravadas? Eu graças a Deus tive muitas oportunidades de viajar trabalhando para a Suíça, Alemanha, Estados Unidos, Espanha, países do Cone Sul, acompanhando coberturas de Presidente, fazendo programa especial para campanha política, um aprendizado porque é o tipo de trabalho que tem diretores de fotografia. Então, eu tive uma formação muito rica, trabalhei em produção comercial também. Eu suponho que o profissional experiente acaba não tendo dificuldade em qualquer situação

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Como foi a tua experiência de trabalhar em assessoria de imprensa? Eu prematuramente acabei saindo de TV. Eu tive cinco oportunidades de ir para a Rede Globo, mas eu sempre fiz a opção de ficar em função de família, não quis me afastar dos meus filhos. Embora tenha tido muitas experiências de sair, ficava 4 meses São Paulo fiquei 9 meses no Paraguai, voltava para fazer campanha política. Estava pronto para mudar para Brasília, mas meu filho menor não queria ir e acabei ficando em Porto Alegre, mas já tinha pedido demissão da Band. Estava desempregado quando surgiu a oportunidade na assessoria de imprensa da FIERGS, onde eu trabalhei durante 15 anos e 5 meses, mas é completamente diferente de TV. É um trabalho mais sistemático, coisas mais fechadas, mas eu consegui me adaptar. E, com o tempo, também provar minha qualidade, minha dedicação no trabalho e assim consegui os aumentos (de salário) desejados. Ela (assessoria de imprensa) é bem diferente, mas é um campo que está aberto para os jovens, é uma boa área para ser explorada. Com certeza ninguém ganhava mais do que eu na minha área (naquela época).


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no vivo porque já tem todos os macetes, sabe como tem que se comportar, ter atenção e que não pode errar. Eu trabalhei durante muitos anos na televisão e sempre me preocupou a divisão entre a redação e a equipe técnica, principalmente nas tomadas de decisão. Muita coisa, até mesmo na hora de construir um texto e de fazer uma pergunta, deveria ser discutido com a área técnica, eu aprendi que tem que consultar porque é um trabalho em conjunto. É possível melhorar essa relação dentro das emissoras, entre a área técnica, a redação e os jornalistas. Quando a gente viaja, um repórter e um cinegrafista ficam meses juntos, praticamente casados. É uma relação muito íntima, mas ao mesmo tempo cheia de problemas de discussões, de tomadas de decisão, como é que podemos ter um bom relacionamento no sentido de coleguismo e no sentido de resultado nas matérias? Tem que ter muita conversa, eu me sinto um cara privilegiado porque eu consegui trabalhar com muita gente e também tive a oportunidade de trabalhar com a equipe fixa, trabalhei três anos com o Marcos Martinelli, depois com a Maria José Sarno por mais três anos mais ou menos, então tu acabas conhecendo o colega pelo olhar, a percepção, eu acho fundamental esse diálogo.

uma fala do presidente, deu um furo. Isso é muito particular, eu penso que eu estou com 61 anos e continuo apaixonado, lógico que eu não tenho mais a vitalidade. Eu sigo apaixonado e se fosse jovem queria estar na rua. E agora com essa pandemia ficar preso em casa é uma loucura. O que te gratifica na profissão e o que te dá desconforto na profissão? Penso que o desconforto é sempre quando tu és desrespeitado, quando há um desrespeito, ele pode surgir de diversas maneiras, na rua ou às vezes na própria instituição que tu trabalhas, o não reconhecimento. Acredito que isso aí entristece e a gratificação é de exercer um ofício pelo qual tu és apaixonado, ver o teu trabalho no ar. Conseguiu resolver uma situação, mostrar determinadas coisas. Mostrar para todo mundo que aquilo está errado ou conseguir ajuda para alguém. Eu penso que a profissão de jornalista dá uma experiência de mundo muito grande, de vida. Eu sou apaixonado pela profissão; penso que é gratificante. Então o meu mérito foi ter dado sempre o meu melhor. Eu me sinto gratificado de ter sido instrutor. Eu formei uma geração de profissionais, eu tenho alunos que estão na Rede Globo como por exemplo o André Maciel que faz reportagens investigativas, muita coisa para o Fantástico. Eu dei a ele o primeiro treinamento, o “be-a-bá”, mas é lógico que o mérito dele. Não adianta passar informação se o cara não se dedicar. Eu nunca escondi nada dos colegas, eu prematuramente, depois de 3, 4 anos já estava dando treinamento. Eu não penso que estava formando concorrentes, eu acho que todo mundo tem seu espaço. Isso faz parte do jogo.

Como os cinegrafistas conseguem gravar flagrantes? É uma espécie de intuição? Como conseguem prever o que vai acontecer? A gente exercita o olhar, é preciso ser estrategista, tem que chegar num lugar e observar, não pode ser “maria vai com as outras”. Se todo mundo está aqui eu vou arriscar, tem situações que eu consegui porque eu arrisquei. Vou contar mais uma historinha bem rápido. Fui fazer a Festa da Uva, penso que em 92, Itamar Franco era presidente e o repórter estava fazendo a sua primeira cobertura. Chegamos lá e tinha umas dez equipes da RBS, um monte de gente, o Itamar Franco chega no aeroporto, toda a imprensa ali e o que eles fizeram? Pegaram toda a imprensa e colocaram num ônibus porque o presidente não ia dar entrevista. Aí eu combinei com o repórter que deveríamos arriscar. Vamos ficar no meio do povão, e quando ele passar fazemos as perguntas, se o “cara” falar é nosso. E foi o que aconteceu, a gente arriscou e conseguiu

Qual a dica para quem está começando? Humildade tem que ser permanente, cultivar boas relações, porque a gente não se consegue nada sozinho. Eu tive lá o primeiro curso, eu tive lá o cara que acreditou em mim, eu tive lá o colega que me ajudou, os colegas que me ajudaram dando dicas, me orientando. Isso também eu procurei fazer. O conselho é esse, é ter boas relações, procurar sem-

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pre estar se aperfeiçoando, mesmo quando tu começas a crescer teu trabalho começa a aparecer; não dá pra se achar o “rei da cocada”. Num dia sai para a rua e faz a melhor imagem, a melhor reportagem. Naquele dia tu és o melhor, mas se não continuar no outro dia vai ser esquecido. No final quando fizer as contas: eu trabalhei tantos anos, mas o que importa não é a quantidade, mas a intensidade. Eu vivi intensamente tudo que eu fiz e aí está o resultado, eu sou um dos 200 jornalistas mais premiados de todos os tempos. Talvez seja o cara mais premiado na minha área, aqui no Sul com certeza. Acima das minhas premiações, o resultado vem na consideração dos colegas, no respeito. O repórter cinematográfico em geral tem alguma preferência por pauta? Ou por um tipo de cobertura, como o futebol, por exemplo? Cada repórter tem as suas qualidades e eu percebi, prematuramente, por ser instrutor, que para ser de ponta é preciso dominar o todo. É logico que tem determinadas coisas que as pessoas fazem melhor, mas eu sempre procurei tentar tudo. Tanto que há profissionais que têm uma fotografia melhor, que tem uma sensibilidade maior para determinado as coisas, mas essa questão do futebol, o futebol tem várias câmeras, câmera geral, mais aberta; a câmera de baixo que trabalha com mais detalhes. Futebol tem também uma câmera mais fechada e cada profissional tem mais facilidade, vamos dizer assim, de fazer determinadas câmeras. Eu, por exemplo, sempre gostei de operar a câmera 3 que trabalha em detalhe, mais fechada. Por outro lado, se eu pudesse escolher, eu iria fazer matérias especiais, tipo Globo Repórter, matérias especiais, maiores. Mas eu gosto de futebol, eu jogava futebol, cheguei a jogar na categoria de base do Inter, embora seja gremista. No início, tive a oportunidade de ir para o Cruzeiro de Porto Alegre quando eu já estava na TV, eu jogava de zagueiro. Também tive oportunidade para fazer um teste no Inter, mas decidi seguir na televisão.

um negócio complicado, onde tem tiro, onde tem bomba, é bem estressante. Eu tive oportunidade de cobrir tanto na Argentina, ou no Paraguai, em 89, o assassinato do vice-presidente Luis Maria Argaña. Passei uma semana lá, foram cinco mortes, uma série de coisas e não tem horário, tem que estar ali no front. Uma vez eu caí dentro de um rio na Suíça e podia ter morrido na correnteza, porque não sei nadar. Foi muita ralação...a profissão, ela te permite isso de viajar, passar por situações ...eu quase morri várias vezes. Eu penso que a gente leva alguns anos para ficar realmente pronto. Sim, a gente tem que ralar bastante. Hoje quando se joga tantas pedras no jornalismo é preciso ter a preocupação quanto à qualidade, quanto à credibilidade para conseguir diferenciar jornalismo de outros conteúdos.

Como é atuar em situações de conflito em lugares perigosos? Eu agradeço a oportunidade de ter feito cobertura de conflito que é 250

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A FOTOGRAFIA RICARDO GIUSTI

“O fotógrafo tem que buscar a pimenta da matéria”

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oão Ricardo Testa Giusti, ou Ricardinho, como é chamado na redação, seguiu os passos de Benito Giusti. Ainda criança, visitava o pai na redação dos jornais da Caldas Júnior e o acompanhava, aos sábados, no Bar da ARI. Na Famecos, encantou-se com a fotografia. Nas cadeiras de fotojornalismo, era o último aluno a sair. Sempre muito curioso com as técnicas e melhor qualidade do trabalho. Desde cedo conheceu os dois lados do jornalismo. Atuou por mais de três décadas na assessoria de imprensa da Prefeitura de Porto Alegre (hoje aposentado) e simultaneamente na fotografia do Correio do Povo. Há dez anos é editor de fotografia do Correio do Povo. Lá, atuou nas editorias de geral, polícia, social, cultura e futebol. Ganhou Prêmio ARI por fotos de futebol e de polícia. Hoje, vê os avanços tecnológicos com bons olhos. Para ele, a profissão de repórter fotográfico seguirá em frente. Giusti acredita que a imagem sempre terá lugar de destaque no jornalismo, independente de plataforma em que for veiculada. “O mundo atual está cada vez mais imagético, seja em foto ou em vídeo”, segundo ele. Isso, na sua visão, garante mercado de trabalho para esses profissionais por muito tempo.

