Ceos # 4 O que mudou com a maioridade do século?

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Ceos REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM SUL – Nº 4 – JULHO DE 2018

O QUE MUDOU COM A

REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM SUL – Nº 1 – DEZEMBRO DE 2015

MAIORIDADE DO SÉCULO?

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LEMBRA DO ANO 2000? POR MARCELA DONINI

Três de julho de 2000: um amigo me tira da aula para me avisar da morte de uma pessoa próxima. Minha mãe tinha ligado para o celular dele — eu ainda não tinha um. Corta para 2018: as pessoas não telefonam mais para ninguém, mandam mensagens — e fazem checkin e selfies com seus smartphones nos lugares mais insólitos, inclusive cemitérios. A revolução que esses aparelhinhos causaram é uma das tantas mudanças pelas quais passamos desde o início do milênio até o planeta atingir sua maioridade. Mas nem tudo sucumbiu à urgência das sociedades conectadas — há quem se guarde para o sexo depois do casamento e quem prefira ler gibi no papel. Por outro lado, o conceito de privacidade se alterou, as manifestações populares mudaram. E o próprio jornalismo se transformou. Pemanece intacto o valor da apuração e das boas histórias, como as que o leitor pode conferir nesta quarta edição da revista Ceos, um panorama sobre o que mudou e o que não mudou nos últimos 18 anos.

EXPEDIENTE REPORTAGEM E DIAGRAMAÇÃO: ALEX TORREALBA, EDSON HAETINGER, FABIANA MARSIGLIA, FREDERICO ENGEL, GABRIELLA MACHADO, GIAN CARLOS LORENCET PANISSON (FOTOS), ISADORA OSÓRIO, JENNIFER CASAGRANDE, JULIANA IRALA, LAURA LIMA, LEONARDO KALLER, LIGIA OLIVEIRA, MATHEUS GOMES, NAESHA CARVALHO E PAULO NEMITZ. COLABORAÇÃO: FERNANDO RAUPP (DESIGN). ORIENTAÇÃO: PROF. ME. MARCELA DONINI


SUMÁRIO

PRIMEIRO VOTO JORNALISMO AMBIENTAL EM RISCO DE EXTINÇÃO

LIXO OU LUXO? A CURA GUIADA POR NHANDERU A INTOLERÂNCIA NÃO TEM FIM? DO CÁRCERE PARA A RUA O ESTÁDIO É DELAS DA FRANÇA À RÚSSIA MODA CONSCIENTE PARA QUEM?

A NONA ARTE GAÚCHA

A BELEZA NÃO TEM RÓTULO

2018 E O

SEM BEIJO E SEM SEXO

NOVAS FORMAS DE MOBILIZAÇÃO

04 08 12 16 20 24 28 32 36 52 56 60 40 44 48 JAMAIS ABANDONADO

PRIVACIDADE: UM DIREITO DE TODOS


PRIVACIDADE: UM DIREITO DE TODOS TEXTO POR ISADORA OSÓRIO REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM SUL – Nº 1 – DEZEMBRO DE 2015

SEUS DADOS AJUDAM A CRIAR SERVIÇOS ESPECIALMENTE FEITOS PARA VOCÊ. MAS QUAL O REAL CUSTO DISSO?

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stou logada na minha conta da Google e entro no recurso de linha do tempo. Em uma plataforma amigável, colorida e interativa, percebo que já fui em 413 lugares desde 2014, sendo que 217 são os mais visitados. Posso separar por datas, horários e verificar quem era minha companhia e até quanto tempo permaneci nesses locais. Esses recursos podem até parecer inofensivos, mas na verdade demonstram a fragilidade pela qual a privacidade se encontra atualmente com o avanço tecnológico. E não para por aí. Acessar playlists personalizadas do Spotify, buscar recomendações de filmes sugeridas pela Netflix ou até mesmo conseguir compartilhar a própria localização em tempo real com o motorista do Uber, tudo isso só é possível por causa da coleta constante de dados do usuário. Empresas

