Ceos
REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM PORTO ALEGRE – Nº 5 – JUNHO DE 2020
NA RAIZ DO PRECONCEITO 1
VERDADES NÃO ABSOLUTAS POR ÂNGELA RAVAZZOLO
Aquela frase que circula por aí livremente ou aquela expressão repetida sem pensar podem parecer inofensivas à primeira vista. Mas determinadas palavras podem machucar, reforçar estereótipos, excluir e gerar preconceito. Incomodada com este cenário, a turma de Produção e Edição de Reportagem II decidiu escrever sobre essas “falsas verdades” na edição número 5 da revista CEOS. Tudo isso começou a acontecer em fevereiro, até que veio a pandemia e o distanciamento social. Mas aquelas palavras continuavam incomodando e provocando reflexão. E assim, mesmo à distância, 18 repórteres saíram em busca de histórias para desconstruir preconceitos, estereótipos, injustiças. Foram semanas de apuração, discussão de pauta, encontros via Zoom, diagramação e revisão de páginas, comentados no mundo virtual. Em 28 anos de profissão, também fiz minha estreia em um fechamento totalmente on-line, a distância. Desafiador, mas o resultado me deixa orgulhosa e honrada por fazer parte deste projeto, que contou com o olhar talentoso do estudante Brayan Oliveira para desenho e ilustração das páginas. Convido você a percorrer as 40 páginas da revista e a também se orgulhar dessa turma com a leitura de reportagens que tratam de diversos temas, mas essencialmente de um objetivo fundamental: propor um mundo mais justo.
EXPEDIENTE A REVISTA CEOS É UMA PUBLICAÇÃO DOS ESTUDANTES DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM PORTO ALEGRE. COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO: PROFESSOR ALESSANDRO SOUZA E PROFESSOR LEANDRO OLEGÁRIO. ESPM PORTO ALEGRE – RUA GUILHERME SCHELL, 350 E 268 SANTO ANTÔNIO – PORTO ALEGRE – RS, 90640-040 – FONE: (51) 3218-1300.
REPORTAGEM: ANA LUÍSA RIBEIRO MARTINS; BÁRBARA BITENCOURT; BRUNA CALCANHOTTO GALVÃO; CARLA CARVALHO; JOSH BITENCOURT; EWILLYN LOPES; GABRIEL MITO; GUILHERME MAIA; JOÃO CAMMARDELLI; JÚLIA BARROS; LÉO BARTZ; LÍCIO SARAIVA; LUIS HENRIQUE CUNHA; PIETRO MEINHART; RAFAELA KNEVITZ; ROBERTA MONTIEL; VICTORIA THOMAZ E VITÓRIA NASCIMENTO. PROJETO GRÁFICO E ILUSTRAÇÕES: BRAYAN OLIVEIRA REVISÃO E FINALIZAÇÃO DO PROJETO GRÁFICO: PROFESSOR ANDERSON SOUZA COORDENAÇÃO EDITORIAL: PROFESSORA ÂNGELA RAVAZZOLO
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ÍNDICE 04 06
A ERA EM QUE O VALOR MAIS IMPORTANTE É O DA BALANÇA
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A GENTE QUER COMIDA, DIVERSÃO, ARTE E ORGASMO
CORPO SEM DONO
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RESOLVI CASAR: O QUE AS PESSOAS VÃO FALAR AGORA?
O MACHISMO NO ROCK
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FACES DA PROSTITUIÇÃO
DESMISTIFICANDO A DANÇA
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“NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM”
HOMENS EM MOVIMENTO
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TERAPIA A DISTÂNCIA
TOC X MANIA: NÃO SÃO A MESMA COISA
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TODO MUNDO ON-LINE, MENOS EU
ELAS TAMBÉM QUEREM JOGAR
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QUE TIME ELE TORCE
BANDIDO BOM NÃO É BANDIDO MORTO
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O PODER DO EXEMPLO
CHEIA DE DEDOS
SE EXISTE PARTO HUMANIZADO, O OUTRO É DESUMANIZADO?
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CHEIA DE DEDOS? A MASTURBAÇÃO AINDA É UM TABU PARA AS MULHERES POR VITÓRIA NASCIMENTO
M
asturbar. Manipular, estimular (os próprios órgãos genitais, ou os de alguém), para dar(-se) prazer, para alcançar ou fazer alcançar o orgasmo. Popularmente conhecida como siririca, a masturbação feminina, além de gerar prazer, traz muitos outros benefícios para quem a pratica. Ainda assim, até hoje é tratada com pudor pelas mulheres, por conta do tabu ao redor do assunto. Mas, se não tem compromisso marcado para mais tarde, aproveita para desenvolver esta forma de autoconhecimento e, ainda por cima, aliviar o estresse e a ansiedade. Para os homens, a sexualidade é estimulada desde muito cedo, então, se tocar geralmente não é um problema. Porém, o corpo feminino sofreu – e, infelizmente, ainda sofre – uma repressão cultural, social e religiosa. Explorar o corpo acabou se tornando um tabu para as mulheres, que se reprimem ao praticar ou ao falar sobre o ato. Hoje, o cenário é diferente, mas nem tanto. Dados de 2016 do Programa de Estudos em Sexualidade (Prosex) da Universidade de São Paulo mostram que 40% das brasileiras não se masturbam e 55,6% não conseguem chegar ao clímax. É triste, mas estes dados são influenciados diretamente por conta da falta de conhecimento das mulheres sobre o próprio corpo. A discussão sobre este desconhecimento se tornou mais ativa no início deste ano, depois que uma participante do Big Brother Brasil 20 revelou que havia usado um absorvente interno para evitar que fizesse xixi durante uma prova de resistência do reality. É aí que o problema se esconde. 4
Não saber sobre a anatomia feminina impacta nas relações sociais das mulheres, além, é claro, das relações íntimas. Sem se conhecer é muito mais difícil ter prazer sozinha ou acompanhada. Claudia Milan é fisioterapeuta pélvica e trabalha com problemas no assoalho pélvico – formado por planos musculares, incluindo os responsáveis pela função sexual. Além de auxiliar suas clientes, ela tem um Instagram onde compartilha dicas e esclarece dúvidas de suas mais de 20 mil seguidoras (@sosperineo). A vagina influencer acredita que se tocar é se conhecer e se conhecer é saber do que se gosta ou não. A ginecologista e sexóloga Sandra Scalco pensa que está tudo interligado: como as mulheres são cheias de pudores ao se tocar e conhecer o próprio corpo, elas acabam não chegando ao orgasmo, ou tendo dificuldades. Isto também faz com que a comunicação com o parceiro ou parceira sobre os gostos na cama não seja franca. “Existe uma ligação entre a pessoa se conhecer, se tocar e também obter resultado durante a relação a dois”, explica a médica. Mas, falar é fácil, não é mesmo?! Então, separe um momento para si mesma, pegue um espelho e vá à luta! Essa é a maneira que Sandra mais indica para conhecer seu corpo e saber das diferentes partes que compõem a vulva. Aliás, muitas nem sabem que, na verdade, a parte externa, que nós vemos no espelho, é chamada de vulva, e não de vagina. Dentro dos grandes e pequenos lábios, de cima para baixo, tem a parte externa do clitóris, que é a maior fonte de prazer feminina; a uretra
AUTOCONHECIMENTO É UMA PEÇA-CHAVE PARA A VIVÊNCIA DE UMA VIDA SEXUAL PLENA, E VIDA SEXUAL FAZ PARTE DA QUALIDADE DE VIDA” CLAUDIA MILAN
que é interligada com a bexiga e de onde sai o xixi; mais abaixo fica o canal vaginal - aí sim, a nossa vagina -, ligado ao útero, por onde desce a menstruação; depois dele fica o ânus. Autoconhecer-se é importante para a saúde íntima, mas a masturbação tem outros benefícios, como a melhora da produção de hormônios que trazem sensações positivas, a melhora da imunidade, do bem-estar e, associada ao orgasmo, acaba afetando a criatividade e a tomada de decisões. Isso é o que a empresária do ramo dos sex shops e criadora de conteúdos Luana Lumertz acredita. Além disso, as mulheres precisam tomar mais a frente na questão de ter orgasmo e sentir prazer, mesmo na relação a dois. “Jogamos muito o prazer para o parceiro, porque, como fomos tão reprimidas, a gente fica achando que só vamos chegar ao orgasmo quando o parceiro nos proporcionar isso”, diz ela. Porém, não é bem assim. Com seus oito anos de experiência e mais de 180 mil inscritos no seu canal do Youtube, Luana diz que é muito difícil o outro te proporcionar prazer se nem você mesmo sabe como fazer isso. Então, é preciso se responsabilizar mais pelos resultados. E não tem uma receita de bolo para o orgasmo. Enquanto para algumas pessoas isso é uma tarefa fácil, para outras, pode parecer impossível. Porém, a
Luana dá três dicas: usar lubrificante, tentar relaxar e estimular também a cabeça, voltando os pensamentos para momentos que te deem ou te lembrem prazer. “É importante que a pessoa não crie uma imagem ruim em torno da masturbação para este não ser um assunto ‘gatilho’ para sensações ruins. Trabalhar o autoconhecimento através do espelho, do toque etc, respeitando o próprio ritmo é o melhor caminho”, completa Claudia. E, ao contrário do que se pensa, os homens não têm maior facilidade para gozar que as mulheres. O clitóris tem oito mil terminações nervosas, o dobro do que possui o pênis, e o tempo de diferença em que os dois “chegam lá” varia em apenas alguns minutos – com eles sendo mais rápidos do que elas. Mas essa variação não tem muita relação com a capacidade de ter orgasmo. Segundo a sexóloga Sandra Scalco, o clitóris responde a um estímulo de prazer que vem
do cérebro, ou seja, o prazer está muito mais ligado à mente do que à vagina. “O que é erótico para o homem nem sempre é para a mulher. Precisamos acabar com a ideia de que a mulher é muito complexa, ela só tem seu próprio jeito de ficar erotizada”, conta. Mas, se você quer uma mãozinha para chegar ao clímax, existe muitos recursos no mercado. Aliados aos sex toys, os filmes e contos eróticos são os mais comuns de serem utilizados pelas mulheres. Porém, uma lembrança ou pensamento erótico às vezes são suficientes para chegar ao orgasmo. É preciso associar um momento erótico à masturbação. “Algo que já viveu, que imagina, uma experiência romântica ou erótica que já teve ou gostaria de ter”, comenta Sandra. O negócio é soltar a imaginação – e a mão – e aproveitar uma noite consigo mesma para descobrir o que todas queremos saber: como chegar lá. 5
A ERA EM QUE O VALOR MAIS IMPORTANTE É O DA BALANÇA ATITUDES GORDOFÓBICAS AINDA SÃO UM EMPECILHO PARA QUEM BUSCA SE SENTIR BEM COM O PRÓPRIO CORPO POR ANA LUÍSA RIBEIRO MARTINS
A obesidade é uma doença que tem recebido atenção dos médicos e especialistas. Já a gordofobia é um dos tantos tipos de preconceitos enraizados na sociedade. Essa situação vai ao encontro de duas histórias: a de Kerstin Schwalbe, 30 anos, e Carolina Sellmer, 21 anos. Ambas mulheres já sofreram com comentários e situações relacionados a gordofobia durante sua vida. Usar o termo “gordo” ou “gorda” é uma maneira coloquial para se referir a pessoas com excesso de peso. Tecnicamente, o termo correto é sobrepeso ou obeso(a). Carolina Guerini, professora do Departamento de Nutrição da UFRGS e do Serviço de Nutrição e Dietética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, explica que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que caracteriza o sobrepeso é o Índice de Massa Corporal (IMC), tendo três graus de classificação.
“SEU ROSTO É TÃO BONITO, POR QUE NÃO EMAGRECE UM POUCO?” Segundo Carolina Sellmer, A frase acima já foi escutada diversas vezes na sua vida. Fotógrafa, estudante de publicidade e propaganda e modelo plus size, a jovem possui mais de 8 mil seguidores no seu perfil no Instagram, 6
onde fala muito sobre o preconceito. O sobrepeso é uma realidade que faz parte da vida de Carolina. “Eu sempre fui gordinha. Acho que a minha fase mais gorda foi em 2017, que eu estava pesando 105kg e estava demais para a minha autoestima”. A modelo conta que, durante a sua infância, sempre teve muitos amigos homens que a defendiam e a ajudavam a manter sua autoestima. “Nunca fui oprimida ou deixei de fazer algo por ser gorda”, afirma Carolina. Apesar disso, já ocorreram casos como a professora de sua escola se referir a ela por conta do seu peso. Por conta de um programa de reeducação alimentar da Secretaria da Saúde, dados sobre a estatura e o peso dos alunos foram recolhidos. Eles compilaram os números e ofereceram um programa de reabilitação para esses alunos. “Tive que ir de tarde, outro dia, na escola. Lembro de ir muito triste, porque nenhum dos meus amigos estavam, meninas ou meninos. Foi muito constrangedor ela ter me chamado na frente de todo mundo, porque eu sempre escondi meu peso, apesar de saberem que eu era grande. Nossa, que vergonha”, afirma a modelo. Ela conta que hoje, mais madura, entende que seria para mudar a sua saúde e sua vida. Mas que, na época, para uma criança, a exposição foi demais.
Ao contrário do relato de muitas amigas e seguidores nas redes sociais, Carolina nunca sofreu repressão por parte de sua família. “Sempre foi visto como normal, porque todo mundo é grande na minha família. Então, esse tipo de coisa não veio deles”. No entanto, cresceu achando que chamava atenção pelo peso, não por outras qualidades que tenha e, por isso, é bem posicionada e contesta os comportamentos negativos que vivenciou. “Eu sempre busquei respostas para isso, pela forma que me tratavam. Por que tu tá’ falando que eu tô’ gorda?
Por que tu tá’ me olhando? Fui firme nessas decisões, porque queria entender por qual razão estava sendo julgada. O que tem de tão errado em estar assim como eu estou?”.
“SÓ FECHAR A BOCA QUE EMAGRECE” Esta é a frase que muitas pessoas com sobrepeso escutam. É o caso de Kerstin Schwalbe, coordenadora de uma Clínica Veterinária, 30 anos. Ela foi alvo do preconceito dos seus 16 aos 24 anos, período em que atingiu seu maior peso, 150kg. Ela contou sobre um episódio de grande preconceito que enfrentou, foi quando ficou presa na catraca do ônibus. “Ele me chamou de porca gorda e mandou ficar na frente, porque não ia conseguir passar a roleta”, afirmou. Kerstin é mãe de um casal: Eduardo, de 5 anos, e Ana Clara, com 1 ano. Na sua primeira gestação, foi quando chegou mais perto do seu maior peso, o que, mais para frente, pode causar complicações de saúde para o bebê. Quando Eduardo tinha 3 meses de idade, teve complicações de saúde. Ao serem investigadas, descobriu-se que, durante o nono mês de gestãoção, ocorreu uma má formação cerebral. Isso causou um desenvolvimento mais lento de seus primeiros passos e palavras. Hoje, a criança possui uma vida sem complicações. Com 24 anos, Kerstin fez cirurgia bariátrica. Durante o período em que seu primeiro filho estava doente, ela desenvolveu uma compulsão alimentar e atingiu seus 150kg. “Para ter uma noção, eu comia dois xis. Ou então, dois xis e um cachorro quente”, contou. A decisão de fazer uma cirurgia bariátrica foi por dois motivos. “Eu tinha obesidade mórbida grau 3. Tive uma ameaça de infarto com 23 anos e tive vários outros problemas. E, é claro, o segundo
motivo é por estética”. A recuperação da cirurgia não foi fácil. Kerstin contou que teve depressão e complicações. “Fiquei uns dois meses sem andar. Perdi peso muito rápido e isso não é saudável”. Hoje, os cuidados são com vitaminas e suplementos, sem compulsão alimentar. A autoestima da paciente aumentou muito. O nascimento da segunda filha, Ana Clara, não teve complicações durante o início da gestação. Tiveram algumas consequências por Kerstin ter pedras nos rins, que geraram contrações e o nascimento quase foi adiantado. Antes de dar à luz, Ana Clara demorou para conseguir peso por conta da cirurgia. O que ela comia era suficiente para si, mas não para a criança. ”Mas com acompanhamento da equipe que me operou e uma nutricionista, deu tudo certo”, afirmou a mãe.