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O que te fez ir para a fotografia? Meu pai era jornalista e por influência dele, decidi seguir a mesma profissão. Um ano e meio antes de prestar concurso vestibular já havia escolhido jornalismo. Nessa época eu brincava de fotografia, tinha uma câmera fotográfica semiprofissional e gostava de fotografar paisagens. Quando eu entrei na Universidade, despertou em mim particularidades mais afins com a fotografia. O professor Regis, lá da Famecos, pode abonar o que eu estou dizendo, eu era o aluno mais chato da cadeira de fotografia, o que mais fazia perguntas, o que permanecia na aula após o encerramento do horário. Fora isso, o fato de eu ter muitos jornais na minha casa me fez ter familiaridade, ligação e intimidade com o fotojornalismo, e volta e meia também chegavam publicações lá em casa de jornalismo, e aí engloba tudo, fotografia, texto, jornais e revistas. A “Revista Realidade” me marcou muito, eu era pré-adolescente. Então, o fotojornalismo me impactava, aquelas fotografias de corrida, de futebol, de Fórmula 1, de motonáutica. Nos anos 70, a imprensa gaúcha abria mais espaço para a cobertura de motonáutica em função do Guaíba e das lagoas. O que faz exatamente o repórter fotográfico? O repórter fotográfico de assessoria de imprensa e o repórter fotográfico de uma empresa de comunicação têm a mesma essência, mas são dois lados de um balcão. O que faz um repórter fotográfico de uma assessoria de imprensa? Eu trabalhei 37 anos na Prefeitura de Porto Alegre para partidos de esquerda, partidos de centro e partidos de direita. Por aí a gente pode ter uma noção de qual tipo de trabalho a assessoria de imprensa vai ter, vai priorizar. O papel do repórter fotográfico numa assessoria de imprensa é fotografar todas as ações do governo em cada área, seja ela social, educacional ou de obras, a fim de ilustrar as matérias produzidas pela assessoria de imprensa. Quando eu entrei na prefeitura nós ainda fazíamos fotografias em preto e branco e copiávamos em papel. Hoje em dia a gente produz fotografias digitais, baixa no banco de dados e elas passam a ilustrar o portal em um banco de ima253


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gens da prefeitura onde os jornalistas, se tiverem interesse em alguma matéria produzida pela prefeitura, vão no banco de imagens e baixam as fotos para serem usadas no jornal. Essas fotos produzidas pela comunicação da prefeitura têm que ser fotos que sejam positivas. Eu ou qualquer outro jornalista sabemos que todo o governo não é 100% perfeitinho, 100% correto e nem tudo são flores numa administração municipal. Mas esses casos a gente deixa para os jornalistas de imprensa, de jornais, revistas e televisão, para denunciarem, mostrarem e levarem à população. Não cabe ao fotógrafo da prefeitura fotografar um deslize de algum secretário e levar essa fotografia para um banco de imagens. Isso todos nós em sã consciência temos noção. Não é esse papel dos jornalistas de assessoria de imprensa, seja na prefeitura, no governo de Estado ou no governo federal. Acho que todos concordam comigo. Já o repórter fotográfico de jornal tem o papel, a tarefa e o compromisso de buscar justamente aquilo que o repórter fotográfico de assessoria de imprensa não tem, e não é um demérito do fotógrafo de assessoria de imprensa, mas é uma obrigação do repórter fotográfico de jornal, seja ele na esfera da administração pública ou em qualquer outra área. Nós temos sempre que ver com outros olhos. A gente tem que buscar o diferencial, a pimenta da matéria. Nós temos que ter uma sensibilidade cultural muito afinada, muito aguçada, e por isso nós somos diferenciados, porque os profissionais que vão para as áreas de humanas são diferenciados, são sensíveis, são pessoas que estão ligadas mais à cultura e que têm um interesse social maior. Então, quando eu aperto o botão da câmera na minha pauta na Vila Mapa onde está acontecendo uma entrega de apartamentos, por exemplo, eu não vou lá simplesmente fotografar como repórter a assinatura do prefeito e do presidente da Caixa Econômica Federal, mas eu vou lá procurando dar ao jornal uma foto diferenciada. Não quero dizer que o repórter fotográfico da assessoria não vai ter essa mesma sensibilidade, pois ele vai, mas no fim, quando vai fazer a edição, de repente o editor vai dar mais ênfase à fotografia mais clássica, ao passo que no jornal a gente pode dar um interesse diferenciado. Em tudo deve haver uma troca de opiniões entre o repórter 254

fotográfico, o editor de fotografia e o editor de geral. Deve haver uma sincronização de interesses para que no fim a foto que ilustra a matéria seja realmente aquela foto perfeita, adequada. Quero dizer também, não desabonando trabalho dos fotógrafos da assessoria, que a gente faz esse tipo de material na assessoria de imprensa, claro que sim, mas quando chega no limiar dos assuntos de uma matéria mais sensível, de um assunto mais apimentado, não cabe à assessoria de imprensa de um órgão de governo dar chance para que os jornais se aproveitem do material produzido pelos fotógrafos da assessoria. Aí cabe aos repórteres fotográficos de jornal, fazer esse trabalho de “advogado do diabo”, ou seja, chegar lá e dar aquela foto que não é do interesse tal como seria se fosse dada pelo gestor municipal. O que uma foto representa para ti? Ela é tão capaz de transmitir uma mensagem quanto um texto jornalístico com palavras? Claro que sim. Há fotografias que cumprem isso e há fotografias que nem tanto. Há fotografias que cumprem um papel acasalado com a matéria, mas há fotografias que nem precisariam de uma matéria, poderiam ser uma fotolegenda. Por exemplo, a foto de uma briga, de um assassinato, de um tiro, do flagrante de algum acontecimento, acho que isso dispensa qualquer palavra. Via de regra, quando a gente sai para fazer uma matéria jornalística, a fotografia tem um papel de, junto ao texto, ilustrar aquela matéria e trazer informação para o leitor. A minha experiência diz que há fotografias que não precisam de palavras, basta estampar a imagem, colocar um título e ponto final. Geralmente as fotografias que dispensam palavras são aquelas de flagrantes mais intensos, de conflitos, de muita ação. Agora que todo mundo tem um celular na mão e é, de certa forma, fotógrafo, como fica isso para a editoria? Eu acho que a tecnologia ao longo do tempo vem para somar as produções. Na fotografia, mais do que nunca isso é uma prova. Se nós compararmos o fotógrafo no século passado, percebemos isso. A foto255


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Como se dá a relação do repórter que vai escrever a pauta e o repórter fotográfico? Eu acho que a parceria se estende ao motorista. É muito importante o motorista de jornalismo. Dependendo do motorista, ou a gente chega, nem chega ou chega atrasado na pauta. Quando a gente sai da redação com a pauta, deve haver um entendimento entre essas três pessoas, o

repórter, o repórter fotográfico e o motorista. Noventa e nove por cento das vezes a pauta é incompleta e imprecisa. Já aconteceu de chegarmos numa pauta e ela ter sido ontem, ainda vai ser amanhã ou às vezes nem vai acontecer porque o assessor de imprensa não comunicou à redação dizendo que a pauta havia sido cancelada. Mas nas pautas comuns eu sempre uso muito as redes sociais, elas até facilitam a vida em termos, mas eu sempre fui muito fã de rádio, sempre escutei muito o radiojornalismo da Gaúcha, da Guaíba e da Bandeirantes, não nessa ordem de preferência. Quando você vai numa pauta, ela não acontece naquele dia por nada, aconteceram fatos anteriores que a promoveram ela vai levar a consequências. Então, o que cabe a nós repórteres fotográficos: nós temos que saber, em primeiro lugar, que quando chega aquela pauta em nossas mãos nós precisamos ter alguma noção do que está acontecendo e quais são as causas e consequências daquele fato, e ainda devemos levar em consideração o interesse do jornal naquela pauta, porque nós sabemos que os jornais enfocam mais em determinadas pautas e menos em outras. Então nós, como funcionários de uma empresa de comunicação, achamos às vezes que não tem cabelo em ovo, mas tem cabelo em ovo, por isso temos que dançar conforme a música. Mas se nós temos conhecimento para qual ambiente nós estamos indo e o que está acontecendo ao nosso redor, podemos ter uma noção dos momentos em que nós vamos fotografar e quais momentos terão os cliques mais importantes, porque não adianta você ir para uma pauta e voltar para redação com 500 fotografias. Eu sempre digo quando eu vou fazer palestras para alunos que os repórteres fotográficos que voltam de uma pauta com 20 fotografias e a foto mais importante são muito mais valorosos do que aqueles que fizeram 100 fotografias e também tem aquela foto, porque o primeiro tem segurança e conhecimento da pauta e vai ganhar tempo na hora de editar o seu material, já o outro que fez 100 fotografias vai perder um tempo enorme para editar o seu material quando a gente sabe que hoje em dia a coisa mais importante no jornalismo é o tempo, pois os portais das empresas estão aí esperando as fotos para ilustrar as matérias o quanto antes.

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grafia e o fotojornalismo passaram a ter um caráter mais intenso nos anos 40 e 50, quando ainda tinha que se mudar a lâmpada do flash. Mas a tecnologia não me assusta. Eu passei pela fotografia preto e branco com revelação, pela fotografia colorida, pelo híbrido, que era a fotografia colorida escaneada para passar para o digital, e por fim pela fotografia digital. No entanto, a fotografia sempre se manteve, e isso facilitou meu trabalho infinitamente. Eu acho que quem precisa se preocupar com o surgimento da câmera no celular é a Nikon e Canon, porque as fabricantes de celulares estão fazendo equipamentos cada vez mais sofisticados e com capacidades técnicas cada vez mais impressionantes. Agora, o que eu posso dizer quanto aos colegas de redação que passaram a fazer fotografias e até vídeos com os seus celulares? São transformações da sociedade. Eu não via com bons olhos essas tecnologias logo que elas começaram a surgir, posso dizer a verdade, mas toda essa transformação vai trazer para eles mais dificuldades. Acho que essa pergunta seria interessante de fazer a um repórter ‘canetinha’, como é que ele se sente tendo que escrever, perguntar, fotografar e ainda gravar, assim como nós fotojornalistas, que passamos a fazer vídeos, mas isso é dentro do universo da imagem. Eu até gosto de gravar, acho muito legal. Um assessor de imprensa e um repórter vão conseguir fazer uma coisa bem ou outra coisa bem, eu acho que fazer duas coisas com predominância positiva é difícil, tenho minhas dúvidas. Até acho que um repórter pode fazer um registro fotográfico do ambiente e mandar para o portal para poder adiantar alguma ilustração, mas, na hora do ‘pega para capar’ acho que ainda vai prevalecer o papel fundamental do repórter fotográfico.