do mundo inteiro usam informações como histórico de acesso, assuntos mais curtidos, termos pesquisados e até o que e com quem você conversa — por meio do microfone de seu celular — para marketing e otimização de anúncios. Até aqui tudo parece formidável, afinal, conteúdo especializado é um facilitador em nossas vidas. No entanto há contradições. Voltando no tempo, em 1998, quem se impressionou com as tecnologias do filme “Inimigos do Estado”, com Will Smith, não imaginava que aquela ficção poderia se tornar realidade, ainda que a internet já estivesse na casa das pessoas. Rastreamento da localização, roubo de informações, utilização indevida de dados, e total invasão de privacidade, até então, existiam só em filmes de ação. Após 20 anos, com


PASSOU DA HORA DE REFLETIR SOBRE O QUE DEVEMOS PUBLICAR E COMPARTILHAR NAS REDES SOCIAIS.

a internet globalmente acessível, o que era entretenimento virou um perigo real.

A tecnologia tornou-se indispensável em diversos aspectos da vida, como no transporte, serviços bancários, organização pública e na comunicação. E, cada vez mais, ela está também se tornando eficiente para armazenamento de dados. No entanto, a todo instante, empresas e a população acabam sujeitas a escândalos relacionados a roubos cibernéticos. Só em 2017, podemos citar casos como a empresa Yahoo, que anunciou um ciberataque responsável pelo roubo de 3 milhões de contas de seus usuários. O Grindr, aplicativo de relacionamentos voltado a homossexuais, permitiu que empresas de otimização de aplicativos tivessem acesso a dados privados dos usuários, incluindo informações sobre o vírus HIV. O episódio mais recente, em abril de 2018, anunciado pela Karpersky LAB, empresa internacional de segurança virtual, foi uma extensão do navegador Google Chrome, chamada Unblock Content, ou seja, “desbloquear conteúdo”. Esta ferramenta conseguia se comunicar com uma zona de domínio suspeita, normalmente utilizada por cibercri-

minosos. Segundo a empresa, a extensão atacou 100 clientes brasileiros de vários bancos, roubando credenciais dos usuários como login, senhas, números de identificação e dinheiro. Essas situações demonstram a fragilidade da segurança de dados.

MARCELO CRESPO

No primeiro semestre de 2017, a pesquisa Breach Level Index, da empresa de segurança digital Gemalto, revelou que 918 violações de dados comprometeram 1,9 bilhão de registros. Em comparação com o último semestre de 2016, houve um aumento de 164% na quantidade de dados perdidos, roubados ou comprometidos. Este relatório é um banco de dados mundial que rastreia violações e dimensiona sua gravidade. A partir desses acontecimentos, o mundo percebeu que estes avançoss precisam ser regulamentados, pois colocam a segurança de todos em risco. A nova Lei de Proteção de Dados europeia (DGPR) trouxe à tona 5


TODA INFORMAÇÃO DIGITAL TEM VALOR, TANTO PARA NÓS DO DIREITO QUANTO PARA QUALQUER UM QUE USA A INTERNET. PATRÍCIA PECK

as obrigações das empresas em relação à segurança, principalmente para evitar roubos em massa de dados pessoais. O Plano restringe ainda mais o uso dessas informações, visando evitar novos casos de negligência, como o da Cambridge Analytica, empresa de análise de dados que usou, para benefício próprio e de terceiros, informações de quase 90 milhões de usuários do Facebook. Ainda que o Governo Federal do Brasil esteja engatinhando em atitudes sobre a utilização de dados, existem avanços. Em maio deste ano, foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais (PL 4060/12), que prevê a regulamentação do tratamento de informações pessoais, tanto para o poder público quanto para empresas privadas. Este é um passo significativo pois define conceitos de maneira específica, sem deixar possibilidades para interpretações amplas ou com duplo sentido. Este projeto promete cuidar de nossos dados, já que a gente tem falhado nisso — ou alguém aí lê as políticas de privacidade dos serviços online que contrata? O advogado Marcelo Crespo, pós-