“HOJE, POSSO DIZER QUE ME AMO. ME SINTO BONITA E FELIZ”. KERSTIN
AS CONSEQUÊNCIAS O preconceito é, de acordo com a professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Lisiane Bizarro, “um atitude aversiva ou hostil em relação a uma pessoa que pertence a um grupo, simplesmente porque ela pertence a esse grupo e, portanto, presume-se que tenha as qualidades questionáveis atribuídas ao grupo”. Segundo a professora, o
preconceito pode afetar psicologicamente o relacionamento com as outras pessoas. “Como somos uma espécie social, é muito importante para nosso bem-estar”. Fisiologicamente falando, os efeitos do sobrepeso podem causar alto risco de diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares (como infarto, AVC), doenças neurológicas com prejuízo cognitivo, arteriais, apneias de sono e até mesmo alguns tipos cancerígenos, como mama, estômago, tireoide, esôfago e bexiga. “Em termos neurológicos, favorece transtornos alimentares (anorexia, bulimia, compulsão), depressão e isolamento social, geralmente pelo forte e crítico julgamento social em relação ao peso e ao corpo das pessoas em geral”, afirma a professora e nutricionista Carolina Guerini de Souza. O preconceito destinado à pessoa com obesidade tem tendência a “ter elevados custos na tentativa de ajustamento do seu corpo ao padrão considerado ideal, sobretudo para a mulher”, afirma Lisiane. “A maneira como a sociedade lida com o peso, o corpo e a imagem corporal atualmente é de muita exigência para atender um padrão de beleza. Estes padrões tradicionalmente acompanham as diferentes fases da evolução da humanidade, porém a idade contemporânea trouxe o advento de se atribuir valor ao ser humano pelo corpo/peso/imagem que ele tem”, reiterou a professora da UFGRS. Pesquisa promovida pela marca Skol revelou que, no tópico de frases preconceituosas mais faladas, a que diz “Ele(a) é bonito, mas é gordinho(a)” refere que 25% dos entrevistados já a utilizou, pelo menos, uma vez. A nutricionista destaca que esse paradigma tem sido cada dia mais tratado e, assim, deve permanecer: “Cada ser é bem mais do que o seu corpo e cada corpo tem beleza e valor, exatamente como é”, diz ela. 7
SE EXISTE PARTO HUMANIZADO, O OUTRO É DESUMANIZADO? O EMPODERAMENTO DA MULHER EM UM DOS MOMENTOS MAIS IMPORTANTES DE SUA VIDA POR CARLA CARVALHO
O
parto humanizado traz muita polêmica dentro do meio médico: se existe parto humanizado, o outro é desumanizado? Quais são as diferenças? A médica obstetra Caroline Chiarelli, atuante nas cidades de Muçum, Encantado e Guaporé (Rio Grande do Sul) é integrante da equipe Maternalle e da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, que consiste em um grupo de médicas ginecologistas e obstetras do Brasil todo que luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ela explica que, na verdade, o conceito de humanização não existe para anular outro. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, “humanizar o parto é um conjunto de condutas e procedimentos que promovem o parto e o nascimento saudáveis, pois respeita o processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e o bebê”. Em 2018, a OMS emitiu uma série de novas recomendações para estabelecer padrões globais de cuidado para mulheres grávidas e saudáveis, diminuindo assim intervenções médicas desnecessárias. O conceito de parto humanizado possui três grandes pilares: o protagonismo da mulher, atendimento baseado em evidências científicas e uma equipe multidisciplinar. Caroline explica que há uma antiga construção social de que o corpo da mulher não é 8
suficientemente preparado, que o parto é muito doloroso e difícil. Fazer as mães resgatarem esse poder é, segundo a médica, uma tarefa de quem está informando e orientando a mulher sobre os procedimentos. “Devolver o parto para a mulher. Ela é dona do seu parto, ela vai fazer escolhas informadas com apoio de toda equipe que tiver assistindo do puerpério até o parto.[...] Tomar para si novamente a própria natureza feminina que está relacionada ao parto normal”. A mãe Mariângela Barichello Baratto, 27 anos, soube desde sempre que gostaria de ser mãe e queria parto normal. Ela conta que, ao descobrir sua primeira gravidez, em 2018, pesquisou sobre o parto e o protagonismo da mulher durante o processo. Ela vem de uma família de mulheres que pariram naturalmente e, conforme se aproximava do assunto, percebeu que atualmente as coisas não aconteciam dentro da normalidade que conhecia. Mariângela, que é também atual gestante de 5 meses, conta que ficou com medo de sofrer violência obstétrica e de sua opinião não ser respeitada na hora de parir seu próprio filho. “Conforme fui me aprofundando sobre o assunto, fui me empoderando e sentindo segura, mas ao mesmo tempo tive receio da minha opinião não ser respeitada na hora do parto. E foi ali que aprendi
sobre alguns instrumentos: plano de parto, presença da doula e várias coisas que contribuem para que a voz da mulher seja ouvida em trabalho de parto”. O segundo pilar do parto humanizado, a cientificidade, consiste em tudo que é proposto e defendido pela maneira de conduzir um parto, desde um pré-natal até o dia do nascimento, ser sempre baseado em evidências científicas atualizadas. “É um dever do profissional da saúde explicar para a mulher por que a gente está tomando aquela ou outra decisão. É uma decisão com corresponsabilidade da mulher”. Por experiência própria em fazer cesáreas desnecessárias, a médica, que se formou obstetra por se interessar desde criança por partos, afirma que durante o pré-natal há diálogo com a mãe sobre todos os procedimentos que possam ser necessários ao longo do processo, incluindo intervenções. “A maioria das mulheres precisam simplesmente que sejam deixadas em paz e que se respeite o tempo que elas necessitam para passar pelas etapas do parto”. As intervenções são sempre oferecidas e explicadas conforme a necessidade para que o parto possa ocorrer de forma fluida. Isso pode ser uma simples sugestão de mudança de posição, realização de exercícios spinning babies (método que propõe uma sequência de movimentos durante a gestação e trabalho
de parto para o bebê encaixar corretamente na pelve) ou de uma intervenção maior, como a cesariana. “Ela precisa saber por que e tem todo o direito de questionar a necessidade”. Por isso, o terceiro pilar também é imprescindível. Caroline explica que não existe um modelo que se sustente só com o médico. Sua equipe é formada por enfermeiras obstetras, pediatras, anestesistas, fisioterapêutas, doulas (mulheres que oferecem assistência física e psicológica para outras mulheres durante gestação e parto), psicólogas, e vários profissionais que alinham com a proposta da humanização. Segundo a doutora, não há como garantir um parto humanizado se algum desses outros profissionais não apoiar a escolha da mulher. “A gente tenta fazer um grupo de profissionais que apoiam também as escolhas da mulher, que trabalhem sob o olhar de evidências científicas em harmonia com todas as áreas envolvidas no processo”.
dois filhos, define doula como uma mulher que apoia outras mulheres, de forma informativa, física e emocional durante a gestação, parto e pós-parto. Ela trabalha com embasamento científico sobre fisiologia da gestação, parto, pós-parto, amamentação, fases do trabalho de parto, o que a gestante pode esperar e qual a sua rede de apoio. Em média, as doulas são procuradas entre 25 e 30 semanas de gestação. O atendimento, agora online por conta da pandemia (inclusive durante o parto), consiste em conhecer a família e manter contato até o trabalho de parto. A doula oferece auxílios desde massagens, apoio emocional, incentivo, até alimentação etc. “Entra no critério de cada Doula. Tem Doulas que são homeopatas, tem doula que conhece técnicas de massagem… Isso são cursos que a gente vai aperfeiçoando depois”. Durante o nascimento do primeiro filho, Juliane passou por procedimentos que não conhecia, inclusive uma cesariana não desejada. Estudos e pesquisas A IMPORTÂNCIA DA DOULA sobre o assunto a levaram até
sua formação de doula. Ela passou por um processo de ressignificação do parto do primeiro filho, onde houve um aprendizado sobre sua ancestralidade e uma nova visão sobre o nascimento. Juliane conta que o processo de se tornar doula foi revigorante. “Quando a gente vê uma outra mulher sendo informada e se empoderando nesse momento, que é um dos mais incríveis da vida dela, nos dá uma força fora do comum”. No dia do trabalho de parto de Mariângela, a doula Juliane a acompanhou enquanto o marido fazia o trabalho burocrático do hospital. Como teve Juliane do seu lado, conta que teve suporte e não ficou sozinha nesse tempo graças a ela. Mariângela afirma que “às vezes o médico não é tão próximo ou ele não tem tanto tempo disponível.” Em diferentes situações, conta que se “sentia muito mais segura de falar com minha doula do que com o meu obstetra. [...] Segurança, humor, cuidado, carinho, empatia: tudo isso minha doula me passou”, afirma a gestante.
NO TERCEIRO PILAR Para Mariângela, a doula foi uma profissional que mudou sua experiência como mãe. “Desde que comecei a ter acompanhamento com a doula, tive mais segurança das minhas escolhas e mais segurança nos meus argumentos para pessoas que me julgavam por escolher parto normal, por escolher esperar o bebê nascer no tempo dele.” Na hora do parto, a presença da Doula é muito importante. A mãe conta que foi decisiva: “Passou muita segurança, muito apoio e até técnicas minimizadoras (de desconforto)”. Mariângela conta que sua doula, Juliane Peruzzo, deu suporte à distância também. Ela sofreu muita pressão para fazer cesárea, e a doula manteve um papel de força psicológica. A Juliane, 35 anos e mãe de 9
A GENTE QUER COMIDA, DIVERSÃO, ARTE E ORGASMO COMO MULHERES QUE FALAM SOBRE SEXUALIDADE E AUTOESTIMA NA INTERNET ESTÃO CONQUISTANDO UM ESPAÇO IMPORTANTE NO UNIVERSO FEMININO POR BÁRBARA BITENCOURT
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e conteúdo o Instagram está cheio. Vivemos em um mundo digital com informações diversificadas, resumidas por pessoas intituladas influenciadores digitais. Somos bombardeados por elas todos os dias. Mas, entre elas, existem algumas mulheres que criaram um modelo de conteúdo específico com um objetivo: ensinar outras mulheres a conhecerem o seu próprio corpo. E sobre autoconhecimento, a Gisele Faresin, CEO da página O Prazer É Todo Meu, é especialista. Com mais de 200 mil seguidores, a página é comandada por ela e Marcela Gowan, médica especializada em ginecologia e ex-BBB. Juntas apresentam conceitos médicos, desmistificam tabus e ensinam como mulheres podem se sentir satisfeitas dentro dos seus próprios corpos para obter a liberdade sexual e chegar de fato ao orgasmo - termos que usam com frequência. Mas por que agora? Há exatos 22 anos, uma australiana especializada em urologia, chamada Hellen O’Conell, fazia uma revelação e apresentava ao mundo, pela primeira vez, todos os elementos da anatomia completa do clitóris. Antes disso, algumas informações para as mulheres eram desconhecidas. Uma delas é a quantidade de terminações nervosas que essa pequena parte do corpo feminino pode oferecer. “O nosso conteúdo 10
se torna importante a partir do momento que precisamos dizer que a nossa principal ferramenta de prazer possui oito mil terminações nervosas”, Gisele relata. A partir desses conhecimentos, Gisele e Marcela construíram um e-book e transformaram esses conteúdos da página em um curso, para que dessa maneira outras mulheres pudessem se aprofundar em assuntos de sexualidade e autoconhecimento. “Desde então, entendi qual era o meu lugar no mundo: queria fazer outras mulheres se conhecerem também, aquilo que eu não tive. Por exemplo, saber que apenas 18% das mulheres sentem prazer com a penetração e que tá tudo bem”, afirma.
De acordo com uma pesquisa realizada com o público das mulheres que participaram do curso: O Prazer É todo meu entre 2019-2020, 100% delas afirmaram não estarem satisfeitas com o próprio corpo. Após acrescentar essa informação, Gisele desabafa: “Mas esse número não é impressionante se a gente levar em consideração o mundo que vivemos, onde somos bombardeados de informações de uma indústria que nos diz que a gente tem que trocar de roupa e que precisamos usar cremes infinitos no rosto. Tudo isso faz você se sentir insegura.” Camila, Ana e Nayane são seguidoras assíduas da página. Dos 19 aos 36 anos, buscaram no Instagram uma maneira de entender o seu corpo, se sentir acolhida com questões pessoais e repassar esse tipo de conteúdo. “É uma ótima fonte de autoconhecimento, de empoderamento e ainda trata da saúde íntima da mulher. Acredito que muitas mulheres não frequentam ginecologista e muitas (eu era uma delas) não têm costume de estudar a sexualidade feminina”, afirma Camila, vestibulanda e carioca, que aos 19 anos iniciou o seu processo de “desconstrução pessoal”, termo usado dentro do movimento feminista que significa autoconhecimento e libertação das amarras de padrões impostos pelas grandes indústrias.
Para Ana Julia Hermes, gaúcha e estudante de psicologia, a falta de conhecimento do próprio corpo é algo que ocorre desde o início: “Desde a infância, os meninos são ensinados a idolatrar seu órgão sexual. Enquanto isso, a menina é ensinada a se preservar, esconder sua intimidade e medir suas palavras e atitudes. Isso afeta a autoestima e a saúde mental da mulher e, como futura psicóloga, acho fundamental me inteirar sobre o mundo sexual feminino para além da minha experiência, já que essa temática é tão pouco explorada, mas se bem discutida pode transformar vidas!” Já Nayane foi um pouco mais longe. Formada em psicologia em Uberaba, aos 36 anos decidiu participar do curso ministrado por Marcela. O curso inspirou Nayane a unir sua profissão e sua vontade de oferecer um conteúdo acessível para suas pacientes. Por isso, criou um instagram e desde então compartilha posts com o intuito de desmistificar questões que parecem problemáticas: “Quero repassar o que aprendi com ‘O Prazer É Todo Meu’ e usar esse conhecimento para disseminar cada vez mais boas informações”, Nayane relata.
