Edição 6 Porto Alegre Dezembro 2017 Venda Proibida ESPM-Sul
Jornal da Faculdade de Jornalismo ESPM-Sul
Instantes
Você sabia que apenas
Existem mais de 11
3,49% dos pretendentes
lojas e sebos de vinil
aceitam adotar crianças
e toda uma cultura de
com 10 anos ou mais?
colecionadores em Porto Alegre
Qual a idade média de aposentadoria para
Você sabia que se o
bailarinos?
Michel Temer chegar em uma reunião do
Você sabia que cerca
Alcoólicos Anônimos, ele
de 47% das famílias
não será o Presidente,
recusam a doação dos
será apenas um
órgãos do parente?
companheiro de grupo?
A cada dia, ocorrem 136
A cada 25 horas,
ocorrências de estupro
uma pessoa LGBT é
no Brasil.
assassinada no Brasil.
Você já imaginou
A Zona Rural de Porto
acordar todos os dias
Alegre já representou
e sentir-se preso dentro
30% do território do
de um corpo que não
município. Você sabe
é o seu?
quanto ela ocupa hoje?
O projeto que pretendia
A cada 100 pessoas
salvar o Dilúvio
assassinadas no Brasil,
completa seis anos sem
71 são negras.
nunca ter saído do papel. Você sabia que uma amizade pode sobreviver por mais de 30 anos só por cartas?
Editorial
Instantes de reportagem
DO ARMÁRIO PARA A RUA: ALÉM DOS NOVEO TEMPO MESES UM DESAFIO CONTRA
Ângela Ravazzolo
O tempo cura tudo. Só o tempo dirá. Dê tempo ao tempo. Basta um segundo e a vida toda muda. São tantos clichês espalhados por aí que a ideia de elaborar uma edição do Blog de Papel pautada pela palavra tempo me deixou um pouco ressabiada inicialmente, mas ao mesmo tempo curiosa. O resultado final mostrou que valeu o desafio. Os 12 repórteres que criaram esta edição garimparam histórias recentes e outras mais antigas, sempre com um olhar curioso e cuidadoso, propondo diferentes conexões com a relatividade do tempo. O racismo que atravessa décadas a partir da perspectiva de uma família, o trabalho cronometrado de um transplante de órgão, a decisão de virar bailarino aos 21 anos, o preconceito que se mantém firme mas que também é combatido, o espaço rural que some aos poucos ou ainda um projeto engavetado que poderia recuperar o Arroio Dilúvio e foi deixado de lado. São alguns dos instantes de reportagem reunidos nesta edição. Esta turma experimentou aquelas sensações e situações que só os repórteres vivenciam: a preocupação com a fonte que não responde, o incômodo por ter de cortar aquele texto tantas vezes revisado, e, por fim, o tempo de comemorar, com a finalização das 12 reportagens que compõem esta edição. Foram todas planejadas, reescritas e finalizadas com a dedicação de quem descobre a melhor profissão do mundo. Aproveite e leitura. E não perca tempo, porque o tempo não para.
04
PorNaesha Gian Carlos Panisson Carvalho
06
COM O CORAÇÃO NA MÃO Jennifer Casagrande
08
UM CAMINHO COM VOLTA Alex Torrealba
10
ZONA RURAL EM RISCO Frederico Engel
12
O PODER DAS CARTAS Laura Lima
14
A CONTINUAÇÃO DE UM PASSO Gabriela Hagemann
16
DO ARMÁRIO ATÉ A RUA Gian Carlos Panisson
18
VIDAS PAUTADAS PELO RACISMO Juliana Irala
20
VÍTIMAS DO TEMPO Isadora Osório
22
O RENASCER NO ESPELHO Fabiana Marsiglia Thomas
24
O RITUAL DE OUVIR MÚSICA Matheus Gomes
26
TEMPO PARA O DILÚVIO Paulo Nemitz Júnior
O jornal BLOG DE PAPEL é uma publicação semestral dos alunos do 4º semestre do curso de jornalismo da ESPM-Sul. Direção do curso de Jornalismo: professora Dra. Janine Marques Passini Lucht. Equipe da Edição Número 6 (Dezembro de 2017): Alex Bruno Dudschig Torrealba Uribe, Fabiana Marsiglia Thomas, Frederico Piamezzola Engel, Gabriela Fiori Hagemann Soares, Gian Carlos Lorencet Panisson, Isadora Osório da Silveira, Jennifer Rafaela Casagrande, Juliana Sírio Irala, Laura de Lima Silva, Leonardo Kaller Pedroso, Matheus Mendes de Lima Gomes, Naesha Pereira Proença de Carvalho, Paulo Gilberto Nemitz dos Santos Júnior. Coordenação Editorial: professora Ângela Ravazzolo. Foto da capa: Gabriela Fiori Hagemann de Soares e Paulo Gilberto Nemitz dos Santos Júnior. Orientação: professora Renata Stouduto. Coordenação do Design Editorial e Produção Gráfica: professor Marcelo Halpern. Criação do nome do Jornal Blog de Papel desenvolvido por Micaela Ferreira e Richard Koubik e projeto gráfico por Eduardo Diniz e Marcos Mariante. ESPM-Sul – Rua Guilherme Schell, 350 e 268 – Santo Antônio – Porto Alegre – RS, 90640-040 – (51) 3218-1300.
“DESPERDIÇAMOS O TEMPO QUEIXANDO-NOS SEMPRE DE QUE A VIDA É BREVE” Marquês de Maricá
Além dos nove meses A adoção no Brasil é uma conta que não fecha, além da demora excessiva e uma fila de espera sem apoio
Fotos: Naesha Carvalho
Naesha Carvalho
O
processo de adoção no Brasil pode ser contraditório. Na teoria, não é complicado. São sete passos para que os adotantes se habilitem: procurar a Vara da Infância e da Juventude mais próxima, fazer a petição para iniciar o processo, cursos e entrevistas de preparação psicossocial e jurídica, traçar um perfil de criança desejado, obter o laudo da equipe técnica e do parecer do Ministério Público, e a sentença do Juiz responsável pelo processo. A partir disso, o nome do adotante será inserido na fila de espera até o perfil compatível ser encontrado. Não faltam interessados em adotar. Atualmente, são 41.513 adotantes habilitados para 8.199 crianças e adolescentes que aguardam uma família. Ainda assim, na fila de espera, os motivos para essa conta não fechar são diversos, desde a burocracia judicial, até, o perfil que os pretendentes esperam da criança. As histórias de Patrícia e Andrea se encontram por causa da demora. Ambos processos exigiram mais de três anos de espera e paciência. Habilitadas, não tinham exigências além da idade e, mesmo assim, o processo não foi rápido. O desejo de construir uma família superou qualquer obstáculo.
O amor que veio de longe Em 2007, Patrícia Vianna e Jacques Zibenberg completavam três anos casados. Foi quando iniciaram exames pré-natal. Logo no ínicio, ambos descobriram problemas de saúde que poderiam complicar o processo de gravidez. Em 2011, após o segundo aborto, começaram a amadurecer a ideia da adoção. O casal não queria que a adoção fosse considerada a última opção. “Se a gente, mais 4
“No final do processo nós combinamos que nunca mais iríamos iniciar de novo, o que acabou não acontecendo, pois estamos habilitados mais uma vez.”
Jacques, Patrícia e Elton aguardam por mais um integrante na família.
tarde, optasse por alguma tentativa biológica já teríamos a certeza que a papelada da adoção estava encaminhada, para que a adoção não fosse considerada o nosso último recurso”, afirma Patrícia. Em agosto de 2012, foi encaminhado o processo de adoção do casal: até 3 anos, com possibilidade de receber irmãos, independentemente de raça e sexo. Em setembro do mesmo ano, foram chamados para a primeira entrevista, de lá até dezembro foram sete ao total, com psicóloga e assistente social. Para eles foi um período um período intenso.
Um processo fora do padrão O processo de adoção de Patrícia e Jacques foi diferente, eles utilizaram o modo busca ativa e, por isso, a espera foi menor que processos de adoção comuns. Essa forma não é reconhecida formalmente no Rio Grande do
Sul, mas isso não foi problema para o casal. Eles buscaram Elton em Luziânia, um pequeno município em Goiás. Isso acontece quando existe a intenção de adotar uma criança específica que já passou da idade de 3 anos e está apta para a adoção em casa de abrigo. De acordo com o Poder Judiciário, a busca ativa acontece formalmente quando os pais e outros familiares perdem a guarda da criança, com sentença transitada em julgamento, com a finalidade de viabilizar a inserção das crianças em uma nova família. Uma prima de Patrícia também foi essencial para que ela e Jacques conhecessem Elton. Ela, que mora em Brasília, é voluntária em diversas casas de abrigo e orfanatos, e foi em janeiro de 2015 que, por acaso, ela conheceu Elton. “A gente não sabia nada sobre a história do Elton, ela só disse que tinha um menino de seis anos em um orfanato em Luziânia”, lembra Patrícia. Na semana seguinte a ligação,
Patrícia e Jacques foram para Brasília sem muito planejamento. A vontade de conhecer o menino já era maior do que qualquer outra questão de comodidade. No dia sete de fevereiro o casal conheceu Elton. Logo após chegar na capital do país, pegaram a estrada com destino a Luziânia, município em Goiás, cerca de 60 km do Distrito Federal. “No final do processo, nós combinamos que nunca mais iríamos iniciar de novo, o que acabou não acontecendo”, revelou Patrícia, relembrando o desejo do filho em ter um irmão. Apesar das coisas boas que aconteceram para a família, outras ainda mostram o distanciamento que grande parte da população tem em relação à adoção. “Existem questionamentos do tipo ‘Que legal vocês terem adotado uma criança que até a cor da pele é diferente.’, nós percebemos o racismo e o preconceito velado, sempre em tom de elogio, como se tivéssemos feito uma boa
ação”, manifestou Patrícia. Para o casal, essa é uma luta de todas as famílias que adotam: quebrar o senso comum da “boa ação”, quando na verdade o principal desejo é de construir uma família.
Mãe Andrea e Pai Ricardo Para Andrea Sehaber, desde a infância a adoção era algo muito natural. Em 2000, após concluir a faculdade, mudou-se para Londres, e o que ela não sabia é que no primeiro dia na nova cidade iria conhecer Ricardo Santini, seu marido há treze anos, que também compartilhava desse sonho. No início do relacionamento, a gestação ainda parecia distante e a vontade de ter filhos não tão era presente. Mas, com o passar do tempo, essa vontade se tornava cada vez mais forte. Em 2010, quando decidiram que era o momento de ter filhos, por problemas de saúde descobriram que teriam dificuldades além das que imaginaram anteriormente. Foram diversas situações complicadas, até que o casal tomou a sua nova decisão e relembraram um sonho antigo: a adoção. Em dezembro de 2012, abriram o processo e, no mês seguinte, começaram as entrevistas: quatro ao total, duas com a assistente social e duas com a psicóloga. Demorou um ano para que eles conseguissem a habilitação para a adoção. Em dezembro de 2013, o casal estava oficialmente na fila de adoção. O perfil era pouco específico: uma criança até três anos, sem qualquer outra distinção, mas, o tempo extra oficial na fila assustava: de 3 a 6 anos aguardando.
“Tu entra em um processo, espera por muito tempo e nada acontece. Ficamos sem notícias. ” disse Andrea. No fim de 2015, por motivos profissionais, Andrea entrou em contato com a área de adoção. Eles falaram ‘Pode ficar tranquila que o caso de vocês vai longe.’”, relembrou Andrea. Passaram-se seis meses até que Ricardo recebesse a ligação do Fórum, a chamada mais esperada por eles desde dezembro de 2013. Souberam que eram os próximos da lista. Durante o período de espera, eles alteraram o perfil até 5 anos, a fim de diminuir a expectativa de tempo na fila. “Essa espera que nós temos como pais adotivos poderia ser feita de um jeito diferente, durante todo esse período nós não temos qualquer informação”, questionou Andrea sobre a falta de assistência por parte dos órgãos que tratam a adoção no Brasil. E ele chegou: Braian, 4 anos. A partir do dia da ligação, o processo foi extremamente rápido. Foram dez dias até que a família crescesse. No mesmo mês, Andrea e Ricardo ganharam a guarda do Braian. “A minha dúvida era se nós o conhecêssemos e ele falasse que, não queria ser nosso filho. Mas desde o primeiro dia ele me olhou e disse “eu sei o nome de vocês, tu é mãe Andrea, ele é o pai Ricardo”, recordou emocionada. O casal conta que diversas vezes foram questionados sobre o bem que eles estão fazendo para o Braian, mas sempre reforçam que a felicidade e o aprendizado que o pequeno proporciona para eles é superior a qualquer coisa.
MAS POR QUE DEMORA TANTO? Mario Romano Maggioni, Juiz da Vara da Infância e da Juventude de Farroupilha/RS, é considerado um Juiz pró-adoção. Ele escreve crônicas sobre o processo de adoção e, com poesia, auxilia os adotantes que esperam por tempo indefinido. Para Mario, a adoção tem a ver com a paternidade e maternidade responsável. “As crianças e adolescentes têm direito a crescer no seio de uma família que garante o seu desenvolvimento integral. Isso me motiva.”, conta. Sobre o tempo de espera das adoções, o Juiz explica que, além da questão do “desencontro” entre os perfis desejados dos adotantes e adotados, outra questão para a demora é a
insistência da Justiça na família genética da criança. Em diversas comarcas, a rede envolvida no atendimento da criança não encaminha a ação de destituição para os casos necessários, gerando ainda mais demora no processo. Além disso, apesar de todos os processos de adoção seguirem o que está estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Civil e na Constituição, cada Juiz pode ter a sua interpretação para um mesmo texto legal. Por isso, todos os processos de adoção são únicos. As leis que regem a questão são o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o Código Civil (Lei 10.406/2002) e a Constituição Federal.