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-graduado em Segurança da Informação, destaca iniciativas sobre a proteção de dados pessoais. “Passou da hora de refletir sobre o que devemos publicar e compartilhar nas redes sociais. É trabalhoso? Sim, porque depende da vontade de ler e entender as políticas de privacidade, mas são seus dados em jogo. E isso a maioria das pessoas não faz”, afirma sobre a PL 4060/12. “Tudo indica que haverá alguma proteção com o avanço do projeto (que ainda precisa passar pelo Senado). Isso é bom, atribui limites para quem está coletando nossas informações na internet”, finaliza Crespo. Em abril de 2018, o Marco Civil da Internet completou quatro anos. A Lei 12.965 sinalizou uma vontade do poder público e da sociedade civil brasileira de regulamentar a utilização da internet e garantir que existam direitos e deveres para usuários, empresas e governo. Os principais aspectos do Marco são a igualdade para todos


na internet, a privacidade da utilização e registros de acessos. A advogada especialista em direito digital, Patrícia Peck confirma a importância desse progresso para a legislação nacional e reflete sobre a nova área da profissão. “O direito digital é uma inovação e traduz um amadurecimento jurídico em relação aos novos comportamentos nas redes. Hoje tudo mudou, até as testemunhas mudaram, as máquinas podem ser nossas testemunhas. Toda informação digital tem valor, tanto para nós do direito quanto para qualquer um que usa a internet”. Nossa privacidade hoje é um bem muito precioso, que vale dinheiro para outros, mas não se pode esquecer que, mais do que isso, a privacidade é um direito de todos. Ações e discussões como essa mostram que o Brasil e o mundo trilham um caminho rumo à transparência do uso de dados pessoais, uma vitória para todos usuários.

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NOVAS FORMAS DE MOBILIZAÇÃO TEXTO POR LÍGIA DE OLIVEIRA

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A PARTIR DE FERRAMENTAS TECNOLÓGICAS, JOVENS IMPACTAM COMUNIDADES E CAUSAM MICRORREVOLUÇÕES LOCAIS

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ou ativista desde que nasci”, afirma Carolina Soares, psicopedagoga, que, aos 2 anos, ganhou sua primeira sineta do CPERS - Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul, e foi com sua avó até a Praça da Matriz em Porto Alegre para protestar. Hoje, aos 30, substituiu a sineta pelo computador e criou a Minha Porto Alegre, uma rede de mobilização coletiva criada para fiscalizar o poder público que já conta com mais de 8.000 membros cadastrados. A geração brasileira que surgiu a partir da década de 1990, nasceu em um mundo hiperconectado, sem medo de ditadura, inflação e com a sensação de maior liberdade para lutar pelas suas causas, sem precisar de uma grande revolução e de uma atitude confrontadora, como em décadas anteriores. Engajada em causas inclusivas e sustentáveis, Soares utiliza a comunidade e a tecnologia como plataforma de transformação social, a fim de possibilitar tornar mais rico e diverso o processo participativo na sociedade. Ainda que se escute que tentar mudar algo sentado em frente ao computador é fácil e que difícil é sair da zona de conforto, em referência ao “ativismo de sofá” (tipo de mobilização que surge na internet), Sosô, como é conhecida Soares, defende essa forma de ativismo e argumenta que é um meio interessante de exercer a democracia, pois permite

que a pessoa, de sua casa, consiga apoiar projetos e colaborar financeiramente com outros propósitos. Com a certeza de que quer viver com propósitos – e não consegue acreditar que isso exista sem pensar no coletivo –, Kawoana Vianna, que fez curso Técnico em Química na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, em Novo Hamburgo, e cursa Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é fundadora de uma plataforma científica. E se a ciência te fizesse decolar? Com esse slogan, a estudante de 25 anos começa a apresentar o Cientista Beta, que tem como objetivo conectar jovens cientistas a jovens mentores. A motivação


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mentoria é realizada online, de forma que é possível se conectar com uma rede de outros jovens cientistas, pesquisadores e mentores de todos os cantos do país.