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Qual a tua opinião sobre o impacto da transição do analógico para o digital no jornalismo? Repercute em tudo. Antes nós tínhamos que ter mais tempo para fazermos e enviarmos uma fotografia, mas com a possibilidade tecnológica de encurtamento de tempo para obtenção de uma imagem nós ganhamos mais tempo para ficar numa pauta. Por exemplo, nós perdíamos tempo nos deslocando para a pauta e depois ainda tínhamos que secar e revelar o filme, mas com esse sistema híbrido ganhamos muito mais tempo para acompanhar a pauta e ter uma maior chance de produzir um conteúdo mais rico, porque muitas vezes o tempo que eu tinha que dispor à parte técnica e laboratorial me fazia perder a chance de obter uma produção jornalística melhor. Eu perdi algumas vezes o momento crucial de uma pauta porque eu tinha um horário para mandar a fotografia para redação, já que eu tinha que dispor um horário extenso para revelar e copiar as fotos. Quais as qualidades que um bom repórter fotográfico deve ter? O que te dá mais gratificação e o que te dá mais dissabor? O repórter fotográfico deve ter um cuidado e um carinho todo especial pelo seu equipamento. As pessoas às vezes não se dão conta disso. É preciso ter cuidado no manuseio, na manutenção e na limpeza daquela máquina, caso contrário é como ir para guerra com um fuzil em péssimo estado de conservação. Também é preciso ter conhecimento de como lidar com o equipamento. As máquinas fotográficas vêm com possibilidades tecnológicas que alguns fotógrafos não têm conhecimento, e às vezes, eles deixam de usar recursos que poderiam auxiliar em determinadas pautas, como um efeito bacana que poderia enriquecer a fotografia. Outra coisa que diferencia um repórter fotográfico ter ciência do que está acontecendo no mundo. Identificar quem são as pessoas de destaque, saber o que está afligindo a humanidade e da comunidade em que está inserido. Quando o repórter vai para uma pauta é importante ter conhecimento daquele contexto. O profissional não pode parecer um paraquedista que caiu lá sem saber o que está aconte258

cendo. É preciso ler jornais, ter informações na cabeça. A profissão de jornalista é tão prazerosa e tão variada no dia a dia que toda manhã, a gente acorda pronto para coisas que parece que nunca fizemos antes, quer seja na assessoria ou na redação de um jornal fazer uma pauta de polícia ou uma matéria de futebol. Especialmente, nas pautas de futebol onde construí minha carreira em cima. O segredo é ir cada dia para a pauta como se fosse a primeira vez. Quando a gente pega uma câmera fotográfica e sai para rua com um colete, tem que sair pronto para tudo, porque às vezes uma pauta que parece que não vai dar em nada, dependendo da equipe e do repórter que estão conosco, pode se transformar em uma capa ou em uma matéria de interesse nacional. A mesma coisa acontece quando se vai para uma pauta que parece ser estrondosa e dependendo da equipe ela se transforma em uma nota de rodapé ou em uma fotolegenda. Então, acho que o que me dá prazer é eu ter tesão para sair todo dia à rua para desvendar coisas da minha própria maneira. O que eu não gosto e me deixa desanimado é quando eu chego na redação achando que o que eu produzi é uma coisa grande e o editor discorda. Mas eu fico chateado por cinco minutos, porque depois que eu entro na sala de fotografia já estou pronto para outra. Quantos prêmios ARI tu ganhaste e quais foram os temas deles? Tenho seis prêmios ARI e os temas deles foram futebol e polícia. Quais pautas mais te assustam? Uma pauta de risco físico, de polícia, por exemplo, que é bastante difícil. As manifestações de 2013 que nós passamos a usar capacetes, coletes à prova de balas e máscaras de gás eram difíceis, pois nós tínhamos medo de sermos agredidos, já que os jornalistas eram vistos com maus olhos, e até hoje somos vistos assim por uma parcela da população. Hoje, se a gente for cobrir a chegada de um presidente da república, tal como eu fiz esses dias, temos muito medo, porque a imprensa é mal vista. Então hoje em dia essas são pautas de grande risco.

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Como um fotojornalista pode se preparar para essas situações de risco e manter a calma para conseguir uma imagem boa? Um dos prêmios ARI que eu ganhei foi sobre uma rebelião no Presídio Central de Porto Alegre em que houve troca de tiros entre os presos e a Brigada Militar. É preciso correr um risco pequeno em busca de um bom material. Nas coberturas das manifestações de 2013, a gente se mantinha sempre em bloco. Recentemente, na chegada do Bolsonaro no QG Militar houve uma série de provocações e a imprensa se fez de surdo e mudo. Ficamos ali, no nosso lugar, e fizemos as fotografias que deviam ser feitas. Em qualquer profissão, se a pessoa não arrisca e não avança, vai andar no piso que já foi pavimentado por outros, quando se arrisca, vai estar pavimentando um pouquinho aquela estrada. Quando um fotógrafo toma iniciativa para ir a um lugar que todos estavam a fim de ir mas ninguém foi, logo os outros o seguem, tipo formiga, então tem que ser sempre o primeiro. E claro, tem aqueles fotógrafos ‘viajandões’, que você olha para o chão e ele está deitado no chão fazendo uma fotografia de um ângulo estranho, todo contorcido, e você pensa: ‘nossa, qual vai ser o resultado disso?’. A fotografia é toda uma bagagem do que a gente acumulou. Ninguém deve deixar de cobrir tal pauta porque que é grande a possibilidade de a fotografia não sair. Não pode sair da redação já censurado pelo veículo. É importante soltar a cabeça e fazer a pauta como você acha que ela deve ser feita, e depois na redação vê o que vai acontecer. É melhor ter em excesso e ter uma fotografia artística incrível, mesmo que ela não combine com a linha editorial do seu veículo, do que ir a campo e não ter nada disso. É impossível numa pauta você não fazer uma fotografia que você quer fazer só porque o jornal para o qual você trabalha não vai gostar. Isso não existe. Então, ‘viaja’ na pauta. Se a fotografia naquele momento não servir num outro dia vai servir, nem que seja para colocar na porta do seu quarto, na sala ou para fazer uma exposição. Se você fizer isso vai ser um legítimo Ricardo Giusti. Mesmo que o Correio do Povo, a Zero Hora, o Jornal do Comércio ou O Sul não queiram a fotografia, é importante pensar que cada pauta é um exercício da sua profissão.

A profissão de repórter fotográfico vai continuar existindo? Claro que vai continuar. Quando me fazem esse tipo de pergunta eu me lembro de quando surgiu a televisão e diziam que o cinema ia acabar. Eu não vejo o repórter fotográfico uma profissão em extinção. O que vai acontecer, e eu vejo isso de uma maneira apreensiva, porque toda mudança precisa gerar uma apreensão nas pessoas. O que nós já vivemos nos últimos 30 anos é impressionante: as mudanças tecnológicas, os conflitos mundiais, o atentado às Torres Gêmeas sendo transmitido pela televisão e por aí vai. Nós estamos vivendo uma pandemia, a ascensão de governos de extrema-direita, o carro elétrico, enfim, estamos vivendo uma série de coisas que as gerações dos meus pais nunca nem imaginaram que veriam. Eu vejo a fotografia e a função de repórter fotográfico muito positivamente. Claro que as formas vão mudar, mas com certeza o mundo está cada vez mais dependente das imagens, sejam elas fotografias ou em vídeos.

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Qual a relação do fotógrafo com o editor? Como tu vês a batalha para emplacar a melhor fotografia na página ou no site do veículo? Bom isso faz parte dos bastidores do jornalismo. É tudo um encaixe de peças, é como um jogo. Nestes 32 anos de Correio do Povo e, comandando a editoria de fotografia há quase 10 anos, entendo que o editor precisa conhecer os seus repórteres, saber que fulano vai render bem no tipo de pauta X, que o outro fulano vai render bem no tipo de pauta Y e que o ciclano vai render bem em todos os tipos de pauta, porque eu quero que a minha editoria seja bem conceituada lá na grande sala, ou seja, na redação. O que eu quero é que os editores de geral, polícia e o capista, por exemplo, saibam que na minha editoria eles podem confiar. Mas, para que isso aconteça, eu como “Ricardinho largador de fotógrafos”, como me chamam, preciso saber quais fotógrafos largar para cada pauta. Por exemplo, não posso largar um fotógrafo que nunca cobriu futebol num Grenal decisivo e correr o risco de receber um material muito fraco e, ainda, queimar o profissional.


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O que tu fazes para que a tua fotografia seja a capa? Quanto mais jovem o repórter fotográfico é, mais acontece de ele tirar uma fotografia e achar que ela fará parte da capa. No início é assim, ele quer toda a atenção. Eu nunca fui um repórter fotográfico preocupado em querer que minhas fotografias fossem para a capa todos os dias, porque a minha história no fotojornalismo começou no jornal no turno da noite. À noite rende capa só quando é polícia, dificilmente as fotografias vão para a capa. Eu atendia as pautas do colunista social Eduardo Conill, isso é uma coisa muito relevante na minha história de fotojornalista. O colunismo social foi muito importante na minha formação fotográfica, porque ali eu aprendi a ter discernimento, a me relacionar com as pessoas (não que antes eu fosse um bicho do mato), a me portar em um ambiente profissional, a lidar com o flash, que é muito importante e muita gente apanha para lidar com isso. Queria salientar que fiz dez anos de colunismo social com o Eduardo Conill. Há um certo preconceito com a coluna social? Sim, há um preconceito por parte dos profissionais que não gostam de fazer porque acham que é bajulação ou frescura quando na realidade são editorias que fazem parte de um contexto jornalístico dentro de um jornal. Então, é difícil às vezes para as pessoas entenderem, mas eu tenho plena convicção que o colunismo social é muito importante e tem uma parcela da população de classes C, D e E que gosta muito. Isso foi importante para a minha formação de caráter pessoal e profissional. Qual é o sentimento de um fotógrafo quando pode registrar um pouco da história de uma cidade, de um Estado? A nossa profissão foi moldada para estar na rua, salvo raras exceções. Eu dou graças a Deus que os profissionais da categoria de repórter fotográfico têm a necessidade de ir para a rua ou viajar, embora agora com essa história da pandemia tenham surgido umas fotografias de WhatsApp. Acho demais essa necessidade, essa falta de opção por parte da nossa profissão de repórter fotográfico, pois se não estivermos na 262