OS NÚMEROS DA ADOÇÃO No Brasil: 41.361
pretendentes habilitados
7,00%
Na Região Sul: 12.555 pretendentes habilitados
aceitam crianças com mais de 8 anos
43,57%
aceitam crianças indígenas
32,36%
aceitam irmãos gêmeos
44,56%
aceitam crianças negras
46,37%
aceitam crianças de todas as raças
50,18%
aceitam crianças amarelas
51,96%
aceitam crianças negras
69,46% aceitam crianças pardas
65,55%
não aceitam irmãos
97,12%
aceitam crianças brancas Fonte: Cadastro Nacional de Adoção - CNA
O APOIO PARA QUEM ESTÁ ESPERANDO A ELO - Organização de Apoio à Adoção foi criada em 2015, após Peterson Rodrigues ser convidado para conversar com um grupo de estudantes do curso de psicologia sobre a adoção homoafetiva. Nessa conversa ele abordou a falta de apoio durante o tempo de espera de adoção, e, a partir do incentivo da professora e psicóloga Márcia Franco e da disponibilidade de alunos do curso, foi criada a associação sem fins lucrativos. Atualmente, a ELO proporciona encontros mensais em Porto Alegre e em toda a região metropolitana, com o intuito de gerar o debate sobre assuntos que fazem parte do universo da adoção. Além dos grupos de apoio,
a ELO também realiza o apadrinhamento afetivo de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. “A proposta é trabalhar a convivência familiar e comunitária, os grupos servem para conscientizar e dar apoio, pois, as pessoas necessitam desse apoio quando estão esperando e também quando o filho chega, no pós adoção”, contou Peterson Rodrigues. O idealizador e fundador da ELO também falou que os grupos de apoio não são um espaço para questionar ou reclamar sobre o tempo de espera na fila da adoção, e, sim, para pensar o que se pode fazer com esse tempo para estar preparado quando a hora chegar.
Andrea e Braian no cinema, um dos passeios favoritos de mãe e filho
5
‘NÃO DÊ TEMPO AO TEMPO! DÊ VIDA AO TEMPO.’’ Marcio Ambrosio
Com o coração
na mão
Os bastidores da corrida contra o tempo dos profissionais que trabalham com transplantes de órgãos no Estado
Foto: Jennifer Casagrande
Jennifer Casagrande
E
m uma segunda feira, 19 de maio de 2015, a gestante Aline Souza Machado, 25 anos, foi encaminhada diretamente para UTI (Unidade de tratamento intensivo) do hospital Santa Casa de Porto Alegre com um quadro muito grave de insuficiência hepática aguda, que causa destruição no fígado. O quadro se agravou para um processo de hepatite e desencadeou o aborto do feto. Na quarta-feira, o seu estado de saúde piorou. Começou, então, a corrida contra o tempo para a realização de um transplante. A equipe responsável pela captação de órgãos da OPO (Oganização de Procura de Ógãos) achou que talvez não desse tempo de realizar o transplante na Aline, então, no mesmo dia, surgiu um doador de Santa Catarina. “Nós tínhamos um tempo limitado para chegar e sair de lá, porque na cidade não tinha um aeroporto, e sim uma pista de pouso que não funcionava à noite. Chegamos correndo no hospital, fizemos a cirurgia de captação dos órgãos e poucos minutos antes de fechar a pista conseguimos decolar para Porto Alegre”, relembra o médico que realizou o transplante, Juliano Martini. De acordo com o Portal da Saúde, do Ministério da Saúde, o prazo de isquemia (tempo de retirada do órgão do doador e o seu implante no receptor) de um fígado é de 12 horas. Diante da situação, poucas horas de vida restavam para o órgão. Simultaneamente ao processo da captação, no Hospital Santa Casa a paciente Aline estava sendo preparada para o transplante. “Quando estávamos terminando o transplante, a paciente quase 6
A enfermeira Rochelle Soares auxilia a equipe médica no transporte de órgãos e nas cirurgias
teve uma parada cardíaca. Ela saiu da sala de cirurgia muito grave, eu lembro de ter pensado, acho que não vai dar para essa moça, embora estivéssemos fazendo de tudo. No dia seguinte, a paciente ainda estava em estado grave, mas foi melhorando. Hoje ela está casada e pretende engravidar de novo”, relata o médico, emocionado. Casos como esse têm um final feliz porque, nos bastidores do processo de transplante de órgãos, há uma equipe multidisciplinar muito organizada, que enfrenta as etapas burocráticas e práticas. Todos aqueles que trabalham com trasplantes têm em comum uma barreira a ser vencida: o tempo.
A BUSCA
A enfermeira Rosane Dias Barros trabalha na OPO1, do Hospital da Santa Casa de Porto Alegre. Rosane tem como função fazer a abertura de protocolos por meio da busca ativa, que são visitas nas UTIs para averiguar os prontuários dos pacientes com suspeita de
morte encefálica (perda definitiva e irreversível das funções cerebrais). O outro processo pode ser feito pelas (CIHDOTT), Comissão Intra-Hospitalar de doação de órgãos, nessa etapa, os médicos entram em contato com a OPO. Após constatar a morte encefálica, por meio de exames e testes, o médico responsável dá a notícia para os familiares. Inicia-se, então, o processo de conversa com a família sobre a possibilidade da doação de órgãos. De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de órgãos (ABTO), a falta de conhecimento sobre irreversibilidade da morte encefálica é a principal causa de recusa de doação. Em 2016, 47% das famílias recusaram a doação dos órgãos do parente com morte cerebral/encefálica. Desta forma, uma missão nada fácil é a de conversar com os familiares, sobre a possibilidade da doação, pois muitas vezes eles pensam que o seu familiar ainda está vivo por causa dos aparelhos que mantêm o corpo vivo.
A FAMÍLIA
“Cada caso é um caso, e sempre dá um frio na barriga, porque tu não sabes como vai estar aquela família. Eles acabaram de receber a pior notícia da vida deles. Então, a gente tem que tentar agir no momento certo. Geralmente, nós perguntamos: o que o médico disse? O que vocês já entenderam? Para, assim, ter certeza de que eles sabem que o familiar está morto, para falar sobre a doação”, explica a enfermeira Rosane. Quando a família autoriza a doação, iniciam-se as coletas de exames, para ver se há alguma contraindicação para a doação. Os pacientes só podem receber os órgãos referentes ao mesmo tipo sanguíneo e tamanho aproximado. A central coloca os dados no sistema para gerar uma lista única, e entra em contato com as equipes das OPOs, responsáveis em conversar com os possíveis receptores. Após isso, a central marca o horário da retirada dos órgãos com a OPO 7.
A CAPTAÇÃO
“Nós corremos contra o tempo direto, mas nem por isso deixamos de cumprir etapas de segurança do processo. Após o término da cirurgia de captação, os médicos e enfermeiros entregam íntegro o corpo do doador para a família, que pode desistir da doação em qualquer momento”, explica, Rochelle. A enfermeira Rochelle Soares auxilia a coordenação técnica da equipe OPO 7, com seis enfermeiros. A equipe possui uma escala de sobreaviso, atendem às doações no período de plantões, organizam a logística do processo de doação, fazem a solicitação do meio de transporte, carro, avião ou helicóptero junto com a central de transplantes e solicitam os materiais necessários para a retirada de órgãos. O processo da cirurgia de captação é delicado, o doador deve ser levado para a sala de cirurgia com muito cuidado. Se esse doador sofrer uma parada circulatória no caminho, por exemplo, é possível perder todos os órgãos. Se tudo ocorrer bem nessa etapa, a enfermeira Rochelle começa a preparar os suportes que guardarão os órgãos, organiza a estrutura que vai precisar para condicionar os mesmos, realiza a identificação do doador com lateralidade, por exemplo, rim direito, rim esquerdo. Faz o preparo do gelo e dos líquidos, pois cada órgão recebe um líquido de preservação diferente. Depois dessas etapas de preparação, que duram em média 30 minutos, os médicos e enfermeiros iniciam os procedimentos da remoção dos órgãos. Começa, então, o momento mais crítico do processo do transplante, a corrida contra o tempo de vida do órgão. Rochelle trabalha com transplantes há 15 anos, e na OPO 7 há três anos. Com tanto tempo trabalhando nessa profissão, ela conta uma história que a faz reviver o passado, diariamente. “Há dois anos, eu fui numa captação à noite, no Pronto Socorro de Canoas. Era uma doação de um rapaz de 24 anos, que sofreu um trauma encefálico. No outro dia, estava de plantão, e a última paciente que atendi para a realização do trans-
plante era uma menina de 12 anos. Quando eu cheguei em casa, fiquei sabendo que essa menina era filha de uma grande amiga da minha mãe. Essa é uma história bacana, porque faz dois anos que ocorreu o transplante e todos os dias a mãe dela me manda uma mensagem às 7h da manhã agradecendo e dizendo que eu sou o Anjo da Guarda da filha dela”. O tempo é sempre calculado, mas, infelizmente nem sempre as coisas ocorrem como o esperado. “Uma vez, saímos de Porto Alegre de avião com o tempo de captação bem limitado, mas, pelos cálculos, conseguiríamos chegar a tempo. Então, fomos para Santa Maria fazer uma retirada de fígado, e rins. Quando chegamos no hospital, a cirurgia acabou atrasando, porque não havia sala disponível. Infelizmente, após realizar a cirurgia, não conseguimos embarcar porque o aeroporto já havia sido fechado. Perdemos o fígado, pois ficamos 8 horas com os órgãos parados, mas conseguimos salvar os rins. É uma frustração perder um órgão, mas às vezes não temos como controlar”.
Caixa térmica utilizada para conservar os órgãos.
TEMPO DE VIDA DOS ÓRGÃOS CORAÇÃO FÍGADO PÂNCREAS PULMÃO RIM
O DESLOCAMENTO
Juliano Martini trabalha junto com a OPO7 na cirurgia de retirada e também na equipe de transplantes de fígado, rins e pâncreas do Hospital Santa Casa. Para poder salvar vidas, ele enfrenta riscos, que podem ser amenizados se atitudes corretas forem tomadas. “A cirurgia de transplante é uma das especialidades médicas de maior perigo, pois convivemos com riscos bem maiores comparados com quem está no consultório atendendo ou com quem está em um bloco cirúrgico operando. Um exemplo é o transporte que temos que fazer para captar os órgãos. É uma barreira que precisa ser enfrentada, o que temos que fazer é tentar minimizar os riscos e evitar de ir em situações extremas, sempre temos um motorista da Secretaria da Saúde, ou um piloto que avalia questões situações climáticas quando se precisa de um voo”, explica o médico especializado em cirurgia de transplante.
4h 12h 20h 6h 48h Fonte: Ministério da Saúde
A CHANCE
O técnico em enfermagem, Filipe Rafael Nunes nasceu com tetralogia de Fallot, uma malformação do coração. Após passar por três cirurgias de reparo, os médicos optaram por um transplante cardíaco. Filipe optou em fazer o transplante, ficou dois meses na fila de espera até conseguir um órgão cardíaco. “Antes de eu receber a notícia de que eu iria precisar de um transplante, a minha mãe era totalmente contra a doação de órgãos, mas aí vem a vida e mostra para ela que o filho precisa de um órgão e que ela não pode fazer nada, pois, se fosse um rim, ela teria como retirar, mas o coração, não”, conta Filipe. “Quando eu tive alta do hospital, resolvi fazer o curso de Técnico em Enfermagem, até para poder ajudar o próximo, como eu fui ajudado, e poder devolver pelo menos uma parte do presente que eu recebi de Deus, uma nova chance”.
Filipe atuou seis meses com a assistência ao paciente, mas devido à imunidade baixa e à grande probabilidade de pegar infecções, foi convidado a trabalhar na OPO 7. Dentro do Instituto de Cardiologia, ele fazia a manutenção do acondicionamento dos órgãos de rins e fígados. Filipe também entregava os órgãos nos blocos cirúrgicos dos hospitais. Devido à problemas de saúde, hoje ele trabalha na parte admisnitrativa do Instituo. “A primeira vez que fiz esse trabalho me remeteu na memória tudo aquilo que eu havia passado, então foi bem emocionante entregar um rim num bloco cirúrgico, sabendo que eu já tinha passado por isso, mas no meu caso com o coração”. Filipe nunca tinha pensado em trabalhar com doação de órgãos. “Me senti gratificado, pois tive a oportunidade de sentir na pele os três lados da vida, o de ser paciente, funcionário e cuidador.” 7
“O PASSADO NÃO RECONHECE O SEU LUGAR; ESTÁ SEMPRE PRESENTE” Mario Quintana
Um caminho com volta Um dia de cada vez, é com esse tempo que dependentes de bebidas alcoólicas vivem em busca da sobriedade e de um recomeço
Foto: Alex Torrealba
Reuniões de Alcoolicos Anônimos são importantes para o tratamento e há diversas opções de lugares para se reunir
Alex Torrealba
U
m homem de 39 anos, cerca de 1,90m e um semblante confiante. Seu nome é Samuel e ele é um alcoolista. Começou a beber com 11 anos por influência paterna, pois ia buscar bebida sempre que solicitado. O álcool, no seu caso, serviu como porta de entrada para o crack e foi o início de todas as suas perdas. O emprego na área empresarial, a esposa e muitas dívidas foram alguns dos extravios pelos quais Samuel passou. Vivendo sozinho em seu apartamento, em Esteio, e sem nenhuma motivação para fazer as atividades rotineiras, ele reconheceu a necessidade de buscar ajuda. Aos 31, foi internado durante nove meses e começou a frequentar os Alcoólicos Anônimos. “Os nove meses que fiquei internado foram como se eu tivesse renascido”, conta Samuel, ao comparar sua internação a uma gestação. Há oito anos está sóbrio. Apesar de considerar a recaída como parte 8
da doença, ele credita sua sobriedade às reuniões dos A.A. “Preciso das reuniões e estar em contato com os companheiros”, afirma. Segundo Samuel, manter a mente ocupada e viver um dia de cada vez são fundamentais para o tratamento.
