Blog de Papel # 5 - Transformação

Page 1

Edição 5 Porto Alegre Dezembro 2016-Julho 2017 Venda Proibida ESPM-Sul

Jornal da Faculdade de Jornalismo ESPM-Sul

Trans

Forma


AS REPORTAGENS DESTA EDIÇÃO

3

10

18

Anticoncepcional: o debate cresceu nas redes sociais RAÍZA VIEIRA

Mulheres negras escolheram resisitir MARIANA BARCELOS

Um novo perfil para as campanhas publicitárias GABRIELA M. ROCHA

4

Body Art: o corpo em constante transformação AMANDA XAVIER

12

Drag Kings ganham espaço em Porto Alegre

20

As histórias dos familiares Parto humanizado, a que são cuidadores participação das doulas

LUIZA RECK ORTIGARA

ANA CAROLINA DE MELO ALICE RICALDONE

6

Parto humanizado, a participação das doulas

14

Escola Ayni: um projeto para mudar a educação

22

O box como um projeto social transformador

ALICE RICALDONE

BRUNO PEDROTTI

LUCAS FERREIRA

8

Mulheres conquistam espaço no Exército

16

Os caminhos que a meditação apresenta

24

GABRIELA VEIGA

MARCELE MAGGI

Desafios dos casais que têm diferentes nacionalidades LEONARDO KALLER

EDITORIAL

Uma palavra para a pauta: transformação Ângela Ravazzolo A definição de uma notícia costuma estar relacionada à novidade, à surpresa, ao improvável – e o bom repórter vibra diante de uma história reveladora ou inesperada. A decisão de pautar esta edição do Blog de Papel partindo da palavra transformação está ligada a essa inquietação jornalística, em busca de um olhar diferenciado, de uma provocação ou de uma denúncia que consiga chacoalhar.

As 12 reportagens espalhadas pelas 24 páginas têm em comum essa vontade de apresentar ao leitor um viés diferenciado, uma história de alguém ou de algo que esteja ligada a essas metamorfoses essenciais, especialmente porque são elas que colocam em xeque as verdades prontas e os preconceitos que se repetem nas sociedades. Os temas escolhidos pelos repórteres desta turma abarcam um universo diverso, passando por pessoas que alteram o

próprio corpo com tatuagens, piercings e escarificações, por um empresário que deixou de lado os negócios para construir uma escola inovadora ou ainda pela discussão em torno do parto humanizado, com depoimentos emocionantes de mães e doulas que viveram experiências fortes ao longo de uma gestação. A provocação que esta edição pretende atiçar no leitor já começa com a imagem de capa, que surge a partir da reportagem que estampa a página central,

sobre drag kings, apresentando a história de quatro personagens interessantes e inquietantes. Orientar essas pautas e acompanhar o processo de edição do Blog de Papel número 5 confirmou mais uma vez que a profissão de jornalista é sim uma das melhores ferramentas para compreender e tornar pública a essência humana de estar sempre em transformação, a cada segundo, de preferência a caminho de um mundo melhor.

O jornal BLOG DE PAPEL é uma publicação semestral dos alunos do 4º semestre do curso de Jornalismo da ESPM-Sul. Direção do curso de Jornalismo: professora Janine Marques Passini Lucht. Equipe da Edição Número 5 (Dezembro/2016-Julho/2017): Alice Ricaldone, Amanda Xavier, Ana Carolina de Melo, Bruno Pedrotti, Gabriela Veiga, Gabriella Machado Rocha, Leonardo Kaller, Lucas Ferreira, Luiza Reck Ortigara, Marcele Maggi, Mariana Barcelos e Raíza Vieira. Coordenação editorial: professora Ângela Ravazzolo. Foto de capa: Luiza Reck Ortigara. Orientação de fotografia: professores Renata Stoduto e Manuel da Costa. Coordenação de Design Editorial e Produção Gráfica: professor Marcelo Halpern. Criação do nome do Jornal Blog de Papel desenvolvido por Micaela Ferreira e Richard Koubik e projeto gráfico por Eduardo Diniz e Marcos Mariante. ESPM-Sul – Rua Guilherme Schell, 268 e 350 - Santo Antônio - Porto Alegre - RS, 90640-040 - (51) 3218-1300.

2


A PÍLULA EM XEQUE

Anticoncepcional: libertador a que preço? Foto: Raíza Vieira

Raiza Vieira

As mulheres descobriram nas redes sociais um espaço para questionarem e dialogarem sobre métodos contraceptivos Apesar do grande papel na libertação sexual da mulher, o anticoncepcional tem sido alvo de uma série de acusações sobre os danos que causa e as precauções que exige. Grande parte do diálogo sobre o uso da pílula, hoje, ocorre nas redes sociais. Larissa Ely, 23 anos, estudante de design, utilizou seu perfil no Facebook para questionar métodos contraceptivos, abrindo espaço para que outras meninas expusessem suas experiências. Em 2015, Larissa descobriu que sofria de tromboembolismo. Estava com coágulos na clavícula esquerda. Após uma série de exames em busca da origem do problema, sem ter solucionado a questão, a estudante decidiu parar com a pílula anticoncepcional assim que acabasse o tratamento para os trombros. Junto a sua ginecologista, passou a buscar métodos contraceptivos alternativos à pílula e não hormonais. Preocupada com os riscos do contraceptivo oral, Larissa expôs uma questão pessoal no seu perfil no Facebook para saber a opinião das outras meninas. Mas Larissa não foi a única. Neste ano de 2016, foram publicados em diversos veículos relatos sobre os efeitos colaterais da pílula, o que causou uma espécie de movimento em rede em que as mulheres passaram a questionar o uso. No questionamento levantado por Larissa no Facebook, Diana Manenti, 34 anos, atriz e produtora cultural, encontrou um espaço para compartilhar sua história. Após

Larissa Ely utilizou o Facebook para questionar os métodos contraceptivos

«Eu acho que a gente está no meio de um despertar coletivo.» Larissa Ely anos utilizando métodos contraceptivos como pílula e DIU, passou a vez para o marido, que não queria outro filho. “Aproveitei e disse assim: ‘Olha, já que é tu que não quer ter filho, eu não vou tomar nada’. Porque eu realmente estava a fim de dar um tempo, então agora é tu que vai ter que cuidar”, confidencia Diana. Nas décadas de 1960 e 1970, o anticoncepcional foi visto como libertador. Para a médica Elizandra Masi, ginecologista e obstetra na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o anticoncepcional foi uma “questão da evolução da mulher, da revolução feminina, da mulher poder controlar quando vai gestar ou não”. Hoje, uma vez aberto o questionamento nas redes sociais, também

se discute o papel do homem na prevenção gestacional. “O corpo feminino tem sofrido ao longo de toda história a medicalização de sua natureza, seja a contracepção, a reposição hormonal, e sempre a partir de um modelo onde a sociedade quer controlar nossos corpos de acordo com seus valores, do papel da mulher na sociedade e não a partir de nossa liberdade de decidir”, argumenta Kátia Souto, ex-coordenadora nacional da União Brasileira de Mulheres e ex-Conselheira Nacional de Saúde. Para Kátia, as redes sociais têm sido, sim, uma forma de informar e mobilizar quanto à questão da contracepção. “Precisamos discutir a contracepção como responsabilidade de homens e mulheres” reforça. Isso seria, também, reflexo do movimento feminista, que traz à tona o debate sobre o cuidado com o corpo e a noção de pertencimento. “Reivindicamos o direito ao conhecimento e à decisão sobre o método que desejamos e que melhor atende à realidade de cada uma”, conclui.

Quanto aos efeitos, dados coletados em pesquisa realizada pela Sanofi, grupo farmacêutico, afirmam que, a cada dez mil mulheres, de seis a doze sofrem anualmente de tromboembolismo devido ao uso da pílula anticoncepcional combinada. “Em mulheres com tendências à formação de coágulos, a pílula pode aumentar o risco de acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI)”, afirma Marcos Wengrover Rosa, chefe do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Após anos utilizando o método, Isabelle Moura, empresária, 21 anos, optou pela não utilização da pílula devido ao histórico familiar. Além da escolha por um estilo de vida mais natural, uma das coisas que pesou na decisão de Isabelle foram os dois AVCs que sua mãe sofreu, um deles aos 21 anos de idade e outro recentemente, em 2014. Com supervisão da ginecologista, Isabelle passou por uma série de exames em que ficou comprovada sua predisposição para o desenvolvimento de coágulos. A médica Elizandra Dutra Masi alerta: “A maioria das pacientes não sabe seus históricos familiares”. O fator de risco é a predisposição, por isso é importante não iniciar por conta própria o tratamento. Agora, o que as experiências dessas três mulheres têm em comum? O questionamento. Seja por acaso ou por curiosidade, todas questionaram o uso da pílula. Cada uma a sua maneira. “O que seria mágico? A gente não usar nada de hormônio atualmente”, conclui a médica Elizandra, apesar de reconhecer os benefícios da pílula, principalmente para as mulheres que necessitam tomar por questões patológicas. 3


IDENTIDADE NA PELE

Body Art: a transformação do corpo como movimento artístico A modificação da forma natural pode incluir tatuagens, piercings ou cicatrizes que compõem desenhos Foto Wagner Ribeiro

Amanda Xavier

H

á quem corte o cabelo todo mês, quem opte por trocar a cor, há quem mude o estilo de roupa conforme o humor. Modificações para fugir da rotina, mesmo que seja uma simples questão estética. Porém, algumas pessoas optem por utilizar adornos como piercing, tatuagens, implantes, alargadores e escarificações. A busca por transformar a forma natural do corpo leva pessoas a se sujeitarem a dores severas em rituais que exigem o domínio da mente. “Eu sempre tive interesse em conhecer mais sobre essas histórias, saber quem fazia o que, como começou, e o motivo dessas práticas serem fortemente demonizadas”, diz Thiago Soares, ou T. Angel, como prefere ser chamado, ao contar sobre o projeto de iniciação científica a respeito de modificações corporais no Brasil entre 1980 e 1990. Hoje, aos 34 anos, o historiador paulista conta que sempre se interessou por corpos que fugiam da lógica normativa. Já para o produtor de eventos underground Maurício Rainery, as modificações surgiram aos 13 anos, quando começou a frequentar grupos punk em Porto Alegre. Ele conta que, na época, praticava balé clássico. “Eu comecei pelos cabelos coloridos, e aquilo começou a me cativar. Com 13 anos, fiz a minha primeira tatuagem, e com 15 eu já tinha 21 piercings pelo corpo inteiro”, conta. Aos 17, ele já havia feito escarificação – técnica que utiliza cicatrizes para formar desenhos na pele –, língua bifurcada e suspensão corporal. Hoje, com 30 anos, pretende completar 100% do corpo com tatuagens e fazer o eyeball tattoo, porém conta que ainda não realizou a pigmentação do globo ocular pois tem medo dos riscos. “Não existe nenhum registro no 4

Brasil de que a prática é segura, tem gente ficando cega com isso”. Apesar de ainda causarem estranheza na sociedade, surgiram no Brasil antes mesmo da colonização. “Na realidade, o processo de colonização é sem dúvida uma das respostas sobre a demonização das práticas de modificação do corpo no Brasil.”, ressalta T. Angel. Com a disseminação da internet, um crescimento significativo se deu no cenário da body art, porém T. Angel comenta que os resquícios da ditadura militar ainda estão arraigados na sociedade e impactaram diretamente na liberdade sobre o próprio corpo. “É como se aos poucos fôssemos descobrindo que temos um corpo e que ele pode ser configurado para atender às nossas demandas e necessidades individuais”, ressalta. Alexandre Anami, 28 anos, é body piercer em São Paulo e começou suas modificações aos 15 anos, pois sempre se identificou com a cultura indígena. Quando questio-