MESMO OBJETIVO, OUTROS PROJETOS Para Ana Ornelas, o processo para o reconhecimento do seu corpo foi potencializado pelo sentimento de culpa. “Ao me masturbar, pedia desculpa pra Deus e pensava na minha impureza enquanto mulher. Quando consegui contar para uma amiga, foi um alívio e uma certeza de que eu precisava mudar esse cenário”, afirmou durante a entrevista. Formada em Cinema pela USP, foi quando entendeu o quão masculino, e consequentemente machista, era o mercado de trabalho, e o pouco espaço que tinha para falar sobre causas que a importavam. Dessa maneira,
criou um blog e um canal no youtube chamados “Pimenta Cítrica” e hoje conta com um instagram pessoal, no qual posta justamente para ganhar reconhecimento no seu trabalho como escritora de contos eróticos e produtora de conteúdo para o instagram @ ImClitoris.
Morando há quatro anos em Berlim por escolha própria, alega que as culturas são extremamente diferentes e as lutas por direito também. “Aqui em Berlim, me sinto muito mais livre para falar, me expressar, me expor. Diferente do Brasil, que existem outros problemas sociais e que envolvem pautas de outros tipos de feminismo, do qual não conseguiria falar e atrelar diretamente com sexualidade do jeito que eu posso”, relata. Já Amanda Titoneli, formada em direito, carioca e fundadora da página @Eulittera, entendeu que precisava falar sobre essa pauta quando percebeu que na sua gama literária não identificava muitas escritoras mulheres, e que a página foi uma maneira de incentivar outras pessoas também por meio da internet. Para ela, a importância de canais que discutam assuntos relacionados ao feminismo é indiscutível, já que atualmente é onde as meninas entram em contato com o assunto. “A forma como a informação se propaga hoje em dia chega a mais pessoas e faz com que mais pessoas tenham acesso
e realmente pensem sobre o assunto. Isso não é algo que se aprende na escola”, afirma Amanda. Ao perguntar sobre o feedback de outras mulheres, Ana se manteve em silêncio por um momento e alegou que o vídeo que mais recebe comentários até hoje é sobre HPV. Quando teve que realizar um tratamento há 2 anos, no seu canal do Youtube e blog, escreveu muito sobre isso, o que surtiu um efeito positivo para outras pessoas que se sentiam e ainda se sentem julgadas: “É interessante porque hoje trabalho com diferentes coisas, escrevo contos, tenho dois projetos em andamento sobre sexualidade aqui no instagram, e as pessoas voltam àquele vídeo. Isso é legal, sinal de que meu trabalho importa e afeta aquelas que já se sentiram perdidas também”, relata. A importância de conteúdos de mulheres para mulheres torna-se perceptível a cada momento que uma se identifica com a outra e ambas podem entender os seus corpos, acontecimentos, e seus lugares de fala também. Amanda acredita que o movimento feminista, além de ser uma rede de apoio, é uma construção diária.
EU ENTENDO O FEMINISMO COMO UM PROCESSO E QUE ESTÁ O TEMPO TODO EM CONSTRUÇÃO, HOJE EU SOU MUITO MAIS FEMINISTA QUE ONTEM, MAS TALVEZ MENOS DO QUE AMANHÔ AMANDA 11
CORPO SEM DONO O PATRIARCADO COMO DITADOR DA SEXUALIDADE FEMININA POR RAFAELA KNEVITZ
A
história de que o homem que fica com várias mulheres é considerado “pegador”, mas a mulher que tem as mesmas atitudes é chamada de “puta” pode ser velha, mas ainda não foi superada. Vários aspectos na vida do homem e da mulher mudaram ao longo dos anos, mas a mulher solteira que se relaciona com mais de uma pessoa ainda é julgada por promiscuidade e safadeza. E por mais evoluída que a sociedade possa parecer, as raízes patriarcais da história brasileira continuam reprimindo a liberdade sexual da mulher. Puta, vagabunda, facinha, xingamentos ofensivos ouvidos frequentemente por milhares de mulheres. Tais julgamentos reprimem a decisão da mulher de se relacionar com quem bem entender. A partir disso, é percebido que os comportamentos vistos com bons olhos diante da sociedade não são os mesmos para homens e mulheres. Essa diferenciação entre os julgamentos recebidos por ambos podem ser facilmente visualizadas a partir das relações sexuais. A mulher que se relaciona com mais de uma pessoa em determinadas ocasiões é taxada de ‘puta’ e classificada entre ‘pra casar e pra transar’. Já o homem, ao contar suas relações, é reconhecido como ‘pegador’, utilizando mulheres como um troféu a ser exibido. “Uma vez fui em uma festa com meu primo, lá eu fiquei com dois caras e ele com três gurias. Depois disso, no churrasco da família, nós estávamos contando sobre a festa e surgiu o assunto sobre quantas pessoas beijamos. Falaram que assim ninguém iria querer nada 12
sério comigo no futuro e não seria respeitada. E para o meu primo a resposta foi bem simples ‘homem é homem, tem que pegar mulher mesmo’”, contou a estudante Michele Gomes, de 19 anos, por meio de interação no instagram. A antropóloga Anahi Guedes de Melo, também pesquisadora no campo dos estudos de gênero em Florianópolis, explica que homens e mulheres desde cedo são socializados dentro de uma cultura patriarcal heterossexista que os ensinou que meninas e mulheres são sua propriedade e, portanto, devem se submeter à vontade masculina. Isso inclui submeter o sexo heterossexual aos caprichos masculinos, o que, por extensão, implica impedir a liberdade sexual da mulher. Comportamentos como esse são provenientes de uma cultura patriarcal machista e sexista. Este sistema de relações sociais está presente na sociedade de formas
variadas e se expressa em contextos distintos. Este conceito surgiu inicialmente para designar um regime de organização familiar, onde o pai, como chefe, tinha poder absoluto sobre os membros da família. Atualmente, falar sobre patriarcado exige reconhecer que não é um conceito unânime. A coordenadora pedagógica da Emancipa Mulher, escola de emancipação feminista e resistência antirracista de Porto Alegre, Joanna Burigo, mestre em Gênero Mídia e Cultura pela London School of Economics, explica que o conceito se baseia em um sistema de dominação que se faz presente nas diferentes instituições sociais, desde a família ao Estado, presente em todos os aspectos da sociedade. A sexualidade é um dos muitos lugares onde podemos perceber a diferença de tratamento entre homem e mulher. A antropóloga Anahi comenta que, em nossa sociedade, ainda há quem culturalmente defenda que as mulheres não têm o direito de fazer o que quiserem com seu corpo, um deles é ter e gostar de fazer sexo com quantos homens quiser, da maneira como quiser e com quem bem entender, incluindo o sexo com outra mulher. Segundo a Secretária da Comissão Nacional Especializada em Sexologia da Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e especialista em Sexualidade Humana Sandra Scalco, ainda enfrentamos barreiras no exercício da sexualidade feminina, de uma forma mais plena e com qualidade, em parte por questões conservadoras e ou machistas. Tal repressão pode
afetar o exercício de sua sexualidade e comportamento diante de suas relações afetivas. Ao ser questionada sobre a diferenciação em como homens e mulheres são vistos diante de suas relações, Sandra afirma que tais julgamentos são aprendidos e naturalizados sem a devida criticidade. Em contrapartida, diz que quanto maior for a educação
sexual e compreensão dos direitos sexuais, menos ocorrerá essa desigualdade imposta, com a argumentação vazia e equivocada da dita “natureza do homem”. No quadro abaixo, relatos compartilhados com a repórter a partir de perguntas no instagram:
Kerolaine, 20 anos No terceiro ano do ensino médio teve uma festa de turma, recém tinha terminado um relacionamento e acabei indo. Por estar mal, bebi um pouco a mais que o normal e fiquei com várias pessoas. Eu beijei porque quis, mas depois da festa, quando fui pra aula, muitas meninas que não gostavam de mim espalharam que eu era uma puta e que tinha “passado o rodo”.
Jovem de 20 anos (nome em sigilo) Ainda no ensino médio eu via muito estereótipos nas meninas, principalmente no terceiro ano, quando algumas começavam a namorar (inclusive eu), que faziam comentários como “mas ela é facinha”. Um menino me contou no cursinho pré vestibular, depois de ficarmos próximos, que ele sabia quem eu era porque os amigos dele me conheciam por eu ter ficado com vários meninos. Como se isso fosse uma coisa ruim…
Nathana, 21 anos Fui passar a tarde com meu namorado e ele estava com três amigos junto. Nos cumprimentamos e ficamos conversando. Até que um deles recebeu uma mensagem no privado e disse para os amigos darem uma olhada. Começaram a rir e falar baixo. Perguntei pro meu namorado o que estava acontecendo e ele disse que todos estavam ficando com a mesma menina. Eles ficaram ofendendo ela na minha frente. Então perguntei porque ela estava sendo ridicularizada sendo que eles três estavam se relacionando com ela porque queriam. Resumindo: isso foi exposto pra escola deles e ela ficou super mal falada.
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RESOLVI CASAR, O QUE AS PESSOAS VÃO FALAR AGORA? POR VICTORIA THOMAZ
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ão há idade certa para casar. Sim, muitas vezes as opiniões podem ser cruéis e machucar as pessoas. Críticas e preconceitos disfarçados de conselho são o principal relato de jovens, por volta dos 20 anos que resolvem casar. Insegurança, receio e ansiedade por conta das suas escolhas são as principais consequências que o preconceito gera, segundo nossos entrevistados. Essa reportagem conta essa história de quatro casais com um ponto em comum, eles decidiram casar antes dos trinta anos e sofreram preconceito por esse motivo. Créditos: Arquivo pessoal / Carolina Sellmer Scortegagna; Frederico Mombach; Saul Produções & Antenor; Asaph Ximenes
Deize e Eduardo Abrantes
Nadyne Andrade e Pablo Lopes
Helen e Douglas Carrassai
Vitória e Luan Timm
Decidir casar com 20 anos há 50 anos, na época dos avós de alguns dos entrevistados, tudo bem. Decidir casar hoje com 20 anos é quase um ato de coragem. Há décadas o preconceito era com as pessoas que esperavam mais para se casar. Atualmente, os jovens adultos sofrem ao escolher se casar antes do 25 anos. Namoros longos e relações maduras muitas vezes geram uma decisão: casamento! Construir uma família juntos, ter a própria vida, a própria casa, se conhecer mais e viver como casal. Como Deize Abrantes que casou há dois anos e sete meses. Contou que ela e o esposo decidiram casar aos 20 e 23 anos para “começar a construir uma família, começar a nossa própria história e porque já tinha acontecido o tempo de ‘conhecimento’ (após cinco anos de namoro) e estávamos preparados para o próximo passo”. Nadyne e Pablo, que casaram em 2019, depois de cinco anos de namoro, afirmam: “Esses anos que namoramos, nunca foram suficientes 14
para nos conhecermos como agora, no casamento”. “Quem sabe não casa? espera ter certeza”, “tu tem que aproveitar, tu é muito nova pra isso”, “tem muito que viver ainda”, “é muito cedo para casar, vai se arrepender” e “você está grávida?”, essas são algumas das frases que nossos entrevistados ouviram ao resolver partilhar a escolha do casamento. Casar em meio aos estudos também gera ainda mais estranhamento. Deize decidiu pelo compromisso enquanto fazia faculdade de publicidade e propaganda e relatou que ouviu de muitos professores e colegas que eram muito novos. Alguns acharam loucura, mas ela sempre estabeleceu um diálogo para reforçar sua escolha e o porquê dela. Nadyne e Pablo casaram-se há um ano, ela com 23 anos e ele com 32 anos. No caso deles, havia um “segundo preconceito”: ele escutou muitas vezes frases do tipo “Olha só, 32 anos, já tava na hora”. Helen e Douglas Carrassai,
MAS O QUE, AFINAL , É CASAR? Tantas definições para chegar a uma única resposta: cada história carrega um significado mas todas são uma decisão, que é pessoal. “É a união de duas pessoas diferentes que se amam e que estão dispostas a conviver, fazer sacrifícios e se esforçar constantemente para crescer juntos, buscando a felicidade mútua.” Vitória e Luan “Casar é uma escolha! É prezar por felicidade conjunta.” Nadyne e Pablo. “É quando qualquer tempo longe se torna uma eternidade e você quer acordar todos os dias do lado daquela pessoa.” Helen e Douglas “Querer, estar e permanecer em cada minuto do dia. Aquilo que o amor é, o casamento também é.” Deize e Eduardo
SE PRECISASSE DECIDIR NOVAMENTE, NÃO MUDARIA NADA. AS OPINIÃO SÓ MACHUCARAM.” que se casaram com 17 e 21 anos, relataram que sofrem preconceito até hoje quando falam a idade com que casaram. Na maioria das vezes, escutam questionamentos como: “Mas você não viveu nada?”, “Sem graça”, “Não aproveitou” ou até comparações como “Viu, não casa, vai ser mais difícil fazer as coisas”. Vitória casou com 22 anos e relatou: “Com o Luan, que é homem, aconteceu muito mais. Muitos outros homens falando pra não fazer essa besteira, dizendo que ele ia perder a liberdade dele. Reforçando um estigma de que casamento é algo ruim. Mas amar é ser livre, se há amor em
um casamento há liberdade.” A frase acima se repetiu nas entrevistas. Viver o casamento é também ter uma experiência e uma escolha com consequências particulares conforme as pessoas envolvidas nele. Para Helen, “casamento não é um sofrimento, é parceria, cumplicidade, admiração, respeito, amor. Por isso, já estamos casados há mais de 12 anos e parece que foi ontem que casamos”. O conhecimento, o amadurecimento e a decisão são os passos que os casais têm até decidir oficializar a união, ou não. Deize também acredita que o casamento é resultado de uma construção conjunta. Ela afirma: “Não acredito que tenha ideia para casar, existe tempo de amadurecimento e, se as pessoas se sentem preparadas, daí já é a hora”. O relacionamento, independente de qual seja seu formato, idade, local, gênero, compete somente às pessoas que estão nele, que conseguem compreender em sua totalidade.
MAS, O QUE, AFINAL, É APROVEITAR A VIDA? O aproveitar a vida tem um significado diferente conforme crença, vivências e experiências particulares da cada pessoa. Não há regras, não há pessoas ou formas certas, há escolhas. “Eu também escolhi aproveitar a vida, mas com o pablo. Eu poderia aproveitar minha vida de qualquer outra forma mas fiz uma decisão de aproveitar com ele. Ele me completa, e essa decisão faz sentido pra mim.” Nadyne “Tive a sorte grande de encontrar cedo o que é melhor pra mim sem precisar me machucar muito, porque muitas vezes é isso que as inúmeras experiências geram, infelizmente! Aproveitar a vida é algo muito particular pra cada pessoa e eu aproveito muito com meu marido.” Vitória “Para nós aproveitar a vida é estar com quem te ama, com quem você gosta de estar independentemente do que está acontecendo, seja em uma festa, seja em um momento difícil, em um passeio... Aproveitar a vida é estar com quem realmente vale a pena em todos os momentos.” Helen “Aproveitar a vida é estar com quem se ama, seja família, amigos ou o marido. Eu não deixei de sair com meus amigos, eu não deixei de ir a festas, fazer encontros à noite, jantares e tudo mais porque casei, eu só tenho uma pessoa que me acompanha e divide todos os momentos comigo, sendo apoio diversão e felicidade. O casamento nos trouxe esse lar que não excluiu os amigos, mas sim aproximou de muitos outros modos.” Deize.