“Preciso das reuniões e estar em contato com os companheiros” Samuel, atualmente, tem uma nova esposa, é formado em Gestão Ambiental pela Uniaselv, trabalha na área na qual é graduado e pretende fazer uma pós-graduação. Também dedica parte do seu tempo para ajudar outras pessoas que necessitam de apoio. Samuel é membro e coordenador do Alcoólicos Anônimos do Distrito de Sapucaia, Esteio e Canoas, e acredita que o grupo é uma irmandade que une e tem uma gestão diferenciada. “É preciso entender o programa e aceitá-lo para ter resultados positivos”, afirma. O programa de A.A. é de total
abstinência do álcool. Os participantes evitam o primeiro gole, um dia de cada vez, seguindo os Doze Passos, os quais são sugeridos para a recuperação. O anonimato é mantido, pois leva a irmandade a se governar e manter os princípios acima das personalidades. “Se o Michel Temer chegar em uma reunião, ele não será o Presidente, será apenas um companheiro de grupo”, explica Samuel, ao falar sobre o anonimato do A.A. Um dos grandes companheiros de Samuel em sua caminhada é um homem de 60 anos, cabelos e barbas brancas, e disposto a prestar apoio para quem precisa. Seu nome é Osvaldo e ele é um alcoolista. Durante 27 anos ,viveu bebendo e correndo risco de morte. Iniciou as bebedeiras aos 16 anos para se divertir e se desinibir na hora de falar com as mulheres. “Usei o álcool para ter coragem de fazer muitas coisas”, disse Osvaldo. Antes disso, ele quase conseguiu engatar uma carreira como jogador de futebol no
Internacional. Jogou pelas categorias de base da equipe gaúcha, entretanto o custo para ir treinar o impediram de seguir esse caminho. Em vez disso, seguiu carreira no ramo da aviação. Apesar de ser um alcoolista, conseguiu trabalhar durante 30 anos como mecânico de aviões, manter firme a relação com a esposa, com quem é casado desde os 15 anos de idade, e teve dois filhos. No entanto, ele conta que a família vive a vida do dependente e acaba sofrendo. “O sofrimento começou quando eu tentei me matar pela primeira vez”, relembra Osvaldo, que não estava mais aguentando acordar alcoolizado quase todos os dias e ficar mal por isso. “Tu acha o álcool bom e quer mais. Isso, porém, vira uma doença lenta e progressiva”. Com 43 anos, tendo tentado o suicídio em algumas oportunidades, Osvaldo decidiu procurar ajuda. Ele foi em uma reunião do Alcoólicos Anônimos e acabou se identificando com o grupo.
Nos encontros do A.A., ele teve espaço para dizer o que queria, coisas que às vezes não podia falar para a própria família. “Com o Alcoólicos Anônimos, eu consegui recuperar as relações que eu tinha com as pessoas. Elas me viam na rua e conseguiam enxergar um homem diferente”.
“Com o Alcoólicos Anônimos, eu consegui recuperar as relações que eu tinha com as pessoas” Atualmente, Osvaldo é sindicalista no ramo da aviação e dedica muito do seu tempo livre ao A.A. Ele considera o programa algo que vai além do tratamento do alcoolismo: “O programa serve para melhorar o caráter do indivíduo”. O envolvimento foi perceptível quando Osvaldo foi um dos coordenadores do Comitê Trabalhando com os Outros (CTO), evento anual que reúne alcoolistas de todo Estado e teve a edição de 2017 em Canoas, no dia 23/09. Na oportunidade, que contou com cerca de 100 alcoolistas da região metropolitana de Porto Alegre, foram feitos grupos para discutir o tema reparação, um debate entre todos os participantes e, no final, eles saíram pelas ruas para levar a mensagem dos alcoólicos anônimos. Um dos participantes do CTO foi um jovem, de 22 anos, com
grandes pretensões de vida. Seu nome é Nestor e ele é um alcoolista. Começou a beber aos 16 por influência dos amigos e, assim como Samuel, também teve problemas com drogas. “No meu caso, o álcool sempre teve influência máxima sobre o uso de drogas, ele me prejudicou muito”, relatou o jovem. Aos 16 anos, ao ingerir muita bebida e misturar com drogas, Nestor quase teve uma overdose. A partir desse momento, ele começou a ter noção dos perigos do álcool e, após uma internação de nove meses, reconheceu que tinha uma doença. Assim como os outros, Nestor começou a participar de reuniões do A.A. e, segundo ele, estar presente nos encontros é a principal ajuda para parar de beber. “Por eu ser novo, muitos pensam ‘tu tem toda a vida pela frente ainda’, mas o jeito que eu estava levando minha vida, não estava tendo vida nenhuma”, relatou. Ele se reconheceu no Alcoólicos Anônimos, por sentir mais falta do álcool do que das outras drogas. Nestor atribui o desejo maior pela bebida por ser de mais fácil acesso e estar frequentemente ligada aos jovens. Depois que o jovem teve outro princípio de overdose, ele reconheceu que precisava de ajuda e foi atrás de seu porto seguro: a família. “Custou a entender tudo isso e, ainda, não sou um entendedor da minha doença, porque ela é muito traiçoeira. É muito
fácil voltar ao uso, a doença ela fica ‘estacionada’, a qualquer momento que eu largar os grupos ou perder minha fé, tudo pode acabar”, diz Nestor. Ele acredita que a fé é o que mais ajuda na sua recuperação. Uma crença a qual ele não tinha e que o A.A. o mostrou como um poder superior. A mudança de vida que Nestor teve após os tratamentos iniciarem, em relação ao convívio com a família e ter uma vida profissional, foram conquistas importantes para o jovem. Apesar de ter largado os estudos, aos 18 anos, para começar a trabalhar como mecânico industrial, ele pretende voltar a estudar em 2018, para continuar ocupando a cabeça com boas atividades e se especializar na área em que atua.
“O jeito que eu estava levando minha vida, não estava tendo vida nenhuma” Recaídas já aconteceram com ele. A última ocorreu após um ano e quatro meses sem nenhum gole de bebida. Contudo, há um mês e meio atrás, Nestor teve uma recaída de um dia. “Parei de frequentar o A.A., parei de ir na igreja e a doença acabou se manifestando”, relata. Foi apenas um dia, mas que poderia gerar estragos maiores. “No outro dia, eu já voltei a seguir meu plano de 24 horas, retornei para a igreja e para as reuniões”.
O que é o alcoolismo? De acordo com a psiquiatra especialista em tratamento de jovens com problemas psiquiátricos, Marcela Pohlmann, que atende em uma clínica de Porto Alegre, um dos principais desafios é o alcoolismo, o qual ela analisa como uma doença e está ligado a uma questão social. “A bebida alcóolica é difundida socialmente como se não houvesse nenhum risco à saúde da pessoa”. Pohlmann destacou que o alcoolismo está diretamente ligado a outras doenças como a depressão e a bipolaridade e, por meio do álcool, a pessoa consegue superar temporariamente esses transtornos, ou seja, ao beber em demasia, esquece por um tempo pelo que está passando. “Com a dependência, porém, a bebida pode provocar ansiedade e agravar os transtornos”. As formas de tratamento são poucas, mas se mostram eficazes na maioria dos casos. Apesar de ser uma doença sem cura, há formas de um alcoolista viver normalmente, manter uma família e ter um emprego. No entanto, o tratamento não pode ser abandonado, pois pode acarretar em recaídas. “Um tratamento eficaz se faz com psicoterapia e medicamentos, espiritualidade e, principalmente, comparecimento nas reuniões de Alcoólicos Anônimos”, relata Pohlmann, que chama esse tratamento de “tripé”.
5 CURIOSIDADES SOBRE O ALCOÓLICOS ANÔNIMOS 1) É uma irmandade de homens e mulheres voluntários, de todas as camadas sociais, que se reúnem para alcançar a sobriedade. 2) O anonimato é o alicerce espiritual do grupo, pois ele leva a irmandade a governar-se, mantendo os principios acima das personalidades. 3) Qualquer um pode assistir a uma reunião aberta do A.A. 4) No Brasil são 4,872 grupos de A.A., sendo 275 no Rio Grande do Sul. 5) O A.A. é autossuficiente, ou seja, rejeita contribuições de pessoas e instituições estranhas à irmandade. Fonte: Junaab
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A zona rural encolheu
Produtores rurais mostram preocupação com avanço da urbanização e impactos que gera na região Frederico Engel
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orto Alegre é a segunda capital brasileira com maior área rural, atrás apenas de Palmas (TO), segundo a prefeitura. Contudo, a região encontra-se ameaçada: a urbanização tem aumentado, conforme produtores, e com ela problemas como desmatamentos, invasões e roubos cresceram. Os agricultores tentam resistir, mas afirmam que o tempo deve alterar a geografia do local, tornando a região cada vez menos rural. Em 2014, após 16 anos, Porto Alegre voltou a ter uma zona rural delimitada. A aprovação da Câmara dos Vereadores instituiu um novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA). Com a nova demarcação, a zona rural está calculada em 4 mil hectares, enquanto a anterior, extinta em 1999, representava 17 mil hectares. Vasco Moro Machado tem 51 anos e é produtor rural há 20. Ele é proprietário da Granja Santantonio, terreno de 12 hectares no 10
bairro Lami que pertence a sua família há pelo menos 50 anos. Vasco mantém 3,7 hectares de mata nativa, de acordo com a legislação. A nova demarcação proporciona fatos curiosos, como conta o produtor. “Atravessando a rua onde resido, não é considerado como pertencente à zona rural, por mais que seja uma área descampada”. A sua granja fica distante cerca de 30 quilômetros região central de Porto Alegre.
As mudanças que a região vem sofrendo são percebidas e destacadas pelos moradores. Mary Angela Ferreira é produtora rural há 35 anos, no bairro Belém Novo (pela nova delimitação, não é considerada como residente da zona rural). Ela afirma nunca ter presenciado, mas tem conhecimento que ocorreu um aumento de crimes. “Antigamente, as paradas de ônibus eram tranquilas, não se sentia medo em aguardar.
Atualmente, o risco de ser assaltado está mais alto”. Vasco destaca que situações como invasões de propriedades e assaltos, muitas vezes exclusivos da região urbana, vem ocorrendo com maior frequência. “Muitos andam armados nas feiras, devido à falta de segurança”. Outros crimes também são relatados. “Abigeato (roubo de animais) e furto de plantações são cenários que temos enfrentado. Há formas
Foto: Frederico Engel
“NÃO TENHAMOS PRESSA, MAS NÃO PERCAMOS TEMPO”. José Saramago
rural. Claro, as dificuldades existem, mas eu adoro o que faço”. Vasco também não iniciou sua carreira como produtor. “Com 15 anos, eu realizei um curso de aviação e trabalhei como piloto particular durante alguns anos. Também atuei como engenheiro agrícola no Jardim Botânico”. Rafael de Castro Hilário tem 28 anos e veio à Porto Alegre morar com a sua tia no sítio Capororoca. Natural de Goiânia, ele trabalha como produtor rural há 12 anos no sítio Capororoca. A sua intenção, quando veio ao Rio Grande do Sul, era a de estudar Biologia, mas acabou graduando-se em Agronomia. Atualmente, o produtor faz parte da Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (Rama), organização necessária para regularizar a atividade de produtores rurais com a venda de alimentos orgânicos. O sitio fica localizado no bairro Lami, distante cerca de 30 quilômetros da região central da capital. Mary Angela elenca motivos que contribuem para a urbanização na Zona Rural. “Muitas famílias acabam se estabelecendo na região e permanecendo. O turismo rural, que tem crescido bastante, é outra prática que eu acredito que ajuda a aumentar a urbanização”, comenta. Sobre a mudança que a zona Foto: Frederico Engel
de tentar evitar, como plantar os alimentos afastados de rodovias, o que não acaba sendo um impeditivo da ação dos criminosos”, acrescenta Luiz Carlos Boehl Filho, produtor rural de 62 anos, residente do bairro Lami. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado, até o mês de junho de 2017, Porto Alegre registrou 49 casos de abigeato. Luiz atua como agricultor desde 1994, quando decidiu se aposentar do funcionalismo público. Ele já havia realizado trabalhos rurais antes: a Granja Lia, nome colocado pelo pai em homenagem à esposa, é propriedade da família desde 1906, quando seu bisavô, Miguel Beltrão, comerciante da zona sul da cidade, deu início à atividade com a extração de lenha, produção de farinha de mandioca e de gado bovino. Aos 19 anos, Luiz iniciou a carreira profissional na Secretaria de Administração do Estado. Trabalhou também na Cooperativa Riograndense de Laticínios e Correlatos Ltda. (Coorlac) e com a extinção da mesma, em 1994, começou a exercer a produção rural como uma profissão. “Eu tinha uma enorme vontade de me tornar produtor quando ainda era funcionário públco, mas parte da minha família era contrária a esta decisão, em circunstâncias das incertezas que existem no trabalho
rural tem sofrido, todos afirmam que a produção rural deve diminuir com o passar dos anos. “A legislação atual impede o aumento populacional da região”, aponta Rafael. Para Mary Angela, a resistência dos produtores rurais em impedir o avanço é o que garante a continuidade do trabalho agrícola na Capital.
A legislação atual impede o aumento populacional da região. Rafael de Castro Hilário
Para os produtores, a especulação imobiliária tem crescido na região. “O interesse econômico provavelmente deve prevalecer e dificilmente a atual delimitação será mantida com o passar dos anos”, aposta Rafael. Mary Angela mora há 35 anos no mesmo local e acompanhou a evolução da zona rural. “A minha geração deve ser a última que vai manter o meu terreno. Depois, acredito que o território será fracionado”. Luiz e Vasco compartilham o mesmo pensamento. Ambos acreditam que a geografia da região não será a mesma daqui há um tempo.
Plano Diretor mudou cenário Chefe da equipe de fauna da Secretaria Municipal de meio Ambiente, Soraya Ribeiro destaca que não é função do município controlar o crescimento populacional na região. “Caso alguém seja dono de uma terra e tenha condições de realizar um loteamento e esteja dentro da lei, não há como impedir. Seria necessário desapropriar a área da pessoa caso quisesse preservar”. O ex-prefeito e um dos responsáveis pela volta oficial da delimitação da Zona Rural de Porto Alegre, José Fortunati, destaca a importância desta nova configuração. “Isto permite um acesso mais fácil dos produtores rurais a financiamentos, a regularização de criadores de animais, a despoluição do ar da cidade, assim como a criação de um polo de alimentos orgânicos que abastece uma série de feiras, o surgimento do turismo rural e o combate à especulação imobiliária, entre outras questões”, comenta. O ex-prefeito acrescenta que, infelizmente, a nova demarcação não conseguiu recuperar a área total da Zona Rural anterior 1999, quando representava cerca de 30% do município.
IMPACTOS O aumento populacional mostra um desenvolvimento na região, mas até que ponto este processo está sendo realizado da forma correta? “Qualquer empreendimento deve passar pelo licenciamento ambiental, sendo cobrada toda a legislação necessária para a realização da obra”, afirma Soraya Ribeiro. Muitos produtores contestam. “Vilas são formadas na região, como pequenas cidades. Existem condomínios com 5 mil pessoas morando, mas não há estrutura para suportar”, comenta Rafael Hilário.
A urbanista Claudia Pilla Damasio aponta que a nova delimitação causa mudanças na Zona Rural. “Este processo provoca uma urbanização fragmentada do território rural. Parcelas da área vão sendo adensadas sem controle, o patrimônio ambiental vai sendo destruído e o potencial de produção primária vai se perdendo. Há uma significativa valorização dos terrenos devido a esta urbanização. Muitas vezes, famílias de produtores vão sendo expulsas por este processo. E tudo isto ocorre sem algum planejamento público”.
