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O PODER DO EXEMPLO
A REPRESENTATIVIDADE COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO EM UMA SOCIEDADE QUE IMPÕE OBSTÁCULOS A PARTIR DA COR DA PELE
POR LEO BARTZ
Qual a importância de pessoas se enxergarem e se reconhecerem nas mais diversas posições da sociedade? Que diferença isso pode fazer na vida de alguém? O que isso pode oportunizar? Essas perguntas, talvez, não tenham passado pela sua cabeça se você se reconhece como caucasiano/branco, já que crescemos em um ambiente onde foi naturalizado o acesso para uma determinada parcela da população, enquanto outra tinha esse direto usurpado.
Mas, afinal, o que é representatividade? Para o Procurador do Estado do Rio Grande do Sul Jorge Luís Terra da Silva, 53 anos, o assunto tem raízes muito mais profundas. Para ele, antes de qualquer discussão, é preciso dividir a questão de diversidade, que está relacionada à quantidade de pessoas em proporção à população, e a representatividade, relacionada à posição ocupada por pessoas em determinados segmentos. Terra é um dos três procuradores negros do RS em um universo de mais de 400 profissionais. “Pelo cargo, um número três talvez já explique muita coisa”, diz o jurista formado em 1994, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde era o único negro da turma. A situação se repetiu no mestrado (2003-2007), ainda pela UFRGS, e no doutorado (2016-2019), na PUCRS. Para ele, o sistema de cotas é fundamental não só para quem se beneficia dele, mas também para toda a sociedade. “As cotas raciais são mais do que justas, elas são necessárias. Não é o direito do João de ser médico, mas sim a contribuição que haverá para a medicina e instituições, quando no seio dela tiver diversidade”, destaca.
Pai da Vitória, 15 anos, e do Pedro, 11, Jorge Terra salienta o peso que boas referências têm para que os jovens explorem ao máximo suas capacidades e alcancem lugares talvez não sonhados pelos seus pais. “As referências positivas são fundamentais para toda criança e jovem. Elas são capazes de expandir os limites”, diz Terra, lembrando da importância de estar hoje em um lugar de referência. “Não vejo como uma questão de vaidade, mas de responsabilidade”, ressalta.
E todos fatores passam diretamente pela educação, pelas oportunidades e, claro, pelas referências. E é isso que a pedagoga Tatiana Couto Sandin Souza Paim, 43 anos, procura passar para seus alunos e também para a sua filha, Maya, de 9. Formada em 2001, pela PUCRS, ela se orgulha em ocupar locais onde, anos atrás, pensou que não poderia chegar.
Crédito: Arquivo pessoal “Ouvia da minha mãe e avó que tinha de ir para a escola sempre muito bem arrumada, me comportar muito e tirar notas boas, pois era o único jeito de me destacar”, relata Tatiana, que atualmente leciona em um colégio particular de Porto Alegre.
JORGE TERRA
Com pós-graduações em educação infantil, inclusiva e alfabetização, encontrou no trabalho com crianças a sua vocação e usa essa posição para incentivar uma sociedade mais igualitária, com base no respeito às diferenças e à diversidade. “Quando a gente se enxerga em todos os lugares, crescemos sabendo que podemos estar em todos eles. Acredito que a minha filha terá uma visão e referências bem diferentes das que eu tive. É a possibilidade de sonhar, acreditar e ir atrás. Nós não tínhamos isso”, diz a professora, ao relatar a dificuldade que teve ao buscar referências durante a infância e adolescência. E é esse tipo de exemplo que a jornalista Fernanda Carvalho, 39 anos, buscou levar ao longo da carreira. Formada em 2007, na UniCEUB, em Brasília, estudou em uma turma de 45 alunos, na
Fernanda Carvalho, jornalista da RBS TV, durante entrada ao vivo na emissora
qual apenas nove eram negros. Ela associa a relativa mudança no cenário universitário no Brasil nos últimos anos ao sistema de cotas. “Ouço algumas pessoas se colocarem contra esse sistema, mas qual a outra solução? Nós temos dois problemas no Brasil: social e racial. Aqui, a pobreza tem cor”, diz Fernanda, ao expor que os problemas no país não se resumem a classes sociais. “Mesmo quando a diferença social some, a racial não desaparece. Eu posso ascender socialmente o máximo que puder, mas serei sempre negra e, em alguns momentos, vou sofrer com o racismo”, conclui a jornalista.
E o problema, segundo ela, vai além. Fernanda acredita que seria preciso uma estrutura que amparasse jovens tanto na universidade quanto no momento em que partem para o mercado de trabalho. “As cotas raciais deveriam ser ampliadas, se ingressa hoje na universidade, mas ainda se encontra o mesmo mundo desigual fora. Muitas vezes, essa é primeira pessoa da família que consegue ingressar em um curso superior”, defenda a jornalista.
Na sua profissão, a maior referência era Glória Maria, já que o grande sonho no jornalismo sempre foi trabalhar na TV. Recentemente, Fernanda ocupou a bancada do RBS Notícias, telejornal de maior audiência do RS. Foi a primeira mulher negra a apresentar o noticiário. Mesmo com o reconhecimento, ela se assusta quando nota o impacto de ocupar este lugar. “Por questão profissional, cheguei nesse espaço. Ainda me assusto ao ouvir mães dizendo que as filhas me imitam quando assistem. Fico feliz de ter sido a primeira, mas espero que não seja a única”, finaliza.
Segundo levantamento do IBGE, divulgado em 13 de novembro de 2019, em 2018, os pretos ou pardos passaram a ser 50,3% dos estudantes de ensino superior da rede pública no Brasil. Tornando-se maioria pela primeira vez na história. No mercado de trabalho, os pretos ou pardos representavam 64,2% dos desocupados e 66,1% da população subutilizada. E, enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos o percentual era de 47,3%.
Mesmo que os números mostrem que estamos avançando quanto à diversidade nas universidades, devemos nos atentar a dois pontos: o problema da representatividade, apontado por Jorge Terra, que traz a ausência de negros em cargos de destaque, e os desafios nas vagas do mercado de trabalho, como apontou Fernanda Carvalho.
Ainda que haja crescimento, não podemos comemorar o que deveria ser normal. O caminho para isso, como traz a professora Tatiana, está na construção de uma sociedade menos preconceituosa, lembrando que diretos iguais não são privilégios. Recitando uma frase que ela mesma disse, é simplesmente o direito de “sonhar, acreditar e ir atrás”.
C rédito: Arquivo pessoal
Professora Tatiana Paim
NOTA DO REPÓRTER:
Apesar de não ser negro, percebi que seria importante abordar na revista o debate sobre um tema tão recorrente e cruel: o racismo. A partir disso, entendi que seria fundamental falar sobre o assunto, mesmo que não seja meu lugar de fala. Mas as dúvidas surgiram logo no início. Quais os termos corretos para abordar a questão racial? Afinal, o mais adequado é falar negro ou preto? Seguindo a orientação dos entrevistados nessa matéria, ambas as expressões podem ser usadas. Não existe um consenso, já que se trata de uma questão de ressignificação. Por isso, ao longo de todo o texto, você vai encontrar as duas palavras de forma igual.