«As pessoas só olham o lado extremo, horrível, ninguém lembra do silicone, do nariz que tu tira, da lipoaspiração que tu faz… » Maurício Rainery nado sobre os motivos pelos quais ele busca as motivações, ele responde: “Estética, autoconhecimento e superação pessoal”. O body modifier tem tatuagens por todo o corpo, piercing microdermal (parte do implante fica exposto para fora da pele), eyeball tattoo, implante subcutâneo em forma de um soco inglês, escarificação e bifurcação

da língua. A cada modificação feita, Alexandre conta que está evoluindo como pessoa e se autoconhecendo. Antes de se modificar, ele conta que se sentia nu. “Hoje me sinto completo”, comenta. O domínio da dor é rte da body art. As suspensões corporais, nas quais os praticantes perfuram a pele com ganchos e são pendurados em diversas posições, têm adeptos de diferentes idades, gêneros e meios sociais. Existe o questionamento se a suspensão pode ser classificada como modificação. Para T. Angel, ela pode ou não ser considerada. “Sim, pois a suspensão deixa cicatriz na pele e causa uma espécie de transformação interior. Não, pois o processo é outro. As pessoas não fazem a suspensão por conta da cicatriz que pode deixar, mas por todas as outras coisas. A experiência em si tem um peso significativo.” Maurício pratica suspensão desde os 15 anos e já fez pelas costas,


pelo joelho e pela barriga. Ele explica que, além do ritual artístico e da performance, também busca a meditação. “Eu brinco como se aquilo fosse um nirvana, tu tá ali, mas tu não tá. É como se fosse um estado de coma, é muito estranho, mas depois quando balança, a endorfina vem, e aí não tem nada, não tem droga, bebida, nada que vai superar aquilo ali”, conta. A modificação tem um significado pessoal para cada adepto, no entanto, para todos é uma questão de identificação. Para Alexandre, é sinônimo de autoconhecimento. Para Maurício, é a busca da estética satisfatória. E para T. Angel, é empoderamento. A body modification é uma forma de encontrar no próprio corpo um novo olhar. “Eu era uma pessoa muito complexada, odiava o meu corpo e tudo o que ele representava. Através das modificações corporais – e todas as experiências que vêm junto – eu fui ganhando um corpo, passei a ter o importantíssimo amor próprio e isso é poderoso”, comenta T. Angel. A antropóloga Cláudia Machado de Souza, formada pela Universidade Federal Fluminense, conta que a body art é caracterizada pelo deslocamento do corpo como instrumento para objeto da ação artística, que pode ser entendida pelo uso de técnicas como a tatuagem, os piercings e a body modification, ou também por construções artísticas como os freak shows. “A body modification é um saber da body art, porém, só pode ser entendida como arte por aqueles que possuem os códigos para entendê-la. Desta forma, não se pode considerar os corpos transformados pela body modification apenas como arte, eles

são expressões na carne da identidade dos indivíduos”, explica Cláudia. Maurício faz freak shows e performances com suas transformações. Ele lembra do presente de aniversário que deu ao namorado, quando preparou uma apresentação colocando 15 agulhas com velas de aniversário presas na ponta em cada braço formando um bolo vivo. “A gente está tentando tirar essa visão de que o freak show é bizarro, e levar isso pra body art”, comenta.

Preconceito atrapalha Quando o assunto é o mercado de trabalho, é ainda mais complicado. T. Angel afirma que o sistema é excludente, segregativo e autoritário. “Enquanto as pessoas que trabalham com esses processos estão buscando a melhor justificativa para excluir alguém, é esse sistema fascista de vida que está vigorando. As modificações corporais nesse esquema é apenas a gota que transborda o gargalo do ódio e é disso que se trata, não se enganem”, alega. Maurício relembra de uma experiência que teve ao participar de uma entrevista de emprego para uma loja para jovens e foi eliminado pela aparência. “Eu cheguei lá, e logo o gerente me disse ‘ah, pelo teu currículo eu imaginei que fosse outra pessoa’, e afirmou que não iria rolar pelo meu estilo”, conta. O preconceito é algo que, diariamente, os modificados enfrentam, no entanto, ao longo do tempo, cada um aprende a lidar com isso da melhor maneira para si. Alexandre prefere não falar sobre o assunto. Maurício procura sem-

Riscos à saúde Qualquer modificação corporal tem um risco se não for bem cuidada e feita com profissional qualificado. A dermatologista Vanessa da Cunha, da Sociedade Brasileira de Dermatologia, explica que procedimentos invasivos como a body modification pode evoluir de uma pequena infecção até doenças mais graves como o HIV, dermatite e hepatite. “Se o profissional não fizer a higienização correta, não usar materiais adequados e

pre agir com tranquilidade. “Uma vez eu estava caminhando com um amigo e um homem simplesmente atirou uma bíblia nas minhas costas e começou a me chamar de filho do demônio, mas eu respirei, alcancei a bíblia dele e segui meu caminho”. T. Angel sofreu isso dentro de casa e conta que sempre esteve preparado para qualquer tipo de julgamento que fosse possível. Entretanto, não esperava que veria pessoas se afastando. “A gente não acha que alguém da família ou um amigo próximo vai agir como se nunca tivesse te conhecido, por um adorno que se faz no corpo, mas acontece sim. E isso me incomoda por se tratar de uma relação de posse, controle e dominação muito mais do que de amor. Isso fere a relação de autonomia que as pessoas precisam ter para viverem bem e isso me soa bastante cruel. Mas com o tempo você também vai construindo novos laços, refazendo novas relações de afeto, construindo uma família que te aceita”, comenta. Por ser de uma família cristã e pobre, T. Angel diz que foi um grande problema fazer com que os pais entendessem e respeitassem que as modificações fazem parte da personalidade dele. “Meu pai antes de falecer costumava dizer que me via além do corpo, que via minha essência e para mim isso é valioso, por saber o esforço que ele fez em desconstruir toda uma lógica maniqueísta que fazia muito sentido pra ele por muito tempo. Minha mãe hoje é a minha grande parceira e é lindo saber que tivemos tempo para superar as diferenças e, melhor do que isso, abraçar e saudar essas diferenças como a poesia mais bonita que essa vida nos dá.”

esterilizados, um desejo estético pode se tornar um problema para o resto da vida”, ressalta a médica. Além disso, Vanessa conta que a saúde física não é a única a ser afetada com procedimentos como esses. “Do ponto de vista psicológico, o arrependimento é um grande risco que os modificados sofrem. A gente cansa de receber pacientes que querem tirar alguma tatuagem, por exemplo, quando desenham o nome de namorado”, conta. A dermatologista também comenta que a grande luta dos médicos é para que a

«Olhando para trás e pensando no quanto eu me odiei, sinto que dei importantes passos no sentido do amor próprio e da autoaceitação.» T. Angel

legislação de estabelecimentos que fazem essas modificações seja mais rigorosa. “Nós, como médicos, temos uma fiscalização rigorosíssima nos consultórios, é uma série de alvarás a serem emitidos, os aparelhos têm ter certificação da Anvisa, e a maioria desses profissionais sequer tem noção mínima de higiene”, ressalta. Ela diz que não acredita que esses procedimentos devem ser feitos apenas por médicos, no entanto, devese ter uma fiscalização estabelecida para tais práticas.

5


TRANSFORMAÇÃO DO PARTO

Mulheres

protagonistas

Alice Ricaldone

H

á quatro anos, Carolina Bastos foi ao ginecologista contar que estava grávida da primeira filha. Ela estava com duas semanas de gestação. Para o médico, já era hora de marcar a data da cesárea. Para Carolina, era importante ter liberdade de fazer escolhas no momento de dar à luz e passar por esse processo da forma que considerava a mais natural possível, como ela sabia que poderia ser. Dentro do consultório, Carolina percebeu que tinha perdido a autonomia sobre o seu próprio corpo e, no fim da consulta, decidiu que iria ajudar outras mulheres que se sentiram como ela a recuperarem o protagonismo na hora de dar à luz. Carolina Bastos hoje é doula. Doulas são mulheres que assistem futuras mães durante o processo gestacional e durante a hora do parto, seja ele normal ou cesárea. Elas dão suporte físico e emocional para as mulheres, além de oferecer informações e conselhos para que cada gestante decida o que é melhor para ela e para a sua família. Mas o maior propósito da doula é garantir que as mulheres tenham um parto seguro, memorável e empoderador. Carolina Bastos concluiu o curso de capacitação de doulas há um ano e meio, além disso, é formada em biologia pela PUC-RS e doutoura em fisiologia e farmacologia. Carolina aceita pacientes, ou doulandas, a partir de 33 semanas de gestação, que tenham acompanhamento obstétrico e que não tenham sofrido nenhuma intercor-

6

Foto: Paloma Fantini, divulgação

Parto assistido por doulas é uma alternativa para grávidas que buscam maior autonomia sobre seu corpo

“Uma roda de mulheres na volta dando força e empoderamento a outras mulheres faz toda a diferença.”

Carolina Bastos é doula há um ano e meio e ajuda mulheres a recuperarem a autonomia durante a gestação

rência. A gestante, então, tem a possibilidade de contratar o pacote de serviços oferecidos por Carolina no valor de R$ 1,600. O pacote inclui duas consultas pré-parto, acompanhamento do parto e uma visita pós-parto ainda no hospital. Durante as consultas pré-parto, a doula procura conhecer as expectativas e as possibilidades da gestante, assim como conversar e esclarecer dúvidas sobre o plano de parto e o puerpério. “O trabalho pré- parto que a gente tem que fazer muito bem, é de orientação, para que as mulheres, quando estiverem pas-

sando pelo processo, façam as melhores escolhas que acharem pra si”, afirma Carolina. A psicóloga porto-alegrense Milene Furlanetto engravidou de Mel há dois anos. Assim como a doula Carolina, Milene ouviu de sua médica, logo no início da gestação, que deveria marcar a data da cesárea, mesmo depois de expressar sua vontade de conceber de forma natural. “A médica começou a fazer terrorismo e eu sabia que a maioria dos médicos quer empurrar pra uma cesárea sem indicação”, conta a psicóloga. Após a

consulta, Milene trocou de obstetra e passou a frequentar aulas de ioga para gestantes. Foi na ioga que ela conheceu sua futura doula, Fabiana Panassol, que, além de ministrar as aulas, ajudava gestantes com a parte psicológica da gestação. Milene conta que encontrou em Fabiana a assistência emocional que procurava. “Na época, eu estava assustada, o meu medo era entrar no hospital e me levarem a fazer uma cesárea”, relembra. No dia em que Mel nasceu, Fabiana acompanhou Milene até onde pôde, mas, com a chegada


do marido na sala de parto, a doula teve que se retirar, pois a lei só garante a presença de um acompanhante. “A presença do Pedro foi diferente, porque ele estava que nem eu, no mesmo processo e ela não, ela tinha uma coisa mais profissional, então eu sentia mais protegida por ela estar junto.” Mesmo sem poder acompanhar a gestante até o final, a presença de Fabiana fez muita diferença para Milene: “Se ela tivesse ficado comigo na hora, talvez eu não tivesse nem tomado anestesia.” O medo que Milene sentiu é justificado. Em 2015, mais da metade dos bebês brasileiros nasceram de partos realizados por meio de cirurgia - um índice que chega a 84,6% na rede particular -, segundo a Organização Mundial da Saúde. O órgão recomenda que a taxa fique entre 10% e 15% . Desde 2012, a advogada pelotense Laura Cardoso pesquisa sobre violência obstétrica. Segundo ela, a violência obstétrica ocorre “quando se dá uma atenção desumanizada e quando há desrespeito à autonomia da mulher.” Laura é militante na luta para conseguir devolver às mães o protagonismo e garantir a elas o direito de escolher a melhor forma de receber o bebê, garantindo que cada vez mais mulheres tenham direito ao parto humanizado. Muitos conceitos têm sido adotados para definir o que é a humanização do parto, mas, para a advogada, é uma visão nova do modelo obstétrico. “Todos têm em comum o respeito à mulher como

protagonista e o foco na saúde do bebê.” Para Laura, as doulas são um fator importante na mudança do cenário atual. “O parto não é um ato médico somente, eu tenho a doula que pode atuar enquanto o médico não está ali, eu tenho aquela doula que pode ir na casa da gestante quando ela inicia o trabalho de parto, fazer com que aquela gestante permaneça o maior tempo no seu ambiente natural.” Qualquer mulher com mais de 18 anos pode ser doula, a atividade não exige nenhum tipo de formação. A OMS e o Ministério da Saúde reconhecem as vantagens da presença da doula no parto, mas ainda não há um reconhecimento da profissão, portanto não existe sindicato nem regulamento formal, o que dificulta a permanência das doulas dentro das maternidades. O obstetra Michel Kaé acredita que “as doulas, por não serem técnicas de saúde, não devem estar presentes durante os procedimentos.” Para o médico, a falta de conhecimento dos procedimentos e do protocolo hospitalar podem colocar tanto mães e bebês em situações de risco quanto o próprio médico, já que, “qualquer intercorrência com a gestante dentro do hospital é de responsabilidade médica.” Para a doula Carolina, a regulamentação da atividade é um processo lento mas que faz toda a diferença: “Uma roda de mulheres na volta, dando força e empoderamento a outras mulheres, faz toda a diferença.”