Vasco participa da Feira Agroecológica do Bonfim aos sábados e é o atual coordenador
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“ ESTAMOS TODOS MATRICULADOS NA ESCOLA DA VIDA, ONDE O MESTRE É O TEMPO .“ Cora Coralina
O poder de lembrar e viver das cartas O livro Parada Portos conta a história de uma família de imigrantes Alemães
Foto: Laura Lima
“Muita coisa a gente consegue ver que se repete com o passar do tempo.” Denise Flesch
Denise Flesch, neta de Ernest Rochol, lembra com carinho do avô sensível, após ler as cartas do alemão, que ela julgava ter uma personalidade autoritária
Laura Lima
“Na segunda-feira, dia 22, por volta do meio-dia, finalmente chegamos ao nosso lugar de destino: Rio Grande. Às oito horas recebemos o nosso dinheiro de volta, pelas mãos do tesoureiro. Às oito e meia os nossos documentos foram examinados pelos funcionários brasileiros, e aí, então, tivemos que nos despedir dos conhecidos; despedir, enfim, do último pedacinho da pátria alemã. A pinaça nos recebeu, e em pouco tempo o Monte Olívia desaparecia da nossa vista.”. O relato acima foi escrito em uma carta no dia 29 de maio de 1933. Esse é um trecho da história de Ernest Rochol. Ele, engenheiro elétrico, não conseguia trabalho na Alemanha, devido à escassez de emprego. A única saída, portanto, foi imigrar para o Brasil, como colono, com seu primo Walter. Os dois foram pa-
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rar, inicialmente, em Porto Novo, na região chamada Guerra do Contestado, no oeste Catarinense. Mais tarde, Ernest se mudaria para Porto Alegre com a família. Quando o imigrante desembarcava no Brasil, em 1933, para iniciar a nova vida, foi escrita uma das primeiras cartas para sua prima Lisbeth. Todas as missivas que ele escreveu à ela – que ficou no outro lado do oceano –, foram guardadas com carinho pela prima. Ao todo, foram mais de 70 correspondências trocadas ao longo de mais de 30 anos. As cartas viraram um livro de família: Parada Portos. São 293 páginas de memórias. A obra é um mergulho na história do Rio Grande do Sul e mostra a realidade de criar uma família entre duas nações, frente às dificuldades do século passado. A ideia de colocar tanta história dentro de uma gaveta para deixar amarelar com o tempo
não pareceu atraente para o caçula dos cinco filhos de Ernest e sua esposa Maria, Arno Rochol. Desse modo, Arno reuniu a maior parte dos relatos do pai no livro, após pegar todas as cartas com Lisbeth, numa festa de aniversário, na Alemanha. “Cada palavra que expressamos é uma parte de nossa energia que sai e fica ‘eternizada’. Quanto mais as palavras forem carregadas de vida plena, maior será sua vibração energética no leitor ou ouvinte. Ler o livro, portanto, significa para mim, simbolicamente falando, reabastecer-me com nova energia, familiar e social, para um novo período de caminhada pela vida.”, relata Arno Rochol sobre a importância das cartas. Na atual época, das mensagens instantâneas e das redes sociais, a comunicação se tornou algo que fazemos com urgência e as palavras se perdem. Uma carta é um
Carta de Ernest para Lisbeth, em 1˚ de janeiro de 1962
documento precioso e é sempre permitido voltar no tempo ao ler uma passagem. Para Alexandre Martins, revisor da obra e admirador do livro, as cartas são mais do que um tesouro familiar. “Elas são a comprovação de que a história é feita não apenas por grandes personagens, mas por pessoas iguais a quaisquer outras, com seus sonhos, frustrações e todo tipo de tragédia.”. Para o historiador e professor do colégio Província de São Pedro Carlos André Krakhecke, as cartas mostram o ponto de vista do estrangeiro sobre o novo país onde se assentou. Algumas coisas do cotidiano, que podem ser ignoradas pelos nativos, acabam saltando aos olhos de quem vem de fora. “Alemães, de um modo geral, destacavam a abundância de frutos e legumes e o fato de poderem montar cavalo, o que era proibido para quem não fosse nobre”, relata Krakhecke.
A fala do professor se confirma nas cartas de Ernest. O alemão gostava de plantar mandioca, uma espécie de “batata para a engorda dos porcos”, como escreve nas cartas. Mas isso quando milhões de gafanhotos não devoravam as suas plantações, os quais chegavam em tal quantidade que o céu ficava escuro e o zumbido, ensurdecedor. Mesmo assim, o colono não se abalava e tratava a situação com bom humor. Para que a história se perpetuasse, e as missivas fossem adiante, foi necessário que Ernest Rochol desse continuidade a sua família. Desse modo, a fim de conseguir uma (boa) esposa, o imigrante se candidatou em uma agência, que “tramitava” mulheres alemãs para os colonos. Foi assim, então, que ele conheceu Maria Mock, uma mulher que também usava “um par de vidros de janelas” (óculos), e dessa forma Ernest “entrou no porto do matrimônio.”. A mulher nunca falou sobre o assunto, porque sentia vergonha de não ter “se casado como as moças da época”. Porém, a sobrinha de Arno e neta de Ernest, Denise Flesch, tem outra visão sobre o tema. “Eu achei muito divertida a forma como meus avós se conheceram. A gente vai olhar o mundo de hoje e tem muita gente que usa essa forma de relacionamento. No caso, esses aplicativos, como o Tinder.”. Além do relacionamento, outras formas e costumes ainda se perpetuam. Segundo Carlos André Krakhecke, determinadas tradições contemporâneas são reflexo da imigração. “Podemos destacar os doces à base de nata (creme de leite), técnicas para produção de embutidos, músicas e até mesmo as cervejarias. Muito se fala nas tirolesas e nas danças típicas, no entanto, a cultura dos imigrantes foi ofuscada pela ditadura de Vargas.”. Para que houvesse costumes e hábitos, foi necessário haver história. Parada Portos, é um mergulho na memória de Porto Alegre. Depois que a família Rochol passou um tempo na Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial, eles desembarcaram no “ex- Porto dos Casais”, em 1949. Maria destacava os mosquitos e o
mo assim, para Arno, muito calor, muitas vezes, passado dos 40 graus. Um dos filhos do casal, Klaus, escreve que “aqui em Porto Alegre há muitos gatos e cães, que perambulam pelas ruas. Aqui há muito negro.”, fato que se diferenciava totalmente da Alemanha nazista. Além disso, a sociedade urbana da época também era descrita nas cartas. Como por exemplo, onde davam algumas linhas do bonde, meio de transporte da época. “Ia-se do centro até um pouco além da Igreja São Sebastião, no bairro Petrópolis. Dava-se uma volta enorme, e ainda era preciso andar a pé no fim da linha até a Teixeira Mendes.”. O que hoje é possível fazer em pouco mais de vinte minutos, de carro, levava-se mais de uma hora. Além disso, quase não havia ruas, e as poucas, quase todas de terra. Quando chovia, “aquele lamaçal!”. Não havia energia elétrica: era lampião e luz de vela. Por isso, Ernest construiu um candeeiro para a sala da família, o qual iluminava tudo. Mas os brasileiros não gostaram da ideia e, em certa noite, enquanto a família jantava, jogaram uma pedra em direção à janela. “Os alemães já tinham luz!”, cochichavam. Sem contar a reação dos vizinhos em relação “àquela gente estranha, lá das Alemanha!”. No livro, é descrito que a família Rochol precisava ouvir “alemão batata, come queijo com barata.”. Apesar das dificuldades, Ernest sempre tentou delimitar as fronteiras. Mesmo assim, para Arno, muito mais do que um documento histórico sobre Porto Alegre, a percepção da qual tinha de seu pai mudou, depois do livro. “Isso desfez as mágoas que tinha em relação a ele, me limpou emocional e espiritualmente, e fiz as pazes para sempre com ele.”. A história é uma senhora confusa, complicada e misteriosa. Ela nos ignora. Mas o tempo dela é infinitamente maior do que o tempo de cada um de nós. “Tudo poderão nos levar, menos as lembranças.”, escreve Ernest para Lisbeth em dezenove de setembro de 1935. Ele tem razão: são aqueles pequenos instantes, cheios de experiência, que se tornam os grandes momentos.
CONHEÇA A HISTÓRIA DA FAMÍLIA ROCHOL Fragmento do relato de Maria sobre “seu velho sonho de se tornar esposa de um emigrante no Brasil”. Outubro de 1935, aos 25 anos.
Família Rochol
Cartão postal de Ernest, 1933
Fragmento da carta de Ernest para Lisbeth. 23/05/1935. “Agora quero contar-lhes uma coisa em segredo: estou me empenhando intensamente para conseguir trazer um ser feminino para cá. Desejem-me sorte para que eu finalmente possa abraçar de novo, aqui no Brasil, uma garota simpática, de carne e osso.”
Fragmento da carta de Ernest para Lisbeth. 19/10/1935. ” Façam como eu: quando algo começa a ficar pesado em volta do coração, recordem os belos tempos de outrora, pois tudo poderão nos levar, menos a lembrança.”
“Uma viagem de núpcias normalmente se realiza após as cerimônias de casamento e da festa costumeira. Mas comigo não aconteceu assim. Minha viagem de núpcias já começou quatro semanas antes do casamento propriamente dito. [...] Peguei as minhas malas, desci e fiquei olhando, para ver se descobria a estação. Não consegui ver nada, a não ser uma pequena casa de madeira, e um pouco mais longe, um homem que abanava. — Não é possível, pensei…. Este, então, deve ser Ernest Rochol, o meu futuro marido!? Um foi ao encontro do outro e… daí? Aí aconteceu a coisa mais simples, que poderia ocorrer: — Guten Tag, Ernest (Bom Dia, Ernest). — Guten Tag, Maria (Bom dia, Maria). Aí houve um pequeno abraço, uma furtiva troca de olhares e a verificação contente de que estava “tudo em ordem” nos dois.”
Fragmento da carta de Ernest para Lisbeth. 15/12/1957. “O calor não permite que eu sinta um clima de Natal. Agora já estou há quase 9 anos aqui, e se penso sobre o tempo passado, aí tenho que admitir como é que fui superar todas as dificuldades. Cheguei pobretão e hoje superei tudo. Casa e terreno estão pagos.”
Cartão postal de Ernest, 1933
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“O BOM DO CAMINHO É HAVER VOLTA. PARA IDA SEM VINDA BASTA O TEMPO” Mia Couto
A continuação de um passo Após mudança de vida, Patrick Bublitz decide seguir a profissão da avó e da mãe ao tornar-se bailarino com 21 anos Gabriela Hagemann
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altava uma hora para o espetáculo. O som das crianças correndo pelo vasto salão do teatro CIEE preenchiam o ambiente, enquanto nos camarins o silêncio predominava. No olhar do bailarino, tranquilidade e firmeza, as mesmas que seriam levadas ao palco minutos depois. Com um sobrenome conhecido no cenário da dança, esta poderia ter sido sua primeira opção, mas não foi. Patrick Bublitz cresceu dentro de uma escola de balé, via a avó e a mãe ajudando e corrigindo alunos. Ligado à arte, o pequeno se emocionava e acompanhava de perto as apresentações realizadas pelo Ballet Vera Bublitz, fundado por sua avó, que leva o nome da renomada escola gaúcha. O interesse em dançar, apesar disso, surgiu mais tarde, aos vinte e um anos, uma decisão que surpreendeu pela rapidez inesperada do ato. Com apenas um ano e meio de prática, o jovem já possui grandes conquistas no mundo da dança. Em fevereiro de 2017, foi com o Ballet
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Vera Bublitz para Berlim, na Alemanha, onde, com a escola, participou do Tanzolymp, festival internacional de dança. O grupo levou para casa primeiro lugar, e Patrick o sentimento de que está fazendo o que deve e o que ama.
“Eu me sinto no lugar certo na hora certa hoje” Patrick Bublitz “Mãe, tu acha que ainda dá tempo?”, perguntou Patrick ao fazer um movimento de flexão do quadril, tentando tocar o chão. As mãos não chegavam à altura do joelho. Carlla Bublitz, mãe do jovem e professora de balé, respondeu que sim. Foi desta maneira que, no ano de 2015, houve o início de uma mudança de vida, nova rotina, e a continuação de uma história. Criada em Florianópolis, Santa Catarina, Vera Bublitz, avó de
Patrick, estudou balé desde muito cedo. Apesar disso, aos dezesseis anos, precisou largar a infância, as amigas, a bicicleta e se mudou para o interior do Rio Grande do Sul, em Ibirubá. Ela havia se casado. Sentindo-se distante de sua vida e do balé, foi com o marido para Buenos Aires, na Argentina, onde estudou dança no Teatro Colón. A bailarina complementou seus estudos e passou a pensar na possibilidade de aplicar os conhecimentos como professora. Foi o que fez. No Rio Grande do Sul, construiu seu maior sonho. Com a ajuda de sua filha, Carlla Bublitz, é responsável por exportar alunos para grandes centros culturais. São talentos perdidos para o estado e para o país, mas que, a partir das aulas, conseguem se instrumentalizar para a vida que querem seguir. Talentos como seu neto, a quem nunca imaginou que veria nos palcos. “Vó, eu vou dançar”, foi o que disse Patrick. Vera não acreditou, pois sabia do comprometimento
necessário para isso. Contudo, treinando arduamente das 8h às 21h todos dias, Patrick começou uma rotina que mantém até os dias de hoje. Abandonou as festas, a praia e os amigos e passou a se dedicar exclusivamente ao balé. A exigência física o deixa cansado, mas o prazer que sente ao pisar em um palco faz tudo valer a pena. É onde ele deve estar, é o seu lugar. Para ele, o balé foi uma salvação. Tudo o que viveu e experienciou com a dança foi um presente que ele não esperava do universo, uma chance percebida a tempo: “Tem uma história linda por trás da minha escolha, que eu vou poder dar continuidade, se Deus quiser, se eu quiser, isso só o tempo vai dizer, mas eu me orgulho muito da minha mãe, da minha vó e da história que elas construíram”. A surpresa de todos se deu a partir da desistência de um antigo sonho: tornar-se tenista profissional. Patrick treinava em Itajaí, no estado de Santa Catarina, um dos melhores lugares para aspirantes.