Rua da Praia, se não estivermos no Bento Freitas, se não estivermos na Ilha Grande dos Marinheiros, por exemplo, não obteremos fotografias boas para as nossas pautas. Como funciona o processo de escolha das fotografias nos veículos on-line? É o mesmo processo dos veículos tradicionais? Eu não tenho participação no portal do Correio do Povo. Converso com o coordenador do portal e trabalho em consonância, mas ele e o editor de cada turno são quem fazem as escolhas. O que eu posso dizer, no entanto, é que o processo é bem diferente do jornal tradicional por causa do timing, não é a mesma linha de raciocínio, e isso é compreensível, porque eles estão sempre correndo, quase sem do tempo, e o tempo ali é quem manda. Muitas vezes é publicado um material inferior devido à necessidade de ter a matéria no ar rapidamente. Como vês o futuro do fotojornalismo? Acho que as coisas vão diminuir de um lado e vão se expandir para o outro. Até 20 anos atrás era pouco provável que os jornalistas teriam sucesso ou futuro fora de uma redação de jornal sem uma carteira assinada por um Breno Caldas ou por um Maurício Sirotsky da vida. Mas, o que a gente viu ao longo dos anos foram as redações diminuindo e os freelancers aumentando. Então, eu acho que é importante que a gente tenha trabalho e fonte de renda nas diversas linhas editoriais, independentemente se as pessoas tenham carteira assinada ou não, se trabalham em agências ou como freelancers. Uma coisa que eu acho que vai acontecer é que as redações diminuirão o seu corpo de funcionários, pois isso já está acontecendo (o famoso “mais com menos” que os empresários gostam de encher a boca para falar hoje em dia). Nossa profissão vai seguir, porque o mundo é imagético como a gente pode ver. Se não fosses fotojornalista, o que seria? Eu seria jornalista, mas eu gostaria de trabalhar em rádio, eu gosto do rádio, de fazer perguntas. 263


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TENDÊNCIAS MARCELO RECH

“A função de testemunha do repórter é insubstituível”

“Q

uero parabenizar vocês aí por essa aproximação com os estudantes, que isso é uma necessidade fundamental para a sobrevivência da entidade, para o futuro da entidade, para a relevância da entidade.” A frase de Marcelo Rech abriu sua conversa com os entrevistadores da Associação Riograndense de Imprensa. Dimensiona a importância da iniciativa e mostra que o presidente reeleito (biênio 2020-2022) da Associação Nacional de Jornais (ANJ) estava disposto a ouvir qualquer pergunta difícil e ir fundo nas respostas. Natural de Santa Cruz do Sul (RS), capricorniano (31/01/1962), graduou-se em Jornalismo na Fabico/UFRGS em 1981. Um ano depois, trabalhando na Empresa Brasileira de Notícias (EBN) integrou a primeira expedição brasileira na Antártida. Os textos distribuídos nacionalmente estão em O Brasil na Antártida (Brasília, DF: EBN, 1983). Cobriu grandes conflitos internacionais como repórter especial de Zero Hora. O livro Enviado Especial: Passageiro da História (Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997) apresenta mais de 20 de suas grandes coberturas. Fez carreira exitosa no jornalismo, passando de repórter a editor, a editor-chefe e a diretor de Redação em Zero Hora. Como gestor, chegou a vice-presidente Editorial e Institucional do Grupo RBS.

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Tu estás diante de uma sala de estudantes de jornalismo. E para ti, com a posição que ostentas hoje no jornalismo nacional, eles perguntariam o seguinte: Como é que o senhor chegou ao jornalismo e porque escolheu o jornalismo? Como foi o seu início de carreira? Eu acho que eu escolhi o jornalismo por uma razão muito parecida com os muitos que viraram jornalistas, eu escolhi o jornalismo para mudar o mundo e para se fazer um lugar melhor para viver. Desde que escolhi essa opção, eu tinha 15 anos de idade, eu nunca abandonei essa causa, eu acho que, esse pensamento, essa motivação no fundo é o que nos faz aguentar todas as dificuldades da profissão. Profissionais, pessoais, financeiras, familiares, a gente nunca entrou na atividade jornalística para fazer dinheiro e para fazer amigos. Às vezes a gente perde os amigos, perde casamento, por várias razões, alguns amigos não gostam dos posicionamentos que a gente toma, das matérias que a gente publica. E a família não gosta às vezes que a gente trabalhe todos os fins de semana e todos os feriados. Eu sempre dizia para quem trabalha em redação, em conversa com estudantes de jornalismo, que a gente sofre nos primeiros 17 anos, depois se acostuma, toma como parte da vida, é natural. É por isso que tanto jornalista casa com jornalista, estou falando seriamente, porque esse lado pessoal, familiar, ele é muito relevante na atividade. Jornalista não tem hora, mesmo que ele tenha um horário fixo de trabalho, ele acaba se envolvendo com a profissão, com a atividade, se informando e de alguma forma acompanhando o noticiário, a informação, 24 horas por dia, sete dias por semana, de férias, fim de semana, isso é natural, não é uma coisa forçada, é da nossa natureza. A gente é jornalista até dormindo. Então, é preciso ter uma motivação; se não tiver uma motivação, nessa ordem, não vai aguentar o tranco. O que tu dirias sobre a profissão agora? As compensações são muito maiores do que as dificuldades. Outro dia, por exemplo, tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo, recebemos uma informação que uma família tinha construído um abrigo 265


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Participaste de grandes coberturas, como correspondente de guerra especialmente. Tem espaço ainda – especialmente no veículo impresso – para esse tipo de cobertura, sobretudo nesses tempos de restrições orçamentárias? Há espaço para esse profissional? Se sim, qual é o perfil desse sujeito? No meu caso, especificamente, eu comecei trabalhando muito cedo. No primeiro ano de faculdade fui pedir emprego na sucursal do Jornal do Brasil em Porto Alegre, e obviamente me mandaram para “aquele lugar”. Afinal, na época, era uma grande referência de qualidade de jornalismo no Brasil. Eu nunca tive a oportunidade de trabalhar no JB, mas sempre admirei muito quem trabalhou, era uma espécie de pedigree. Eu sou gaúcho, mas passei minha infância e adolescência no Rio de Janeiro, e lá em casa só entrava o Jornal do Brasil – que eu lia e decorava de cabo a rabo. Foi aí que me despertou a paixão pela atividade jornalística e por tudo que ela engloba, desde futebol à política.

Na faculdade, eu comecei trabalhando muito com bicos. Trabalhei no Jornal da Associação de Servidores Municipais de Porto Alegre como diagramador – e fui péssimo, por sinal – mas a gente fazia um pouco de tudo. Qualquer oportunidade que aparecia a gente agarrava. O primeiro “troco” que eu ganhei na minha vida foi com 18 anos, atendendo telefone na central de eleições da RBS. Eu era o anônimo, o “fundo de televisão” onde a gente ficava atendendo telefone, pegando resultado de urna e fazendo uma apuração paralela, já que não existia urna eletrônica. Ironicamente, depois eu acabei coordenando várias eleições pela RBS. O que eu sugiro para quem está começando é não deixar passar nenhuma oportunidade. Seja de dois dias de trabalho, seja trabalho voluntário, tudo é oportunidade para ganhar duas coisas: experiência e networking. Uma coisa puxa a outra, e networking é muito importante. Você conhecer pessoas e as pessoas te conhecerem, te reconhecerem e te indicarem ou sugerirem outros caminhos...isso vai numa cadeia que aos poucos te coloca, de uma forma ou de outra, num posicionamento em diferentes trajetórias profissionais – e não necessariamente te levam à redação. Esse foi o meu aprendizado. Com 20 anos eu comecei como redator na Rádio Gaúcha, e com 22 fui trabalhar na Empresa Brasileira de Notícias, que era uma agência de notícias do Governo Federal. Na época tinha uma sucursal no Rio Grande do Sul, hoje é a Radiobrás, ou IBC. Eu era o repórter mais iniciante, e no fim do ano que entrei na agência (1982) fui escalado para cobrir a primeira expedição do Brasil à Antártica. Todos os dias eu mandava as matérias do navio via telex. O Cláudio Alves, um grande fotógrafo, também foi junto e nós mandávamos os textos e as fotos, além de alguns boletins de rádio. Como era a primeira expedição do Brasil e tinha aquele sentido de aventura, de pioneirismo, o espaço que os veículos deram para essa cobertura foi enorme. Era capa nos jornais todos os dias. Havia sido a maior cobertura da história da EBN até então, e eu não tinha ideia dessa dimensão porque a gente não tinha retorno do Brasil. Mas, quando eu voltei da viagem dois meses depois, logo vi que a repercussão tinha sido enorme. Aquilo me abriu muitas portas. Logo depois, eu fui nomeado chefe

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para o menino que estava no morro, no interior de uma cidadezinha chamada Estrela Velha. Podia não se dar bola para esse assunto, podia se ignorar, mas o jornal foi lá (a Rádio Gaúcha, a televisão) fazer matéria sobre o menino e isso virou assunto nacional, virou Jornal Nacional, virou uma cobertura de todo mundo, houve doações para o menino, a companhia telefônica arrumou sinal de celular para o menino continuar estudando, mas muito mais importante, o importante dessa questão, é a inspiração que essa matéria produziu, talvez em milhões de pessoas, sobre o valor da educação e o papel da família em propiciar essa educação. Então, tem um caso específico que transformou a vida de uma família, e isso é importante. Uma matéria também gera uma inspiração positiva na sociedade. Eu acho que isso é a grande gratificação que a gente tem. Com o nosso trabalho é possível transformar a vida de uma família e servir de inspiração para que outras vidas se transformem positivamente. Esse princípio é o mesmo de 40 anos atrás, de 80 anos atrás, daqueles que nos antecederam. E eu tenho certeza que vai ser os próximos 40, cem anos, porque isto é a razão da atividade jornalística.