Foto: Alice Ricaldone

A psicóloga Milene Furlanetto, com a filha Mel no colo, optou pelo acompanhamento de doula

Diretrizes para o parto normal

O que diz o Cremers

O Governo Federal lançou em 2017 uma publicação inédita contendo as diretrizes de assistência ao parto normal no Brasil. Foi a primeira vez que o Ministério da Saúde construiu e publicou um documento com essa finalidade, baseado em evidências científicas e que serve de consulta para os profissionais de saúde e gestantes. Você pode acessar a versão resumida no seguinte link: https://goo.gl/uBUBPV

A obstetra e conselheira do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul Maria Lúcia Oppermann garante que o Cremers têm o máximo interesse em apoiar e expandir as técnicas de humanização do parto pelos obstetras. “assegurando a saúde e integridade da mãe e do bebê com interferência médica reduzida ao estritamente necessário.” A médica também faz questão de destacar que “a regulamentação da

profissão de doula, as exigências para sua formação, área e limites de atuação fogem totalmente à competência do CREMERS, que se concentra somente na fiscalização da atividade médica.” Em Porto Alegre, os vereadores rejeitaram, em 2016, o projeto de lei que obrigava a presença de doulas em maternidades, hospitais públicos e privados em trabalho de pré-parto, parto e pós-parto.

7


FORÇA ARMADA FEMININA

Mais um passo de coturno,

menos um degrau de desigualdade Pela primeira vez na história das Forças Armadas, mulheres têm o direito de entrar na linha de combate do Exército Brasileiro

Gabriela Veiga

S

ão 5h49min da manhã de segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017. Em campinas, interior de São Paulo, o sol ainda nasce enquanto o soldado em escala de serviço prepara a corneta dourada e se coloca próximo à bandeira nacional. Às 5h50min, posicionando, então, o instrumento sobre a boca, ele enche o peito de ar e deixa soar canção que anuncia o toque de alvorada: o dia começa para todos os meninos e, pela primeira vez, meninas na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, EsPCEx. Essa é a primeira vez que o estabelecimento de ensino militar do Exército, responsável por iniciar os jovens no Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência, recebe cadetes mulheres. Após um ano de preparação na Escola, se aprovados, os estudantes prosseguem para o curso de formação de oficiais das armas (na Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN), onde passam mais quatro anos. Para Isabele Lazzari, cadete da primeira turma feminina da EsPCEx, o caminho até o espaço que ocupa hoje não foi nada fácil. A estudante conta que, durante dois anos, estudou integralmente para o concurso que abriria em 2016. “No começo, estava em dúvida em qual das Forças eu ia servir. Mas, quando fiquei sabendo que poderíamos ir pro Exér-

8

cito, não tive mais dúvida. Tentei pra aeronáutica e pro Exército. Fui pro EB”. Filha de militar e ex-aluna do Colégio Militar de Porto Alegre, Isabele cresceu envolvida nesse meio e, apesar disso, seu desejo nem sempre foi seguir a carreira. “Antes eu queria fazer faculdade mesmo. Mas, com o tempo, fui percebendo todos os benefícios que teria”. Isabele destaca que não existe a profissão perfeita. Ela optou pela carreira militar mesmo conhecendo de perto as dificuldades que enfrentaria no percurso. Beatriz Gutierres, também aluna da EsPCEx, conta que sempre admirou a carreira dos pais, desde pequena. “Quando entrei no Colégio Militar de Campo Grande, em 2013, eu confirmei essa minha vontade de ser militar. Eu ficaria satisfeita em qualquer área militar, mas conseguir ingresso na linha de combatentes do Exército foi um bônus”. A estudante admite que não é fácil a rotina de cadete do exército. “Até que o meu corpo está se adaptando, mas tem dias que ainda é muito difícil. Ainda mais ficar longe muito tempo da minha família. Foi o pior de se acostumar”, completa Beatriz. Segundo ela, muitas desistências acontecem depois de longos feriados em que os alunos voltam para visitar suas casas e percebem a falta dos familiares. “Eu voltei duas vezes para casa, mas por um curto período de tempo. Foi emocionante, muito gostoso poder revê-los. Mas, na hora de voltar, é sempre di-

« Dormir pouco e ainda ter uma rotina física e psicologicamente pesada é difícil no início. » Isabele Lazzari fícil se despedir. O que me motiva certamente é meu o futuro”, conta. Isabele relata que nos quatro meses de moradia nas instalações da EsPCEX, as mudanças radicais na sua rotina foram complicadas de lidar no começo. “Nunca tinha me distanciado por tanto tempo da minha família e aqui eu faço muito mais coisas do que em casa. Desde o momento que acordamos até o momento de dormir, não há um segundo que estejamos no ócio. É tudo muito diferente”, conta. A rotina dos cadetes começa cedo: antes das 6h da manhã, com o toque de alvorada. Dentre as atividades que realizam diariamente, estão aulas de física, química, cálculo, português, história, inglês e espanhol, bem como treinamento físico e militar – como corrida, ginástica, natação e circuitos de combate. Em alguns dia da semana, as alunas ainda têm palestras sobre temas diversos para complementar as instruções diárias – nesses dias, as atividades costumama se estender até as 21h. Toda

essa rotina é mantida rigorosamente e é finalizada apenas às 22h, com o toque de recolher. “O mais difícil pra mim atualmente tem sido o físico”, explica Isabele. Segundo ela, apesar da boa forma, o treinamento é puxado porque é direcionado para formar combatentes. Por isso, o preparo físico nesses concursos é decisivo para a aprovação. A estudante relata que, quando prestou o concurso, já tinha esperança de passar na prova intelectual, mas não sabia se sua classificação seria suficiente para fazer as outras etapas. “Aí que comecei meu verdadeiro preparo para, caso fosse chamada, passasse na segunda e terceira fase também”, explica. A segunda fase do concurso trata-se da parte médica, em que o candidato é submetido a uma bateria rigorosa de exames médicos avaliando suas condições físicas para exercer as atividades na Escola. O candidatos ainda precisam ter no mínimo 1,60 de altura para homens e 1,55 para mulheres, bem como conseguir realizar abdominais, flexões de braço e corrida. Beatriz Gutierres conta que, desde sua chegada no alojamento da Escola Preparatória, percebe o quanto mudou. “Hoje me sinto muito mais independente. Me arrisco mais e também sou mais disciplinada e responsável. No momento de viajar, eu não sabia o que me esperava aqui, não conhecia Campinas, confesso que estava um


Arquivo pessoal

pouco perdida. Mas hoje percebo o quanto fiz a escolha certa”. Segundo o tenente Bruno Oliveira, da Seção de Comunicação Social da EsPCEx, a demora na abertura de vagas para o público feminino ocorreu em função das reformas institucionais e estruturais que se fizeram necessárias para que mulheres pudessem utilizar as instalações da Escola. “A gente está passando por um ano de experiência. Existe uma série de ajustes que está sendo discutida para os próximos anos”. Por esse mesmo motivo, o oficial explica que não há previsão para a abertura de mais vagas para mulheres. “Tudo vai depender de como tudo acontecer durante este ano”, completa. Ainda no primeiro ano de concurso, com 10% das vagas oferecidas para mulheres, já houve uma grande procura feminina. Em 2016, dos 29 mil inscritos no concurso, 7,7 mil eram mulheres. As 40 vagas ofertadas compunham uma média de 192,5 candidatas por vaga. Fagner Souza, do curso preparatório Azambuja, conta que a previsão do Exército para 2017 é de que o número de inscritos che-

gue a 40.000 no total, tendo cerca de 15.000 mulheres inscritas. “Acredito que o número só não tenha sido maior em função da incerteza de abertura da turma feminina. Muitas vezes, o número de vagas, ainda pequeno para mulheres, e o fato de ser um concurso nacional assusta”. Desde o ano passado, Souza afirma que já houve um aumeno de 50% da procura feminina pelos cursos preparatórios para o concurso da EsPCEx somente na unidade de Porto Alegre. Para Isabele Lazzari, apesar das expectativas negativas quanto ao relacionamento com o contingente masculino dentro da instituição, ela conta que “existe um companheirismo muito grande entre os colegas de farda”. Beatriz Gutierres concorda. A estudante relata que, apesar de um certo preconceito por parte de alguns alunos, no geral, todos se relacionam bem na Escola Preparatória. “A maior diferença em relação ao efetivo masculino é quanto às próximas etapas do processo de formação, porque a gente já não tem muita certeza do que vai acontecer, já que somos uma turma teste”, afirma. “Mas sem dúvidas estamos a menos um degrau na desigualdade de gênero.”

« Chegar aqui mostra que as mulheres podem ir aonde elas bem quiserem e que, apesar de muitas barreiras, temos em nós mesmas capacidade para superá-las. » Beatriz Gutierres (ao fundo na foto)

9


ORGULHO NA CABEÇA

Agora você já pode voar,

blackbird!

Mulheres negras escolheram resistir e manter seus cabelos naturais não só por elas próprias, mas pelas que ainda virão Mariana Barcelos

J

410

uma coisa que eu acho importante nessa história toda, que é a moda. Acho que o padrão de cabelo afro natural é a moda. Isso está trazendo para os dias atuais a valorização da personalidade. Tu não é obrigado a ter o cabelo afro, tu usa o que tu quer. As pessoas estão se reconhecendo e isso é muito importante. A autoestima da mulher negra precisa ser valorizada sempre”. Para a estudante de enfermagem Mariana Pairé, de 23 anos, o apoio da família na infância foi importante para que ela mantivesse seu cabelo sempre natural: “Quem cuidou do meu cabelo desde o nascimento foi minha mãe. O cuidado que ela tinha era motivo de muito orgulho para a família”. Sobre os comentários que escutou das pessoas no início da adolescência, a

estudante diz: “Pelo meu trabalho de modelo, sempre me acostumei com estranhos mexendo em meu cabelo. Já na escola eu sentia diferença. As crianças aprendem muito cedo que a diferença pode fazer os outros rirem, por mais que as minhas tranças não agredissem tanto quanto um black power, sempre recebi comentários e as pessoas querendo constantemente tocar em meus cabelos”. A manicure Gleice Soares da Rosa, de 43 anos, fala da época em que começou a alisar os cabelos: “Comecei a alisar com 16, 17 anos, porque as pessoas diziam que era mais prático para cuidar. Mas eu comecei a alisar também porque antigamente eu não tinha muita noção de como arrumar o meu cabelo. Hoje já se tem a Fotos: Mariana Barcelos

ulia Oliveira, de cinco anos, ostenta um cabelo crespo bem volumoso. Logo no primeiro questionamento da mãe sobre manter seu cabelo preso, a menina, cheia de atitude, responde: “Meu cabelo é bonito, deixa ele solto!”. Muito tímida com a mãe ao lado, Julia prefere brincar com o tablet: “Eu esqueci o que eu ia falar”. Mas, assim que a mãe vai fazer alguma coisa, a pequena se solta e fala sobre o futuro: “Quando eu crescer, eu vou deixar ele (o cabelo) crescer... Ele vai ficar igual ao da tia Sheila”. Inspiração para a Julia, a gestora comercial Sheila Moura, 42 anos, é uma das criadoras do CresPoA, um grupo fechado do Facebook com o qual ela transforma a história com o seu próprio cabelo em militância para ajudar outras tantas mulheres negras a se empoderarem. Quando lembra de sua infância, ela diz que foi uma fase difícil: “Na maioria dos dias, após brincadeiras e colégio, eu esperava dormir e acordar como a maioria das bonecas com as quais eu brincava: cabelo bem lisinho e loiro”. De lá para cá, a indústria de brinquedos infantis não mudou muito. Mesmo considerando que hoje existem bonecas com vários tons de pele e diferentes cabelos, um determinado padrão ainda domina um espaço significativo na mídia. Mas, para tal vontade na época, a cacheada tem uma explicação: “Eu não aceitava o meu cabelo como ele era porque não me via em lugar algum”.