não mostrei, na questão de não querer participar. Isso tem muito a ver com o fato de o balé ser estigmatizado para o homem brasileiro, principalmente no meu tempo. Acho que o Patrick também viveu esse dilema, foi difícil para ele. Quando ele se sentiu seguro, rompeu a barreira gradualmente”. O medo de sofrer bullying foi um fator importante para Patrick não dançar quando criança. Aos nove anos, fez balé por cerca de alguns meses, mas não era sua hora. Atirou-se no chão e disse que não iria mais, as brincadeiras feitas pelos colegas tornaram a experiência difícil. Na época, aquele não era seu sonho, resolveu não se submeter às agressões. Frases como “balé não é lugar de homem” ou “olha a bailarina” eram ditas com naturalidade. Mas afinal, balé é lugar de todos, não importa o gênero ou a orientação sexual, como diz Vera: “É difícil para nós entender essas situações, porque não é para ter preconceito, mas ele ainda existe. Vamos respeitar o ser humano, né? Se você é uma pessoa que tem dignidade, que te respeita e respeita os outros, a tua preferência sexual pouco vai importar. Ainda existe julgamento com quem dança, mas
Patrick Bublitz preparando-se para dançar na V Gala de Excelência Ballet Vera Bublitz
Fotos: Gabriela Hagemann
Sua vida toda se deu em torno da prática do tênis, era o que pretendia fazer. Apesar disso, sempre longe de casa em competições que considerava cruéis, estava infeliz. Patrick largou o esporte, passando a sentir-se perdido e sem rumo. Tentou encontrar algo que poderia fazer e foi assim que iniciou a faculdade de Relações Internacionais. Depois de dois anos de curso, entendeu que não queria isso e finalmente percebeu: era o balé. Como uma preparação para o que estava por vir, o jovem estudou um semestre de Educação Física, enquanto fazia aulas de Gyrotonic, método criado nos anos 70 pelo bailarino Juliu Horvath. A dedicação foi total, afinal ele não estava pronto fisicamente, sentia muita dor. Nunca havia se alongado para aumentar a extensão, seu corpo não estava preparado para esta decisão, mas sua cabeça sim, foi o momento certo, quando atingiu um nível de maturidade para assumir aquilo, quando teve segurança para saber que dançar balé o faria feliz. Foi isto que Nicholas Bublitz, 56, tio do bailarino, concluiu, tudo estava ligado com a maturidade: “O Patrick nunca mostrou interesse por dança, assim como eu
Dançarinos do Ballet Vera Bublitz em “Rise”, na V Gala de Excelência Ballet Vera Bublitz
os homens não estão dando bola”. Mesmo antes de um progresso em relação a este preconceito, Norton Fantinel, 30, nunca se importou com a opinião de quem faltasse respeito. Assim como Patrick, Norton cresceu no Ballet Vera Bublitz. Sua mãe, Maria Salete Ramos, lembra como foi ligar imediatamente para a escola quando o menino de quatro anos, após assistir a um vídeo do bailarino Mikhail Baryshnikov, disse que queria ser como ele. Dançar tornou-se seu maior sonho. Desde então, com a certeza de que profissão seguir, Fantinel já reuniu inúmeros momentos especiais, como dançar para a ex-primeira dama dos Estados Unidos Michelle Obama e participar da Gala de Rudolf Nureyev. Os anos que passou nos palcos acumularam experiência e sobretudo aprendizado. Patrick e Norton cresceram juntos, consideravam- se como irmãos, apesar disso, não desenvolveram suas habilidades da mesma forma. Norton moldou seu corpo desde pequeno, Patrick, não. A maleabilidade de uma criança e de um homem são completamente diferentes, por conta disso, os desafios que Patrick enfrenta só são possíveis por seu esforço. O trabalho a longo prazo, considerado ideal e mais suave, se opõe à rapidez e energia, que são a base para o alcance do objetivo de Bublitz. Ainda assim, o físico não é o fator considerado mais importante por ele: “Eu me sinto mentalmente no lugar certo na hora certa, hoje. Acho que isso é muito importante: a cabeça e o trabalho. Se a pessoa não está pronta pode ter físico, pode ter
começado a alongar com dois anos de idade, mas não vai adiantar. Se não é isso que ela quer, se ela não está preparada mentalmente para enfrentar aquela rotina.” Ju Tomasi, 30, professora de balé no Rio Grande do Sul, afirma que começar a dançar cedo pode ajudar, porém, quando se é mais velho existe uma consciência corporal mais madura, possibilitando um trabalho mais direto que alcança bons resultados em um tempo relativamente mais curto. “A técnica do ballet clássico é rígida e complexa. Normalmente, quanto mais cedo se começa, maior é a probabilidade de nascer um bom bailarino. Mas existem exceções. Algumas pessoas já nascem com diversas habilidades e facilidades físicas que ajudam muito no alcance de bons resultados, mas o trabalho técnico em aula é indispensável.”, comenta Ju. Para Carlla, mãe e professora, ele não deve olhar para trás, afinal o tempo já passou e lamentar não irá ajudar a construir nada. O que importa é o tempo que ele ainda tem pela frente. Assim, quando o bailarino sobe ao palco, ela o contempla e agradece a Deus pela decisão que o filho tomou. Patrick não sabe bem por onde vai, mas sabe muito bem aonde vai parar: “Em dez anos, eu acho que vou estar dançando. Vou estar no auge da minha técnica e acho que vou estar em um teatro, finalizando meu tempo. Vou ter que parar de dançar. Vou estar com trinta e três anos. Depois eu vou querer voltar para Porto Alegre, porque meu coração está aqui, aqui é meu chão.”
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“O PASSADO É LIÇÃO PARA REFLETIR, NÃO PARA REPETIR.” Mário de Andrade
Do armário até a rua As mudanças no movimento LGBT contadas a partir das histórias de vida de dois homens de gerações distintas Gian Carlos Lorencet Panisson
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autor Michel Foucault já escreveu em seu livro “A História da Sexualidade” que, a partir do século XVII, o sexo havia se tornado tabu e o discurso sobre a sexualidade deixaria de ocupar os espaços públicos para se restringir apenas ao quarto dos pais. Quem diria que, quatro séculos depois, ainda existiria tanta proibição e receio em torno deste assunto. O tempo passa, muda, transforma. Às vezes, um segundo basta, outras, centenas de anos são necessários para que as mudanças sejam percebidas. Célio Golin e Ian Duarte Roth têm mais de três décadas de diferença etária, e a idade não é a única distinção entre eles. Célio Golin tem 55 anos, nasceu anos antes do principal marco LGBT acontecer em Nova York, na boate Stonewall, nos Estados Unidos, em 1969. Ian Duarte Roth tem 21 anos, nasceu na década em que o movimento LGBT começou a se organizar, se espalhar pelo país e ganhar visibilidade com o surgimento das ONG’s. Dois homossexuais, duas gerações, duas histórias, duas épocas, uma pergunta: de que forma o tempo influenciou na vida dos dois? Em Nonoai, cidade interiorana onde Célio viveu sua infância, homossexualidade era um assunto proibido. Para Ian, que é de Porto Alegre, o contexto era outro, nem por isso a autoaceitação foi mais fácil. Com seis anos, Célio já entendia que era diferente, Ian só foi perceber isso na adolescência. Célio nunca contou para a família sobre a sua sexualidade, enquanto Ian, como primeiro passo na busca por sua identidade, assumiu a sexualidade para os pais e amigos. A primeira festa LGBT
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Fotos: Gian Carlos Lorencet Panisson
“Sou gay, gosto de homem. Mas não é só a sexualidade que resume as pessoas. A gente é muito mais do que ser bicha, também somos seres humanos.” Célio Golin
de Ian foi aos 15 anos, a de Célio foi só aos 25. Para Ian, a universidade foi um local de identificação, enquanto para Célio foi um espaço de repressão. Os dois não se conhecem e, apesar destas diferenças, algo maior os une: a busca por respeito, direitos iguais e liberdade para ser e amar quem quiserem. Até o ano de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mantinha a homossexualidade na lista internacional de doenças. Célio relatou que, na sua juventude, a autoaceitação foi muito difícil: “Ninguém quer se identificar com algo negativo, pejorativo”. Ele conta que os homossexuais, em geral, não se assumiam, porque ninguém queria ser tratado como doente. Anos mais tarde, independente e morando na capital gaúcha, Célio disse que nunca escondeu nada de sua família. Depois que entrou para a militância e junto com alguns amigos fundou a primeira ONG voltada à defesa dos direitos LGBT’s do estado, o Nuances, em 1991, sua família passou a ler entrevistas
Célio Golin, 55 anos. Fundador da ONG NUANCES, grupo pela livre expressão sexual
que ele dava aos jornais, conhecer os amigos gays e travestis de Célio, ou seja, ele nunca contou aos pais sobre a sexualidade, mas nem por isso escondeu algo deles, que foram vendo tudo com naturalidade. “Eu não entendo essa necessidade que os gays têm hoje em dia de confessar para a família, parece que eles estão assumindo uma culpa. O teu irmão hétero explica alguma coisa para os teus pais? Eu nunca me assumi porque eu nunca senti nenhuma culpa por ser quem eu sou.” “Gordo e viado”: o alvo preferido dos colegas da escola. Ian confessa que, depois de tanto chamarem ele de “gay”, “veadinho” e “bicha” na escola, ele foi procurar respostas. “Eu sabia que era diferente, fora do padrão, mas não sabia o que eu era. Fui buscar respostas na internet e assim eu descobri que sou gay”. Ele lem-
bra que, quando contou para sua mãe, ela ficou em choque e demorou meses para aceitar e superar a revelação. “Quando os pais recebem uma notícia assim dos filhos, eles ficam em pânico por medo de ver o filho sofrer, porque eles sabem que não é fácil ser gay”. Quando Célio cursou Educação Física na UFRGS, ouvia piadas homofóbicas dentro da instituição e todos ficavam calados. “Tu virava hétero quando entrava na sala de aula.” Já Ian, estudante de Arquitetura na UniRitter, encontrou na universidade o alívio e a identificação. Na escola, pensava ser único, mas, quando entrou na universidade, encontrou mais pessoas como ele. “Eu fui vendo que não era só eu, e que nunca fui só eu. Isso é muito bom pra gente porque tu vê que não está sozinho, e o medo vai embora, porque o que te dá medo é a so-
A cada 25 horas, uma pessoa LGBT morre vítima de violência no Brasil.
72 países criminalizam a homossexualidade. 8 aplicam pena de morte a homossexuais.
A expectativa de vida de travestis e transexuais no Brasil é de apenas 35 anos.
Fontes: Grupo Gay da Bahia (GGB), ILGA e IBGE 2016
“Depois que você se aceita, vê que não precisa de ninguém pra dizer o que tu é. E passa a desprezar opiniões que não são construtivas.” Ian Roth Duarte
Ian Duarte Roth, 21 anos, estudante de Arquitetura na UniRitter
lidão”. Célio encontrou o mesmo conforto quando foi à primeira festa gay da sua vida, em 1987. “Quando vi um monte de bicha e sapata, todos iguais a mim, automaticamente criei uma cumplicidade com todos eles, eu comecei a ver que essas pessoas estavam em todos os lugares.” Se algo mudou ao longo das últimas décadas, isso não se deu de forma natural. Um conjunto de fatores foi, e é, responsável por expor a verdade e desconstruir o senso comum. A militância das organizações tirou o tema ‘sexualidade’ do armário e o trouxe para a rua por meio das Paradas de Orgulho LGBT, que permitiram a esta população conquistar visibilidade e empoderamento. A sexualidade das pessoas, que antes se escondiam e se negavam, se tornou motivo de orgulho e luta por respeito. Célio diz que sexualida-
de pode ser considerada privada, pois é algo muito individual, mas a partir do momento em que você apanha na rua por se sentir atraído por pessoas do mesmo sexo, a sexualidade deixa de ser algo privado e se torna algo social. O mesmo vale para quando a Justiça Federal, em outubro deste ano, conseguiu uma liminar para que psicólogos possam tratar gays e lésbicas como doentes. Célio explica sua desconfiança com os profissionais de áreas com grande influência, como medicina, direito e psicologia: “Até pouco tempo, éramos considerados doentes. Quem nos garante que no futuro, uma transformação no cenário político, isso não mude de novo? Eu jamais daria o poder para psicologia, psiquiatria, medicina, ou pro direito dizer se eu sou mais ou menos normal, porque quem vai dizer isso sou eu.”
A mídia, assim como as ONG’s, também tem um papel importante na construção da nossa realidade. Célio conta que os meios de comunicação mudaram bastante nas últimas décadas. “Os meninos e meninas de hoje têm uma referência positiva de ‘Eu quero, eu posso ser quem eu sou’ porque tem gente na novela, nas paradas. A grande diferença é que, na minha época, toda referência era negativa.” Assim, como Ian, muitos jovens vão buscar respostas na internet e têm muito mais acesso a referências e informações que antigamente não se tinha com tanta facilidade. O tempo tem passado depressa, as mudanças acontecido devagar, mas os dois acreditam em um futuro melhor, e Ian assume a responsabilidade: “Eu gostaria de ter nascido mais tarde, porque eu acho que a sexualidade seria um assunto mais resolvido, daí eu teria mais apoio. Mas já que isso não aconteceu, é nosso dever tentar deixar um clima mais agradável para as próximas gerações que estão vindo.”
AS MUDANÇAS NA VISÃO DE PESQUISADORES “Antes dos anos 80, o movimento social era muito incipiente. De lá para cá, além da estruturação e da visibilidade que a pauta ganhou, conquistaram-se algumas leis estaduais como a do casamento, da adoção e de políticas públicas voltadas para a saúde por causa da AIDS. Atualmente, a pauta é tratada do ponto de vista da cultura de forma positiva, ao contrário do que era antes. O marco de tudo isso, foi a despatologização da homossexualidade, na década de 1970.” Angelo Brandelli Costa, professor de Psicologia da PUCRS. “Muita coisa mudou ao longo do tempo, mas o fato de ainda existir um movimento social tão forte no país demonstra que ainda tem muitas mudanças para acontecer. A Aids teve um papel importante na história do movimento, é considerada uma maldição e uma bênção. Maldição porque essa epidemia dizimou a população LGBT ao redor do mundo, e bênção porque ela foi responsável por unir a população na busca por direitos, por acesso à saúde, a buscar tratamentos, então ela ajudou a dar um empoderamento ao movimento. O que mudou de verdade foram os costumes, embora estejamos vivendo uma época de retrocesso e conservadorismo, podemos ver que hoje as pessoas se assumem mais cedo, porque sabem que se assumir é uma questão política, de exercer o direito de amar quem quiser. No entanto, o fato de as pessoas precisarem se assumir demonstra que há muita coisa para mudar, pois pressupõe-se que todos sejam heterossexuais e cisgêneros.” Augusta Silveira, mestranda em História pela UFRGS.