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Só explica que eu [Flavio Dutra] não fui demitido, eu fui para a Rádio Gaúcha. Pelo contrário, tu foste promovido, não foste demitido. E aí, no lugar do Flávio Dutra como repórter especial na Zero Hora, eu fui lembrado pela Núbia Silveira com quem eu tinha trabalhado. Ela, uma editora geral da Zero Hora, uma supereditora, uma máquina, sabe assim fantástica, de combinar velocidade, talento, precisão, ela me convidou para ser, ‘’copydesk’’. Depois me chamou para ser repórter especial da Zero Hora, que foi um presente que ela me deu. Pelo fato de ser filho de militares e ter tido minha vida ligada de uma forma ou de outra, ter estudado em colégio militar, eu tinha uma diferença em relação aos outros profissionais, eu sabia distinguir um capitão de um major e não errava tanto o nome de Urutu, Cascavel, submarino com porta-aviões. Como uma vez um colega nosso da Zero Hora ‘’trocou as bolas’’. Ele identificou um porta-aviões como submarino, ou vice-versa, não me lembro, mas eu queria desaparecer de vergonha. Então, o fato de conhecer um pouco a atividade militar me aproximou dessas questões um pouco militares, digamos. Houve a expedição à Antártida e foi aí

quando entrei como repórter especial da Zero Hora. Logo, a Núbia e o Fehlberg me escalaram para dois tipos de cobertura basicamente, três tipos de cobertura, não só isso, eu fazia tudo. Fazia esporte, mas fazia muito conflito MST (invasões de terra, desocupações). E no Carnaval de 89, o Alfredo Stroessner foi derrubado no golpe militar no Paraguai, em Asunción. E o Fehlberg ligou para mim e disse assim “Olha, quero que tu faças essa cobertura na Sexta-feira de Carnaval”. Nós até alugamos um avião. Embarcamos eu e o fotógrafo Paulo Dias sexta-feira à tarde, tudo que eu tive de tempo foi sem nem pegar roupa em casa. Foi pegar algumas cópias de matérias sobre o Paraguai no banco de dados da ZH para saber o que era o Paraguai. Um pouco da política paraguaia etc. E aí nós fomos de aviãozinho, um táxi aéreo de Porto Alegre à Asunción. Aeroporto fechado, luz apagada. O piloto ficou preocupadíssimo - Como vou pousar aqui? O país estava fechado para voos comerciais, pois o golpe tinha sido na sexta-feira. Quando nós chegamos lá, se acenderam as luzes da pista, nós pousamos, saímos pela esteira de bagagens, eu e Paulo Dias. Até hoje ele lembrou este episódio uma vez em um depoimento, porque estava fechado o aeroporto. Ali conseguimos um carro e fomos para o centro. Aí eu vi um avião pousado da Força Aérea Paraguaia e perguntei: “o que faz esse avião aí?” Responderam “Está esperando pra levar o Stroessner? pro presídio”. Aí quando eu estava indo pro centro, perguntei pro motorista de táxi se ele sabia onde morava o líder da oposição. Ele disse “sim, mora aqui perto numa casa”, e eu pedi que ele me levasse lá – era dez da noite. Aí eu entrei, estava tendo uma recepção, uma celebração – afinal, o ditador do Paraguai tinha sido derrubado depois de três décadas e meia –, e eu pedi que me levassem até os líderes e eu fui. Tinha um monte de gente em volta com copo na mão, brindando, e eu fiz uma entrevista exclusiva com o líder às 22h. Depois eu fui pro hotel e às 23h eu já estava com a matéria pronta. Contei da minha chegada e das coisas que eu tinha visto, como vários prédios bombardeados, árvores destruídas...o golpe não foi pacífico, foi violento, com muita gente morta e tanques na rua – a velha quartelada latino-americana. Só que, quando fui mandar a

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da sucursal na parte de Jornalismo. E com 22 anos, passei a chefiar uma equipe de 12,14 jornalistas muitos deles experientes, foi um desafio para mim. Por coincidência, o subchefe era o João Bosco Vaz e nós dois tínhamos muito ímpeto de mudar, renovar, fazer coisas diferentes, de cobrar resultado e nos incomodamos bastante de um lado, para fazer as coisas funcionarem, mas acho que fizemos um bom trabalho de serviço público. Mas também me decepcionei muito, sou um dos casos raros de funcionários de estatal que pediram demissão para ir para iniciativa privada. Eu tinha muito prazer de trabalhar no serviço público, nada contra. Ao contrário, acho uma causa legítima, ainda mais fazendo uma cobertura interessante, mas realmente há um desperdício, desfaçatez, que me deixaram incomodado. Então, a Núbia Silveira me convidou para o lugar do Flávio Dutra na Zero Hora, querida Núbia Silveira, eu dou graças a ela e ao Dutra por ter entrado na RBS.


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matéria por telex, simplesmente não tinha linha telefônica, não funcionava. Aí eu consegui manter comunicação com a portaria e falei “Estou desesperado, preciso mandar um texto pro Brasil”, ao que eles responderam “Olha, a telefônica foi bombardeada”. Eu disse “Pô, tô com a matéria aqui...depois de toda essa epopeia para chegar. eu não consigo transmitir”. Até que, por volta da uma da manhã, eu consegui passar a matéria. Alguém da redação – uma boa alma – pegou por telefone, caindo várias vezes a ligação. No dia seguinte eu tinha que mandar um texto pra Zero Hora de domingo – que fechava sábado às 13h – e eu vi um fax no hotel e mandei a primeira matéria por fax na história da Zero Hora. Eles tinham comprado um fax há pouco tempo. Aí, quando chegou lá, me ligaram pra avisar “Chegou!”. Depois que eu inaugurei o fax, a minha vida mudou para melhor, porque diminuíram muito os perrengues de comunicação que eu tinha tido até então, fosse na EBN ou na Zero Hora, de mandar matérias por telex em zonas complicadas do planeta. Quem nunca vivenciou isso e hoje manda tudo por Whatsapp não tem ideia do que era fazer uma matéria e tirar uma foto do fim do mundo – às vezes o fim do mundo era passando Viamão – e conseguir passar para redação do jornal. Então aquilo ali mudou a minha vida. Eu sempre digo que essas coberturas grandes, muito intensas, com muita história, são muito simples de fazer. Basta ter um olhar minimamente sensível e saber contar uma história. A cobertura da Antártica me levou para Zero Hora, a do Paraguai fez as pessoas pensarem “Poxa, o cara gosta desse assunto, entende de conflito e sabe contar a história”. Aí eu comecei a fazer coberturas internacionais e de conflito, principalmente. A vida também foi me levando para cá e pra lá e comecei a fazer muita matéria investigativa, sem as técnicas de GDI que tem hoje, mas por instinto mesmo. A Zero Hora sempre teve uma tradição nesse quesito, sobretudo a editoria de Geral que era muito aguerrida e tinha grandes repórteres – o Carlos Wagner é o ícone de todos. Aquilo ali era uma escola e um centro de produção de conteúdo de jornalismo de alta voltagem.

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Voltando ao início da pergunta, tem espaço para esse tipo de cobertura, especialmente no jornalismo gráfico? Há espaço para esse perfil de jornalista que se atira em coberturas mais complicadas, que envolvem conflitos e tudo mais? Eu acho que o espaço para o jornalismo de contar histórias e reportagens existe, e vai existir sempre. E de diferentes formatos, não necessariamente no impresso. Eu tive o privilégio de escrever séries de reportagens de 14 dias, sendo duas ou três páginas por dia. A dissolução da União Soviética, a guerra nos Balcãs e muitas outras foram séries de reportagem, não foram matérias enviadas no dia. Acredito que é difícil hoje, mesmo jornais muito tradicionais como o Washington Post e o New York Times, produzirem séries de reportagem. As pessoas não têm mais esse tempo, nós não temos mais essa atenção. Antes o jornal era lido de cabo a rabo porque ele era a única coisa para ser lida, assim como um livro. Você só tinha livro, revista, jornal e televisão. Hoje você tem tanta opção para roubar a atenção do vivente – seja com Netflix, internet e redes sociais –, que já não tem mais o mesmo espaço, e aí eu sou obrigado a dizer isso. Não é nem o mesmo espaço, não é essa mesma atenção que nós tínhamos. Atualmente as coisas são mais rápidas. Mas eu acredito, aliás tenho certeza, que as boas histórias sempre serão contadas. E precisam ser contadas. Ainda questão de correspondente de guerra: Em que locais tu estiveste? O que serviu para ti essa experiência de correspondente de guerra? A guerra é a circunstância limite, é a situação limite das vivências profissionais e pessoais. As relações viram exponenciais numa situação de guerra. Esse charme que a gente imagina do glamour da televisão não existe. É a mesma coisa que você achar charme e glamour em uma guerra do tráfico no morro aqui, ou numa vila, numa cidade. É uma cobertura crua, dura. Claro que tem humanidade, mas infelizmente as guerras continuam e estão aí para ser cobertas. Hoje é até um aspecto negativo, porque você tem muito mais gente cobrindo guerra do 271


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que havia há 50 anos. Hoje muita gente se aventura como freelancer, é muito fácil chegar à linha de frente, chegar numa situação de combate. Antes você praticamente não tinha como fazer essa cobertura se não tivesse o apoio de um veículo. Muita gente tem se aventurado na Síria a ponto de os veículos de comunicação, as agências de notícias terem feito um acordo para não publicar mais artigos de aventureiros freelancers na Síria, porque os caras estavam morrendo um atrás do outro. Isso estava incentivando um massacre de freelancers em busca de fama, dinheiro, aventura ou o que quer que seja. Eles estavam correndo riscos absurdos sem ter o conhecimento, sem ter o domínio e sem ter uma estrutura mínima de movimentação. Os caras só ligam a câmera e vão, sem dinheiro, sem nada. Hoje tem esse fenômeno de pessoas que, por conta própria, sejam jornalistas ou não, entram em zonas de combate, zonas de conflito para fazer um documentário. Não tem nem cliente, só vai lá e faz para depois tentar colocar no YouTube e conseguir patrocínio. E nisso as pessoas perdem olho, perdem perna. Eu não recomendo esse tipo de atitude, acho que a entrada numa zona de conflito tem que estar resguardada por uma série de coisas.

nização de medíocres, é onde os medíocres têm seu palco. É também onde os piores sentimentos se manifestam e encontram os seus iguais, e esses iguais se juntam e se transformam em realidade. O jornalismo tem filtros éticos, tem a missão de favorecer de civilização. Se é que ele tem um lado, o jornalismo tem esse lado de transformar o mundo para melhor e fazer o mundo avançar para um mundo mais pacífico, mais humano, mais justo e com menos ódio e rancores que já são naturais da humanidade. Acredito que as redes congregaram esses sentimentos. Não vou dizer que elas são desprezíveis no seu todo, elas têm coisas positivas também e que se mantém. Elas não deixam de ser fontes de pauta para o jornalismo, embora desvirtuem, às vezes, algumas bobagens em detrimento de coisas mais relevantes. Mas isso é da natureza humana. Existem algumas poucas vantagens que oferecem ao jornalismo, como poder acompanhar rapidamente o que está acontecendo. Eu mesmo uso muito o Twitter em função disso. É muito rápido e eficaz. Eu sigo praticamente apenas veículos de comunicação ou produtoras de conteúdo, além de algumas poucas personalidades políticas e empresariais que são notícia ou que podem gerar notícia. As outras redes sociais eu só uso para hobby pessoal, não utilizo profissionalmente. Acho que rouba muita atenção e foco.