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O MACHISMO NO ROCK E O BORDÃO “ELA É UMA MOCINHA” A REDUÇÃO DA MULHER AO FETICHE, GROUPIE OU A UMA SEX SYMBOL PERSISTE NO ROCK N’ ROLL, ESPAÇO NO QUAL SE ESPERARIA TER MAIS LIBERDADE POR BRUNA CALCANHOTTO GALVÃO
O Rock N’ Roll costuma ser entendido como um ato de liberdade, uma maneira de expor sem medo de julgamentos os sentimentos relacionados a qualquer coisa que exista. Mas e quando se é mulher? O que os homens fazem no palco e fora dele também é visto com os mesmos olhos em relação às mulheres? Ou ainda há machismo? Três mulheres da cena Rock atual contam suas experiências. Letras de músicas famosas como a da banda Guns N’ Roses, Used to love her, já sinalizam: “Eu costumava amá-la, mas tive que matá-la”. Ou a música Run for your life, dos queridinhos do rock, os Beatles, que coloca: “ É melhor você correr pela sua vida se puder, esconda sua cabeça na areia, garotinha, te pegar com outro homem, é o fim, garotinha”. Letras que refletem o estereótipo feminino ofensivo e a objetificação da mulher na música. Ao longo do tempo, as mulheres acabaram sendo mais conhecidas como groupies e reduzidas a sex symbols mesmo no ambiente do rock. Ao perguntar para alguém quantas artistas femininas esta pessoa conhece, quase sempre elas são minoria, dificilmente você vai ouvir mais nomes femininos do que masculinos nas playlists. Mas por que isso acontece? No meio musical, há vários exemplos de mulheres que 16
fizeram história, como Debbie Harry, vocalista da banda Blondie, criada nos anos 70 e que continua até os dias de hoje produzindo material novo. E Joan Jett, guitarrista da antiga banda dos anos 70 só de mulheres The Runaways e vocalista solo com os The Blackhearts, que também continua até hoje nos palcos. Isis Queen, vocalista da banda grega Barb Wire Dolls, de punk/ grunge, respondeu por e-mail à entrevista para esta reportagem e contou como se vê sendo vocalista mulher e sobre a relação com o machismo. Ela afirmou: “Ainda vejo machismo no rock n’roll, sem pensar duas vezes, dizendo em porcentagem, seria 100% que ainda existe. Nada mudou desde o início, e é mais difícil ser mulher e fazer o mesmo que os homens sem ser julgada”.
Em Porto Alegre, a vocalista Aline Dillenburg, de 34 anos, da banda Destroyers, cover da banda americana formada somente por mulheres The Runaways dos anos 70, comentou sobre o machismo na cena rock. A Destroyers é originária da primeira banda de Aline, que se chamava Washing Machine. Tinham uma parceria de produção com o Clube Silêncio, na festa chamada Rock Clube, e a ideia era, a cada show, realizar um tributo diferente. Em agosto de 2013, fizeram um tributo especial a Stooges, foi o primeiro show de Aline Dillenburg, e depois a banda escolhida como tributo foi Rolling Stones. Logo após essa parceria, a banda estava feita, porém o produtor da festa e baterista da banda não permitiu que continuassem usando o mesmo nome, assim nasceu a Destroyers. Crédito: Bruno Rapone/Divulgação
Lylith Pop
Crédito: Flávia Chagas/Divulgação
“Tequila Baby”, Supla e Lady Gaga na vinda da cantora à cidade em novembro de 2012, aos 13 anos de idade. A respeito do machismo no meio artístico, ela diz: “Com certeza há machismo! Por mais que digam que não, ações mostram o contrário. Como ver apenas bandas formadas por homens participarem de festivais, e os únicos caras com certa influência que se aproximavam só queriam algo a mais comigo, e quando deixei claro que não, que estava ali buscando uma oportunidade de trabalho, nunca mais falaram comigo. Nos veem muito como objeto, e em Porto Alegre é extremamente forte essa cultura machista. É difícil, mas tem que dar a cara a tapa e não desistir, não ter medo.”
Aline Dillenburg
Ela conta que, inicialmente, achar integrantes para a banda que sejam somente mulheres, como a original, já foi bastante desafiador. “Tem muita musicista de qualidade em Porto Alegre, mas acaba sendo que a maioria das vezes essas profissionais acabam priorizando outros estilos de som”, afirma a vocalista. Ao tocar no assunto do machismo, e a relação em ser uma vocalista mulher que interpreta outra e que exige ter muita atitude, Aline disse que infelizmente o machismo ainda é bem forte no cenário de Porto Alegre. Contou que já aconteceu de, ao chegar à portaria do evento e dizer que era da banda, o “cara” da portaria achar que é somente uma mulher que deve estar acompanhando algum homem de outra banda. “É uma viagem isso, mas eu levo na maior naturalidade e leveza, e acho até engraçado”, disse Aline. Entretanto, ela conta que nunca passou por alguma situação desconfortável em show por ser mulher, pelo contrário, se sentia mais à vontade porque assim poderia quebrar paradigmas machistas. “De modo geral,
no cenário atual, sendo autoral ou cover, falta valorização da cultura, vejo que as pessoas só veem o lado do entretenimento, mas esquecem de todo o trabalho que é feito nos bastidores, toda a produção, a dedicação dos profissionais”, afirmou. “As pessoas acabam só querendo se divertir e aproveitar, mas não querem pagar por isso, não veem isso como um trabalho que merece reconhecimento e retorno financeiro também. E dentro disso, também tem o movimento dos músicos, que dentro deste cenário acabam não se valorizando, e tocam de graça ou por um pack de cerveja. O que prejudica outros músicos que querem mudar esta realidade.” A cantora autoral Lylith Pop, de 21 anos, musicista e produtora gaúcha, com influência de New Wave, Synth Pop, Pop e Punk, conta que antes de assumir o seu nome artístico de Lylith Pop, que é a interpretação da junção de luz e sombras, iniciou seus estudos vocais aos nove anos de idade. Representou o Brasil no Concurso Internacional da Canção de Punta Del Este em 2014 e já dividiu o palco com a banda
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FACES DA PROSTITUIÇÃO MULHERES ATUAM EM ORGANIZAÇÃO PARA AUXILIAR UMAS AS OUTRAS POR EWILLYN LOPES
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Núcleo de Estudos da Prostituição, NEP, é uma organização sem fins lucrativos, que atua junto com mulheres prostitutas no exercício da cidadania e existe desde 1989. Ele representa a região sul na Rede Brasileira de Profissionais do Sexo. O local fica localizado dentro de uma galeria no Centro de Porto Alegre e atende mais de 100 mulheres por mês. Desde jovens com 18 anos até mulheres com mais de 60 anos, todas são atendidas da melhor forma por outras mulheres que se dedicam a orientar na prevenção de DSTs, além de encaminhá-las para apoio jurídico, quando necessário, médico e psicológico. Todo atendimento é feito via SUS e defensoria pública. “A função do núcleo é orientar e encaminhar cada uma delas para o local necessário quando for preciso”, relata Lucia, uma das responsáveis por fundar o grupo. A história de Lucia na prostituição é longa, quase 40 anos. Ela conta que fundou o grupo quando viu a necessidade das mulheres que trabalham na rua receberem apoio. “Muitas mulheres eram agredidas e sofriam problemas psicológicos, sabiam que existiam DSTs, mas algumas não se cuidavam. Comecei a analisar isso até mesmo pelos problemas que passei no inicio da profissão e resolvi fundar o NEP”. Antes do nome NEP, Lucia e outras mulheres tentaram fundar a Associação Gaúcha de Prostitutas, mas o nome não foi aceito, pois a profissão 18
não era reconhecida como uma atividade regulamentada. A prostituição só foi reconhecida em 2002 pelo Ministério do Trabalho como uma ocupação profissional, porém ainda não é legalizada. Esse é um dos pontos que o núcleo também aborda e luta pelo direito. O NEP auxiliou na regulamentação da profissão atuando em parcerias nos cenários nacionais, regionais e internacionais com outras redes relacionadas a prostituição e aliados.
É UM TRABALHO REALIZADO INDIVIDUALMENTE, CADA MULHER VAI FALANDO DO NÚCLEO DE BOCA A BOCA, UMA PARA A OUTRA. NO INÍCIO, ÉRAMOS DEZ. HOJE SOMOS MAIS DE 100 POR MÊS.” LÚCIA “A regulamentação da prostituição permitiu para as mulheres que trabalham com isso pudessem participar das contribuições da previdência e só assim tivemos direitos como todos os outros trabalhadores, conseguimos auxilio médico, e até mesmo direito
de nos aposentarmos.”, relata a prostituta. O NEP também realiza reuniões com as profissionais do sexo, monitorias em pontos de prostituição pública, como ruas, praças, salas, bares, boates, com realização de intervenções e distribuição semanal de kits contendo camisinhas e gel lubrificante para as prostitutas. “É uma forma de cada uma conhecer o núcleo e de se prevenir.” São mais de três mil mulheres atendidas nos últimos 20 anos pelo NEP, mas muitas sequer conhecem o local e trabalham “por fora”. Ou seja, existe um registo muito maior de prostitutas que não é contabilizado. “É um trabalho realizado individualmente, cada mulher vai falando do núcleo, boca a boca, uma para a outra. No inicio, éramos dez e hoje somos mais de 100 por mês. Eu sei que existem mais mulheres trabalhando por ai, mas é uma escolha delas nos procurarem. É um trabalho feito diariamente, e uma passa para a outra.” As histórias de quem trabalha no Núcleo se cruzam. Soila também é uma das gestoras e está na prostituição desde os 16 anos. Chegou do interior do Rio Grande do Sul para a capital. Soila atua efetivamente junto com essas mulheres. Juntas, Soila e Lucia começaram a orientar as prostituas a denunciarem as violências que sofriam nas ruas e dentro de casa. Com esse trabalho o núcleo recebeu o prêmio Direitos Humanos no Rio Grande do Sul, homologado pela UNESCO em 1999. “O trabalho que fazemos é social, tentamos acabar com esse tabu e legalizar a nossa profissão, o NEP vai auxiliar nessa luta diariamente e buscar pelos direitos de quem escolhe essa profissão”, relata Soila. Confira ao lado o quadro sobre a diferença de legalização e regulamentação.
A prostituição é regulamentada desde 2002, porém ela ainda não é legalizada. Na legalização, todas as possíveis sanções são eliminadas, enquanto na descriminalização o ato deixa de ser ilícito apenas do ponto de vista penal. Segundo o advogado especialista em Direito Trabalhista Antonio Castro, “A prostituição não é crime, mas tirar proveito da prostituição alheia pode ser considerada rufianismo.” Prostituição é constituída por uma troca consciente de favores entre a pessoa que usa o corpo por dinheiro e o cliente, e por mais que seja uma profissão muitas vezes tida como última “solução” para aquelas e aqueles marginalizados, ela não constitui um tipo penal. Já o rufianismo está previsto pelo art. 230 do Código Penal como um crime ao tirar proveito da prostituição alheia. Por exemplo, cafetões tirarem proveito de mulheres. Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1o Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 2o Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência.
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DESMISTIFICANDO A DANÇA BAILARINOS HOMENS SOFREM COM O PRECONCEITO ENRAIZADO NA SOCIEDADE Bailarino: Mariano Netto
POR ROBERTA MONTIEL
Crédito: Cintia Bracht
E
m vez de estimular uma prática tão antiga e repleta de benefícios, o preconceito. Mas claro, não às mulheres, quem é julgado por isso são os homens. A dança é uma das três principais artes cênicas da antiguidade, ao lado da música e do teatro, mas mesmo antes disso, o homem já dançava para estabelecer códigos de comunicação, sinais e gestos de entendimento comum. Mais que isso, ela era sagrada, ajudava nas lutas e na conquista da perfeição do corpo. Portanto, por que passou a ser vista como uma atividade exclusivamente ou principalmente feminina? Atualmente, a dança é mais visível em toda a sociedade e manifesta-se nas ruas, em videoclipes ou em qualquer ambiente onde é contextualizado o propósito artístico. Mas se engana quem acredita que é aceita quando alguém decide torná-la sua profissão, principalmente no caso de um homem. E essa foi a escolha de Mariano Netto, 40 anos, que não teve o apoio total da família quando decidiu seguir a carreira. Nascido em Porto Alegre e formado em Educação Física no IPA, hoje ele é professor na escola de dança Rodrigo Garbin e no Estúdio de Dança Ângela Ferreira, onde também é coordenador artístico, na capital gaúcha. 20
“Toda vez que vou me apresentar, peço que os meus anjos me proteja sempre e bato o pé direito três vezes antes de pisar no palco” Mariano Netto O modo como fala são marcas das experiências vividas pelo bailarino que dança há 21 anos e dá aula de ballet, jazz e contemporâneo. Durante sua trajetória, por já ter se apresentado em diversos palcos do mundo, ganhou cinco vezes o reconhecimento de melhor bailarino. Uma vez na Argentina e as outras quatro no Prêmio Açorianos de Dança em Porto Alegre. Também fez parte de várias companhias do Brasil, como a Edtam (RN), Cisne Negro (SP), Cia H (RS) e Cia Municipal de Dança de Porto Alegre (RS). Mariano relata que, apesar de ser feliz com a profissão, sua família, principalmente por parte dos avós maternos, não aceitava a escolha. Além disso, conta já ter passado por situações constrangedoras. Quando trabalhava em uma escola de dança em Porto Alegre, foi chamado na direção pedindo que utilizasse calças e blusas mais largas, e não teve motivos concretos para a tal mudança, apenas foi exigido, mesmo que elas não definissem o que ele é. Existe na dança vários estilos para se manifestar, afinal,
o homem descobriu que não depende de um só motivo ou circunstância para praticá-la. Ela pode surgir de um sentimento, uma vontade, uma batida de música ou nem isso. No entanto, restringir os estilos de dança para um tipo de gênero ou dizer que somente um tipo de pessoa possa praticá-la, além de propagar a intolerância, é inaceitável. E isso aconteceu qunado Diego Cardallo começou a dançar. “Pra mim, dançar era dançar e eu queria aprender tudo o que fosse. Na minha cabeça não existia coreografia de menino e outra de menina, eu simplesmente queria dançar” Diego Cardallo Professor de heels class, jazz funk e sexy dance há 14 anos, Diego foi mais um de muitos bailarinos que já foram expostos a zombaria por querer dançar. Com 16 anos, em Brasília, onde começou a praticar, muitas vezes foi ridicularizado por querer aprender em sala de aula as coreografias criadas exclusivamente para as alunas do grupo. “Chegou um momento que eu fiquei tão sem graça que comecei a só olhar o que era passado para elas e ensaiava em casa depois da aula”. Depois de ter passado por inúmeros constrangimentos, Diego começou a se especializar no que
realmente queria. Sem ter cursado dança, já que a faculdade não abrange todos os estilos, decidiu fazer cursos e workshops que o ajudassem a aprender as danças sensuais. Durante esse período, enquanto saia do hip hop e aprendia mais sobre esse outro mundo, no qual tinha facilidade, enfrentou mais uma barreira. “Quando comecei a estudar as danças mais sensuais, conheci o grande aliado delas, o salto alto. Mas a partir do momento que você começa a utilizar e se sentir bem em cima dele, as pessoas te olham torto, fazem comentários idiotas e brincadeiras que lá no fundo te faz muito mal”. Diante disso, por já ter encarado vários preconceitos, Diego decidiu ter um cuidado maior quando começou a dar aula. Desde o início, a partir do momento em que o aluno entra na sala, ele tenta criar uma conexão, trazendo-o para a atmosfera da dança. Além disso, quando fala sobre os preconceitos que viveu, ele acredita que hoje as pessoas entendem que uma aula de dança é só uma aula de dança, e que não é capaz de
mudar a escolha sexual de um indivíduo. Por ter crescido através da dança, considera que ela ensina a ter confiança, favorece a criatividade, mas principalmente a se amar. “Você percebe que aos poucos, as retaliações se tornam elogios, e será a melhor decisão da sua vida”. Esse é o conselho de Tonton (como costuma ser chamado), que tem 32 anos e é professor de hip hop e house. Nascido em Brasília, formado em Educação Física e Design de Moda, atua no mercado desde 2003 e procura sempre estar presente para os seus alunos. Construiu essa troca, justamente, por já ter enfrentado momentos difíceis durante a sua trajetória. E diz ser mais fácil quando se tem alguém do lado que te entende. “As pessoas acham que não existe estudo e pesquisa por trás do trabalho.” Não tem como negar que a aparência é um dos principais pontos quando se trata de discriminação. Contudo, para Tonton, que já sofreu preconceito de ordem intelectual, isso não o machuca tanto quanto o racismo.