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“QUEM JULGA AS PESSOAS NÃO TEM TEMPO PARA AMÁ-LAS” Madre Teresa de Calcutá
Pais e filhos:
vidas pautadas pelo racismo “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. É assim que se inicia a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entretanto, diversos tipos de violência ainda fazem parte do cotidiano dos negros Foto: Juliana Irala
Em cima, da esquerda para a direita: Edir dos Santos Alves, Eliege Moura Alves, Mariama Moura Alves e Layla Moura Alves. Em baixo, Celanira da Silva Nascimento e Semira e Aldair Silva Moura
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Juliana Irala
erá que o racismo de décadas atrás é o mesmo do racismo atual? Foram anos de segregação visível, escancarada, aos olhos. Foram séculos de escravidão. A luta contra a discriminação continua por gerações e se manifesta até os dias de hoje, como mostra a família de Layla Moura Alves, 18, que junto ao seus familiares, teve sua vida pautada pelo racismo. Entre o avô e a neta: 65 anos de diferença, mas todos sentiram na pele o racismo. “Na escola, eu sempre buscava me enquadrar naquele padrão que 18
era imposto sobre mim. Eu já estava em um meio onde as pessoas eram brancas, as bonecas eram brancas, e os programas de televisão também eram brancos. As outras crianças me perguntavam: ‘ah, por que tu tens essa cor meio sujinha?’, então, eu comecei a me questionar”. Layla não se sentia suja. Nem um pouco. Mas foi crescendo com esse questionamento. Eliege Moura Alves, 53, mãe de Layla, viveu algo parecido. Ela conta que uma das maiores lembranças do tempo de escola eram os comentários ofensivos e, assim como a filha, também sofreu
com a falta de representatividade. “Nos meios de comunicação, nós não aparecíamos. Os personagens infantis eram todos direcionados às pessoas brancas”. Por serem naturais de São Leopoldo, região de colonização alemã, na década de 60, havia poucos negros na sala de aula da escola pública Villa-Lobos, localizada no centro da cidade. Mesmo com as décadas que separam as mulheres da família, Celanira da Silva Nascimento, 73, tia-avó de Layla, também sentiu o racismo, mas não como as amigas de tom de pele mais escuro que
o dela, que sofriam mais com as piadas dos colegas. “Uma colega negra, mais pobre, tinha os cabelos mais curtos, cortados como os dos meninos, e eles faziam piada, cantavam para ela uma música que dizia assim: ‘Nega sem cabelo é João, paletó sem manga é blusão’. Isso me afetava muito”. Ao completar dez anos, Layla não aguentou a pressão que sofria na escola e alisou o cabelo. “Todas as minhas colegas eram brancas e queriam fazer franja nos cabelos. Então, eu pensei: ‘eu quero ser que nem elas’. Meus cabelos sofrem até hoje por isso”.
Já o avô materno de Layla, Adair Silva Moura, 85 anos, conta que tinha uma barbearia na cidade em que morava, São Leopoldo, que não cortava cabelo de homens negros. “Era tudo separado. Meus pais falavam: ‘Negro com negro, branco com branco’. Não era para se misturar… Já a minha vó dizia que ‘Negro não dá certo com branco, porque branco não gosta de negro’”. “As pessoas não aceitam. Elas acreditam que o lugar do negro não é naquele espaço, que, no máximo, o negro pode frequentar escola pública. Era preciso a gente se impor”, comenta Eliege. Ela também conta que ela e seus irmãos sempre foram ensinados a valorizar a cor das suas peles, principalmente pela mãe, Semira. Essa educação influenciou na escolha pela licenciatura e pelo mestrado em História. Já o ambiente familiar de Edir dos Santos Alves, 54, pai de Layla, foi de poucas conversas, principalmente com o pai. “O meu pai sempre foi de evitar problemas, de não querer se incomodar, e não aprovava nossa exposição em situações que ele interpretava que haveria alguma atitude racista”. Na época da sua adolescência, em Santana do Livramento, Edir conta que, em clubes, havia uma segregação muito clara: clube dos “brancos” e clube dos “negros”; alguns clubes fechados aos sócios brancos, e, em função de elevado valor das mensalidade, os negros sequer ousavam tentar pagar para ter acesso às festas. No bairro em que Edir cresceu, havia um clube em que grande parte dos seus amigos frequentava. Ele sempre soube que deveria evitar tentar entrar, por orientação do seu pai. “Meus colegas sempre me cobravam que eu deveria tentar quebrar essa ‘barreira’... Palavra bem adequada, porque eu seria barrado para entrar com a desculpa de não ser sócio. Mas, foi em 1978 ou 1979, eu fui, e, enquanto dançava em uma roda de amigos, alguém me pegou pelo braço e me retirou da pista de dança. No caminho alguém informou a essa pessoa de
quem eu era filho e da confusão que iriam arrumar com meu pai, por ser um figurão do bairro. Eu voluntariamente fui embora. Foi algo que me marcou, mas que serviu para me fazer buscar ser melhor que todos aqueles que ficaram lá dentro”, relembra Edir. Os clubes também fizeram parte da vida de Adair e Semira, pais de Eliege e avôs de Layla, mas de uma maneira diferente. O casal, após se conhecer em Porto Alegre e se casar, em 1959, se mudam para São Leopoldo. Na época, com a maior segregação, os brancos moravam no centro da cidade, enquanto os negros iam morar nos bairros periféricos. “Eles se casaram e foram para o centro de São Leopoldo, e isso chocou toda a população. Meus pais contam que havia clubes pela cidade, como o Clube dos Negros, que eram espaços onde eles poderiam vivenciar questões de sociabilidade”, conta Eliege. eles poderiam vivenciar questões de sociabilidade”, conta Eliege.
do trabalhou em uma fábrica de bolsa em Porto Alegre, em meados de 1945, em que o dono era judeu. O envelope com o pagamento não vinha com o seu nome. “Escreviam apenas ‘negrinho’”. “Eram contextos completamente diferentes”, afirma Eliege ao comparar o racismo que os seus pais sofreram ao atual. “Foi somente na década de 70 e 80, quando eu era adolescente, que as pessoas começavam a questionar o racismo e havia uma situação de aceitação da cor: o negro como algo de afirmação.
Porque, até, então, era algo pejorativo”. Contudo, Eliege acredita que, apesar de todos os avanços que os negros já conquistaram, a sociedade está passando por um retrocesso. “Eu sempre coloco que se nós estamos em um processo de aceitação, respeito e tolerância, no momento em que existir a igualdade de verdade, não vai mais ser necessário esses momentos de reflexões, como a semana da Consciência Negra, mas até que se atinja essa igualdade utópica, será necessário, sim, discutir sobre o racismo”.
“As pessoas não aceitam. Elas acreditam que o lugar do negro não é ali, naquele espaço”. Eliege Moura Alves Mas houve momentos em que a vida de Adair não foi marcada por uma segregação tão aparente. Nos anos 30, Adair lembra de brincar com os amigos do bairro. Brincavam com as caixinhas de leite: botavam um cordão e saíam puxando. Jogavam bola, corriam de lá para cá. Negros com brancos. Mas eles tinham nome. Adair era apenas o ‘negrinho’. “Os brancos chamavam ‘negrinho ali, negrinho aqui’, não me chamavam pelo nome. Uma vez disseram para mim, aquela frase, ‘pássaro preto... pássaro do verão, toda praga que Deus deixou foi o negro ser ladrão’”. Adair foi o ‘negrinho’ por toda a vida. Já com 85 anos, ele lembra de quan19
Arte sobre foto de Isadora Osório
“O PENSAMENTO É ESCRAVO DA VIDA, E A VIDA É O BOBO DO TEMPO” William Shakespeare
Vítimas do tempo O Plenário aprovou, neste ano, o Projeto de Emenda Constitucional que altera o prazo de prescrição do crime de estupro. O texto, promulgado pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, agora volta para a Câmara Isadora Osório
O
tempo de denúncia da vítima de estupro deveria ser sua arma de defesa. No entanto, no Brasil, este pode ser o pior inimigo para quem sofreu com o crime. Hoje, boa parte das pessoas maiores de 18 anos têm apenas seis meses para realizar a denúncia contra o autor do estupro. Este tempo está sendo discutido na Câmara de Deputados e no Senado, em Brasília, com o Projeto de Emenda Constitucional 64/2016, que propõe a imprescritibilidade do crime de estupro. O texto da PEC, aprovado no dia 10 de agsoto de 2017, modifica o Código Penal Brasileiro e determina que a prescrição do crime, ou seja, quando o Estado perde o direito de punir, não tenha mais limite. Atualmente, o tempo para que 20
o crime prescreva é contabilizado a partir da prática do crime e de acordo com cada pena. No estupro de vulnerável, o tempo máximo de prescrição é de 20 anos, iniciando a partir da maioridade. O autor do projeto, Senador Jorge Viana (PT), justifica a proposta com o argumento de que dentre os obstáculos que envolvem a vítima de estupro, o tempo é uma grande barreira perante a decisão de denunciar. “É preciso observar, todavia, que a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos. Diante desse quadro, propomos a imprescritibilidade do crime de estupro.”, escreve o deputado Mestre em gênero, Mídia e Cultura, também fundadora da Casa da Mãe Joanna, um experimento
feminista de comunicação e educação sobre gênero, Joanna Burigo entende que existem vários fatores além da Lei brasileira que ajudam a concretizar a ideia de falta de punição.“A impunidade real de agressores sexuais é o conjunto de dispositivos sociais e legais que relativiza a violência sexual. É a chamada cultura do estupro. É duvidar das vítimas. É responsabilizá-las pela violência sofrida.”, afirma. A ativista frisa que não cabe somente ao direito penal resolver o problema de estupro no Brasil.“O debate sobre a PEC é um grande passo para os direitos das mulheres. Mas para que um debate amplo e inclusivo seja produzido, é sensato lembrar que outras abordagens existem, e refletir se a própria PEC tem potencial de mudança social.”.
SEGUNDO O CÓDIGO PENAL O CONCEITO DE ESTUPRO É AMPLO. ELE É CLASSIFICADO COMO O ATO DE
“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”. Art. 213 da Lei Nº12.015/2009
A alta subnotificação
Os números oficiais, a partir de registros de boletins de ocorrência, não necessariamente refletem a realidade, já que muitas vítimas não denunciam formalmente. O estupro é um dos crimes mais subnotificados no país: estima-se que apenas 10% dos casos sejam reportados à polícia, segundo informações da pesquisa Estupro no Brasil: uma Radiografia, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A pesquisa indica que aconteçam 527 mil casos de estupros consumados por ano no país, uma média de 1.433 mil casos por dia, 60 por hora. A coordenadora estadual das Delegacias Especializadas ao Atendimento da Mulher, Adriana Regina da Costa, esclarece que o crescimento de denúncias é um bom indício. “O aumento de ocorrências é significativo para as delegacias especializadas, porque demonstra que o trabalho de prevenção e o atendimento diferenciado está dando resultado. O objetivo é qualificar mais esse trabalho para que a mulher não tenha dúvida de procurar ajuda”, afirma. A delegada ainda explica a
importância de realizar o boletim de ocorrência logo após o ocorrido. “O ideal é a procura imediata, pois além do registro, a mulher é encaminhada para tomar as providências em relação à saúde com atendimento médico e psicológico”, afirma. Em Porto Alegre, o percentual de vítimas, em 2016, por 10 mil habitantes foi calculado por 2,73%, de acordo com os Indicadores da Violência Contra a Mulher da Secretaria de Segurança Pública. Em 2017, pelo monitoramento mensal desses indicadores, já foram notificados 1.134 crimes de estupro no Estado, sendo 172 na capital. Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha, “Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas nas instituições policiais”, apesar das sérias consequências, as vítimas de estupro são menos propícias a reportarem à polícia do que outros crimes. “As construções sociais sobre o estupro e as respostas negativas das autoridades legais são comuns, assim como a descrença e a culpabilização das vítimas que afetam a decisão da vítima de não denunciar”, afirma a pesquisa.
Ex-assessora da Delegacia da Mulher de Porto Alegre, e autora do livro “Linguagem Resignificada: equidade e inclusão”, Eloá Muniz, explica que o problema é, além de cultural, mas de estrutura. “A sociedade tem dificuldade de reconhecimento da importância desse crime. É uma sequela que fica para a vida toda, física e psicológica. Por isso é necessário que haja uma mudança de pensamento dentro da polícia e dentro do judiciário, que se dê um enfoque real para esse crime, porque não basta estar lá na lei se na hora de formar o processo e ir a julgamento isso não ter o valor que isso merece”, insiste Eloá
O outro lado da PEC
A importância da imprescritibilidade do crime de estupro é discutida a partir de várias vertentes e opiniões. Existem desvantagens. Aumentar o rigor da lei também pode alterar o sistema de procedimento judicial, que já é ineficiente no Brasil. Mesmo que na discussão acerca do direitos das mulheres a PEC 64/2016 seja ideal para o preparo da vítima a realizar a denúncia, a proposta pode ser um problema
para o sistema punitivo. O coordenador adjunto da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio Grande do Sul, Roque Reckziegel, explica um dos problemas enfrentados pela PEC na área penal. “Restringir direitos do cidadão, no que diz respeito à liberdade, pode ser considerada uma ação inconstitucional, porque o texto que se pretende alterar está no artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos e garantias individuais de cada cidadão”, explica sobre os direitos propostos na constituição brasileira. Além disso, explica que o Brasil ainda não está preparado para aumento de rigor na lei. “Nós temos um sistema punitivo que não dá conta as pessoas que infringiram a lei penal com as regras atuais, e isso é um problema”, afirma o profissional de direito. O quebra-cabeça ainda está longe de ser resolvido. O país ainda precisa enxergar que o verdadeiro problema não é a punição, mas a concretização de uma cultura de domínio, uma cultura do estupro. Nesses momentos instáveis à justiça, somente o tempo, mostrará o caminho e as lutas pelos direitos e igualdade para a mulher no Brasil.