Como tu disseste, as redes sociais tiram muito a atenção das pessoas no consumo do bom jornalismo. De que forma os jornalistas podem se beneficiar melhor dessas plataformas atualmente? Para ser franco, eu acho que esse mundo digital – do qual nós somos parte desde o seu nascedouro – tem efeitos colaterais perversos. Nós nunca imaginávamos as consequências disso. Eu era editor-chefe da Zero Hora em 1994-1995 quando começamos o primeiro site do jornal, e ninguém sabia o que era internet. Muita gente não entendia para que aquilo servia. Eu sempre fui um grande incentivador porque gosto muito de tecnologia, mas não tinha nem ideia desse efeito perverso que as redes provocaram, transformando as relações humanas e políticas para pior. O jornalismo não foi beneficiado pelas redes, na minha opinião. Acredito que essas plataformas, por natureza, são um lugar de vaidade e de superficialidade. Além disso, elas são um local de padro-

E tu não vês uma possibilidade de o jornalismo se apropriar disso de uma forma adequada? Acho que é uma questão de modelo econômico. O jornalismo tem que sobreviver, e o jornalismo profissional precisa ser remunerado. Ele não pode ser uma atividade a serviço de outra pessoa que não tenha o interesse de informar a sociedade, caso contrário não é jornalismo. É publicidade, é ativismo. Então tem que ter um modelo de negócio, tem que ter uma sustentação dessa atividade no que diz respeito à produção. O jornalista, em última análise, é uma testemunha paga. É meio duro dizer isso, mas é isso que os repórteres são. O público paga, por meio de anúncios ou assinaturas, a um veículo para que ele coloque lá naquele lugar uma testemunha. Essa testemunha tem um compromis-

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so em relatar a verdade, aquilo que ela viu. Logo, alguém tem que pagar essa conta, e eu não vejo as redes sociais pagando essa conta. Quem paga a conta de uma rede social é justamente quem tem interesse em outras coisas, como fazer publicidade, ativismo e difusão de falsas informações. Não conheço nenhum veículo de comunicação ou jornalista que ganhe dinheiro com as redes sociais.

paixão, seus interesses. No meu caso, notoriamente, os colegas sabem que eu não entendo nada de futebol. Eu seria uma negação cobrindo uma partida. Acompanhei e coordenei duas Copas do Mundo fazendo tweet da torcida, que era o assunto que eu dominava. A gente precisa reconhecer as nossas limitações para saber aquilo em que eu não sou bom e que eu nunca vou ser. Assim eu posso me focar naquilo que vou ser bom porque eu tenho uma paixão, tenho um interesse. Fazer as coisas de maneira apaixonada vai ter muito mais probabilidade de dar certo do que fazer por obrigação.

Quais habilidades os jovens têm que desenvolver para entrar nesse jornalismo de transição que estamos vivendo agora? Tu achas que esses jovens já vêm consciência ética de independência editorial da faculdade? Antigamente a gente dizia que todo o jornalista tinha que conhecer tecnologia, porque talento e criatividade era assunto dado. Acho que hoje eu inverteria a ordem. Todo mundo sabe de tecnologia, isso é de prateleira, saber de internet não é mais um diferencial. Os diferenciais são talento e criatividade, que são fundamentais. No talento incluo saber se expressar na língua materna, saber colocar crase também é importante. Outros dois diferenciais são independência e ética. Acho que a integridade, a visão do jornalista no sentido de que ele tem uma missão que exige determinadas posturas, comportamentos e atitudes é fundamental, é obrigatório. Isso significa abdicar de uma série de considerações que parecem um pouco com a vida de um juiz. Quem deseja ser um repórter de veículo de comunicação precisa abrir mão de participar de manifestações políticas, por exemplo. Na questão do talento, acredito que a pessoa tem que se perguntar “No que eu sou o melhor do mundo?” Se você não é o melhor do mundo em alguma coisa, dificilmente vai ter um lugar ao Sol. “Ah, mas como eu vou ser o melhor do mundo?” Vai ser o melhor do mundo em alguma coisa. Por exemplo, vou ser o melhor cara do mundo que cobre o lateral-direito do Inter, ou vou ser o melhor do mundo em cobrir a Mosca-dos-Chifres. Em alguma coisa você tem que ter esse diferencial, e acho que essa é uma pergunta que nós temos que nos fazer como profissionais: “No que eu sou diferente de todo o resto?” Aí tem que ver também a sua própria

Tu disseste, basicamente, que o profissional precisa se especializar. Ao mesmo tempo, as redações estão cada vez mais integradas e exigem que o jornalista seja multimídia. Isso veio para ficar ou é um modismo? Como devemos lidar com isso? Eu acho que o multimídia veio para ajudar na especialização, porque você consegue exercer o seu conhecimento em diferentes plataformas. Não acredito que haja um conflito entre essas duas coisas. Vou dar um exemplo típico de Brasília: o repórter que cobre o Congresso ou o Banco Central não vai ver muita diferença em fazer a cobertura para o jornal e para o rádio. Aliás, cobrir para os dois inclusive amplifica a abordagem dele. Ele vai poder melhorar o alcance do seu trabalho e as fontes também. O diretor do Banco Central vai gostar de ser ouvido na rádio, vai acabar dando mais acesso. As pessoas gostam de falar nas plataformas que geram mais repercussão, sobretudo aquelas que são muito procurados. Eu acho tudo isso bom para a especialização porque não significa que eu vá falar de esporte na rádio e de política no jornal. Eu vou falar só de futebol em todas as plataformas, vou falar só de Grêmio, ou de qualquer outro assunto. Sobre a especialização, falando aqui para os estudantes, acredito que esse é o caminho mais promissor da atividade. Aparentemente é uma contradição com a minha trajetória, porque sempre fui um generalista, sempre cobri de Política a Esporte. Contrariamente à minha vida generalista – que é uma exceção, diga-se de passagem –, eu acho que existe um espaço enorme para a atividade

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jornalística especializada e ultra especializada. Vou dar um exemplo meio óbvio e que as empresas de comunicação não conseguem ocupar porque não têm energia nem uma estrutura adequada: a área da saúde, e mais especificamente o câncer. Não tem nenhuma publicação – eu, pelo menos, desconheço – jornalística, diária, 24 por 7 ou atualizada várias vezes ao dia que faça cobertura de câncer no Brasil. E para quem tem câncer, ou alguém na família que tenha, não tem nada mais importante do que esse assunto. Essa pessoa está disposta a gastar muito recurso, tem toda uma indústria por trás disposta também a fazer o vínculo com essa comunidade enorme – e crescente, já que as pessoas estão ficando mais velhas – que sofre com a doença. Além disso, há 30, 40 tipos de câncer diferentes, cada um com um tipo e uma especialização diferentes. Vale lembrar que estou falando de cobertura independente, não a serviço da indústria farmacêutica, nem de um hospital. Uma cobertura que mostre os avanços, as frustrações, os dramas.

Existe experiência disso no exterior? Muitas. O caso das coberturas de saúde nos Estados Unidos, por exemplo, é uma indústria bilionária onde existem vários jornalistas e empreendedores editoriais ocupando esses espaços de nicho. Todas as doenças são cobertas por pessoas que fazem jornalismo.

Aproveitando essa questão de entidade associativa e de especialização, não existe um vazio informativo que tem no Brasil? Cidades que não têm um jornal, que não têm nenhum meio de comunicação e, às vezes, nem uma rádio. Isso também é uma oportunidade para o profissional? Existe um fenômeno chamado “deserto de notícias”, que vem sendo motivado pela devastação que os veículos de comunicação estão sofrendo devido à erosão do seu modelo de sustentação. Hoje, dependendo do país, de 60% a 80% da publicidade digital vai para duas empresas: Google e Facebook. Todo o resto disputa de 20%, e essa porcentagem é cada vez menor. Como o mundo caminha para ser cada vez mais digital, esse meio devastou – e está devastando – muitos jornais. No Brasil há milhares de jornais, e dezenas estão fechando. Alguns são jornais com mais de cem anos de tradição, porém não conseguem mais manter a estrutura que mantinham quando eram praticamente os únicos veículos da cidade, com classificados, anúncios. Hoje a padaria da esquina faz anúncio no Facebook, ela não fica mais – ou somente – no jornal. Existem ainda as rádios, que são muito importantes, mas muitas delas não mantêm mais jornalistas. Elas tocam música, tem um apresentador ali e olhe lá. Não tem mais uma cobertura jornalística. Isso provocou um fenômeno sobre o qual eu tenho conversado com muitas pessoas no Brasil e de fora também – como Tribunal de Contas da União, o Congresso, etc. – onde, nesses territórios em que o jornalismo está enfraquecido ou nem existe mais, estão se criando os “bandoleiros digitais” ou “cangaceiros digitais”. São pessoas que fazem ameaças à empresas e políticos locais, dizendo que, se não colocarem dinheiro nos sites e blogues desses “pistoleiros”, eles vão publicar notícias ruins a respeito dessas personalidades e organizações. E não tem mais veículo de comunicação nem jornalismo profissional que restabeleça na cidade. O cara conta uma fofoca e destrói a vida daquela pessoa. É por isso que eu tenho me preocupado muito como presidente da ANJ [Associação Nacional dos Jornais], ex-presidente do Fórum Mundial de Editores e membro do comitê executivo da Associação Mundial de Jornais. A de-

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Os jornais cobrem muito mal o segmento da terceira idade. E é um setor que expande-se, já que a expectativa de vida aumenta. Os jornais não têm como cobrir, em detalhe, tudo. Os veículos de comunicação são generalistas, por isso esses nichos não vão ser ocupados por grupos de comunicação. Eles podem ser ocupados por pequenas empresas, às vezes compostas por um homem ou uma mulher só – contanto que façam um trabalho profissional, ou seja, independente, que tenha capacidade de criar fontes, de dar furos, de ser preciso, de ser crítico quando for o caso. Se eu olhar para fora, existem centenas de atividades ultra especializadas que estão nas mãos de amadores e de instituições que não são jornalísticas, são assessorias.