Quando aconselha alunos, diz que estudo é primordial. Além disso, diz que ter mais paciência é a chave, porque sempre vão pensar em falar algo sobre você. E apesar de ser hétero, de se vestir de uma forma que mostre isso e dançar estilos mais livres, ele diz já ter passado por momentos difíceis “existe uma expectativa quando me olham, mas assim que começo a dançar, os olhares e o trato mudam automaticamente”. A dança é certamente o melhor meio para se fazer a experiência de diálogo com o corpo, e percebemos com o tempo o quanto é importante estudá-la. Desde uma dança que possuía um regime de regras e técnicas a uma dança de movimentos livres. Quebrando preconceitos e unindo raças, fazendo despertar a criatividade sem regras, com foco na liberdade de expressão. Afinal, é na improvisação dos movimentos que o homem vê suas inúmeras possibilidades de ser, permitindo uma mudança corporal e uma melhor qualidade de vida, lhe proporcionando ser mais feliz.
Crédito: Julia Salustiano
Bailarino: Diego Cardallo
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“NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM” A FRAGMENTADA UNIÃO DA COMUNIDADE LGBT POR LUIS HENRIQUE CUNHA
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que você pensa quando se fala em comunidade? O dicionário Aurélio, por exemplo, caracteriza o termo como “qualidade das coisas materiais ou das noções abstratas comuns a diversos indivíduos”. O que isso de fato significa permanece uma incógnita. Pode-se inferir, então, que uma comunidade é um grupo de pessoas que comunga em ideias e ideais. Tomemos a comunidade LGBT como exemplo. Aqui, temos gays, lésbicas, transexuais, bissexuais, pansexuais e mais uma volumosa parcela de definições de gênero e sexualidade. Com isso, imagina-se que uma minoria encontraria no seu semelhante apoio para seguir em uma difícil jornada de aceitação e de busca por pertencimento em uma sociedade tão julgadora e ceifadora de seus ímpares, certo? Em partes... Não se pode negar a existência de instituições e organizações que se dedicam a tentar tornar a chamada comunidade LGBT um espaço de igualdade e de solidariedade para com seus pares. Contudo, é uma falácia dizer que o grupo é totalmente unido e respeitoso. Lucas Maia tem 34 anos. Nascido em Vitória, no Espirito Santo, o mestre em ciência política pela Universidade de Chicago é fã de Madonna, Bowie, Caetano. Além de ser gay e deficiente visual. Questionado se já foi vítima de preconceito, Lucas responde sem titubear: “Sim, diversas vezes. No colégio, quando era pequeno, era muito comum”. Quando indagado se esse preconceito já partiu de LGBTs, responde que sim, com um 22
semblante tristonho. “É comum, também. Já aconteceram algumas vezes em festas. Eu estou ficando com uma pessoa, ela percebe que sou cego e prefere se afastar”, diz. Mas Maia relata que a maior parte das difamações se dão pela internet: “ A maioria das vezes foi por aplicativos, como o Grindr, por exemplo. A conversa se desenrola normalmente, até eu mencionar que tenho deficiência. A partir daí, a pessoa ou me bloqueia ou manda mensagens deselegantes”, conclui.
Assim como Lucas, Milton Talaveira, ou apenas Miltinho, como gosta de ser chamado, também relata ações preconceituosas recorrentes no meio digital. O gaúcho de 56 anos comenta ter sido ridicularizado em aplicativos de relacionamento por causa de sua idade. “Já me chamaram de tudo quanto é coisa: oportunista,
alpinista social, pessoas falando que eu não tinha mais idade para estar em aplicativos. Uma vez ironizaram meu sobrenome, me chamando de tá lá a velha”. Para o pesquisador de tendências Joely Nunes, a disseminação de práticas preconceituosas entre LGBTs “se dá por causa da não compreensão de um sistema estruturado opressor que é muito maior e que define as dinâmicas dentro de todos os grupos”. Maia, por outro lado, acredita que a comunidade LGBT replica discriminações por ser esmagada pelas normas da sociedade vigente. “LGBTs são membros da sociedade como todas as outras pessoas. Eles se unem exclusivamente na medida em que questionam comportamentos sexuais e de gênero. Todas as outras divisões que existem na sociedade existem também na comunidade LGBT, seja de classe, de gênero, de condições físicas ou intelectuais e assim por diante”. Para o mestrando em psicologia social e intelectual pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, e ativista social trans Vincent Goulart, ser parte de uma minoria não significa que você não esteja sujeito a replicar atitudes discriminatórias. “Importante lembrar que não é porque você é gay ou lésbica que você está livre de perpetuar discursos preconceituosos e discriminatórios de outras ordens. Até mesmo podendo discriminar a própria classe, devido a discursos que estão perpetuados na sociedade e que tomamos como verdade, internalizamos e não
tocamos mais no assunto”. “Ser gay não impede um homem de ser machista, transfóbico, racista e de perpetuar discursos violentos contra classes sociais menos favorecidas”, diz. É preciso, sim, apontar ações discriminatórias e preconceituosas que ocorrem por membros da comunidade LGBT, mas, de acordo com Nunes, não se pode negar que elas não são regra. Pelo contrário. “A comunidade LGBT deveria representar acolhimento. Em sua totalidade isso não acontece, mas também precisamos lembrar de movimentações internas. Nossa comunidade não é feita apenas de reproduções e atitudes opressoras, possuímos
diversas histórias que revelam acolhimento, amor e compreensão”, diz. Para Miltinho, a necessidade de uma comunidade LGBT seria dispensável se a sociedade fosse mais tolerante. “Gostaria que não precisássemos falar em comunidade LGBT. Claro que acho importante preservarmos a peculiaridade das culturas gay, lésbica e trans. Não é a isso que me refiro. Me refiro à necessidade de conseguirmos acolhimento entre iguais. Num mundo em que a tolerância imperasse, conseguiríamos esse acolhimento em qualquer lugar”, reflete. Lucas acredita que caminhamos não apenas para uma comunidade mais tolerante, mas
para uma sociedade como um todo: “Sou otimista. O mundo está se tornando um lugar menos opressor. Quando eu saí do armário, há 16 anos, era normal você ver homens gays dizendo que não se atraíam por negros. Cinco anos atrás, esse discurso ainda era corriqueiro. Hoje, ele é, felizmente, inaceitavelmente racista. Dez anos atrás, a transexualidade era um tabu que nem a própria comunidade LGBT discutia. Homens efeminados, mulheres masculinizadas e travestis eram chacota no meio LGBT. Claro que essa não é uma questão resolvida, mas avançamos muito nesse debate. É irreversível. Continuaremos avançando cada vez mais”. 23
HOMENS EM MOVIMENTO GRUPOS SE REÚNEM PARA QUESTIONAR A MASCULINIDADE TRADICIONAL EM BUSCA DE COMPORTAMENTOS MAIS SAUDÁVEIS POR PIETRO MEINHART DE OLIVEIRA
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ste texto é escrito por alguém que ouviu quando criança que não podia chorar nem demonstrar fragilidade. Que era preciso gostar de mulher e amar futebol. Frases assim ecoam desde sempre na sociedade, mas não representam mais aqueles que questionam os padrões. E eles são muitos. Homens em movimento e movimentos de homens que buscam uma masculinidade mais saudável para se sentirem bem consigo mesmo e com o próximo. Uma busca constante em mudar a si e transformar o mundo.
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Em 13 de maço de 2019, o massacre de Suzano abalou o país. Naquela trágica manhã de segunda-feira, dois ex-alunos invadiram a Escola Estadual Raul Brasil, mataram cinco estudantes, duas funcionárias e depois se suicidaram. O ataque repercutiu em todo o país e tomou conta dos noticiários. De Porto Alegre, a mais de 1.000 km de distância do ocorrido, Lucas Rodriges Kodiak, 30 anos, acompanhava incrédulo o acontecimento. “Eu me senti muito impotente”, desabafa o publicitário. Mas foi esse sentimento que o impulsionou. Mesmo já refletindo sobre o tema há pelo menos sete anos, o massacre de Suzano foi a gota d’agua que fez Lucas criar um grupo para homens refletirem e debaterem sobre a construção de uma masculinidade mais saudável. Assim, surgiu o projeto “O Melhor que Podemos Ser”. Os encontros, que acontecem uma vez por mês na Zona Sul de Porto Alegre, reúnem diferentes homens com um objetivo em comum: transformar. Tanto a si quanto a sociedade. Sentados em roda no chão, os participantes começam a falar sobre como foi o período desde o último encontro. É o momento que cada um tem para desabafar sobre seus incômodos e compartilhar sentimentos. A partir dos anseios pessoais de cada um, a conversa gira em torno da troca de experiências e aprendizados. Desde março,
devido à pandemia do coronavírus, os encontros passaram a acontecer de forma online, e em uma frequência maior. “A ideia é que seja um lugar no qual a pessoa possa falar sobre suas dificuldades sem se sentir travada, para que possa existir uma conversa em cima disso”, explica Lucas. Para Helen Barbosa dos Santos, doutora em psicologia social pela UFRGS e pesquisadora em masculinidades e relações de gênero, espaços seguros para os homens reavaliarem a masculinidade são a maior potencialidade que existe para pensar micropolíticas de equidade de gênero. “Quando a gente pensa em masculinidade, no fundo estamos pensando em equidade de gênero, que são relações mais saudáveis entre as pessoas na sociedade”, explica a pesquisadora. E é essa evolução que André Luís Machado Winter, de Porto Alegre, procura. Aos 27 anos, o fisioterapeuta conta que desde sempre questionou os padrões impostos pela masculinidade, mas que foi na convivência com outras pessoas, enquanto participava das ocupações nas universidades federais, em 2016, que a desconstrução pessoal começou a acontecer de forma mais concreta. “A convivência com aquelas pessoas foi um salto gigantesco na minha relação de entender o mundo e as relações com as outras pessoas”. A partir disso, foi no grupo “O Melhor que Podemos Ser” que encontrou um espaço seguro para debater essas questões. “Essa coisa do futebol até poucos anos atrás era uma decepção muito forte para meu pai. Era um motivo de piada da minha família”, relembra. Nesse processo de autoconhecimento, André destaca a importância de nomear os sentimentos para demonstrar as necessidades afetivas. “Faltava vocabulário para definir as emoções. Eu definia tudo como tristeza. Depois de um tempo entendi que poderiam ser
outras emoções”, conclui. Segundo Angelo Brandelli, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS, a situação descrita por André é resultado de uma masculinidade que exalta a violência e a falta de cuidado. “Para muitos homens, a reprodução dessa masculinidade tóxica traz ganhos”, esclarece. Helen explica que os modos de performar as masculinidades variam de acordo com os marcadores sociais. Ou seja, as questões da masculinidade de um homem negro são diferentes das de um homem branco, ou de um gay. “Tornar-se homem, significa dizer três nãos: não ser gay, mulher ou criança”, completa. E são esses comportamentos que Wesley de Souza Drecksler, 34 anos, procura não repassar ao filho de seis anos. O consultor de negócios conheceu “O Melhor que Podemos Ser” a partir do criador do projeto e desde então já participou de cinco encontros. Ele relata que o grupo tem sido um espaço para compartilhar experiências e repensar atitudes. “O machismo também faz mal para os homens. Obriga a gente a estar dentro de certas caixinhas de comportamentos, como gostar de futebol”, desabafa. Na relação com o filho, ele e a esposa procuram conversar bastante com a criança a partir daquilo que acreditam ser o mais correto. Apesar disso, Wesley conta que esse é um desafio constante, já que o filho está sujeito a influências externas da sociedade. “Às vezes, ele entende que o papai está trabalhando e a mamãe tem que cuidar dele. É algo que a gente nunca ensinou pra ele”, descreve.
A PALAVRA LIBERTA Assim como Lucas, que criou “O Melhor que Podemos Ser”, Juliano Gonçalves Trevizan, 28 anos, também iniciou um projeto para repensar a masculinidade, nesse caso, por meio de um livro.
O gaúcho, que mora há quatro anos em Florianópolis, lançou em dezembro de 2019 junto com outros cinco amigos o “Jornada Solar”. O livro, que é também uma espécie de agenda, contribui para o autoconhecimento dos homens tendo como base os ciclos do sol. A proposta é ser interativo, no qual o leitor escreve suas intenções para cada mês. “É um livro que não se empresta, pois há uma conexão emocional muito forte”, explica o escritor. Com mais de 1,5 mil exemplares vendidos, o projeto transcendeu as páginas e se tornou encontros presenciais de conversas e trocas entre homens. Desde a criação do projeto, já ocorreram três desses eventos em Porto Alegre e em Florianópolis. Em todo esse processo, Juliano destaca a presença das mulheres. “A participação das mulheres é essencial, não é à toa que a gente se inspirou em um livro de mulheres, que quem deu a ideia foi do projeto foi uma mulher, que metade da rede de vendas é formada por mulheres”, ressalta. A pesquisadora Helen dos Santos cita o feminismo de terceira onda ao enfatizar a importância da participação de todos nesse processo, inclusive dos homens. Para ela, os homens são criados para não se relacionarem com a palavra falada. “Expor o afeto pela palavra é o modo mais potente de poder evoluir como sujeito. Ser feliz e fazer o outro feliz”.
O QUE FAZER? Em 2016, a ONU Mulheres Brasil e o portal PapodeHomem realizaram uma pesquisa para entender como os homens podem participar do diálogo pela igualdade de gênero. Abaixo, cinco atitudes que os homens podem assumir para se tornarem agentes de mudança: 1. Questione e confronte amigos que contam piadas preconceituosas (sexistas, racistas, homofóbicas etc.) 2. Não interrompa uma mulher enquanto ela fala e colabore para que outras pessoas façam o mesmo. 3. Reconheça que você é machista em algum nível e fique atento a comportamentos automáticos que ajudam a perpetuar o machismo. Reflita e tente mudar suas atitudes. 4. Demonstre afeto a um amigo, por meio de palavras ou gestos de carinho, sem precisar estar bêbado para isso. 5. Se conhece alguém que está sendo desrespeitoso ou violento com a parceira ou com as mulheres em geral, converse com ele sobre isso e ajude-o a procurar auxílio. Não finja que não é com você.