NOSSO OBJETIVO É MOSTRAR O QUANTO O INDIVÍDUO É IMPORTANTE PARA MELHORAR A VIDA DE MUITAS OUTRAS PESSOAS. BERNARDO KREBS

início depois de ter desenvolvido, ainda no ensino médio, o projeto de uma meia que evitava a amputação em diabéticos, uma situação enfrentada por sua avó. Nesse período, Vianna já era considerada referência entre os colegas – admiração que só aumentou com sua premiação na maior feira de ciências do mundo, a Intel ISEF, em 2011. Porém, sentia que poderia fazer mais. “Cansei de ler relatórios, pôsteres e planos de pesquisa”, lembra ela, que era chamada para se apresentar em escolas e eventos. “Fazia tudo isso com muito gosto e gratidão, mas parecia que eu deveria encontrar uma forma mais direta de auxiliar outros adolescentes”. Eis que surge o Cientista Beta. A iniciativa visa a incentivar a produção de pesquisa científica durante o ensino médio ou técnico, além de potencializar a capacidade de criação de jovens que querem mudar a realidade em que vivem por meio da ciência. A

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Ciente da força das redes e de seus impactos, a estudante entende que a tecnologia contribui para a mobilização social na medida em que você tem mais acesso à informação e, consequentemente, encontra outros indivíduos que estão questionando os mesmos problemas, permitindo que se construa uma cadeia de pessoas engajadas na mesma causa. Entretanto, pode-se criar a ilusão de que há uma grande mobilização e, ao sair da bolha digital, essa voz, que parecia estar muito alta na internet, não reverberar tanto no meio offline. “Percebo que os jovens estão lutando por uma sociedade mais democrática, mas muitas vezes, dentro de bolhas. É preciso estar atento a isso”, comenta. A cultura de doação no Brasil ainda é precária, e os novos dados do World Giving Index de 2017, estudo global anual promovido pela CAF (Charities Aid Foundation), que mede o nível de solidariedade das nações, apontam para a necessidade de campanhas mais assertivas e de um investimento ainda maior em iniciativas que estimulem o apoio financeiro a causas sociais. Em 2016, apenas 21%


da população brasileira contribuiu com alguma instituição do terceiro setor, índice ainda menor que o de 2015, quando registrou 30%. O Brasil ocupa o 75º lugar no ranking mundial da solidariedade, e o 6º lugar no ranking regional, da América Latina. Após um cuidadoso estudo para entender não só o que motiva o brasileiro a doar, mas também o que o desmotiva, Bernardo Krebs e mais dois amigos resolveram criar uma ferramenta que incentiva doações. A iniciativa, denominada como 1Bem, sediada no Polo Tecnológico de São Leopoldo, é focada em ações de filantropia. A plataforma estimula a contribuição financeira a causas sociais por meio de campanhas de financiamento coletivo que oferecem experiências únicas entre fãs e ídolos. “Nosso objetivo é mostrar o quanto o indivíduo é importante para melhorar a vida de muitas pessoas”, afirma Krebs. Ele explica que cada R$ 1 doado representa um ticket para participação no sorteio de uma experiência única, oferecido por uma personalidade. Krebs acredita que, por meio do empreendedorismo social, seja possível impactar a vida de inúmeras pessoas. Um de seu grandes objetivos com o projeto é demonstrar na prática a teoria de que a riqueza só pode ser distribuída, se primeiro for gerada, destacando a impor-

tância do crescimento do terceiro setor na economia brasileira para, consequentemente, atingir aqueles que necessitam. Uma coisa é certa: os jovens atuais buscam propósitos e uma marca a ser deixada. No lugar das grandes revoluções, entram em cena as microrrevoluções colaborativas e o desejo de transformar realidades locais, ou seja, o mundo a seu redor. Apesar de ouvirem que são desestimulados e desinteressados, suas formas de participações são outras, porém legítimas. O mundo em que sonham já está sendo construído agora. Não só lá na frente.