OS NÚMEROS DO ESTUPRO EM 2016 Os dados do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados no dia 30 de outubro de 2017, indicam o aumento da violência contra a mulher:
41.118
4.144
49.497
denúncias de ameaças registradas no país
estupros no Rio Grande do Sul
ocorrências de estupro no país
4.657
mulheres foram assassinadas no país
240
ocorrências de estupro em Porto Alegre
3.248
queixas de lesão corporal registradas em Porto Alegre
COMO É A LEGISLAÇÃO?
Lei nº 11.340
Decreto nº 7.393
Lei Maria da Penha, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher
Disponibiliza o funcionamento do serviço Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher
Lei nº 13.104 Torna o homicídio de mulheres em crime hediondo quando envolve discriminação à condição de mulher
Decreto nº 7.958 Capacitar profissionais de segurança e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde para atender vítimas de violência sexual
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“QUE NÃO SEJA IMORTAL, POSTO QUE É CHAMA. MAS QUE SEJA INFINITO ENQUANTO DURE.” Vinicius de Morares
O renascer de quem não se reconhece no espelho A espera pela cirurgia de redesignação sexual conta com diversas etapas e dura, no mínimo, dois anos Fabiana Marsiglia Thomas
V
ocê já imaginou acordar todos os dias e sentir-se preso dentro de um corpo que não é o seu? Olhar-se no espelho e perceber que aquela pessoa não é você? Que sua mente e seu corpo estão em desacordo? É assim que se sentem pessoas com disforia de gênero. A disforia de gênero caracteriza-se por uma contradição entre o sexo designado ao nascimento e o gênero ao qual a pessoa se identifica. Para quem sofre deste transtorno, uma opção é a Cirurgia de Redesignação Sexual. Mas apenas a decisão de fazer a cirurgia não basta para mudar de vida: são necessários anos de espera. O processo é longo e conta com diversas etapas. A preparação dura, no mínimo, dois anos. Para homens que se identificam como mulheres, é feita uma cirurgia, que dura entre três e sete horas. Já para mulheres que se identificam como homens, é preciso de cinco cirurgias, podendo levar até dois anos entre a primeira e a última. Desde agosto de 2008, o Ministério da Saúde oferece redesignação de homem para mulher – mulheres transexuais – pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em novembro de 2013, homens transexuais também passaram a ter suas cirurgias cobertas pelo sistema público. Uma década antes de o SUS oferecer este tipo de tratamento, cirurgias de redesignação sexual já eram feitas, gratuitamente, no Rio Grande do Sul. O urologista Walter Koff, que trabalhou no Hospital de Clínicas de Porto Alegre por 40 22
anos, aprendeu sobre o assunto em Los Angeles e trouxe o conhecimento para o Estado. Em 1998, criou o Programa de Identidade de Gênero (Protig) e fez a primeira cirurgia aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, no HCPA. Nos anos 2000, o primeiro paciente do programa terminou os dois anos de acompanhamento e foi operado. Desde então, o HCPA já operou, aproximadamente, 200 pacientes do sexo masculino para o feminino e, aproximadamente, 50 do sexo feminino para o masculino. Segundo Koff, o lugar mais importante do país em relação à cirurgia de transexualidade é Porto Alegre. “O Hospital de Clínicas já fez mais procedimentos do que o resto do país junto”, conta o médico. Isto acontece porque é difícil treinar e achar profissionais que queiram se especializar no assunto.
Sou trans: e agora? Segundo Walter Koff, o primeiro passo para quem quer mudar de sexo é procurar a Secretaria da Saúde, Municipal ou Estadual. Helena Soares Meireles, que foi operada pelo médico, buscou ajuda pela primeira vez em 2011, aos 33 anos. Helena sempre se sentiu uma menina presa no corpo de um menino. Seu processo de transformação começou aos 25 anos, a partir de uma decepção amorosa. Ouvindo frases como “nunca vou poder ficar contigo, porque tu nunca vai ser uma mulher”, a professora de artes entendeu quem realmente era e começou a injetar hormônio por conta própria. Ao chegar no posto de saúde pela primeira vez, bastou uma olhada para a atendente adivinhar o que ela queria. “Tu quer fazer a cirurgia, né?”. Helena
ficou surpresa, mas concordou. “Eu lembro que ela era católica e passou o tempo todo tentando me convencer a desistir, inclusive me deu o endereço da igreja dela e disse que, se ela não conseguisse marcar a segunda etapa no Clínicas, nós iríamos juntas”, contou Helena. Para sua surpresa, uma semana depois, a atendente telefonou avisando que a consulta estava marcada: dia 21 de fevereiro de 2011 deveria se apresentar para uma avaliação inicial no Hospital de Clínicas.
Uma nova vida O acompanhamento de Helena antes da cirurgia durou dois anos e oito meses. Durante a espera, a professora participava de um grupo com outras mulheres que queriam fazer a operação. Elas se encontravam duas vezes por mês. Foto: Fabiana Marsiglia Thomas
A professora Helena Soares Meireles, 40 anos, fez a cirurgia de redesignação sexual em outubro de 2013, aos 36 anos de idade
Os encontros aconteciam segundas-feiras, das 8h às 10h, no Hospital de Clínicas. “Estes são grupos psicoeducativos em que as pessoas tiram dúvidas quanto ao tratamento e trabalham aspectos sociais e emocionais”, explica Bianca Soll, psicóloga e pesquisadora do programa criado pelo médico Koff, o Protig. Segundo Giovani Pioner, urologista da Santa Casa, é necessária uma longa análise dos pacientes. “Ninguém toma a decisão hoje e amanhã está operado, é um processo demorado”, explicou o médico. Existe acompanhamento com psicólogo, psiquiatra, urologista ou ginecologista, endocrinologista, fonoaudiólogo e assistente social. “Depois que a pessoa cumpriu todas as etapas, é necessária a permissão de toda a equipe e, se um membro achar que a pessoa não cumpre todos os critérios, a cirurgia não será feita”, conta Giovani. O procedimento cirúrgico só é feito se for comprovado que a pessoa tem condições psicológicas e psiquiátricas para realizá-lo. O médico conta que muitas acabam desistindo pelas dificuldades e pelo longo tempo de espera. Existem, também, pessoas que são eliminadas por não estarem psicologicamente resolvidas para enfrentar o processo. De acordo com Koff, a pior coisa que pode acontecer é o paciente se arrepender da cirurgia.
O momento esperado Depois de todas as etapas terem sido cumpridas e a parte clínica avaliada, é pedido um consentimento legal para que seja possível realizar a cirurgia. A autorização judicial é fundamental, pois toda a documentação da pessoa será alterada. Durante a cirurgia, além do urologista ou ginecologista, do cirurgião principal e dos cirurgiões auxiliares, é necessária a presença de um anestesista, para que seja feita a anestesia geral no paciente, e de um cirurgião plástico, no caso de uma cirurgia de homem para mulher na qual a pessoa já queira implantar a prótese mamária. A transexualidade em mulher é mais rara e a cirurgia mais complicada, contando com cinco etapas. É preciso um intervalo de seis meses entre cada procedimento cirúrgico, podendo levar até dois anos para que a cirurgia seja completa. “A maioria nem chega a terminar, porque é longo, dolorido e difícil de acompanhar”, relatou Giovani Pioner.
Processo eterno Na cirurgia de homem para mulher, em um mês a cicatrização inicial já está resolvida e a pessoa pode voltar a trabalhar normalmente. Relações sexuais são liberadas após 90 dias. Bianca Soll
conta que a recuperação cirúrgica é gradual e requer cuidados como qualquer procedimento de grande porte. Os cuidados pós-cirúrgicos são trabalhados pela enfermeira durante os grupos e antes da alta hospitalar. O acompanhamento continua: o paciente tem remarcações com a equipe cirúrgica para avaliações periódicas.
“A recuperação da cirurgia é relativamente tranquila, difícil é as pessoas se recuperarem de uma sociedade estigmatizante e preconceituosa.” Bianca Soll A cirurgia de Helena foi feita no dia 11 de outubro de 2013, às 8h10 da manhã. Acabou às 11h10, durando exatas três horas. A professora acordou onze horas depois, na sala do pós-operatório. À medida que o efeito da anestesia ia passando, gritava de dor. “A sensação que eu tinha era de que estavam literalmente me serrando”. Passou os três primeiros dias à base de morfina e perdeu muito sangue, tendo que fazer uma transfusão. Depois de
GÊNERO E SEXUALIDADE: Conheça a diferença
uma semana, deixou o hospital. No início, tinha dificuldade para sentar e para dormir. Voltou ao HCPA duas semanas depois. “As pessoas me olhavam e viam que eu estava diferente, mas eu me sentia diferente, me sentia mulher. Uma mulher tranquila. Eu me sentia flutuando, por mais dolorido que estivesse sendo aquele momento”. Os meses seguintes foram de muito aprendizado e descobertas do cotidiano de uma mulher. Precisou fazer fisioterapia: fazia exercícios com um molde que se parecia com um vibrador. A primeira vez que fez xixi foi memorável. Um momento comum na vida de uma mulher se tornou um evento. “Mãe, tô fazendo xixi sentada!”, comemorava. Em janeiro de 2014, foi até o Clínicas e o médico deu alta, inclusive para relações sexuais. Para Helena, o processo de transformação é eterno enquanto ser humano insatisfeito que somos. Ele cessa a partir do momento em que nos enxergamos e nos aceitamos. “Eu aprendi que todos os dias a gente renasce”. Ela brinca que é privilegiada, pois teve a oportunidade de viver duas vidas. Até os 25 anos era Heleno, depois se tornou Helena. “Eu ainda quero muito, mas aprendi a gostar e me orgulhar de cada coisa que eu vou construindo no meu corpo e, principalmente, aqui dentro de mim, enquanto Helena, mulher”.
IDENTIDADE DE GÊNERO
É o gênero com o qual nos identificamos. Transexuais têm uma certeza absoluta de que se identificam com o sexo oposto.
ORIENTAÇÃO SEXUAL
SEXO FEMININO
HOMOSSEXUALIDADE INTERSEXUALIDADETRANSEXUALIDADE FEMININA
É de quem gostamos, por quem sentimos atração. Pode ser por homens, por mulheres, por ambos os sexos. É determinada na infância ou ao longo da vida.
SEXO BIOLÓGICO
SEXO HOMOSSEXUALIDADE MASCULINO MASCULINA
BISSEXUALIDADE
BISSEXUALIDADE
É como nascemos. As mulheres nascem com cromossomos XX. Os homens, com cromossomos XY. Isto determina nosso sexo. Existe também a intersexualidade, alteração cromossômica que não permite que a pessoa se identifique apenas como homem ou mulher. Fonte: Walter Koff, urologista
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Fotos: Matheus Gomes
“TUDO O QUE É BOM DURA TEMPO O BASTANTE PARA QUE SE TORNE INESQUECÍVEL” Chorão
Vinil
O ritual de ouvir música Por muito tempo longe das prateleiras, o vinil vem ganhando espaço também entre os jovens Matheus Gomes
P
rimeiramente, você escolhe um disco na prateleira de casa baseado no seu humor. Assim, carinhosamente, retira ele do encarte, seleciona o lado do disco que deseja ouvir e, em seguida, pousa-o no toca-discos, encosta a agulha sobre a face e inicia uma viagem transcendental pelas músicas da banda favorita. O ritual de ouvir discos de vinil é realizado por fãs, amantes e colecionadores da plataforma e da música, um hábito de antigamente que nunca esteve tão presente nos dias atuais. Mesmo com o surgimento das mídias digitais, como o streaming, selos e gravadoras voltam a investir na prensagem de novos discos, ou de reedições de clássicos. Em Porto Alegre existe o crescimento do número de feiras e mais de 11 lojas e sebos que alimentam os aficionados por vinil.
HERDEIRO DE UMA PAIXÃO
O jornalista Lucio Brancato nascido em Porto Alegre conviveu desde pequeno com as coleções de discos de seus pai e avô. A partir de então, os LP’s (longplays) sem-
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pre foram muito presentes em sua casa. Quando criança, os pais de Lucio o faziam dormir ouvindo os vinis de canções infantis. Por essa influência, o jornalista começou a colecionar desde os seus nove anos de idade, quando comprou seu primeiro álbum, em 1987, época que os vinis eram encontrados nas prateleiras de supermercado. Era a coletânea de discos, Message in a Box (1993), da banda inglesa The Police e o disco Maiden Japan (1981) da também inglesa Iron Maiden. Ele conta que a compra foi feita em função das capas e principalmente por sua paixão por música. Além das bolachonas, Lucio também coleciona CD’s, porém, ele vê mais vantagens em consumir os vinis. Pelo fator visual das capas; a melhor qualidade sonora do vinil, com graves e agudos mais definidos, um som mais puro, e principalmente, pelo seu fator físico. “Principalmente hoje em dia ,que se pode ouvir música em qualquer lugar, o disco de vinil exige mais atenção por ser uma mídia física. Em algum momento, você vai ter que virar o lado do disco para ouvir as outras músicas do álbum, diferente do streaming que, por
exemplo você pula de música em música e acaba não conhecendo a discografia das bandas. Ouvindo as músicas na ordem que o artista propôs ali no álbum, é ouvir a história no formato que ele está te contando”, comenta o jornalista. Ainda conclui, “Eu sou fã justamente desse conceito de ‘álbum’ que o disco constrói, porque hoje em dia as pessoas não consomem mais discografia, elas consomem unicamente algumas músicas. Isso para os músicos não é legal, pois eles vão pensar na mensagem que se quer transmitir”.
A UNIÃO INVEJÁVEL
O DJ gaúcho, Damon Meyer fez a junção que é sonho de muitas pessoas: somou sua paixão por discos de vinil com o seu trabalho. Assim como Lucio, o DJ foi influenciado por sua criação diante das estantes da coleção de LP’s do seu pai. Então, por razão dessa influência, com 12 anos Damon passou a frequentar sebos no centro de Porto Alegre. Iniciando sua coleção com bandas como Black Sabbath, Deep Purple, Rush, Iron Maiden, ele era atraído não apenas pela qualidade sonora do vinil, mas
também pelos sentimentos que a música provoca. “É colocar o groove para tocar, sentir a música. É como um ritual de escutar música, um ritual que é antigo, mas que as novas gerações ainda desconhecem e estão procurando atualmente. Por exemplo, nas feiras que frequento aqui em Porto Alegre, eu estou notando a presença de pessoas jovens e interessadas em ter contato com esse novo formato. Em razão pelo desejo de sentir o formato físico”, relata o DJ Damon. Atualmente com 37 anos e com mais de 2 mil discos em sua prateleira, o DJ teve sua coleção interrompida pelo surgimento dos CDs, nos anos 2000, quando optou por começar a colecionar o novo formato. Porém, com o retorno da produção de vinil e seu ressurgimento nas lojas nos últimos 7 anos, Meyer voltou a preencher sua estante com as bolachonas. Além disso, passou a usar os LP’s em suas discotecagens. Por esse diferencial, Damon atraiu convites de produtores em Porto Alegre, sendo contratado para as festas de rua e feiras de vinis, onde o público é amante e participante de uma cultura “vinilística”.