Diferentemente de Julia, Sheila desde pequena alisou seus cabelos. Julia nasceu com mais opções e com o mundo em transformação. A transição, como é chamado o processo de retirada da química para o cabelo natural, traz à tona para estas mulheres o que lhes foi tirado na infância: o orgulho de suas raízes. A nova tendência entre os processos de retirada da química é o “big shop”, como o nome já diz, um grande corte que retira de uma vez só toda a química do cabelo. Mas é importante deixar claro que a decisão também é um momento delicado e que o pós-BC não é tão simples quanto parece. A cabeleireira com mais de vinte anos de experiência Itanajara Almeida comenta sobre a procura pelo processo de transição: “Tem

Gleice alisou seu cabelo durante anos, mas hoje, com seu black natural, se sente liberta


Sobre o cabelo crespo... 1970

O Black Power foi um movimento cultural que se tornou uma forma de resistência pelo fim da segregação racial nos EUA, dando origem também a outros grupos de resistência como os Panteras Negras.

1980

A estudante de enfermagem Mariana Pairé nunca alisou seu cabelo e sente que o mesmo é a sua marca registrada

informação do que você quiser sobre cabelo crespo”. Depois de anos alisando o cabelo, já mãe, a profissional resolveu voltar ao cabelo natural. Ao explicar o motivo do por que deixou de alisar, Gleice é objetiva: ”Porque eu cansei. Para mim aquilo estava sendo uma perda de tempo. Chegou uma fase da minha vida que eu não queria mais perder meu tempo”. Ao contrário de outras

mulheres que também passaram pela transição, Gleice passou por este momento tranquilamente. A moça ainda finaliza: ”A vida é feita de escolhas. Tu tem que fazer o que tu quiser com teu cabelo, desde que você esteja feliz.” Transformar-se para elas não é só a busca por sua própria identidade, mas também um ato político, que pode servir de exemplo para todas as meninas que buscam essa

identificação e não encontram na

No carnaval de 1986, no Brasil, o cantor Luiz Caldas lançou uma música com o verso “nega do cabelo dura que não gosta de pentear”. A música agredia a imagem da mulher negra. Naquele ano, foi considerada a melhor do carnaval baiano.

mídia hegemônica. O autoconhecimento de seus cabelos as permitiu conhecer seus potenciais e falhas, mas, ao mesmo tempo, despertar a consciência de sua beleza natural. A socióloga e professora da ESPM Sul Janie Pacheco conta sobre a importância do movimento negro no Brasil. A professora comenta que o movimento ganhou notoriedade na década de 70, impactado pela luta dos direitos civis nos EUA, embora a iniciativa sobre tratar das questões

1990

Ainda no Brasil, no início dos anos 90, foi lançada a música “Olhos coloridos” interpretada pela cantora Sandra de Sá, mas que surgiu de um caso de racismo sofrido pelo compositor Macau.

Anos 2000

Após anos de reafirmação, a tendência do cabelo crespo voltou com força. No dia 7 de fevereiro de 2016, a cantora Beyoncé fez uma apresentação no intervalo mais assistido dos EUA com sua recém lançada música “Formation”, que exalta a estética negra.

raciais estivesse na pauta do movimento desde os anos 30, com o lançamento da obra de Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, na qual o autor escrevia que a miscigenação era algo que Julia, de 5 anos, está entre as pequenas que nasceram nesta tendência de retomada do cabelo crespo

2016

Alunas da escola sul-africana Pretoria Girls High organizaram um protesto contra regras da escola que as obrigava a alisar seus cabelos e a falar apenas em inglês. O fato ficou conhecido mundialmente.

singularizava o Brasil. Aos pou511


ARTE POLÍTICA

Vida longa

aos Reis Enquanto as Drag Queens já alcançaram seu espaço em Porto Alegre, o movimento Drag King está apenas começando. Julia Franz, com León Rojas, e Veronica Silva, com Thiago Bragança de Castro, são as duas grandes precursoras da arte King na capital gaúcha Luiza Reck Ortigara

L

eón Rojas começou a ser esboçado no banheiro da casa onde Julia Franz, 22 anos, morou em Buenos Aires. Até então, aquilo não tinha um nome. Quando desenhou o primeiro bigode, a estudante de Jornalismo só queria explorar sua noção de gênero e sua própria masculinidade. Mas, ao conhecer a expressão Drag King, tudo fez sentido. Aos poucos, surgia León e, com ele, uma nova Julia. “O León transformou minha vida completamente! Me deu condições de entender coisas que não entendia. Questões de gênero, minha própria feminilidade, como eu lido com minhas barreiras. Coisas que não ia aprender lendo um livro”, conta a gaúcha. Julia faz Drag King há um ano, e foi tempo suficiente para que León ganhasse um grande significado em sua vida. Ela fala do argentino em terceira pessoa e se emociona ao descrevê-lo. Admira a confiança, o alto astral e o “portunhol” dele. Para ela, seu Drag King é arte, mas também um ato político, pois questiona a efemeridade das concepções de gênero. “O León é leve, mas muito resistente. Eu me sinto confortável quando eu tô nele”, ela revela. Mas se alguém pergunta a León quem é Julia, a resposta é diferente: “Não conheço muito bem,

porque sempre que eu chego ela sai!”, diz, esboçando um sorriso. O Rei Argentino Mesmo dividindo um só corpo, são duas personalidades contras412

tantes. Julia é eclética, extrovertida e comunicativa. Já León admite ser mais retraído. “No me gusta mucho hablar com pessoas”, ele diz que prefere a interação online. Em meio a divergências de gosto musical e temperamento, os dois têm uma grande semelhança: o engajamento na luta pela igualdade de direitos entre gêneros e sexos. “Quando o León nasceu, ficou muito claro que eu não queria reproduzir um estereótipo daqueles homens ‘machões’. Eu busquei desconstruir a masculinidade”, explica Julia. Ela é uma mulher lésbica. Ele, um homem gay. Mas Julia faz questão de afirmar impetuosamente que o fato de León ser homossexual não o deslegitima enquanto homem. “Ele é marica, mas, ao mesmo tempo, ele é homem!”, explica. E León concorda: “Ser macho é muito rela-

tivo! Eu tô com uma barba de flor, mas eu sou muito macho, porra!”.

Tanto as características de León quanto as de Julia podem confundir, mas este é o objetivo. “Essa

confusão gera curiosidade, e faz a pessoa se questionar. A ideia é fazer as pessoas refletirem sobre suas ideias de gênero”, conta León.

Já em sua primeira apresentação, León soube que sofreria certa resistência e estranhamento. O público da festa Xtravaganza encarava León com olhos de confusão durante sua performance no palco do bar Opinião, em Porto Alegre. Homem? Mulher? Transexual? A dificuldade de classificar alguém faz muitas pessoas se sentirem incomodadas. Mas, para Julia, o incômodo é o caminho para que a

Julia Franz (esquerda) e Veronica Silva (direita) usam a arte Drag King para desconstruir o conceito de gênero e o preconceito

« É justamente por isso que tô lutando! Pra que as pessoas se questionem, pra que vá além do preconceito. » Julia Franz sociedade repense alguns valores. E, mesmo sem palestrar sobre o assunto, ela acredita que o movimento Drag King é bastante eficaz enquanto ato de “micropolítica”. Curiosamente, este estranhamento também parte do público LGBT friendly, isto é, que respeita pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, e Transgênero (travestis, transexuais, transformistas e outras classificações). Meses depois da estreia de León, Julia foi abordada por um desconhecido que confessou seu preconceito com artistas Drag King. Ele disse que achava ridículo e que não entendia o que mulheres queriam se vestindo como homem. “Daí ele disse que viu minha última performance e achou muito foda! Me deu parabéns e disse que quebrei o preconceito que ele tinha”,

Julia conta, emocionada. São estes resultados que motivam Julia a dar vida a León: “É justamente por isso que tô lutando! Pra que isso seja reconhecido de alguma forma. Pra que as pessoas se questionem, pra que vá além do preconceito. Ele nem tinha visto e achava ridículo!”. Para vencer esse preconceito, Julia acredita que o movimento Drag King deve crescer. “Uma Drag Queen, por mais que a pessoa não goste, é algo que ela já viu antes, e é mais fácil de assimilar. Então, quanto mais a gente fizer King, mais as pessoas vão entender”, explica ela. Estranhamento necessário O maior sonho de León é também um grande desejo de Julia: se dedicar exclusivamente a trabalhar como Drag King. Mesmo sabendo que viver como artista é bastante desafiador, ela acredita que se sustentar com a renda de performances em festas, palestras, colégios e eventos particulares é um sonho possível. “Tem que trabalhar muito, mas dá sim! Conheço várias Drag Queens que vivem disso. Eu acho que existe muita resistência dentro e fora do meio LGBT, mas as coisas já tão mudando. Tem mais gente conhecendo. É difícil, mas é possível”, avalia Julia.


Foto: Luiza Reck Ortigara

Como grande parte dos gaúchos que escolheram a arte como profissão, uma artista Drag está sujeita a uma vida financeira instável. Mas enquanto houver propósito e amor na arte que fizer, Julia estará sempre pensando na próxima performance de León. O rei português Thiago Bragança de Castro é um virginiano sarcástico de 26 anos, nascido na Ilha de Açores, em Portugal, e herdeiro da família Orleans e Bragança. Ele é fruto de um jogo de dorminhoco entre a advogada Veronica Silva e seu namorado, Giovani Zeferino. Com a rolha queimada, Giovani desenhou um bigode abaixo do nariz da namorada. “Eu achei que ia ficar uma palhaçada, mas, quando me olhei no espelho, pensei ‘meu Deus, eu fico gatíssimo’, e terminei de desenhar a barba”, conta Veronica. Foi então que decidiu colocar as roupas do namorado e ir a uma festa. Ela queria saber se seria convincente como homem. E foi. Durante toda a noite, ninguém desconfiou de nada. Naquele momento, Veronica ainda não sabia da importância que o drag king teria em sua vida. Mas a curiosidade de Veronica em descobrir o que

aconteceria ao tentar se passar pelo outro gênero foi o começo de uma transformação pessoal. A maior mudança foi em sua percepção sobre as diferenças no modo como homens e mulheres são tratados socialmente. “Sabe quando tu tá jogando vídeo game e dá o controle desligado pro teu irmão mais novo? A mulher é o eterno ‘café-com-leite’ das discussões. Tua opinião só tem validade se tem um homem do teu lado. A gente se sente cidadão de segunda classe. E nem sempre é algo escancarado, as pessoas não me tratam mal. Mas não me levam a sério como mulher”, lamenta. Por outro lado, ser homem é viver em um “estado neutro”, pois “quando tu é homem, tu é realmente o que tu é. Tu sente que as pessoas escutam o que tu fala, e não te definem logo no começo da conversa”, Veronica afirma. Este comparativo é a principal razão pela qual gostaria que mais mulheres fizessem King. “Queria que elas vissem como os homens pensam, pra não darem tanta bola pra o que eles falam. Eu sei como uma influência masculina pode ser destruidora na vida de uma mulher. E entender essas coisas ajuda a não dar tanto peso”, conta. Thiago, o alter ego, também gostaria de ver mais drag

kings em Porto Alegre, mas por outro motivo: “Eu quero fazer uma

apresentação do N’Sync, preciso de gente. Ah, e também pra ter mais shows, mais referências, mais arte!”.