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TERAPIA A DISTÂNCIA DURANTE A QUARENTENA, CUIDADOS COM A SAÚDE MENTAL DEVEM SER REDOBRADOS. ESPECIALISTAS SUGEREM PSICOTERAPIA ON-LINE COMO FORMA DE TRATAMENTO EM TEMPOS DE PANDEMIA POR JOSH BITENCOURT
A
pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid19) intensificou uma prática já recorrente na psicologia: o teleatendimento. Em tempos de isolamento social, a modalidade virtual torna-se uma alternativa para pacientes que já realizavam o atendimento presencial, mas também para quem sente a necessidade de receber apoio psicológico neste momento ou de tratar transtornos que podem ter como gatilho a pandemia. Frente ao aumento na demanda por teleatendimento, houve um crescimento no número de profissionais solicitando habilitação para atender no online. Somente nos dois primeiros meses da pandemia no Brasil, os números, se comparados com os dados dos últimos dois anos, duplicaram. Desde 2018, a psicoterapia online é regulamentada no país. Contudo, é necessário que o profissional faça um cadastro na plataforma e-Psi, criada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Entre 10 de novembro de 2018 — mês no qual a Plataforma e-Psi entrou no ar — e 29 de fevereiro de 2020 foram realizados 30.677 cadastros. Porém, somente os meses de março (32.310) e abril de 2020 (23.867) somam 56.177 novos cadastros, superando todos os registros anteriores à pandemia. Conforme a Presidente do CFP, Ana Sandra Fernandes, a plataforma e-Psi foi criada para ampliar a fiscalização da prática no país. Ela ainda destaca que há recomendações aos profissionais quanto aos cuidados com a privacidade durante as teleconsultas: “É importante a garantia do sigilo. O psicólogo não pode fazer esse atendimento num lugar público, por exemplo, porque essas informações são sigilosas. Tudo que funciona do ponto de vista ético para o atendimento presencial também está em vigor para o atendimento online”. Laura de Vicenzi, 20 anos, é pré-vestibulanda para medicina.
Em função da pandemia, sua rotina de estudos foi alterada e, como é do grupo de risco, evita sair de casa. Recentemente, migrou seu tratamento psicoterapêutico presencial para o online, e nota pontos positivos e negativos entre as modalidades de terapia: “Em função do deslocamento, acaba sendo mais acessível. Mas ao mesmo tempo tem a questão de estar em casa, com os pais nos outros cômodos, e é diferente da segurança que eu sinto no consultório, de que ninguém vai ouvir o que vou falar”. Contudo, comenta que a decisão de seguir com o tratamento no online neste período foi importante.
A AJUDA PSICOLÓGICA É NECESSÁRIA. É AQUELE HORÁRIO NA SEMANA QUE EU TENHO PARA FALAR COM ALGUÉM QUE NÃO ESTÁ NO MEU CÍRCULO DE CONVIVÊNCIA, E É MARAVILHOSO. EU ESTOU MENOS ANSIOSA E APRENDO A LIDAR MELHOR COM OS MEUS SENTIMENTOS ” LAURA DE VICENZI
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Há dois anos atuando no teleatendimento, a psicoterapeuta cognitivo-comportamental e Doutora em psicologia Andrea Rapoport explica que o tratamento virtual pode ser tão eficiente quanto o presencial: “A psicoterapia permite que o terapeuta tenha um contato mais físico, e isso no online não tem. Mas podemos expressar essa presença a partir da palavra, das expressões. Por isso é importante que o paciente tenha uma condição de privacidade, um ambiente que a pessoa se sinta segura para poder falar. Um horário agendado, como se fosse na clínica, mantendo toda a organização como no consultório”.
CASOS DE DEPRESSÃO E ANSIEDADE CRESCEM DURANTE A PANDEMIA Por não se sentir à vontade em fazer o tratamento na modalidade virtual, Savana de Morais, 36 anos, optou por não seguir com o tratamento ao longo da pandemia. “O marido tá sempre dentro de casa. Posso estar no outro quarto, mas vou estar dentro de casa. Não vou me sentir segura para falar tudo. Foi a primeira coisa que eu pensei, que não conseguiria fazer no online”, relata. Personal trainer, ela conta que sofreu no início da pandemia com a queda drástica de aulas, o que levou a uma forte crise emocional, situação que poderia ser evitada se mantivesse o atendimento. “Foi um susto muito grande, fiquei desesperada, muito nervosa, chorei algumas vezes, pensando o que aconteceria com o meu trabalho e com a questão financeira. Eu tive outras crises emocionais que eu só resolvi na terapia. Então se eu tivesse mantido meu tratamento agora, talvez eu não tivesse aquele desespero”, reconhece.
Um recente estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) mostrou um crescimento de quase 50% no número de casos de depressão, e um aumento em 80% de ansiedade desde o início da quarentena no Brasil. A pesquisa, realizada no período entre os dias 20 de março e 20 de abril, contou com a participação de 1460 voluntários em quarentena, de 23 cidades em nove estados do país. De acordo com o levantamento, coordenado pelo professor Alberto Filgueiras, do Instituto de Psicologia da UERJ, quem recorreu à psicoterapia pela internet apresentou menores índices de estresse e ansiedade. “Aquelas pessoas que fizeram a psicoterapia na modalidade virtual apresentaram indicadores melhores. Ou seja, não adoeceram ao longo do tempo quando comparado com pessoas que não tiveram esse tipo de tratamento”, explica o pesquisador. Para o professor Filgueiras, a ausência de psicoterapia, independente de sua modalidade, causa maior probabilidade de aumento no adoecimento mental. Durante a pandemia, profissionais, entidades e instituições
BRASILEIROS SÃO EXTREMAMENTE PRECONCEITUOSOS QUANTO À PSICOTERAPIA. OS PROFISSIONAIS SÓ SÃO PROCURADOS PARA FAZER O ATENDIMENTO DE EMERGÊNCIA, AO PASSO QUE ESSE TRATAMENTO PREVENTIVO NÃO É FEITO.” ALBERTO FILGUEIRAS acadêmicas de psicologia, públicas e privadas, estão comprometidos em dar esse apoio. A partir de movimentos sociais voluntários, o atendimento psicoterapêutico é oferecido gratuitamente a quem não tem condições financeiras para pagar o tratamento.
ATENDIMENTO PARA PROFISSIONAIS DA SAÚDE Pensando na saúde mental dos diversos profissionais de saúde que estão à frente do combate à Covid-19, o Ministério da Saúde lançou o Telepsi, serviço de teleconsulta psicológica para trabalhadores da área com previsão de funcionamento até setembro de 2020. O projeto é realizado em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre e conta com uma central de teleconsulta composta por profissionais da Psicologia e Psiquiatria. Funcionários da área da saúde do SUS que tiverem interesse podem utilizar o canal Telessaúde de atendimento, pelo número 0800 644 6543. No primeiro contato, será definido o tratamento mais indicado para o profissional que está procurando ajuda, sendo selecionada, posteriormente, a melhor abordagem e tratamento.
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TOC X MANIA: NÃO SÃO A MESMA COISA EM PERÍODOS DE ISOLAMENTO SOCIAL, SABER DIFERENCIAR TOC DE MANIA É IMPORTANTE PARA AJUDAR AMIGOS, FAMILIARES, E A VOCÊ MESMO POR GABRIEL MITO
O
isolamento social provocado pela Covid-19 torna, em muitos casos, os sintomas de quem possui Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) ainda piores, assim como traz aumentos de ansiedade e de manias para a maioria das pessoas. Visto que os sintomas de TOC e manias são, em muitos casos, parecidos, diferenciar quem sofre de TOC de quem enfrenta manias e ansiedade fica ainda mais difícil. Para entender quais são as diferenças entre o transtorno mental e manias, é necessário entender o que é o TOC. O
Transtorno Obsessivo Compulsivo é uma doença que gera pensamentos obsessivos, e movimentos e atos repetitivos em alguns casos, causando sofrimento a quem o possui. Qual é, portanto, a diferença entre TOC e mania? Segundo a psicóloga Fernanda Marinho Matte, que atende em Porto Alegre, na clínica CEAPIA, a mania faz parte da categoria de transtorno de humor do CID-10, ou seja, ela é caracterizada como um transtorno onde a perturbação principal se dá na alteração do humor. Neste caso, o aumento
do humor é acompanhado por aumento na velocidade da atividade mental e física. Já o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) é caracterizado por pensamentos obsessivos que invadem a mente do indivíduo e geram angústia, podendo ou não ser acompanhado por atos compulsivos recorrentes, como atos de limpeza repetitivas ou verificação de alguma situação perigosa, como, por exemplo, conferir várias vezes se uma porta está trancada. A tabela a seguir nos ajuda a entender melhor a diferença entre TOC e mania.
TOC
Mania
Tipo de problema de saúde de acordo com as classificações internacionais de doenças
Transtorno de ansiedade
Transtorno de humor
Como geralmente se apresenta o humor da pessoa
Nervoso, ansioso, angustiado
Eufórico, alegria exagerada, intempestivo
Juízo crítico do problema
A pessoa geralmente consegue perceber que tem um problema e que seus pensamentos são irracionais
É comum a pessoa não ter a percepção que os sintomas são prejudiciais e achar que está “muito bem, produtiva e animada”.
Percepção pelos outros
É comum a pessoa com TOC ter vergonha de falar dos seus pensamentos e praticar seus rituais de forma discreta, fazendo que seus sintomas passem despercebidos até mesmo pelos familiares mais próximos.
Geralmente a família ou amigos próximos é que percebem que a pessoa pode estar inadequada, falando demais, agitada demais e tomando atitudes precipitadas e impulsivas
Tipo de tratamento
Medicamentos anti-depressivos e psicoterapia
Medicamentos chamados de “estabilizadores de humor” e psicoterapia
FONTE: LUCIANE NASCIMENTO, PSIQUIATRA QUE ATENDE EM CONSULTÓRIO PRÓPRIO, EM PORTO ALEGRE
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Aldo Chiavegatti, advogado de 51 anos e morador de Porto Alegre, mostra como não saber diferenciar o Transtorno Obsessivo Compulsivo de mania atrasou o tratamento de sua doença: “Fui diagnosticado há dez anos, mas sofro com TOC há muito mais tempo. Entretanto, eu escutava meus conhecidos falarem que tinham muitas manias, muitas “loucuras”, e achava que o que eu tinha era isso, que ia passar. Não sabia a diferença entre TOC e mania. Um dia resolvi pesquisar e percebi que eu sofria de uma séria doença, e então procurei ajuda médica”. Uma questão que pode trazer muitas dúvidas para as pessoas é a origem do TOC. Como esse transtorno surge? Segundo a psiquiatra Fernanda, não há resposta definitiva para essa pergunta, visto que sua origem varia de caso para caso. Afirma, entretanto, que na maioria das vezes os sintomas começam a surgir na
infância e no início da vida adulta. Fernanda ainda ressalta que é justamente a impossibilidade de responder de forma exata como surge o transtorno que muitos se perguntam: como funciona a cabeça de quem tem TOC? De acordo com a profissional, alguém que possui o transtorno tem muitos pensamentos obsessivos, e muitas vezes não consegue se livrar deles. Quando o pensamento traz uma preocupação, a incapacidade de tirá-lo da cabeça faz a pessoa ceder ao pensamento, fazendo evoluir o pensamento para uma ação. Qual é, entretanto, o tratamento para o TOC? Existe algum tratamento que o faça desaparecer? Não. Mas existe tratamento, e ele é muito importante. Segundo Fernanda Marinho, existe como amenizar os sintomas de TOC, e isso se dá por meio de tratamento psicológico e, se necessário, tratamento psiquiátrico, visando à diminuição dos sintomas e à
compreensão do conteúdo dos pensamentos obsessivos e dos atos compulsivos. Agora que você sabe que TOC e mania não são a mesma coisa, vamos voltar ao assunto da piora nos sintomas da doença durante o isolamento. As recomendações necessárias para lidar com a pandemia, como o aumento da lavagem de mãos e de procedimentos de higienização, podem exacerbar o comportamento compulsivo de quem sofre de TOC, porque o risco de contaminação passa a ser real e não mais imaginário. Visto que a doença precisa ser tratada, é importante que quem sofre de TOC mantenha seu tratamento médico e psicológico, para que os profissionais possam ajudar a identificar o limite entre o que são medidas adequadas para evitar ser contaminado e o que são os sintomas compulsivos, que caracterizam o transtorno mental que causa sofrimento em tantas pessoas, diagnosticadas ou não. 29
TODO MUNDO ON-LINE, MENOS EU A INCESSANTE BUSCA POR PERTENCER É PERIGOSA E REVELA O MEDO DE FICAR POR FORA NAS REDES SOCIAIS POR JÚLIA BARROS
O som das notificações na tela se confundem com o alarme do despertador. Você já acorda respondendo as mensagens e checando a timeline de 5 em 5 minutos. Foto enaltecendo o café no Instagram, notícia compartilhada no Facebook, reclamação no Twitter e uma interação rápida no LinkedIn. Entre um aplicativo e outro, algumas horas de sono e um tempo para refeições, pronto. Parte do dia foi dedicado para ela: a vida online. A razão pela qual sua rotina parece estar numa incessante busca por fazer parte de algo tem nome – e sigla. Causada por fatores como carência afetiva, vazio existencial e vício em agrados, a FoMo representa Fear of Missing Out, conforme tradução literal da sigla.
100% conectados, quase 24h por dia. De tempos em tempos, procurando ocupar a agenda com compromissos incríveis e lugares instagramáveis. Da frase clássica que ouvimos ainda na infância “mas todo mundo vai” para “você não é todo mundo”, os sintomas de FoMo. Para muitos desconhecido, o termo foi identificado pela primeira vez no ano de 1966, por Dan Hermann, primeiro estrategista a estudar os sintomas que levaram à síndrome. Pessoas que desenvolvem a FoMo costumam estar o tempo todo conectadas na internet. O sentimento de não ter a vida perfeita é um frequente causador de sensações que levam à irritabilidade. Por conta do isolamento, as redes sociais transformaram-se no principal hábitat. “Existe uma ânsia para acompanhar o que os outros estão publicando e estar por dentro das reações que os outros têm quando se publica algo. A expectativa gera um estado de vigilância na mente e no sistema nervoso que constantemente diz “preciso me certificar de como reagiram a minha publicação”, traduz Ivan Oliveira Pielke, psicólogo clínico e filósofo pela Escola de Filosofia Nova Acrópole.
A OBRIGAÇÃO DE PERTENCER
provavelmente até melhor do que você. Sobre a constante busca por estar conectado, Ivan brinca: “Atualmente nós temos intervalos chamados ‘vida’, entre uma olhada e outra no celular. Como esses ‘intervalos’ – como assistir a uma aula, trânsito na cidade, trabalho e práticas esportivas – foram retirados, sobrou mais tempo para a vida virtual nas redes sociais. E, convenhamos, o que temos de mais interessante para matar o tédio do que as telas brilhantes que contém vídeos e discussões?” As férias perfeitas de um, o evento incrível do outro… Tudo parece ser melhor na tela do lado. A criadora de conteúdo digital e consultora de estilo de Porto Alegre Camila Maffini acredita que o sentimento tem total relação com os bens materiais. “Acabo não conseguindo investir o quanto eu gostaria e me sinto mal por achar que as minhas coisas são mais inferiores do que a de pessoas que fazem viagens internacionais incríveis, por exemplo”. Para a estudante de Relações Internacionais Brenda Bittencourt (19), o assunto é outro. “Já cogitei apagar algumas redes sociais por estar cansada do conteúdo. Sinto que há uma competitividade para ver quem faz mais coisas, trabalha mais, malha mais… O que torna o conteúdo extremamente superficial e corriqueiro.”