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sinformação germina e floresce nos territórios onde o jornalismo está enfraquecido. Logo, onde não há mais jornalismo profissional, a desinformação assume o lugar. É por isso que nós defendemos, no mundo e no Brasil, que o ecossistema jornalístico seja em parte remunerado pelas plataformas digitais, as quais criaram esse problema. Afinal, elas devastaram as fontes de financiamento dos veículos jornalísticos profissionais. Além disso, elas ainda se valem da reputação e da credibilidade que esses veículos e jornalistas têm para vender publicidade. Resumindo, elas formaram um círculo vicioso de destruição do jornalismo se valendo dele, a fim de vender anúncios e ganhar reputação. Portanto, nada mais justo que o nosso ecossistema seja recompensado, reconhecido e valorizado por quem utiliza ele. A Europa aprovou, no ano passado, uma diretriz que consiste numa determinação na qual os 27 países membros devem fazer leis nacionais que estabeleçam um modelo de remuneração da propriedade editorial, que engloba os veículos de comunicação, pelas plataformas digitais. Neste momento, a Austrália está tendo um embate porque está sendo o Vietnã do Google e do Facebook depois que o país determinou que essas empresas remunerem o jornalismo profissional. Eles estão em guerra lá.

espécie de controle, sem nenhuma ameaça à liberdade de expressão, sem nenhuma invasão de privacidade. No Brasil, nós começamos essa discussão há duas semanas, e ontem [18/08/2020] protocolamos o manifesto com o Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Na segunda-feira, o Google já protocolou a sua resposta. O assunto está chegando ao Brasil, e vai crescer. Já tem um senador que apresentou um Projeto de Lei para que as plataformas paguem pela atividade jornalística. Nós estamos em defesa da atividade antes que ela acabe, porque do jeito que vai...

Isso é absolutamente inovador, mas como funciona? É inovador mesmo, e nós estamos trazendo essa discussão para o Brasil. Eu tenho tido muitas reuniões com congressistas, porque a gente criou uma coalizão de 27 entidades – inclusive já convidei a ARI para fazer parte e faço de novo o convite –, além de profissionais da comunicação, principalmente da publicidade e do jornalismo, que defendem dois pilares para se combater a desinformação. Esses pilares são baseados, primeiramente, na extensão da legislação da publicidade brasileira – que já existe – para as plataformas digitais, a fim de gerar transparência e saber quem impulsiona conteúdo desinformativo, se for o caso. Não deveria ter sigilo nisso, isso deveria ser público. A questão da remuneração do ecossistema jornalístico pelas plataformas digitais como melhor forma de combater a desinformação – sem nenhuma

Que outras ameaças à liberdade de expressão têm sido fortes e têm te preocupado nesse papel de liderança? As duas coisas andam juntas. O enfraquecimento da atividade jornalística por essa drenagem de recursos fez com que, simultaneamente, ocorresse uma captura das redes sociais e do universo digital por estrategistas de campanhas e causas políticas, os quais identificaram a capacidade para aplainar, preparar o terreno para que as mensagens dos seus candidatos e das suas causas caíssem em solo fértil. A partir disso, começam a se criar e incentivar medos, como o medo do terrorismo, da criminalidade, da imigração, incitar as diferenças. Eles lidam muito com medos, sejam estes ocultos ou não. Isso correspondeu muito ao modelo do Brexit, que criou o medo de que a Inglaterra vai ser destruída pela imigração e que o modo de vida dos ingleses será devastado, culminando na saída do Reino Unido da União Europeia. A mesma coisa aconteceu com a eleição do Trump, onde eles trabalharam o medo de imigração, do terrorismo, do islamismo para que a mensagem que veio depois caísse em solo fértil. No Brasil isso é evidente com o Bolsonaro, onde a mensagem radical também foi trabalhada para cair nesse solo fértil, e vingou. Nenhum desses radicais extremados, tanto de direita quanto de esquerda, defendem a liberdade de imprensa. Para eles, a liberdade de imprensa só é boa quando é para os outros. E liberdade de imprensa, de fato, é defender aquela que nos atinge. É quando eu sou contra aquela opinião, quando eu não gosto daquela opinião,

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quando ela me irrita que eu vou ver se a pessoa defende, realmente, a liberdade de imprensa. Isso vale para nós jornalistas também. Esse é um tema central porque, no nosso caso, no caso dos EUA e no caso das Filipinas, por exemplo, há uma orquestração de neutralização do mensageiro. Eu não rebato a mensagem, eu destruo o mensageiro e a sua reputação, integridade física e psicológica, seja ele um repórter ou um veículo. E eu uso as redes sociais para isso. Há uma expressão que uma amiga minha das Filipinas – que é uma das grandes jornalistas do mundo e hoje é perseguida pelo regime do Rodrigo Duterte –, usa muito, chamada weaponization das redes sociais. Consiste no uso bélico das redes sociais não para contestar uma informação legítima, mas sim para destruir a integridade moral e psicológica da pessoa que deu aquela informação a fim de que a mensagem dela seja esquecida em troca da desmoralização artificial daquela pessoa que emitiu a opinião. Tem um exemplo bem próximo de nós. Recentemente, jornalistas da própria RBS foram atacados em vídeos planejados para isso. Isso faz parte desse submundo digital que se movimenta pelos grupos de WhatsApp e pelas sombras, porque as plataformas estão à margem da lei, da regulação.

ria. E é justo que seja assim, porque a liberdade de expressão carrega com ela a responsabilização. Se eu invento algo sobre alguma pessoa, se eu tenho uma ação difamatória ou injuriosa, eu corro o risco de ser processado. Quando eu ando nas sombras, ou seja, no Whatsapp e nas redes sociais, esses meios fogem da legislação. É por isso que nós e as empresas defendemos a regulação, de um lado, na transparência da publicidade e do outro a revitalização do ecossistema jornalístico, a fim de restabelecer a verdade. Caso contrário, a destruição desse ecossistema vai levar ao domínio dessas pessoas ou deste modelo que não é apenas ruim para o jornalismo, mas que também é terrível para a democracia e para a sanidade das sociedades. Isso afeta o direito de escolha, já que a democracia supõe que eu faça opções entre diferentes alternativas, e para escolher eu preciso de informações. Preciso que haja fatos e dados que sejam concretos e reais. Pode até haver diferentes interpretações, e isso é legítimo, como no caso da Previdência onde alguns dizem que ela tem déficit e outros dizem que não tem. Isso não é desinformação, faz parte do debate. A questão é induzir as pessoas a adotar posições com base em informações deliberadamente erradas ou difamatórias. Isso é uma ameaça profunda à harmonia da vida em sociedade. É por isso que as empresas estão muito preocupadas. Agora mesmo está em andamento a campanha “Stop Hate Now” realizada por mais de 100 grandes empresas multinacionais que pararam de anunciar nessas plataformas até que se resolva esse assunto, e até que as plataformas assumam a responsabilidade a fim de interromper esse fluxo que está destruindo a sociedade.

Há uma conscientização das grandes empresas brasileiras sobre esse problema? Há uma união, há uma convergência? Sim. Eu acredito que, hoje, esse é o principal tema para os jornalistas do mundo e do Brasil. É por isso que nós defendemos que as plataformas sejam reguladas. Segundo o Artigo 5º – inciso 4 da Constituição brasileira, é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Logo, toda a manifestação anônima, em tese, contraria a Constituição. É por isso que grande parte da desinformação é anônima, pois ela é fora da lei. No nosso país, você é livre para manifestar sua opinião, mas você também é responsável por ela. A Constituição não tolera a censura prévia, mas ela não impede que a pessoa seja processada por ter feito uma manifestação caluniosa, injuriosa ou difamató-

Como é que esse modelo de negócio desses grandes players – como Google e Facebook – remuneraria concorrentes? Na verdade, é o predador que teria que se preocupar com a presa, e é também dependente dessa presa. Como funciona essa relação tão doentia? Hoje existe um modelo de remuneração. Vou dar um exemplo: as plataformas deixaram de ser plataformas para serem veículos. A final da Champions League teve 6 milhões de wiews no Brasil pelo Facebook,

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e o Facebook comprou os direitos da Libertadores. Tem comentarista, tem tudo, entrou no jogo. Portanto, como veículos de comunicação, eles têm que ser tratados como veículos de comunicação, ou seja, devem remunerar pelo uso de outros conteúdos. Se um jornal compra e usa a coluna de uma outra pessoa, tem que pagar por isso. Se usa uma foto de uma outra pessoa tem que pagar também. Isso é parte dos direitos autorais. A mesma coisa acontece hoje nas plataformas. Elas se transformaram em veículos, vendem audiências, métricas de veículos. Por isso que a gente defende que elas paguem pelo direito de uso. Aí o Google diz “Ah, mas basta você não estar no Google, você está aqui porque quer”. Sim, também estou com a CEEE porque eu não tenho outra opção. Me dá 10 companhias fornecendo energia elétrica para a minha casa e talvez eu opte por outra. O problema é que o Google tem 97% do monopólio de buscas no Brasil. Fazendo a analogia com a CEEE, no dia que não tiver mais a CEEE acabou a energia na minha casa. É o mesmo princípio. É monopolista, portanto não existe a possibilidade de ter outra opção, eu tenho que estar no Google goste ou não goste. Seja por competência, por estratégia, pela destruição dos concorrentes, não importa. É um serviço monopolista, e nós da ANJ temos uma ação no CAD em relação ao Google por esse monopólio. A respeito de como fazer o pagamento, essa é a grande discussão. Não pode ser por audiência porque se for, aquele sujeito que vende desinformação, teorias da conspiração e bizarrices vai ser recompensado, já que são temas que têm muito público. Essa remuneração tem que ser com base em relevância e investimento em jornalismo. Nós não temos ainda um modelo claro, mas uma hipótese seria avaliar quanto que cada um investe em jornalismo, ou quantos jornalistas emprega. Em tese, se eu tenho 10 jornalistas eu estou fazendo um investimento, se eu tenho 5 estou fazendo outro. Não é uma métrica absoluta, mas é uma hipótese de identificação de relevância. Não seria interessante insistir com o retorno do diploma? Porque isso seria uma forma de controlar essa bagunça onde todo mundo 282