Outra grande mudança para Veronica foi em relação a seu entendimento sobre questões de gênero. Contestar os estigmas que os conceitos de masculinidade e feminilidade carregam a fez conhecer melhor a si mesma. “Descobrir como é ser homem, ver o feminino que é teu e o que te é imposto, é um autoconhecimento. Eu me conheço muito melhor! Sei separar o que é natural e o que foi aprendido, o que é social e o que é meu”. E esta perspectiva fez Veronica compreender ainda mais a importância de respeitar a liberdade de gênero. “Se me chamar de Veronica ou de Thiago, eu vou atender, porque isso não muda quem eu sou! Não faz diferença pra mim, mas se pra alguém faz, por que tu não vai chamar a pessoa como ela quer? Por que é tão importante pras pessoas terem bem definido o que é masculino e feminino a ponto de não respeitar a escolha do outro?”, completa. Frágil binarismo Thiago diz que nossa sociedade é extremamente binária quanto a gêneros. Isto é, para ser aceita como “normal”, uma pessoa deve ser classificada como homem ou como mulher. Porém, os critérios desta classificação muitas vezes são abstratos e subjetivos. “Posso pegar meia dúzia de rou-

pa e deu, viro homem ou mulher. O quão absurdo é isso? As pessoas vivem limitadas por conceitos tão absurdos que, se a gente trocar de roupa, assume o outro gênero. São coisas tão ridículas e abstratas! Tipo, ‘ah! ó homem pode? ... me dá uns minutinhos que eu já volto’. E aí tu percebe que isso tudo não faz diferença!”, explica Thiago.

Há três anos, ele vem transformando a vida de Veronica. Sem grandes pretensões financeiras ou profissionais, ela faz Drag King porque acredita ser uma potente ferramenta de mudança positiva no mundo. E junto à causa política está a motivação pessoal. “É um bom jeito de me expressar e sair da zona de conforto. Eu tenho medo de palco, ansiedade, e fazer King

me ajuda muito com isso”, revela. Veronica explica que nunca gostou muito de usar maquiagem ou outros elementos estéticos relacionados à feminilidade. “Eu nunca fui muito feminina, e minha mãe queria que eu fosse mais. No começo ela me perguntava o que eu queria da minha vida, e dizia pra eu decidir. Se queria ser homem, ok. Mas eu tinha que me decidir”, ela conta rindo. A mãe dela, Gladis Rocha, confessa que às vezes é difícil entender os motivos da filha. “Quando ela começa a se arrumar em casa eu fico meio apavorada com esse troço. Mas eu acho que eu criei meus filhos pra serem felizes. Então a escolha é dela. Eu não gosto muito, acho que podia ter escolhido algo mais legal pra fazer. Mas a escolha é dela e ela faz pra se divertir! Eu só queria que o Thiago pudesse usar batom!”, conta a mãe, com bom humor.

DRAG KING/QUEEN Artista que usa roupas, maquiagem, acessórios e trejeitos para interpretar o estereótipo do gênero feminino (queen) ou masculino (king).

TRANSEXUAL Quem identifica-se com o sexo oposto ao que nasceu. Podem ser operados ou não. Um homem que se identifica e se expressa como mulher é uma mulher transexual. E vice-versa.

TRANSGÊNERO Quem não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento. É o termo que abrange os vários grupos de pessoas que fogem da dicotomia homem/mulher.

SEXO Classificação biológica das pessoas como “macho” ou “fêmea”, baseada em questões como níveis hormonais e órgãos reprodutivos.

GÊNERO Classificação social baseada em um conjunto de instrumentos sociais (como roupas, nomes e aparência física) utilizados para delimitar e identificar uma pessoa como homem ou como mulher.

513


EDUCAÇÃO VERDE

Uma escola

sustentável

Na cidade de Guaporé, no interior do Rio Grande do Sul, uma escola revolucionária está em construção. Partindo do contato com a natureza e de dinâmicas de meditação e relaxamento, a Ayni busca formar cidadãos saudáveis, felizes e conectados com o ambiente e a sociedade em que estão inseridos Bruno Pedrotti

Ao entrar na Ayni pela primeira vez, o visitante sente que está chegando em uma reserva ambiental ou em algum tipo de parque. Esta impressão não está totalmente errada. Mas a área de proteção ambiental cedida por 20 anos pela prefeitura possui muito mais do que o bosque e os bancos de madeira que podem ser vistos através da cerca. Lá está sendo construída uma escola que usa a espiritualidade e o contato com o meio ambiente para formar cidadãos conscientes e saudáveis. A equipe que trabalha para dar forma a este sonho é composta por 13 membros fixos, sendo alguns destes voluntários e outros, colaboradores pagos. Além disso, a Ayni recebe pessoas do mundo inteiro, que ficam de duas sema14

nas a um mês e ajudam na construção da escola em troca de comida e estadia. Após um ano de uso, nove dos 25 espaços previstos já estão prontos. Estes espaços são, na verdade, casinhas de barro, madeira e materiais reciclados (como garrafas de vidro), construídas usando as técnicas da bioconstrução – que têm como princípio norteador causar o menor impacto possível no ambiente – e que são utilizadas como salas de aula. Tudo isso é contado em um sotaque espanhol pela guia de visitas Ornella Lotufo. A argentina também comenta que cada construção tem suas particularidades. Uma delas, por exemplo, foi feita a partir de técnicas de construção do antigo império Mongol, outra tem uma horta no telhado. “A Ayni é uma escola basea-

da em três pilares: educação, uma outra forma de interagir com os pequenos seres humanos, sustentabilidade, como nós enxergamos a natureza e como é nossa relação com ela, e economia, uma outra perspectiva de como lidamos com o dinheiro, com a posse e com o lucro”, conta o ex-empresário e fundador da Ayni, Thiago Berto. Para ele, as escolas não precisam ter uma sala de aula clássica, no sentido do layout físico padronizado com alunos sentados em filas e colunas e o professor à frente; as avaliações por provas não são necessárias, pois não se aplicam ao mundo real. Dividir as crianças de forma compartimentada por idade também não é necessário. Sobre a divisão de períodos no modelo atual de educação, ele brinca: “Toca a sirene, agora tu desliga o teu cérebro, porque agora não é mais matemática. Agora é português. Liga o teu cérebro no modo português.O cérebro humano não funciona desta maneira.” Por enquanto, a Ayni não recebe crianças para as séries regulares, apenas em visitações aos finais de semana e em excursões.

Foto: Cidade Escola Ayni, divulgação

“No momento, estamos construindo a escola e nos reconstruindo para poder receber as crianças e dar a elas o que elas precisam, que não é necessariamente a fórmula de bhaskara ou a capital da dinamarca, e sim amor”, explica Thiago. Enquanto isso, a Ayni oferece cursos pagos para adultos, que vão desde cerâmica até a bioconstrução. Além da contribuição financeira, os cursos também ajudam a construir a escola. “Alguns cursos são para construir hortas, jardins, casas. Então, no próprio curso, a escola acaba crescendo”, comenta o fundador. Uma das participantes de um curso de hortas da Ayni, a estudante universitária Gemima Braga de Freitas, aprovou a experiência: “Além de ser um aprendizado muito prático, que eu sei que vou usar para minha vida (o conceito de hortas e de como as fazer), senti uma outra relação entre mim e as outras pessoas que estavam ali, inclusive com o professor. Tinha mais uma cara de uma conversa, era uma coisa mais horizontal. Ao contrário de uma escola ou faculdade, nas quais,


às vezes, parece que o professor fica ali na frente vomitando um conteúdo que sabe enquanto você tenta abrir um espaço no seu HD para decorar o máximo possível e escrever tudo numa prova para depois esquecer.” Para se financiar, a escola também recebe doações e comercializa suvenires diversos (como canecas e camisetas), fertilizantes orgânicos produzidos na composteira e o excedente das verduras e legumes produzidos nos jardins. As hortas da Ayni são um capítulo à parte. Elas parecem bastante caóticas, com diversas variedades de verduras e legumes misturadas umas às outras. “É uma horta bem estranha. Ela não é organizada, não é retinha tudo alface. Ela é uma bagunça, e nessa bagunça há uma sabedoria. As plantinhas se ajudam mutuamente, uma da sombra que a outra precisa, uma já controla a praga da outra”, explica Thiago. As hortas são cultivadas sem uso de agrotóxicos e são usadas para alimentar a equipe. A guia de visitas Ornella Lotufo aponta ainda que os jardins são todos pensados para que as crianças possam plantar e colher, e que são feitos para despertar nelas o máximo de interesse possível. Os canteiros são todos no chão, em uma altura que os pequenos podem alcançar, e têm diversas formas. Um deles tem o formato de um peixe, e a horta de temperos ocupa um espaço circular com divisões triangulares, de modo a imitar uma pizza. Além de incentivar uma consciência ambiental e de autoconhecimento e respeito aos outros, a escola também se utiliza de técnicas de relaxamento e meditação para auxiliar o processo de aprendizado. A estudante universitária Gemima Braga, que participou de um curso de hortas na Ayni, revelou que, antes da aula começar, foram feitas dinâmicas de relaxamento e descontração. Por meio destas metodologias e de uma pedagogia que respeita a sabedoria dos alunos, a Ayni busca transformar a educação e mostrar para as outras escolas que é possível mudar.

Fotos: Lucas Ferreira

O Fundador

«Está aparecendo muito mais na educação contemporânea a questão da espiritualidade como uma consciência ambiental, de cuidado com os animais e com a comida. Isto está aparecendo na forma de certos valores laicos, e é isso que eu identifico nestas escolas inclusive na Ayni. Além de cultivar estes valores, eles têm um aprendizado diferente, de biologia, de ciências, porquê eles estão vendo as coisas acontecerem. Não é aquele aprendizado no quadro negro que diz que a semente precisa de água e sol, não. O aluno vai ver aquilo brotar. Então, estes novos formatos propiciam mais satisfação, mais autonomia, maior interação entre as crianças. Por isso, a hipótese que eu tenho é que a longo prazo isto é muito mais saudável em todos os sentidos.» Luciana Fernandes Marques pesquisadora em novos modelos de educação da UFRGS

Thiago Berto viveu na cidade de Guaporé até os 16 anos, quando saiu de casa. Pegando carona em caminhões, o jovem foi para Porto Alegre e lá se tornou um empresário de sucesso. “Eu tinha dinheiro o bastante para ir para qualquer lugar do mundo e comprar o carro que eu quisesse, mas eu vi que a vida não era só isso.”. Aos 30, desiludido com sua carreira e com o ideal de sucesso da nossa sociedade, Thiago vendeu todos os seus pertences e foi viajar o mundo em busca de si mesmo. Após um ano de viagem, descobriu um projeto de educação em Cusco, no Peru, e encontrou uma nova paixão. Após trabalhar como voluntário na escola por oito meses e fazer uma nova viagem para conhecer outros projetos de educação alternativos, Thiago voltou para Guaporé e fundou a Ayni. Agora, aos 35 anos (ou 12.282 dias, como ele mesmo brinca), o ex-empresário vive um dia de cada vez, com a satisfação de quem faz algo em que acredita.

Quer saber mais:

Ayni significa cooperação, ajuda mútua e solidariedade. A palavra vem do idioma Quechua, que era usado pelos Incas e hoje é um dos mais falados na América Latina. O nome é uma homenagem à região e ao povo andinos por sua influência na criação do projeto. Para mais informações: http://www.fundacaoayni.org/ ou Cidade Escola Ayni no Facebook. Vistas sábados, às 15 horas, na Rua Irmão Eduardo 1071, Guaporé (RS).