A inquieta sensação de precisar estar por dentro de todos CONCURSO DE os assuntos é preocupante. PRODUTIVIDADE Você pensa estar perdendo algo que os outros estão fazendo, Na teoria tudo é lindo, mas na 30
prática, o sentimento é outro. Quando a pandemia do Coronavírus chegou e a tecnologia ficou ainda mais em evidência, a banalização de alguns termos, e a romantização da produção em excesso, por exemplo, prejudicaram cenários determinantes no meio digital. Aquele que oferece o maior número de conteúdos prazerosos e instantâneos ganha a devida atenção. “Acompanhar as pessoas que estavam produzindo constantemente me fazia mal. Sentia que ficava para trás e só perdia seguidores. Preferi manter a mesma frequência de sempre, porque não tem sentido produzir por produzir”, conta Camila. O estudante de fisioterapia, Carlos Eduardo Piacentini concorda. “As pessoas estão utilizando o conceito do ócio criativo para aproveitar o tempo livre e continuar produtivo. Isso é ótimo, mas ninguém é produtivo o tempo inteiro.” Segundo a recente pesquisa divulgada pela Royal Society for Public Health, instituição de saúde pública do Reino Unido, o Instagram é a ferramenta que mais contribui negativamente para a saúde mental de adolescentes e jovens adultos. De críticas à busca por pilares de conteúdo, o professor da ESPM e analista de marketing digital João Finamor afirma que as mudanças só tendem a melhorar. “Agora, vai muito além do feed perfeito. A tendência é que as pessoas se relacionem com a verdade, apresentando um conteúdo real, quase que sem filtro”. Entender o seu papel dentro das mídias é fundamental para trabalhar as diversas sensações da FoMo. Há 7 anos produzindo conteúdo digital, mas somente há 3 com compreensão de maior parte das redes, a comunicadora gaúcha Patrícia Leivas vê o lado positivo das transformações. “Me cobrei por não ter entrado na primeira leva das lives, mas agora
DESCUBRA OS SINTOMAS E MOTIVOS QUE LEVAM AO DESENVOLVIMENTO DA SÍNDROME entrei nessa. Eu sempre digo que controle dos próprios impulsos, antes tarde do que mais tarde! ter acompanhamento profissional Consumi muita coisa boa e agora com psicoterapia é fundamental. quero retribuir”, revela. Com a quarentena, o “ficar conectado” reforça o estado de permanecer sempre online. Afi- SÃO nal, quais os motivos que carac- COMPORTAMENTOS terizam FoMo? Irritabilidade por estar desconectado, baixa QUE PODEMOS ATÉ produtividade, dor de cabeça FAZER UM JOGO DE constante, problema nos olhos PALAVRAS, PARA e coluna e privação de sono são alguns dos principais sintomas. ASSOCIAR FOMO A “Se a internet for restringida por FOME MESMO. SE algum motivo, a pessoa pode vir a ELA TEM MEDO DE apresentar um desequilíbrio emocional, como depressão e ansie- PERDER, É PORQUE dade, que só são regulados com ELA TEM FOME DE a volta da conexão com o mundo ALGUMA COISA. A virtual”, explica a gaúcha Débora de Souza, psicóloga clínica espe- PERGUNTA É: ELA cialista em terapia de casal e TEM FOME DE QUÊ? família. Nesse caso, é indicado procurar tratamento com espe- DÉBORA DE SOUZA cialistas. Por tratar da falta de
FOMO VERSÃO DON’T DO IT TO YOURSELF CINCO PENSAMENTOS PARA ELIMINAR DE VEZ DA SUA VIDA
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“VOU PARAR RAPIDINHO PARA RESPONDER O WHATSAPP” “ELES ESTÃO SE DIVERTINDO MUITO MAIS QUE EU!” “NÃO POSSO FICAR 5 MINUTOS SEM O MEU CELULAR” “PRECISO PUBLICAR ESSA FOTO ANTES DE TODO MUNDO!” “VOU ACEITAR O CONVITE SÓ PARA DIZER QUE ESTIVE POR LÁ” 31
ELAS TAMBÉM QUEREM JOGAR COM DIVERSAS BARREIRAS E ATÉ MESMO PROIBIÇÃO AO LONGO DO CAMINHO, JÁ PASSOU DA HORA DE MULHERES BRILHAREM DENTRO DAS QUATRO LINHAS POR JOÃO CAMMARDELLI
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rês gerações distintas, diversas barreiras no caminho, mas um único objetivo: jogar futebol. Mesmo o Brasil sendo conhecido como “o país do futebol”, este termo parece funcionar apenas para os homens. Precisando enfrentar diversos preconceitos, poucas oportunidades e a má ou quase nula remuneração, as mulheres batalham diariamente para que, dentro das quatro linhas, elas possam ser reconhecidas assim como os homens. E para começar a falar do cenário atual do futebol feminino no Brasil, precisamos voltar até 1983, quando a modalidade finalmente foi regulamentada no país, após ela ter ficado quase 40 anos proibida. Mesmo com este atraso, o pontapé inicial foi dado, e foi a partir daquele momento que as jóias que antes precisavam jogar escondidas puderam mostrar a sua cara dentro de campo. A carioca Mariléia dos Santos, de 56 anos, nascida na cidade de Valença, localizada na zona rural do Rio de Janeiro, é um exemplo disto. Presente nos campos de várzea desde pequena, Mariléia parece que nasceu para o esporte. “Eu acho que já jogava desde a barriga da minha mãe. Eu sou a caçula de 11 irmãos, seis mulheres e cinco homens, e todos jogavam futebol. Eu vim para completar o time”, brinca a atleta. Mas você pode estar se perguntando: quem foi Mariléia? Realmente, por este nome, apenas os mais íntimos reconhecem, 32
pois com a chuteira no pé e nos gramados, ela fez a sua história mesmo como Michael Jackson. O apelido, que ficou eternizado nos microfones por causa do narrador Luciano do Valle, se deu devido a suas colegas de equipe na época, que a chamavam assim graças a sua semelhança com o cantor americano. Assim como o Rei do Pop, Mariléia também dava show, mas dentro de campo.
O INÍCIO DE UMA CARREIRA VITORIOSA Logo na sua primeira equipe, o Esporte Clube Radar, Mariléia já encheu os olhos de quem a assistia. Com 800 gols e diversos títulos importantes em seis anos, ela logo se tornou referência e inspiração no cenário esportivo. E óbvio que ela não podia ficar de fora da primeira Seleção Brasileira da história. Em 1988, houve a edição experimental do Mundial, e esta foi a estreia da seleção verde e amarela. Sediada na China, a competição contou com outras 11 equipes, e as brasileiras não deixaram a desejar. Com uma medalha de bronze na bagagem, a terceira colocação serviu para demonstrar que, com condições básicas para o desenvolvimento na modalidade no país, a categoria tinha tudo para crescer, pois a habilidade era garantida. Na volta para o Brasil, Michael Jackson continuou se destacando nos estádios brasileiros.
Após uma passagem pelo Saad, logo após sair do Radar, Mariléia recebeu uma proposta para atuar pela equipe do Torino, da Itália, em 1995, e não pensou duas vezes em atuar no Velho Continente e se tornar a primeira atleta a atuar fora do país. Mesmo sem conquistar títulos, a atleta trouxe no seu currículo experiência e novos hábitos ao voltar para seu país natal em 1997. Na sua volta, Mariléia ainda atuou por diversos clubes e seguiu desfilando a sua habilidade e seus gols, afinal ela marcou mais de 1.500 vezes, pelas quatro linhas até 2009 e, neste período, pôde ver a evolução, ainda que a passos curtos, da modalidade feminina no Brasil.
A NECESSIDADE DE FAZER ESCOLHAS PELO SONHO DE A ESPERANÇA É DE QUE JOGAR FUTEBOL POSSAMOS TER E quem presenciou este novo A MESMA IGUALDADE, momento foi a atleta Aline Milene. TANTO DE REMUNERAÇÃO Nascida em Belo Horizonte, a QUANTO DE atleta de 26 anos teve seu iní- INFRAESTRUTURA E MÍDIA cio mais “tranquilo” em relação QUE O MASCULINO TEM” a Mariléia, mas também não foi perfeito. Lutando contra a falta de oportunidades, Aline teve que fazer escolhas desde cedo. E não foram fáceis. Com apenas 19 anos, a mineira precisou deixar sua família e sua terra natal para ir em busca do seu sonho nos Estados Unidos. “A gente tem que abdicar de muitas coisas e, para mim, foram essas, deixar minha família, minha cidade natal e até mesmo meu próprio país”, comentou a atleta sobre sua mudança para ir estudar e praticar seu esporte preferido em solo americano. Porém, com uma carreira mais consolidada, Aline já consegue identificar mudanças no cenário brasileiro quando comparado para o início da sua carreira. “A visibilidade, a oportunidade de categorias de base, uma infraestrutura bem melhor do que a gente teve no passado, remuneração”, ressaltou a atleta, sobre as principais mudanças que ela enxerga. Outro ponto que, até pouco tempo, era muito comum, era o fato de que muitas atletas precisavam exercer outra função para conseguir se sustentar. “Eu, graças a Deus, nunca precisei realizar outra atividade em relação ao futebol, mas tenho várias amigas que tiveram. Muitas trabalhavam durante a semana e jogavam com a gente nos finais de semana”, declarou Aline. Quanto ao futuro, a meio-campista da Ferroviária ainda tem esperança de que a modalidade feminina possa chegar no mesmo nível, ou pelo menos mais próximo, do que é a categoria masculina nos dias atuais.
ALINE MILENE UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL Mas esta evolução, que vem crescendo ano após ano, não deve acabar por aqui, pois é ela que vai garantir que a modalidade não volte para a estaca zero e mais jogadoras sejam reveladas a cada temporada, como é o caso de Natália, de apenas 10 anos. Desde 2019 atuando com o sub-10 masculino do Avaí, a jovem catarinense começou cedo em busca do seu sonho. Mesmo muito jovem, Natália tem nas atletas Marta e Formiga as suas maiores inspirações na carreira e, inclusive, sonha em um dia poder atuar ao lado delas. Porém, mesmo com os avanços, ela ainda não tem a oportunidade de praticar ao lado de outras meninas, devido à falta de categorias de base para mulheres e, por isso, a necessidade de atuar no masculino. Mas isso não tem sido um ponto negativo. Segundo a própria Natália, ela foi muito bem recebida pelos colegas de time, que sempre a trataram de igual para igual. “Na escola, é todo mundo muito legal comigo. A gente faz time e todo mundo fala ‘eu quero a Nati, eu quero a Nati’”, comentou a atleta. Relatos como estes que tivemos aqui apenas evidenciam que, embora a modalidade tenha crescido muito desde 83 para cada, ainda é necessário mais apoio e luta para estas mulheres que possuem apenas um desejo: jogar futebol.
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QUE TIME ELE TORCE UMA DISPUTA ENTRE PAIXÕES ENVOLVENDO O ESPORTE MAIS PRATICADO DO PLANETA CONTRA O AMOR FRATERNO POR LÍCIO SARAIVA
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ormalmente, os filhos são pressionados a seguirem o time da família, doutrinados e induzidos desde que nascem. Primeiros presentes de tios, pais e irmãos mais velhos costumam ser a camisa de algum time, bola, bandeira e até o uniforme completo de uma equipe. O filho já nasce num meio que o obriga seguir o time do pai. E quando isso não acontece? Entrevistados, um pai e um filho, torcedores de times rivais contaram um pouco sobre sua convivência, relacionamento e como fugiram desta “regra”. José Vidoeiro, de 55 anos, dono de um bar, pai e torcedor fervoroso do Sport Club Internacional e Bruno Vidoeiro, de 21 anos, motoboy, filho e torcedor fanático do Grêmio Foot-ball Porto Alegrense. “Eu sempre brinco dizendo que nasci gremista, mas me perdi no meio da torcida colorada, meu avô materno era gremista e me botou de volta no caminho certo”. Bruno também conta que no início foi bem complicado ele criar coragem com sete anos, para contar para o pai que havia mudado de time e se apaixonado pelo maior rival. Já o seu José não gostou nada desta mudança, fazendo até uma espécie de “gelo” com o filho. O pai comenta que, no fundo, se orgulhou do filho manter-se determinado a seguir aquela escolha e que em questões de dias o “gelo” encerrou-se com os dois jogando bola no pátio. Perguntados sobre as brincadeiras e provocações os dois riram bastante contando que o clima de brincadeira reina na casa durante o Campeonato 34
Brasileiro (Brasileirão Série A), Copa do Brasil e Libertadores (Copa Libertadora da América). Competições onde os dois times deles sempre entram como alguns dos favoritos. José conta que apesar do início conturbado e de difícil aceitação, hoje em dia ele diverte-se com o clima de provocações e rivalidade com o filho. “Acabo brincando muito com ele, sempre é divertido provocar um rival ainda mais um que não tem pra onde fugi já que moramos sob o mesmo teto”.
gritasse “vamos meu inter”, esse dia ele exagerou”. O pai rebateu dizendo que estava empolgado com o titulo do seu time e que em dois mil e dezessete, o filho fez o mesmo com ele, mas dessa vez mandando gritar “vamos grêmio”. “Apesar de alguns exageros a gente da muita risada com toda essa situação”.
LOGO QUE MEU FILHO DISSE QUE PASSARIA A TORCER PRO GRÊMIO, EU PASSEI A IGNORA-LO PARA VER SE ELE ABANDONAVA ESSA IDEIA, MAS O GURI NUNCA MAIS VOLTOU ATRÁS”
Perguntados sobre como eles se organizavam em casa para assistir ao Gre-Nal (Clássico Gaúcho, conhecido Internacionalmente). Logo o clima de rivalidade voltou e disseram que olham os jogos sozinhos. Os dois explicaram que já tentaram muitas vezes assistirem aos jogos juntos, mas acabam acontecendo muitas brigas e inúmeras discussões. Preferem olhar a partida separados, cada um em um quarto, e as únicas comunicações são na hora do gol, quando rolam as diversas provocações e gritarias. “Em dia de jogo esses dois são insuportáveis berrando a todo o momento”, complementou Carolina, mãe de Bruno e Esposa de José. Brincando com Bruno sobre seu filho de um ano, pergunto como ele vai fazer caso o filho decida torcer pelo rival igual ao avô. “Acho que meu pai vai adorar essa ideia, mas eu não. Aproveitando que meu pai vai adorar, ele que crie o neto”. Seu José brincou dizendo que criava, e que com essa criança ele não ia errar.