O professor de inglês, intérprete e tradutor portoalegrense Gustavo Utz, de 41 anos, comprou seu primeiro disco como um presente para seu pai, um beatlemaníaco dos anos 60 que colecionava todos os discos da banda de rock britânica. Por essa influência, Gustavo, com 10 anos de idade, foi ao shopping sozinho para comprar o seu primeiro disco, o Live in New York City - One to One Concert de John Lennon como presente do dia dos pais. A partir daquele momento, o intérprete e tradutor passaria a construir sua coleção de mais de 200 discos, atraído pela qualidade sonora e pelo fator material de poder segurar e ver as artes das capas. Nessa coleção, seus favoritos são os presentes na edição em box remasterizado em Mono, de 2014, da banda The Beatles importados da Alemanha; além dos discos herdados de seu pai, que para ele são raridades pelo fator nostálgico.
RIQUEZA CULTURAL
Porto Alegre possui um produtivo e enriquecedor cenário musical para os fãs de música. A capital gaúcha é recheada de lojas, sebos e formas inovadoras de adquirir, vender, trocar e “conversar” vinil. Um exemplo é o clube de vinil da Noize (leia ao lado).
Rogério Cazzetta, de 52 anos, é dono da loja de Porto Alegre, Toca do Disco, que neste ano completou 28 anos de existência. Sua paixão por discos de vinil surgiu com 11 anos, quando ganhou a trilha internacional da novela Estúpido Cupido, da Rede Globo. Até que sua mãe ofereceu a oportunidade para Rogério de administrar uma loja de discos em 1989. Na época, o comerciante era professor de educação física, mas mesmo assim aceitou a oferta, expondo os discos de sua coleção. Durante seus 28 anos, a loja passou por momentos difíceis, em destaque para o aumento do dólar em 1994, que afetou sua relação com os importadores de discos. Outro problema foi o surgimento das mídias digitais nos anos 2000, quando as pessoas deixaram de comprar vinis e CDs, para baixar na internet. Os momentos bons da loja foram em sua abertura, com o surgimento do CD, até fim dos anos 90, com o dólar baixo. Também, Rogério notou um crescimento nas vendas, com o retorno da busca pelos discos de vinil nos últimos sete anos. A loja se localiza no bairro Bom Fim, na Rua Garibaldi, n 1043, com raridades de rock, jazz, blues, reggae e bandas locais.
FORMATOS DE DISTRIBUIÇÃO DA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA A história da música é marcada por seus diferentes formatos e formas de ligação com seus artistas e bandas favoritas.
VINIL (1950) Os Longplays(LPs) se diferenciavam principalmente por serem mais leves e mais resistentes, também pelo número de músicas e pelo atrativo das artes na capa.
CDS (1992)
Na sua época o CD foi inovador. Pelas vantagens de maior capacidade de música por unidade, clareza sonora, baixo custo de produção e praticidade.
MP3 (2000) A possibilidade de poder ter seu artista favorito direto do computador e dos MP3 players atraiu os amantes pela música na virada do século.
STREAMING (2009) Esse formato permite que o usuário tenha um álbum sem ter que baixá-lo em seu computador e de poder ouvir música direto do celular. Fonte: IFPI
O CLUBE DE ASSINATURA DE VINIL EM PORTO ALEGRE QUE CONQUISTA FÃS Em 2007, em Porto Alegre, a NOIZE Comunicação surgiu como um revista impressa sobre música distribuida gratuitamente. Então, em 2014, sua consolidada curadoria musical deu origem ao NOIZE Record Club, um dos primeiros clubes de assinatura de discos de vinil da América Latina. A revista é exclusiva para assinantes, bimestral e acompanhada por álbuns inéditos em vinil da música independente nacional. Ao todo somam-se 9 edições, contando com Otto, O Terno, Curumin, Apanhador Só, Dancê de Tulipa Ruiz (vencedor do Grammy Latino), Banda do
Mar, Liniker, Rael e a reedição do disco Os Afro-Sambas, de Baden Powel e Vinicius de Moraes. Os valores para assinatura da NRC saem a partir de R$75,00 por bimestre, os interessados também podem comprar as edições avulsas por R$98,00. A décima edição apresenta o lançamento exclusivo em vinil de Lá Vem a Morte, o terceiro disco de estúdio da banda goianiense Boogarins. O disco foi gravado durante a turnê da banda nos Estados Unidos em 2016 e está previsto sua versão em LP para a segunda quinzena de dezembro, com uma revista NOIZE impressa exclusiva dedicada ao albúm.
Rogério Cazzetta, comerciante, colecionador e proprietário da loja Toca do Disco, que tem o slogan “28 anos tocando a vida”
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“ CADA SEGUNDO É TEMPO PARA MUDAR TUDO PARA SEMPRE ” Charles Chaplin
O tempo parou para o Arroio Dilúvio O desenrolar de um dos maiores projetos de Porto Alegre, que após seis anos, continua estagnado no tempo à espera de investimentos. O projeto conta com sete eixos de atuação e foi calculado em 500 milhões de reais Paulo Nemitz Junior
O
projeto Bacia do Arroio Dilúvio: um futuro possível previa uma transformação na realidade de um dos maiores afluentes da bacia hidrográfica de Porto Alegre. O tempo passou e, após seis anos desde a sua concepção, o projeto com orçamento milionário e que uniu prefeituras e faculdades, por falta de verba, não saiu do papel. Em 2011, após uma visita do então ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, com pesquisadores das universidades da PUCRS e da UFRGS, a Seul, capital da Coréia do Sul, surgia a inspiração para um projeto de grande impacto para a cidade de Porto Alegre. Com foco na reurbanização e na educação ambiental dos habitantes, o governo sul coreano realizou uma obra que deu nova visibilidade para o arroio Cheong Cheon, que ficava coberto pela principal avenida da capital. Inspirados nesse projeto, em 2012, os pesquisadores das universidades desenvolveram um plano de ação que foi aceito pelo ex-prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, mas que nunca aconteceu. Com a união de forças, o projeto envolveu, além das universidades da PUCRS e da UFRGS, as prefeituras de Porto Alegre e de Viamão. O plano de ação pretendia atender a sete áreas ao longo da revitalização. Após este plano de ação, as etapas seguintes seriam a realização do projeto básico e executivo, até a execução da obra, porém o projeto não seguiu em frente. Tarso Genro, governador do estado entre os anos de 2011 e de 2015, afirma que não houve interesse 26
Fotos: Paulo Nemitz Junior
A Bacia do Arroio Dilúvio abrange 36 bairros entre os municípios de Porto Alegre e Viamão. A maior parte da extensão do Dilúvio cruza a Av. Ipiranga
pela inciativa privada. “Na visita em Seul, tratamos do assunto, junto com especialistas da PUCRS, que se colocaram na vanguarda do projeto. Porém, não houve interesse de parceiros privados pelo projeto. E a revitalização do Arroio Dilúvio é um desafio para os atuais gestores de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul”, afirmou Tarso. A bióloga e diretora do Instituto do Meio Ambiente da PUCRS, Betina Blochtein, é uma das coordenadoras do projeto e explica que é um caminho complexo a se seguir,
mas que depende, sobretudo, da força política. “Nós, como universidade, estamos muito motivados com o projeto, tanto para fazer a nossa parte, como também de ver saindo do papel. Esperamos que a gente possa retomar e executar o que planejamos”, afirmou. O custo total do projeto, após a etapa de levantamento e pesquisas foi estimado em R$ 500 milhões. Segundo o ex-prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, o projeto de Seul é um “sonho”, porém um sonho distante da realidade orçamen-
tária do município. “Foi feito um plano de ação que apontava a necessidade de recursos muito pesados para que esse projeto pudesse ser executado”, ressaltou Fortunati, que na época tentou, sem êxito, investimentos com o governo federal e instituições privadas.“ Infelizmente, acredito que o projeto só poderá ser retomado quando o Brasil crescer. Não tem como sonhar com um projeto desses, sendo que há uma crescente demanda por outros serviços básicos no município”, complementou o ex-prefeito.
Segundo a assessoria de imprensa da prefeitura, não há nenhuma ação concreta da prefeitura quanto à retomada do projeto. Os únicos órgãos que realizam alguma ação no Arroio Dilúvio são o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), responsável pela dragagem no Arroio e a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMurb), pela retirada do lixo na ecobarreira – que é de iniciativa privada. A assessoria de imprensa da Secretaria do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (SMAM) foi contatada, mas não confirmaram envolvimento no projeto atualmente.
“O projeto só poderá ser retomado quando o Brasil crescer” José Fortunati Ao todo a Bacia do Arroio Dilúvio abrange 36 bairros e o Dilúvio conta com 17,6 km de extensão. Para o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Millaniz, a importância do arroio é, sobretudo, “simbólica”, pela sua tamanha visibilidade na cidade. “Quando eu digo que é uma questão simbólica, é que é uma vergonha. Porto Alegre é, com certeza, a cidade pioneira no Brasil em questões ambientais e com o maior saneamento do país, mas que não trabalha o simbolismo deste Arroio”, afirma Millaniz. Com cerca de 50 mil metros cúbicos de terra e resíduos sólidos despejados anualmente nas águas do Dilúvio, este não é o único problema apontado no plano de ação da revitalização do Arroio Dilúvio. Problemas que afetam diretamente a qualidade das águas do Arroio e que têm a contribuição da população, como as ligações irregulares das redes de esgoto, que levam o esgoto doméstico, e mesmo o hospitalar, a serem lançados diretamente no Dilúvio. Como ressalta a professora de Arquitetura do departamento de Urbanismo da UFRGS Livia Piccinni, rios, riachos, nascentes e arroios urbanos necessi-
tam de um cuidado particular. “Por serem fontes de água para beber, por modificarem o ambiente, trazendo mais umidade, diminuindo o calor, por trazerem animais, por alimentarem plantas, por permitirem lazer. Hoje não se faz mais o que se fazia. O Arroio Dilúvio era um riacho onde as pessoas pescavam, tomavam banho”. Organizada pelo vereador Moisés Maluco do Bem (PSDB), a Frente Parlamentar em Defesa do Arroio Dilúvio (Frepad) é um espaço criado para discutir e compartilhar o projeto com o público em geral. Ao total, são 14 vereadores que compõem a Frente. Segundo o vereador Moisés, a prefeitura tem interesse, porém falta verba. “Há vontade do Ministério Público e da prefeitura, mas é realmente difícil. Precisa-se ter o investimento público-privado, se não o projeto não sai do papel, ele é muito caro”, afirmou o idealizador da Frente que foi aprovada na Câmara Municipal, em maio deste ano. Enquanto discussões vão e voltam, o projeto continua parado. Depois de tantas promessas realizadas, espera-se que as águas do Dilúvio poluído possam correr limpas novamente. Além de questões básicas de saneamento básico, o projeto revela diferentes condições de vida, de uma Porto Alegre estagnada no tempo.
DETALHES DO PROJETO Ao todo o projeto seria realizado em cinco etapas: o marco conceitual, o plano de ação, o projeto básico, o projeto executivo e a execução. Com um orçamento milionário a prefeitura não teve dinheiro para investir, como também não houve interesse da iniciativa privada. Para se ter ideia, a execução do projeto foi calculada em 500 milhões de reais; o projeto básico em 2 milhões de reais e projeto executivo em 3 milhões de reais. Sete eixos foram traçados no plano de ação: água, urbanismo, mobilidade, educação, economia, governança e gestão de projeto. Além de restabelecer a função ecológica da Bacia, a revitalização pretendia abordaria a qualidade da água, segurança e habitabilidade.
ECOBARREIRA ECOLÓGICA: O SOCORRO DO DILÚVIO Em quatro anos, a Ecobarreira já recolheu mais de 200 toneladas de lixo jogadas no Dilúvio Mesmo com um projeto que parou no tempo, a vontade de mudar a realidade do Arroio continua. O projeto Ecobarreira do Arroio Dilúvio não apenas saiu do papel, como funciona há mais de um ano sem parar. Esta foi uma iniciativa e realização da Safeweb, empresa de segurança da informação, que tem como intenção ajudar a preservação de um dos maiores bens naturais de Porto Alegre: o Lago Guaíba. O investimento inicial foi de R$ 250 mil. Resíduos como garrafas pet, madeira e animais mortos já foram retirados.
A ECOBARREIRA
O objetivo é recolher todo o lixo flutuante do Arroio e impedir que chegue ao Guaíba. “Vemos esse projeto de grande importância para a cidade de Porto Alegre, não apenas pelo seu caráter benéfico à natureza (fauna e flora), mas também pelo seu caráter educacional, que escancara os problemas de descarte inadequado, irregular, problemas de coleta de lixo na cidade, problemas sociais de pessoas vivendo em condições subhumanas perto do arroio, enfim, mostra para a população o tamanho do problema, que é muito maior do que apenas os resíduos retirados de lá todos os dias”, explica o vice-presidente da Safeweb, Luiz Zancanella Junior.
COMO FUNCIONA
A Ecobarreira já recolheu mais de 250 toneladas de resíduos desde a sua implementação. O equipamento está instalado na esquina das avenidas Ipiranga e Borges de Medeiros. Diariamente, os resíduos são içados e encaminhados para o aterro sanitário de Minas do Leão, com apoio do Departamento Municipal de Limpeza Urbana. “É muito legal ver que esse projeto despertou no Portoalegrense a vontade de mudar e de agir, ao invés de esperar por uma ação dos outros”, ressaltou Luiz.
A PREFEITURA
Além de uma visão socioambiental, o projeto ajudou a prefeitura neste serviço. Em uma das limpezas da superfície de toda a extensão do Arroio Dilúvio, realizada entre setembro e outubro de 2015, o DMLU removeu mais de 65 toneladas de resíduos. A ação contou com o apoio de barcos e equipe de 25 garis e caminhões. Levou vários dias e teve que ser interrompida devido às fortes chuvas e enchente e para garantir a seguranças dos trabalhadores.
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