Uma das salas de aula foi inspirada em técnicas de construção do antigo império Mongol

15


CORPO E MENTE

O encontro do equilíbrio pela

meditação

Práticas se inspiram na tradição milenar e se adaptam à vida contemporânea Marcele Maggi

T

er controle do próprio corpo e das emoções é um desejo de boa parte das pessoas se não de todas. A questão principal é como fazer isso em meio ao agito da atualidade. Uma das respostas para isso pode estar na meditação. A prática muitas vezes atinge o equilíbrio do organismo, já que pode influenciar no funcionamento de algumas áreas do cérebro. Segundo pesquisas do psicólogo Michael Posner, da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, a constância da prática aumenta a atividade do córtex cingulado anterior, do córtex pré-frontal e do hipocampo e estimula a amígdala e o hipotálamo. Esse conjunto de processos neurais ajuda diretamente na atenção, na concentração, na memória e na coordenação motora de um indivíduo, além de ajudar no relaxamento e no melhor controle das emoções. Essas práticas de concentração e autoconhecimento são possíveis

«Eu uso a meditação como um antídodo para todo e qualquer desequilíbrio que eu possa vir a sentir.» Kelly Freire a qualquer um que busca uma melhor qualidade de vida. Kelly Freire é especialista em Inteligência Emocional e Sócia Diretora da Escola da Mente, em Porto Alegre, onde atua como neurocoach - coaching trabalhado com técnicas da neurociência e da neuropsicologia - e utiliza a prática de meditação há dez anos. O que começou como um modelo de auto-cura em um quadro de depressão, se tornou um momento essencial no dia a dia de Kelly. “Para mim, a meditação foi

a maneira que encontrei para que eu possa dirigir a minha mente com mais equilíbrio, com mais foco e com muito mais assertividade”, comenta. Ela conta que, no início do processo, foi um pouco difícil, mas “a prática sempre leva à excelência”. Em sua profissão, Kelly indica a prática para seus coachees - os pacientes - e garante que a mudança na vida daqueles que aderem à meditação é radical. No entanto, ela também frisa a importância de praticar regularmente, pois somente assim a pessoa poderá perceber os benefícios. Além da meditação tradicional, existem várias vertentes que possuem os mesmos fundamentos e resultados, porém são aplicadas sob um ponto de vista contemporâneo. Buscando uma linguagem mais comum para atingir todos os tipos de pessoas, de uma forma mais adaptada para a realidade que vivemos hoje, surgem práticas que utilizam vários meios para fornecer às pessoas uma conexão mais forte com elas mesmas.

Ao som dos tambores A meditação unida ao batuque de tambores foi o que inspirou a criação do projeto Tambores Flow. A coordenadora do projeto, Monica Jurado, arquiteta e professora de meditação em São Paulo, explica que a técnica busca tornar a prática uma atividade simples, eficiente e divertida, conhecendo a essência do que somos e para onde vamos. Segundo ela, os tambores conversam com o corpo e com a estrutura física, emocional, mental e espiritual. “Passamos por momentos de altos e baixos, e a meditação auxilia a lidar com esse processo”. Monica nota a adaptação do método nos variados tipos de pessoas: “Muitas não conseguem meditar da forma tradicional porque é difícil realmente sentar e parar o pensamento compulsivo. Mas é impressionante como, com os tambores, a gente consegue fazer isso rápido”.

Fundação David Lynch O cineastra David Lynch, adepto da meditação transcendental, percebeu o poder da prática quando viu seus benefícios para crianças, veteranos de guerra e mulheres vítimas de violência. A Fundação promove a prevenção do estresse e da epidemia de trauma em adultos e crianças em populações de risco. Para isso, conta com a ajuda de filantropos e pessoas ao redor do mundo que desejam provocar uma mudança social.

16


Arquivo pessoal de Daniella Sopezki

A psicóloga Daniella Sopezki pratica Mindfulness em vários lugares Foto: Marcele Maggi

Templo Budista Chagdud Gonpa Brasil, em Três Coroas (RS)

Mindfulness, atenção plena Mindfulness é treinar a mente para prestar atenção no que está acontecendo aqui e agora. “É um estado psicológico de maior autoconsciência. Se estamos conscientes, rompemos com um modo de piloto automático condicionado de se comportar em nossa vida”, explica Danniela Sopezki, mestra em psicologia clínica e instrutora de Mindfulness em Porto Alegre. Danniela ressalta que a Atenção Plena em si não é meditação, no entanto, a prática está sim entre as principais técnicas de mindfulness. É possível aplicar a prática

em várias situações cotidianas da vida, seja praticando alguma atividade física ou durante as refeições. O importante é estar presente (física, mental e emocionalmente) nas atividades, usando todos os sentidos e estando atento àquilo que está acontecendo. “O Mindfulness cabe até na vida de quem não tem quase nenhum tempo livre. Inclusive, eu falo isso em meus grupos: “Não venham me dizer que não tiveram tempo de praticar, sendo que todo o momento é um momento para a prática, até lendo essa reportagem”, comenta a psicóloga.

Inspiração budista

Meditação Ativa

Os budistas trabalham, por meio das técnicas de meditação, os três pontos que são a base dos ensinamentos de Buda: o cultivo da compaixão, a observação da própria mente e a não-projeção de coisas externas no dia-a-dia. Uma delas é a tradicional shamata, técnica de concentração que se traduz em fixar os olhos em um objeto enquanto a atenção está voltada para a respiração. Nisso, a mente pode divagar, e o processo meditativo é conscientemente trazer a concentração de volta para a respiração. Dessa maneira o praticante come-

Esse tipo de meditação conecta a atividade e as expressões corporal e mental às práticas de meditação. Seu fundamento é baseado nos ensinamentos de Osho, mestre indiano na arte da meditação e do despertar da consciência. Tainá Ybarra, terapeuta da escola de meditação e bioenergética Namastê de Porto Alegre, explica que na meditação ativa tudo ocorre por meio do corpo da pessoa. “Primeiro, é feito um caos mental por meio de de atividades com o corpo. As pessoas dançam, gritam, chacoalham, pulam…”.

ça a ter mais noção de seus estados mental e emocional. No budismo, a meditação não é um fim em si, ela é uma ferramenta para se ter mais controle sobre os pensamentos e impulsos do ser humano. A intenção é conhecer o funcionamento da mente olhando para si mesmo, e ao invés ser escravo dos seus padrões mentais, aprender a dominá-los e transformá-los, como explica Sibele Corrêa, instrutora budista e tradutora do Templo Chagdud Gonpa Brasil, localizado em Três Coroas, no interior do Rio Grande do Sul.

As aulas da meditação ativa são feitas com a utilização de vendas por todos os alunos que estão na sala e também pelos professores, o que é uma forma de fazer as pessoas olharem para dentro de si mesmas e não para os outros. O primeiro processo busca mover o corpo para liberar a energia e os sentimentos reprimidos que estão acumulados. “Depois dessa liberação, é mais fácil alcançar o estado meditativo”, explica Tainá. Depois desse primeiro momento, é a hora de se sentar em silêncio com a mente mais tranquila. 17


ESPAÇO PARA FUGIR DO PADRÃO

Uma questão de melanina Duas modelos, duas doenças derivadas da falta de melanina e duas histórias que se cruzam em decorrência das transformações sociais que impulsionaram a publicidade a trabalhar com campanhas conscientes e inclusivas Foto: Fabio Stachi, divulgação

Gabriella M. Rocha

S

imetricamente desiguais em suas características físicas, enquanto a modelo paulista Andreza Aguida assume os longos cabelos brancos que o albinismo a proporciona, tão claros quanto sua pele, cílios e olhos, a também modelo Carine Santana, baiana, combina em seu corpo tons amarronzados com tons esbranquiçados, mistura causada pelo vitiligo. A mesma condição que delimita as diferenças entre ambas, as aproxima – as duas convivem com os reflexos da má produção da melanina, pigmento que dá coloração à pele, em seus organismos. Ainda assim, a relação entre as modelos não se limita ao que, internamente, elas têm em comum. Além da melanina, outra condição as une: padrões. Os de beleza são os que as agridem mais, mas não ficam para trás os sociais e culturais, que ensinaram a sociedade a maltratar tudo aquilo que é diferente.

«Eu tenho vitiligo sim, e daí? Eu sou linda do jeito que eu sou e da forma que eu sou, e você pode ser linda também – da forma que você é. » Carine Santana

“Na época do Orkut, não havia nenhuma comunidade para albinos que não as preconceituosas, como ‘Eu tenho medo e nojo de albinos’. Eram só coisas muito para baixo”, conta Andreza. Já a história de Carine não aconteceu na internet, mas reflete os mesmos problemas sociais: “Quando eu era pequena, até sonhava em ser modelo, mas eu sempre ouvia que não ia poder. Nunca vi modelo toda manchada”, me diziam”. Em contrapartida, não foi tão 18

Modelo Andreza Aguida para o Editorial Encanecer Foto: Marcelo OG, divulgação

vista quando era mais nova, nunca vi modelo com vitiligo ou cacheada. Só tinha magricelas e loiras.” Mesmo assim, nenhuma das duas permitiu que isso as prejudicasse. Elas aprenderam a criar seu próprio padrão de beleza – mais uma semelhança entre as modelos, cujos discursos sobre o que é belo, para elas, se confundem: “Uma pessoa que consegue se aceitar é verdadeiramente bonita, que não está preocupada com os padrões que as pessoas estabelecem, que está satisfeita consigo mesmo, que se aceita como ela é”, é a interpretação de Andreza, que caminha lado a lado com a visão de Carine: “Uma pessoa linda é aquela que se aceita – gorda, magra, alta, com vitiligo ou não. Isso é uma pessoa linda. Que se aceita sempre”.

«A minha melhor realização com a moda não é com relação ao meu trabalho, mas com relação à autoestima da pessoa com albinismo. » Andreza Aguida Modelo Carine Santana para o “The Portrait Project”

simples assim as silenciar – pelo contrário: o que poderia ter se tornado um obstáculo, foi na verdade um empurrão para a carreira das duas. “Em 2004, eu criei uma comunidade de albinos, com o nome “Albinos do meu Brasil”. Como eu era a dona e na época o Orkut estava muito em alta, as pessoas me localizavam, e nisso foram aparecendo muitos projetos, como um editorial para a revista VEJA no mesmo ano, em comemoração dos 400 anos de São Paulo”, conta Andreza. Assim também aconteceu com Carine:“Cheguei na moda por acaso. Fui em uma marcha do empoderamento crespo em novembro de

2016, em Salvador, e uns olheiros da Skol me viram e fotografaram. Dias depois, entraram em contato comigo pelas minhas redes sociais. E aí tudo começou”. Há mais tempo na área, Andreza conhece bem as restrições do meio artístico “Eu, por exemplo, não faço um comercial de banco, de marcado, ou aqueles de ponto de ônibus. Quando eu sou convidada para fazer um comercial, é porque eu sou uma pessoa albina, quando na verdade eu sou uma mulher de 30 anos apenas”. Carine, enquanto espectadora, compartilhou do mesmo olhar: “Nunca me vi representada pelas modelos das capas de re-

O trabalho que as modelos Andreza e Carine fazem não se restringe a expor suas realidades em editoriais de moda, elas trabalham principalmente pela transformação na publicidade. “Eu fiz uma cervejaria e um comercial de roupa, mas acho que a gente pode estar em outdoor, filme, em novela. Por que não estar em uma novela? Agora a moda tá totalmente diferente, há cinco anos atrás, a gente nunca ia pensar em modelo com vitiligo estrear campanha com relógio, estar em clipe com Beyoncé, fazer campanha de cervejaria, de roupas.. E ainda vai ser feito muito mais. Isso é só o começo.”


Cinco momentos de transformação na publicidade:

A diversidade entre nós fomos bombardeados com campanhas nada inovadoras. Mesma linguagem. Mesmos perfis. Mesmos corpos. A ausência de representatividade de qualquer modelo fora do padrão ajudou a criar uma sociedade infeliz e até mesmo doente”. As constatações do fotógrafo se confirmam com os estudos que Liliane fez da área: “Os anos 2000 foram marcados por questionamentos, porque começou uma epidemia de síndromes e distúrbios alimentares, um comportamento social com características doentias, de vício em esportes e tendências voltadas à procura pela beleza.”