fala e escreve o que quer. Será que o diploma não seria como um freio para isso, como era antes? Em 13 anos dirigindo as redações dos jornais e mais 5 como chefe de jornalismo da RBS, eu nunca contratei um jornalista que não tivesse diploma. Não porque é obrigado – até porque não é –, mas porque eu acredito que é melhor você ter alguém formado, que desde jovem se sente vocacionado, do que alguém que não tenha essa preparação, essa formação específica. A mesma coisa com a publicidade, que não exige diploma, mas uma pessoa que cursou a faculdade, em tese, está mais preparada do ponto de vista ferramental. Eu fui aluno do Luiz Adolfo, por exemplo, e seguramente é uma grande vantagem. Não só por ser um mega professor e profissional, mas também pelos valores que ele passou como pessoa e como profissional para esses alunos. Isso conta muito. Eu acho que, na prática, a obrigatoriedade do diploma não fará diferença, porque várias pessoas que agem nas sombras infelizmente têm diploma. Teve um que foi preso recentemente em Foz do Iguaçu, e com diploma. Portanto, acredito que essa não seja a solução. Qual o recado a esses jovens que estão ingressando na carreira a respeito do que representam essas entidades jornalísticas – nas quais tu tens um papel de liderança – na defesa do nosso meio? Para resumir, eu costumo dizer que o meu papel, o nosso papel é defender a liberdade de imprensa. E liberdade de imprensa é formada por dois substantivos, liberdade e imprensa. Liberdade sem imprensa não é liberdade de imprensa, e imprensa sem liberdade não é nem imprensa nem liberdade. Logo, a gente precisa dos dois, de liberdade política e de imprensa, de jornalismo. A defesa das entidades é pela liberdade contra toda e qualquer manifestação de autoritarismo que ameace o jornalismo ou os jornalistas e que intimide a atividade da imprensa. Também defendemos que haja imprensa, uma atividade econômica saudável que possa remunerar, contratar as pessoas e manter essa atividade.

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O que é que o jornalismo está aprendendo nessa pandemia? Como é que ele sai da pandemia? E qual é o futuro? Uma das coisas mais irônicas que eu tenho constatado, considerando que já participei de vários congressos internacionais de jornalismo, é que nesses eventos sempre vinha um cara com uma tese exótica, maluca, de que um dia as redações iam ser virtuais e remotas. Todo mundo achava que era só mais um sonhador apresentando um trabalho ou estudo. Essa redação 100% remota era motivo de risada e ceticismo, ninguém levava a sério. Em 10 dias a Zero Hora virou uma redação virtual, e quase todas as redações do mundo entraram em modo 100% virtual ou em um modo híbrido. Ninguém mais ri daquelas teses. A gente achava que isso era impossível, e se a gente fosse fazer de maneira planejada teria 30 consultores, 25 vendedores de software mais psicólogos. Quando a Zero Hora fez a transição da máquina de escrever para o computador, contrataram um psicólogo para ajudar os jornalistas que iam sair da máquina de escrever e lidar com o computador. Foi todo mundo para casa, e o jornal sai. Uma coisa que me deixou chocado outro dia foi uma colega repórter que foi à redação buscar umas coisas que ela havia deixado e tirou uma foto dos calendários, que estavam na página de março.

foram se aperfeiçoando. É claro que nos primeiros momentos houve uma mega dificuldade, mas agora as coisas entraram mais nos eixos. Falando sobre as implicações que isso vai ter para a atividade...eu acho que ainda precisamos olhar para frente, mas tenho dito que, há 40 anos, antes de existir internet, muitos jornais – sobretudo europeus e americanos – tinham correspondentes na Europa, na Ásia, na África e esses correspondentes sequer falavam com o jornal, sequer tinham reuniões virtuais e mesmo assim representavam os jornais, tinham a cultura dos jornais e escreviam muito bem por sinal. Muitos deles eram grandes correspondentes. Logo, mais importante do que estar presente é ter a cultura, os conceitos e os princípios que norteiam aquele veículo ou aquela marca. Isso fica entranhado nas paredes e está presente no ar, independentemente das pessoas que estão ali transitoriamente. Acredito que esse seja o grande desafio das redações e das organizações, sejam empresariais ou jornalísticas: fazer a cultura vingar em quaisquer circunstâncias, seja presencial ou seja por via remota.

O vírus promoveu uma revolução sozinho. E está melhor? Não, não está melhor. É óbvio que o contato presencial, as discussões precisam acontecer. Não é nem pelas reuniões, porque estas estão acontecendo, é pelo cafezinho, é a conversa no bar, no bebedouro. É aquilo ali que gera as ideias. A conversa jogada fora faz falta. Dá para imaginar que vai ter um modelo híbrido. Uma parte vai continuar o resto da vida trabalhando remotamente, inclusive tive uma reunião com vários editores brasileiros e vários já estão prevendo que as redações vão ficar para sempre parcialmente remotas. Isso é uma grande transformação, para falar do ponto de vista tecnológico, porque foi feito sem uma tecnologia para isso, sem consultor, sem nada e sim por necessidade, por segurança. E está dando certo, várias coisas

Mas e o repórter, Marcelo? Algumas funções até dá para a gente fazer de casa, do correspondente de guerra ao editor, mas e o repórter? Será que o repórter não foi atingido por essa reclusão? Foi atingido, sim. Acredito que a função de testemunha do repórter é insubstituível. Ele tem de estar presente, pois não há como não estar presente nos fatos, seja uma tragédia, um deslizamento de terra em Minas Gerais, seja em um discurso de um candidato a prefeito – com os devidos cuidados e cautelas. Isso não tem como substituir e nem vai ser substituído. Agora, algumas coisas que antes a gente fazia presencial e talvez não seja mais necessário, vai acontecer de ser substituído. Por exemplo, mandar um repórter, uma equipe de televisão à casa de alguém para entrevistar essa pessoa, enfrentar um trânsito de uma hora e meia, levar um chá de banco de uma hora, depois mais uma hora e meia para voltar à redação quando eu posso entrevistar essa mesma pessoa de maneira virtual sem grande perda, isso mudou para sempre. E vai dar mais agilidade, mais diversidade de fontes e menor custo.

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FECHAMENTO NÍLSON SOUZA* Quando começamos a entrevistar ganhadores do Prêmio ARI para esta coletânea de depoimentos, no dia 24 de junho deste estranho 2020, o Brasil atravessava um dos momentos mais agudos da pandemia e os profissionais de imprensa, em sua maioria, estavam na linha de frente da cobertura para manter a população informada sobre a doença. Ainda assim, todos os convidados reservaram espaços em suas agendas para conversar de forma remota sobre o assunto que mais os mobiliza e apaixona: o jornalismo. Como a proposta do trabalho era exatamente colocar profissionais em atividade nas diversas áreas da comunicação para falar sobre suas respectivas experiências, procuramos manter os depoimentos na íntegra, inclusive com referências a fatos e situações do período em que foram coletados. Assim, o leitor que seguiu a ordem cronográfica e leu todos os textos até chegar a esta conclusão deve ter observado alguns comentários datados e percebido que um ou outro depoente talvez tenha mudado de posição nesta atividade em constante transformação que é o jornalismo profissional. Acreditamos que essas pequenas inconsistências dão mais autenticidade e legitimidade ao conteúdo destas verdadeiras lições de jornalismo ministradas por quem efetivamente o pratica com dedicação, ética, responsabilidade social e, principalmente, com muita paixão. Ao todo, estão compiladas neste livro 19 entrevistas, com quase cem mil palavras de amor ao jornalismo, entremeadas por informações e opiniões relevantes sobre produção e divulgação de notícias. Evidentemente, nem todos os vencedores do prêmio ARI participam desta edição comemorativa dos 85 anos da entidade. Foram con286

vidados para integrar esta primeira publicação representantes de diversas áreas da atividade jornalística que atuam na Capital e no interior do Estado, todos com trabalhos contemplados no concurso promovido anualmente pela Associação Riograndense de Imprensa e patrocinado pelo Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Outros profissionais premiados poderão fazer parte das próximas publicações da Estante ARI de Jornalismo que esse trabalho reinaugura. Para que conteúdos tão relevantes fossem reunidos e editados em pouco tempo e em meio ao isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19, a ARI mobilizou os integrantes de sua diretoria para atuarem como entrevistadores e para a redação final das entrevistas degravadas por estudantes de comunicação. A revisão final dos textos foi feita pelo jornalista Pedro Macedo, que, com sua longa experiência no meio, fez questão de acrescentar a cada entrevista comentários como este sobre o depoimento de Jonathas Costa: “Bela entrevista do guri. E traz um grande ensinamento: - Seja no interior, seja na capital, seja no exterior, fazer jornalismo é que vai salvar o jornalismo.” Basta ter lido as entrevistas dos profissionais selecionados pela ARI, ou acompanhar o trabalho ético e responsável que eles continuam realizando, para se concluir que o jornalismo está salvo – sejam quais forem as ameaças sobre ele. Esta verdadeira antologia de jornalismo contemporâneo comprova mais uma vez a afirmação do Prêmio Nobel Gabriel García Márquez de que se trata da “melhor profissão do mundo”. Jornalistas talentosas e talentosos é que a fazem ser assim. *Cronista, jornalista formado pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) da UFRGS, atuou como repórter e editor nos jornais Folha da Tarde, Jornal do Brasil, Revistas Veja e Nova Escola, e como Editor de Esportes e de Opinião em Zero Hora. 287


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COMO FAZER Juremir Machado da Silva

Larissa Roso

Cláudia Laitano

Santiago Neltair R. Abreu

Patrícia Comunello

Pedro Garcia

Guilherme Kolling

Michele Ferreira

Neusa Galli Fróes

Roberto Brenol Andrade

Jonathas Costa

Cid Martins

Oziris Marins

Luciane Kohlmann

Léo Nuñez

Milton Cougo

Ricardo Giusti

Marcelo Rech

ESTANTE ||| ARI Idealizado durante o isolamento da pandemia da Covid-19 este livro traz entrevistas com vencedores do Prêmio ARI de Jornalismo. A disseminação das plataformas de teleconferência possibilitou encontros virtuais e inspirou a Diretoria-executiva da ARI a realizar esta publicação dedicada a estudantes de jornalismo e novos profissionais para assinalar os 85 anos da associação que representa o jornalismo do Estado do Rio Grande do Sul.

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