JOSÉ VIDOEIRO Por outro lado, Bruno desabafa dizendo que às vezes o pai pega pesado nas provocações e citou uma vez onde o pai exagerou. “Após a libertadores de dois mil e dez, onde o Inter foi campeão, meu pai saiu correndo atrás de mim jogando cerveja nas minhas costas, o detalhe foi que estava uma noite muito fria e ele me prendeu do lado de fora dizendo que só poderia entrar se
ESTRATÉGIAS PARA ASSISTIR AO CLÁSSICO GRE-NAL EM CLIMA FAMILIAR
A FORTE PRESSÃO NO PAÍS DO FUTEBOL
Segundo o sociólogo Cláudio Fontanari, é um absurdo obrigar uma pessoa tomar uma decisão antes dos dezoito anos. “Para dirigir são dezoito anos, para votar são dezesseis anos, como uma criança vai tomar tamanha decisão de torcer por um clube pelo resto de sua vida, e quem disse que essa criança vai despertar essa paixão por futebol?”. Para ele, o futebol ainda é instrumento de manutenção do
machismo na sociedade. “Isso é uma obrigação para o menino, poucas famílias quebram este elo entre menino e futebol.” No Brasil, conhecido como o “País do Futebol”, essa pressão torna-se muito pior para as crianças que crescem e se acostumam a assistir e conversar mesmo que nem goste tanto quanto os amigos e os pais. Afinal qual o problema dos outros esportes, por que não assistir e gostar?
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BANDIDO BOM NÃO É BANDIDO MORTO PROJETOS MOSTRAM QUE HÁ OUTROS CAMINHOS, QUE NÃO O DA MORTE, PARA RESOLVER O PROBLEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO POR GUILHERME MAIA
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m uma cela prevista para abrigar no máximo oito detentos, dormem o dobro ou até mais. Camas somente para os mais antigos, enquanto os que chegaram por último precisam se amontoar no pouco espaço que sobra. O saneamento básico e a fiação também não são dos melhores, há diversos tipos de doenças transmissíveis e os alimentos oferecidos, em muita das vezes, já chegam azedos para o consumo dos detentos. Essa rotina foi a vivida por Rodrigo Ramos, 36 anos, e João Luís, 37. Um gaúcho e outro carioca, que sequer se conhecem, mas que já vivenciaram o árduo dia a dia de penitenciárias brasileiras enquanto cumpriam suas penas. Mais que isso, suas vidas
são parecidas por outro motivo: eles também representam um pequeno número de ex-detentos que têm oportunidades dentro das cadeias e que seguem por outro caminho, que não o do crime, após deixarem as casas prisionais. Surgiram assim, os projetos “Reciclando Vidas” e “Eu Sou Eu - Reflexos de uma Vida na Prisão”, ações que encaram resistências na opinião pública, no staff administrativo e, principalmente, no âmbito da política, e oferecem possibilidades de reintegração para presos do regime fechado, semiaberto, aberto e também para egressos. Conforme apontam dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), por meio do Infopen, em 2019 o Brasil se
População Prisional em Programa Laboral Período de julho a dezembro de 2019 99.581
manteve como terceiro país com a maior quantidade de presos do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China. Segundo informações do próprio órgão, no ano passado havia mais de 750 mil detentos, o que também confirma um déficit superior a 50% do número de vagas disponíveis no sistema prisional brasileiro. Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo Gustavo Higa, “a prisão, e todo sistema de justiça criminal, precisa passar efetivamente por uma democratização, transparência e cumprimento da lei”. Higa ainda conclui comentando que “estamos falhando desde sempre em garantir os requisitos mínimos para a custódia dessas pessoas.”
População Prisional em Atividade Educacional Período de julho a dezembro de 2019 17416
Atividades Complementares Remissão através do Esporte
346 26862
Remissão através da Leitura
Ens. Superior
32.974
Ens. Médio
796 19077 40386
Ens. Fundamental
9.678 MASCULINO Trabalho Interno
1.978
FEMININO Trabalho Externo
Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
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Alfabetização 01
14790 0000 20000 30000 40000 50000 Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
EU SOU EU - REFLEXOS DE UMA VIDA NA PRISÃO Criado no ano de 2017 por João Luís e Cristiano Silva, amizade que surgiu no período que dividiram celas, o “Eu Sou Eu - Reflexos de uma vida na prisão” visa a acabar com uma crise de representatividade e potencializar as capacidades de pessoas que precisam ser notadas como indivíduos e não somente como ex-presidiários. Sem sede própria, o projeto busca por trabalhos em rede e utiliza a sala do “Elas Existem” programa voltado para atender apenas mulheres que cumprem ou já cumpriram algum tipo de pena -, localizada dentro do Complexo de presídio de Bangu, no Rio de Janeiro, para atender ao público.
QUEM PRECISA FALAR E RELATAR ISSO SOMOS NÓS. A GENTE NÃO PRECISA FICAR SENDO SOMENTE O MATERIAL SENDO ESTUDADO.” JOÃO LUIS Assim, o grupo, que conta, ainda, com a presença de Joyce, Bárbara e Erivelto (todos ex-egressos), atua em dois eixos considerados essenciais: o primeiro gira em torno dos detentos e seus familiares, em que são orientados sobre os direitos que podem acessar e que, muitas vezes, não são explicados e até
mesmo violados. Já o outro atua em relação ao meio acadêmico, nicho em que o trabalho é voltado para que a visão sobre a prisão seja mudada, não sendo analisada apenas como o local onde “sairão os futuros objetos de teses e monografias”, ressalta João.
RECICLANDO VIDAS Seguindo uma linha não muito diferente de atuação, Rodrigo também trabalha para promover soluções de combate ao precário sistema penitenciário. Faz isso dando palestras por todo o Rio Grande do Sul e em outros estados do país. O tema: sua história de vida. O objetivo: que jovens em situações de vulnerabilidade e ex-detentos não ingressem ou voltem para o submundo do crime - algo que ele conhece e não recomenda.
BANDIDO BOM NÃO É BANDIDO MORTO, MAS AQUELE QUE SE RESSOCIALIZA.” RODRIGO RAMOS Além de levar sua trajetória para escolas e organizações sociais, algo que realiza desde que saiu da prisão, em 2012, Rodrigo também abriu, quatro anos mais tarde, em parceria com o irmão, sua própria usina de reciclagem, localizada no bairro Bom Jesus, zona leste de Porto Alegre. A concretização de ter o próprio negócio foi muito mais do que a realização de um sonho ou provação de que a reintegração é
necessária, mas, sim, contribuiu para auxiliar diversas pessoas com histórias parecidas com a dele a terem um emprego digno e novas possibilidades. De um ano para cá, ele deixou a empresa com o outro responsável e se dedica, além das palestras em que o nome faz alusão a uma atividade tão presente em sua vida, a outra que considera essencial: a de educador no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA) de Porto Alegre, instituição de caráter público, sem fins lucrativos, e que atua em garantia e promoção de pessoas e de seus direitos fundamentais.
A BUSCA POR UM NOVO CAMINHO Exemplos como o de Rodrigo e João são apenas dois entre tantos outros de norte a sul do país que trabalham para acabar com este pré-conceito sobre a classe, encontrar soluções para amenizar os problemas vistos e descontextualizar jargões como “bandido bom é bandido morto”. A expectativa e a necessidade de uma reintegração correta, com estudo, ensino e, principalmente, a adesão do Estado e da sociedade em geral são os principais objetivos de projetos e pessoas que atuam nesta área. A busca é incessante para dar um fim aos diversos “não” sofridos, para que não haja mais muros levantados em suas frentes apenas por serem ex-detentos.É para que a prisão não seja vista ou utilizada apenas como um depósito de indesejáveis e sim que oportunidades e reinserções aconteçam.
EM BUSCA DE UMA NOVA REALIDADE PARA PRESOS GAÚCHOS Em contato com a Secretaria da Administração Penitenciária do Rio Grande do Sul, responsável pela Superintendência dos Serviços Penitenciários, através da LAI (Lei de Acesso à Informação), a Pasta, por meio do Serviço de Informação ao Cidadão, reforçou o seu objetivo na ressocialização, afirmando que “está preparada para reinserir detentos e ex-detentos à sociedade por meio de ações de tratamento penal, desenvolvidas por Departamento próprio para este fim”. A instituição ainda ressaltou que é preciso “o entendimento de que a responsabilidade do sucesso desses programas é de toda a sociedade, tendo em vista que estes cidadãos irão retornar ao convívio social.” 37
O PODER DO EXEMPLO A REPRESENTATIVIDADE COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO EM UMA SOCIEDADE QUE IMPÕE OBSTÁCULOS A PARTIR DA COR DA PELE POR LEO BARTZ
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ual a importância de pessoas se enxergarem e se reconhecerem nas mais diversas posições da sociedade? Que diferença isso pode fazer na vida de alguém? O que isso pode oportunizar? Essas perguntas, talvez, não tenham passado pela sua cabeça se você se reconhece como caucasiano/branco, já que crescemos em um ambiente onde foi naturalizado o acesso para uma determinada parcela da população, enquanto outra tinha esse direto usurpado. Mas, afinal, o que é representatividade? Para o Procurador do Estado do Rio Grande do Sul Jorge Luís Terra da Silva, 53 anos, o assunto tem raízes muito mais profundas. Para ele, antes de qualquer discussão, é preciso dividir a questão de diversidade, que está relacionada à quantidade de pessoas em proporção à população, e a representatividade, relacionada à posição ocupada por pessoas em determinados segmentos. Terra é um dos três procuradores negros do RS em um universo de mais de 400 profissionais. “Pelo cargo, um número três talvez já explique muita coisa”, diz o jurista formado em 1994, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde era o único negro da turma. A situação se repetiu no mestrado (2003-2007), ainda pela UFRGS, e no doutorado (2016-2019), na PUCRS. Para ele, o sistema de cotas é fundamental não só para quem se beneficia dele, mas também para toda a sociedade. “As cotas raciais são mais do que justas, elas são necessárias. Não é 38
o direito do João de ser médico, mas sim a contribuição que haverá para a medicina e instituições, quando no seio dela tiver diversidade”, destaca. Pai da Vitória, 15 anos, e do Pedro, 11, Jorge Terra salienta o peso que boas referências têm para que os jovens explorem ao máximo suas capacidades e alcancem lugares talvez não sonhados pelos seus pais. “As referências positivas são fundamentais para toda criança e jovem. Elas são capazes de expandir os limites”, diz Terra, lembrando da importância de estar hoje em um lugar de referência. “Não vejo como uma questão de vaidade, mas de responsabilidade”, ressalta. E todos fatores passam diretamente pela educação, pelas oportunidades e, claro, pelas referências. E é isso que a pedagoga Tatiana Couto Sandin Souza Paim, 43 anos, procura passar para seus alunos e também para a sua filha, Maya, de 9. Formada em 2001, pela PUCRS, ela se orgulha em ocupar locais onde, anos atrás, pensou que não poderia chegar. Crédito: Arquivo pessoal
Jorge Terra, Procurador do Estado
“Ouvia da minha mãe e avó que tinha de ir para a escola sempre muito bem arrumada, me comportar muito e tirar notas boas, pois era o único jeito de me destacar”, relata Tatiana, que atualmente leciona em um colégio particular de Porto Alegre.
“AS REFERÊNCIAS POSITIVAS SÃO FUNDAMENTAIS PARA TODA CRIANÇA E JOVEM” JORGE TERRA Com pós-graduações em educação infantil, inclusiva e alfabetização, encontrou no trabalho com crianças a sua vocação e usa essa posição para incentivar uma sociedade mais igualitária, com base no respeito às diferenças e à diversidade. “Quando a gente se enxerga em todos os lugares, crescemos sabendo que podemos estar em todos eles. Acredito que a minha filha terá uma visão e referências bem diferentes das que eu tive. É a possibilidade de sonhar, acreditar e ir atrás. Nós não tínhamos isso”, diz a professora, ao relatar a dificuldade que teve ao buscar referências durante a infância e adolescência. E é esse tipo de exemplo que a jornalista Fernanda Carvalho, 39 anos, buscou levar ao longo da carreira. Formada em 2007, na UniCEUB, em Brasília, estudou em uma turma de 45 alunos, na
Crédito: Arquivo pessoal
Fernanda Carvalho, jornalista da RBS TV, durante entrada ao vivo na emissora
é primeira pessoa da família que consegue ingressar em um curso superior”, defenda a jornalista. Na sua profissão, a maior referência era Glória Maria, já que o grande sonho no jornalismo sempre foi trabalhar na TV. Recentemente, Fernanda ocupou a bancada do RBS Notícias, telejornal de maior audiência do RS. Foi a primeira mulher negra a apresentar o noticiário. Mesmo com o reconhecimento, ela se assusta quando nota o impacto de ocupar este lugar. “Por questão profissional, cheguei nesse espaço. Ainda me assusto ao ouvir mães dizendo que as filhas me imitam quando assistem. Fico feliz de ter sido a primeira, mas espero que não seja a única”, finaliza. Segundo levantamento do IBGE, divulgado em 13 de novembro de 2019, em 2018, os pretos ou pardos passaram a ser 50,3% dos estudantes de ensino superior da rede pública no Brasil. Tornando-se maioria pela primeira vez na história. No mercado de trabalho, os pretos ou pardos Professora Tatiana Paim
Crédito: Arquivo pessoal
qual apenas nove eram negros. Ela associa a relativa mudança no cenário universitário no Brasil nos últimos anos ao sistema de cotas. “Ouço algumas pessoas se colocarem contra esse sistema, mas qual a outra solução? Nós temos dois problemas no Brasil: social e racial. Aqui, a pobreza tem cor”, diz Fernanda, ao expor que os problemas no país não se resumem a classes sociais. “Mesmo quando a diferença social some, a racial não desaparece. Eu posso ascender socialmente o máximo que puder, mas serei sempre negra e, em alguns momentos, vou sofrer com o racismo”, conclui a jornalista. E o problema, segundo ela, vai além. Fernanda acredita que seria preciso uma estrutura que amparasse jovens tanto na universidade quanto no momento em que partem para o mercado de trabalho. “As cotas raciais deveriam ser ampliadas, se ingressa hoje na universidade, mas ainda se encontra o mesmo mundo desigual fora. Muitas vezes, essa
representavam 64,2% dos desocupados e 66,1% da população subutilizada. E, enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos o percentual era de 47,3%. Mesmo que os números mostrem que estamos avançando quanto à diversidade nas universidades, devemos nos atentar a dois pontos: o problema da representatividade, apontado por Jorge Terra, que traz a ausência de negros em cargos de destaque, e os desafios nas vagas do mercado de trabalho, como apontou Fernanda Carvalho. Ainda que haja crescimento, não podemos comemorar o que deveria ser normal. O caminho para isso, como traz a professora Tatiana, está na construção de uma sociedade menos preconceituosa, lembrando que diretos iguais não são privilégios. Recitando uma frase que ela mesma disse, é simplesmente o direito de “sonhar, acreditar e ir atrás”.
NOTA DO REPÓRTER: Apesar de não ser negro, percebi que seria importante abordar na revista o debate sobre um tema tão recorrente e cruel: o racismo. A partir disso, entendi que seria fundamental falar sobre o assunto, mesmo que não seja meu lugar de fala. Mas as dúvidas surgiram logo no início. Quais os termos corretos para abordar a questão racial? Afinal, o mais adequado é falar negro ou preto? Seguindo a orientação dos entrevistados nessa matéria, ambas as expressões podem ser usadas. Não existe um consenso, já que se trata de uma questão de ressignificação. Por isso, ao longo de todo o texto, você vai encontrar as duas palavras de forma igual. 39
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