«Hoje vivemos uma corrente de busca e conscienência da cidadania, que fez com que as pessoas começassem a achar que deveriam estar representadas nas mídias.» Liliane Rohde

Os resultados do despertar da sociedade são estimulantes. Ainda que contra longos anos de opressão midiática, se existe um termo que se enquadra na descrição do ano de 2017, que desde o seu começo foi marcado por propagandas conscientes e icôni-

PADRÕES DO CORPO FEMININO IMPOSTOS PELA PUBLICIDADE NO DECORRER DOS ANOS 1960

1970

Começo Além de Começoda da Época dasmagra, altas ea imposição da magreza. mulher ideal agora era imposição da magras. A modelo O maior íconeTwiggy, da época também alta. Farrah magreza. Farrah Fawcett foi aícone modelo Twiggy, Fawcett, loira, alta e da época, representava essemais que, com41kgs 1m67cm foi a modelo pesava com magra, pesava 41kgs. exaltada da época padrão 1m67

1980

Época adatendência “mulher Começa

1990

2000

Foi Ano o anododopadrão padrão atleta”. Elle MacPherson Britney BritneySpears: Spears: da mulher atleta. Elle delos anos 60 foi o destaque do corpos sarados e corpos sarados e MacPherson foi o retorna em peso. tempo dos corpos bronzeados e para bronzeados. ícone da época dos esportivos, no alto dos Foi o ano das Spice expor o clássico seuscorpos 1m90cm de altura. umbigo de fora. sarados. Girls O perfil de mo-

cas, esse é representatividade. “A Skol, em seu último filme, abriu um leque para representar todas as diversidades, depois de anos de campanhas sexistas e machistas”, argumenta Liliane. E não acaba por aí: “A Johnson&Johson está na história da família brasileira desde a década de 70. O bebê Johsnson sempre foi branco, de olhos claros, cheio de dobrinhas. Só nessa descrição temos uma série de estereótipos que não estão nem perto da realidade das crianças brasileiras. Agora, eles apareceram com uma propaganda com um bebê com Síndrome de Down. Isso é uma revolução”. É a quebra do clássico perfil europeu – pele clara, cabelo claro, e, opondo-se aos demais, olhos não necessariamente claros, aliados à altura, que também faz parte do pacote, junto a um corpo suficientemente magro a ponto de refletir os ossos – que foi compulsoriamente utilizado e reforçado na mídia. “Eu acho muito positivo que algumas marcas corajosamente investiram suas fichas na quebra de alguns tabus” avalia Fabio. “Sinto que há uma tendência das marcas buscarem esses outros caminhos que ampliam a representatividade. Não sei se isso é autêntico ou se estão apenas pegando uma onda que vem crescendo, mas tenho certeza que é um pequeno grande passo em direção a algo positivo na história da comunicação visual. Tendência ou modismo, autêntico ou não, as últimas propostas usadas pela publicidade para discutir a inclusão surtiram efeito em todos os espaços sociais. Aplaudidas com êxtase principalmente nas redes sociais, estimularam não só a criação de outras, também realistas e comoventes, mas a reflexão sobre o assunto, como conclui Liliane: “A importância de uma marca grande, uma marca líder, fazer isso é que leva a sociedade a se questionar, porque chega a um número maior de pessoas. Isso começa a indicar para a sociedade que o mundo está mudando, faz as pessoas começarem a pensar que, se ele não mudou ainda, está na hora de mudar”.

Fotos Divulgação

Transformação. A aglutinação da palavra a transforma em uma frase: transformar uma ação. Mas o que é transformar uma ação? Contratar uma modelo com vitiligo e outra com albinismo para estrelar uma campanha de cerveja? Ou, quem sabe, colocar um bebê com Síndrome de Down em um comercial de produtos de higiene? O que é, afinal, transformação? Para uma sociedade que acompanha os mesmos padrões estéticos durante anos – mais precisamente, desde os anos 60 – na publicidade, o termo transformação pode ser personificado pela imagem de uma modelo transexual estrelando a capa de uma das revistas de moda mais conceituadas e, até então, padronizadas do mundo, a VOGUE Paris, em março deste ano. “Mesmo que sejam produtos e serviços do cotidiano, historicamente na publicidade não se colocavam as pessoas do cotidiano – se colocavam as pessoas idealizadas” é o desenho que Liliane Rohde, especialista em pesquisa de mercado e docente na área, faz do cenário. Espaço de trabalho do fotógrafo Fabio Stachi, o paulista acompanha de perto e critica a situação: “As indústrias de moda e da propaganda sempre tiveram muito medo de ousar no Brasil. Durante décadas,

CAMPANHA INOVADORA Modelo canadense Winnie Harlow na campanha de 2016 da marca Desigual

IGUAIS POR DENTRO Campanha da Skol, “SKOLors, com modelos albinos, portadores de vitiligo, negros e brancos

MARCO HISTÓRICO Modelo cearense Valentina Sampaio, transexual, na capas da edição de março de 2017 da VOGUE Paris

O VITILIGO NO BRASIL A baiana Carine Santana na campanha do Dia da Mulher da marca Renner

“TODO BEBÊ É UM BEBÊ JOHNSON” Campanha da Johnson&Johnson para o Dia das Mães com um bebê com Síndrome de Down

19


SAÚDE MENTAL

Ana Carolina de Melo

Marília, presidente da Associação Gaúcha de Familiares de Pacientes Esquizofrênicos, enfrenta a doença ao lado do filho, Leonardo Cruz, diagnosticado com esquizofrenia

Cuidadores familiares Ana Carolina de Melo

Transtornos mentais trazem muitas dificuldades para os afetados e para suas famílias. O Blog de Papel visitou a Associação Gaúcha de Familiares de Pacientes Esquizofrênicos para conhecer algumas dessas histórias

20

Q

uando Leonardo era criança, sua mãe, Marília Cruz, já percebia algumas atitudes do garoto que o diferenciavam dos colegas de escola. Porém, foi só no início da vida adulta que ele teve os primeiros surtos e foi diagnosticado com esquizofrenia. A partir daí, Marília, que, até então, pouco havia ouvido falar sobre transtornos mentais, se viu obrigada a aprender mais sobre a doença. Hoje, com 78 anos, ela se dedica inteiramente ao cuidado – não só de seu filho, mas de dezenas de pessoas – na Associação Gaúcha de Familiares de Pacientes Esquizofrênicos (AGAFAPE), já em seu quarto mandato como presidente. Como ela aprendeu a lidar com tudo isso? “Na marra”, brinca a senhora, sempre bem-humorada.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a esquizofrenia afeta mais de 21 milhões de pessoas no mundo inteiro. Os sintomas da doença são divididos em três grupos, conforme explica a psiquiatra Clarissa Gama. Os sintomas positivos, como são chamados, são caracterizados quando há delírios e alucinações; os negativos, quando não há reação emocional, mas há isolamento social; e os cognitivos, quando a pessoa diminui a performance na cognição. Essas características podem interferir na vida social, familiar e profissional. Entretanto, como destaca a presidente da associação, a doença não vem sozi­ nha, já que as medicações podem trazer, como efeito colateral, sintomas de outros transtornos, como, no caso de Leonardo, Transtorno

Obsessivo Compulsivo e ansiedade. Com todos os sintomas causados pela doença, a esquizofrenia traz diversas dificuldades para as pessoas afetadas e, consequentemente, para quem vive com elas. “A tua vida muda completamente”, diz a vendedora de cosméticos Marilisa dos Santos, mãe de um garoto diagnosticado e participante da Agafape. “Tu vai aprendendo, te moldando a cada dia para aprender a conviver com a doença”, completa Marilisa. A psicóloga Daniela Silva, que acompanha o grupo de apoio dos familiares da associação, salienta como essa preocupação com os familiares pode afetar a saúde mental dos próprios cuidadores. *Alguns nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.


Daniela explica que, desde o diagnóstico, eles passam por várias fases e emoções, como a negação do problema, a culpa de pensar o que poderia ter feito melhor, a frustração por não fazer mais e a sobrecarga com todas as responsabilidades que assumem. Assim, ela ressalta que é essencial que esses familiares dediquem um tempo para cuidar de si mesmos e ter um momento sozinhos – algo, porém, que muitos não conseguem, como salienta Daniela. “Elas se dedicam aos familiares e acabam não tendo vida para elas mesmas”, destaca a psicóloga do grupo. Alguns dos problemas que os cuidadores podem enfrentar são a falta de cuidados com a higiene por parte dos pacientes e dificuldade na vida social, em cumprir tarefas escolares ou do trabalho e em lidar com dinheiro. “Todo dia é a mesma coisa, é desgastante, só uma mãe mesmo para aguentar”, afirma Vera*, participante do grupo de apoio na associação, que, com 71 anos, relata o cansaço de cuidar de seu filho. Rosa* concorda, relembrando uma vez em que, às quatro horas e meia da madrugada, cami­ nhou por trinta minutos com seu filho, diagnosticado com esquizofrenia, para pegar uma ficha no posto de saúde, quando outros familiares não se dispunham a ajudar. Assistente social e mãe de dois filhos com esquizofrenia, Cristina* também conta algumas dificuldades que enfrenta como cuidadora. Sua filha, que tem, também, retardo mental, tem pensamentos de perseguição frequentes, em decorrência de suas alucinações. Quando a mãe sai de casa, ela muitas vezes grita da janela, dizendo que seus pais morreram. Cristina* tenta conversar com a filha, por medo de que os vizinhos possam acusá-la de maus-tratos, mas nem sempre isso dá certo. No entanto, ela e todos os outros do grupo procuram man­terse fortes e dedicados. “Se a gente, como familiar, perder a esperança, o que vai sobrar para eles, que já não têm?”, questiona. Outra dificuldade enfrentada pelos cuidadores e pelos pacientes é a falta de divulgação de informações sobre a doença, destaca a presidente da Agafape. Crescen-

do no interior, Marília Cruz pouco ouvia falar sobre transtornos mentais e, em retrospecto, percebe uma grande falta de compreensão. “A gente achava que era um monstro, um bicho, mas era um doente mental escondido dentro de casa”, afirma. Como consequência disso, ela destaca a falta de visibilidade da doença, que, muitas vezes, só é discutida em casos de pacientes que cometem crimes. Contudo, ela explica que, quando ocorrem esses casos, é porque a pessoa não teve a mesma estrutura e o apoio da família que se busca proporcionar na associação. Infelizmente, essa falta de apoio não é rara. Gabriel*, que também participa do grupo de apoio, apresenta sintomas da esquizofrenia desde seus 16 anos, embora atualmente os sintomas estejam controlados com a medicação. Além das próprias dificuldades, porém, ele se viu obrigado a cuidar de dois de seus cinco irmãos: uma com Síndrome de Down, outro com esquizofrenia e retardo. Ele relata que sua mãe e uma das outras irmãs são bastante religiosas e percebem a doença como algo “espiritual”, de forma que não compreendem o que os filhos realmente enfrentam. Diante de tudo isso, Marília destaca a importância da conscien­ tização. Pensando atualmente na infância do filho, ela identifica algumas atitudes que poderiam indicar um transtorno mental, sobretudo em relação à insegurança do filho. Ela conta que, devido à dificuldade de se relacionar, o garoto dava os brinquedos para colegas para tentar fazer amigos. Na época, porém, ela sequer pensava na possibilidade, e foi só aos 22 anos que Leonardo foi diagnosticado, depois de seus primeiros surtos em decorrência do estresse de seu primeiro estágio, onde sofria bullying de seus colegas. “Hoje em dia, tem vacina para tudo, mas jamais alguém diz: ‘Não esquece a cabeça do teu filho, que também pode adoecer’“, diz.

Como funciona a associação: A Agafape tem reuniões para familiares às quartas-feiras, 15. Endereço: Rua dos Andradas, n. 1560, Centro Histórico, Porto Alegre.

«A gente passa a vida inteira formando opinião contra o louco. Aí tu descobre que teu filho é doente mental. O que tu faz?» Marília Cruz Presidente da Agafape

A DOENÇA EM NÚMEROS

21 milhões

de pessoas no mundo têm diagnóstico de esquizofrenia 4 homens para cada 3 mulheres

Não há apenas uma causa da doença, são muitos fatores que influenciam:

Genéticos

Psicológicos Ambientais

50% das pessoas diagnosticadas não têm um tratamento adequado

2.5 vezes mais chance de ter uma morte prematura por problemas cardiovasculares ou infecções

Fonte: Organização Mundial da Saúde

21


ESPORTE E EDUCAÇÃO

Luta e solidariedade:

o boxe como fator transformador

Fachada do Projeto Luta e Solidariedade

O projeto, que trabalha com um estilo de boxe pouco conhecido, ensina não só a dar socos, mas também busca transformar a vida dos alunos dentro e fora do ringue. Mestres e aprendizes ocupam o mesmo espaço, compartilhando experiências e mostrando que a educação pode ir além de um giz e um quadro negro em uma escola Lucas Ferreira

E

xiste um projeto social único na Vila Santa Isabel, em Viamão. Apesar de ser uma área urbana do Distrito Passo do Sabão, a região é repleta de casas pequenas, ruas íngremes e de chão batido. Chamado de Luta e Solidariedade, o projeto busca transformar a realidade de jovens por meio do boxe. Um dos treinadores e fundadores do projeto, o professor de sociologia Christian Salaini mistura a técnica do boxe e o con-

22

texto social doestilo de luta chamado 52 Hand Blocks. “Esse é um tipo de luta que você encontra nos bairros com mais presença negra de Nova Iorque, como o Bronx, e no contexto das décadas 40 a 60, esse estilo também era muito relacionado aos negros que eram presos e o ensinavam na cadeia, então ele era visto de forma preconceituosa.” explica o professor. 52 Hand Blocks é uma técnica que mistura os conceitos do boxe, de artes marciais e transforma em um estilo completamente novo. Os fundamentos do 52 Hand Blocks forçam o lutador a nunca parar e se defender somente através da movimentação do tronco. Ele é desconhecido pela maioria das pessoas, não possui nenhuma documentação que o coloque em uma categoria oficial, e as regras são passadas somente de boca em boca, da mesma forma como Christian aprendeu. Graças ao projeto, essa nova forma de ver o boxe chamou atenção de vários moradores da vila. João Miguel Pacheco, estudante de 17 anos na escola Walter Jobim, começou a lutar desde cedo. “Quando eu era pequeno, eu olhava vídeos,

filmes e me interessava muito sobre luta, até que um dia conheci o boxe através de um filme. Eu imitava os movimentos e praticava com meus amigos, aí me aconselharam uma academia.” conta João, que luta desde os 13 anos. Após ter parado por um tempo, descobriu o projeto Luta e Solidariedade e resolveu voltar aos ringues. “Eu voltava para casa e vi eles correndo por aqui na volta, treinando. Eu estava parado há um bom tempo, gordo e queria voltar a treinar, daí descobri aqui e perguntei quanto custava, eles me disseram que só precisava de boa vontade e persistência.”, relembra. Anos após o esporte entrar em sua vida, ele sente o resultado dos treinos não só fisicamente, mas também mentalmente. “Tira muito o estresse do teu dia a dia. Eu era muito estressado, brigava com meu irmão, com minha mãe, com meu pai, qualquer coisa era motivo pra eu quebrar ou chutar algo, de vez em quando até sair no soco com alguém. Quando eu comecei a praticar esportes, minha saúde melhorou, minha respiração melhorou e eu fiquei mais calmo.” explica.

Os problemas de João não se prendiam somente a brigas com a família, ele começou a fumar cigarro aos 15 anos e via seu rendimento no esporte baixar, até que resolveu mudar o rumo da sua vida. “Aquilo começou a me atrapalhar nos meus andamentos, eu lutava muay thai e isso atrapalhava meu condicionamento físico, daí eu tracei a minha meta: eu quero parar de fumar e tenho motivo pra isso. Depois disso, parei com o cigarro e alavanquei. E isso te motiva, tu sempre tem que traçar um objetivo na tua vida, ela sempre vai ter sentido, sem isso, tu vai sempre estar no ‘o que eu estou fazendo aqui, o que estou fazendo vivo?’”, afirma João. Depois de dois anos no projeto e com um total de cinco praticando artes marciais, João percebe que o esporte transforma o ser humano: “Hoje, graças ao esporte, parei de brigar com a minha família e parei de fumar. Se tu gosta do esporte, tu vai ficar mais calmo e nem vai sentir falta do cigarro ou qualquer droga. O que o esporte mudou em mim? Me deixou um cara mais feliz, de bem com a vida.”


Fotos Lucas Ferreira

«Quando eu não treinava, eu era muito, muito esquentado. Treinando, consegui esquecer um pouco isso, extravazar, e foi o que mais me aliviou, foi isso que o boxe mudou em mim.» Igor Antônio dos Santos, 17 anos Dez meses no projeto (descobriu a iniciativa na fanpage)

«Hoje, graças ao esporte, eu parei de brigar com a minha família e parei de fumar. O que o esporte mudou em mim? Me deixou um cara mais feliz, de bem com a vida.» João Miguel Pacheco, 17 anos Dois anos no projeto (descobriu vendo os lutadores correndo na volta da vila, quando voltava para casa)

Jeferson (à esquerda) e João Miguel (à direita) treinam dentro do ringue

O lutador mais experiente entre os aprendizes do projeto é Jeferson Aguiar, que, com 23 anos, já ganhou campeonatos de nível estadual, mas, como esse estilo de boxe não é muito popular, ainda não colocou seu treinamento específico em prática,“Ele é um cara bem importante não somente por causa da luta, mas porque ele tem uma boa inserção local na vila, sendo que muita gente que vem conhecer aqui é por causa dele”, afirma Christian. Apesar de seu talento no pugilismo, a fonte de renda de Jeferson é sua barbearia, onde faz os cortes de cabelo do pessoal do bairro. “A gurizada inteira me conhece, então é sempre assim, eu luto no domingo, na segunda-feira eu trabalho ali, e o papo é o campeonato o dia inteiro: ‘E aí, como é que tu foi?’, ‘Como é que tu tá?, ‘Deixa eu ver o vídeo?’ e assim o pessoal interage.”, conta. Mesmo sem o curso de instrutor de boxe, à noite, ele ajuda os alunos mais novos do projeto. “Aqui a gente tá educando o cidadão para ele se tornar um atleta, estamos fazendo essa transformação, temos esse papel de professor e educador. Se al-

gum aluno faz alguma coisa errada na rua, isso vai refletir aqui dentro, então precisamos ser rígidos, porque ele tira o exemplo daqui, tu vai levar algum resquício da educação daqui pra fora.” Jeferson já ouviu muitas controvérsias sobre o boxe, como o fato de ele ser mais violência do que um esporte disciplinar, mesmo assim, ele afirma que o boxe teve um papel fundamental em sua educação. “Não me ensinam simplesmente a dar um mundaréu de murro, eles estão me ensinando a ser uma pessoa melhor dentro e fora do ringue. Toda academia em que eu entrei sempre começava com bom dia, boa tarde ou boa noite.” Ele agradece muito tanto à oportunidade de fazer parte do projeto quanto de ter tido a sorte de encontrar o boxe não só como esporte, mas também como estilo de vida. “Eu às vezes me pego pensando ‘o que é que eu faria se eu não treinasse, se eu não fosse um pugilista, não fizesse parte desse projeto ou não morasse do lado da academia?’, graças a Deus, eu encontrei algo que é a minha cara, eu amo o boxe, eu vivo o boxe.”, reflete Jeferson.

«Eu era braba, brigava na escola por apelidos, tapas e frescuras, mas o esporte me deixou mais calma, me controlo mais.» Kethelin Araújo, 17 anos Três meses no projeto (descobriu por meio de uma postagem no Facebook de Jeferson)

ONDE FICA Rua Graciliano Ramos, 603 - Vila Santa Isabel, em Viamão. O custo é de R$ 20 mensais, e as aulas ocorrem às segundas e terças-feiras, das 14h às 16h, e quintas-feiras, das 21h às 22h30. O contato de telefone para ligação e whatsapp é (51) 98441-8250.

23


Foto: Leonardo Kaller

AFETO A DISTÂNCIA

Amor em diferentes línguas Como casais de nacionalidades distintas vencem as diferenças culturais e seguem com o relacionamento

Pedro da Cruz e Anna Fillipek , brasileiro e polonesa, aproveitam os últimos momentos no Brasil

Leonardo Kaller

I

magine que você é jovem e está apaixonado. Você e seu parceiro ou parceira não falam a mesma língua, se comunicam apenas em inglês. Ele volta para casa, e a casa está a milhares de quilômetros de distância, em outro país, outro continente. Palavras iguais têm significados diferentes. Atitudes normais para um, são estranhas para o outro. Como você lidar com essa situação? Pedro da Cruz, 23 anos, e Anna Fillipek, 26 anos, se conheceram em Glasgow durante um intercâmbio que fizeram durante a faculdade. Casados há quase um ano, eles contam sobre os mais de três anos de relacionamento. Ela é de Varsóvia, capital polonesa, ele é de Porto Alegre. Um dos grandes desafios do casal foi a distância. Ficaram separados por mais de 10 mil quilômetros, mas hoje veem isso como algo que foi positivo para a relação. “No início, era terrível, mas se tu consegue superar a distância, não existe nada que vai te separar. Quando ela tá do outro lado do mundo, não tem como abraçar se brigarmos, é tudo na base da conversa”, explica Pedro. Um ponto marcante para ele

foram os costumes religiosos. A Polônia é um país extremamente católico, com mais de 80% dos poloneses seguindo a religião. A família de Anna costuma ir a retiros que têm o intuito de melhorar a relação familiar, e justamente isso fez com que Pedro acreditasse em seu namoro. Por seus pais terem se separado quando criança, ele nunca teve a perspectiva de um relacionamento duradouro, mas, ao deparar com essa outra realidade, abriu a mente para novas possibilidades em seu relacionamento. Seon Jae Kim, 22 anos, sul coreano, e Ariana Ribeiro, 22 anos, brasileira, se conheceram em uma festa de aniversário de uma amiga em comum do casal. Encontraram-se novamente em uma festa de música coreana, lá se beijaram pela primeira vez e Ariana logo teve seu primeiro estranhamento. Após o beijo, Seon Jae perguntou: “Estamos namorando?”. “Eles (coreanos) parecem ser muito apressados, e qualquer sinal parece ser que já é um relacionamento sério. Não existe muito isso de ficar, ele perguntou de novo um mês depois, mas daí a resposta foi outra”, relata Ariana. As atitudes de Seon Jae mudaram bastante. De acordo com Ariana, ele

«Distância e cultura não são problema se tu tem certeza do teu sentimento.» Ariana Ribeiro agia de uma forma um pouco machista. Ele achava chocante que Ariana falasse sobre sexo, por exemplo. Muito disso era devido à cultura coreana, que é mais conservadora. “Eram coisas pequenas, mas eu percebia que para ele era natural. Eu comecei a explicar o que ele fazia de errado”. Ariana explica que ele acabou criando um maior respeito por mulheres e, principalmente por ela, entendo que é natural que ela fale sobre determinados assuntos. Larissa Caselani, 29 anos, vive há cinco anos na Austrália, hoje namora com Justin Williams, 31 anos, e conta que a primeira impressão que teve era de muito respeito por parte dele. “Eu tive outros namorados aqui, e todos têm algo em comum: eles não beijam no primeiro encontro, são pelo menos três encontros para acontecer. Eu ficava

naquela expectativa, e nada.”, conta Larissa. Enquanto conhecia Justin, ele treinava para um campeonato de Jiu Jitsu e, por isso, por algumas semanas, não conseguiram conversar direito. A surpresa veio após o término do campeonato: ela abriu a porta de casa e viu um enorme buquê de flores. “Foi uma forma de agradecer por ela ter sido compreensiva, já que eu não estava dando a atenção que ela merecia”, explica Justin. Para Larissa, foi algo decisivo para firmar seu namoro com Justin, que já dura cinco meses. “Acima de tudo, é o esforço. A gente ficou bastante tempo longe, as vezes é melhor ter calma e desligar o Skype um pouco que continuar uma discussão”, conta Anna sobre os aprendizados ao manter um relacionamento duradouro à distância. “É tudo uma questão de empatia”, explica Ariana. As atitudes de Seon Jae, para ela, eram inapropriadas e quase inaceitáveis em relação ao machismo, mas ao entender que aquilo era algo natural de sua cultura, foi compreensiva e buscaram melhorar juntos. Já para Pedro, calma e persistência são tudo: “Língua, cultura, distância são coisas difíceis. Mas se tu tiver determinação e paciência, é possível que tudo dê certo”. 24


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.