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2018 E O PRIMEIRO VOTO SE, NA VIRADA PARA OS ANOS 2000, A SENSAÇÃO ERA DE PROTAGONISMO NA POLÍTICA, HOJE, ELA É TROCADA PELAS ANGÚSTIAS DE UMA JUVENTUDE DESACREDITADA

TEXTO POR JULIANA IRALA

Brasil e, agora, sentem as ânsias de um país em recessão. Estes fazem parte de 8,17% do total da população, que inclui jovens de 15 a 20 anos.

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u tenho interesse, mas não tenho saco”, foi o que respondeu a jovem, de cabelos crespos e óculos de armações pretas e quadradas, ao ser questionada sobre a sua relação com política. Lia Pena, estudante de Biologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), tem o medo e a certeza de que, na eleição de 2018 – a sua primeira –, terá que votar em um candidato que não atende as suas expectativas para não ter que votar em outro que não quer ver “nem pintado”. Assim como Lia, os brasileiros que nasceram no início dos anos 2000 vão votar de forma obrigatória pela primeira vez neste ano. Amadureceram em um período de crescimento do

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No universo desses jovens, as informações chegam pelas timelines de redes sociais, como é o caso da estudante de Design Gráfico da Universidade Belas Artes de São Paulo, Rafaela Dare. “Eu sei que me mantenho em uma ‘bolha’ social. É tanta informação e tantos nomes que é difícil se manter informado”. Para Michele Pinto, doutora em História e Política pela Fundação Getúlio Vargas, os jovens dessa geração engajam-se apenas em pautas com as quais se identificam. Aqui, a luta pelo corpo, pela orientação sexual e pela afirmação étnica, apesar de uma luta política, expressa um conflito histórico pela afirmação do “eu”. Embora seja uma luta identitária, ainda é uma luta social. Assim, esse engajamento foge do script tradicional de ‘vamos escolher um representante que, durante o mandato, vai esquecer-se de nós e, no final deste, pede voto para ser reeleito’. Esses novos eleitores não estão dispostos a renunciar seus direitos e aceitar retrocessos das vias institucionais e tradicionais da política. Por não se identificarem com a maioria dos partidos e políticos, os jovens também não estão dispostos a entrar nesse sistema. Para Dare, as recentes investigações e denúncias, principalmente vinculadas à Lava Jato,


deixaram os brasileiros ainda mais desacreditados no Brasil. “Há dois anos, eu era muito mais engajada. Hoje em dia, parece que é só corrupção, e o que muda são os nomes”, diz a estudante. Tal repulsa pode ser lida como um descrédito nas atuais estruturas de poder. “Fazer política acaba sendo opinar nas redes sociais, mostrar que está consciente da corrupção, e não exatamente participar dela”, diz o professor de história do Colégio Santa Rosa, em Belém (PA), Rodrigo Dornelles. Mas nem sempre a juventude esteve tão desgostosa com a política. A redemocratização brasileira, na virada dos anos 1980 para os 1990, foi marcante para a juventude da época. “Foi um momento de valorização dos elementos democráticos e uma oportunidade do jovem participar do processo político”, diz o professor, que votou pela primeira vez em 1996 nas eleições municipais, aos 16 anos.

HOJE EM DIA, PARECE QUE É SÓ CORRUPÇÃO, O QUE MUDA SÃO OS NOMES. RAFAELA DARE

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Para ele, esse sentimento de protagonismo foi muito estimulado por outro fator: as manchas deixadas pelos Caras-pintadas. O movimento estudantil aconteceu em 1992 em apoio ao impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, que, em 29 de dezembro de 1992, renunciou – horas antes de ser condenado pelo Senado por crime de responsabilidade. Nas eleições seguintes, a ideia de participar, como cidadão, das escolhas políticas, unia a juventude em prol da transformação do país. “A juventude passou a ser vista como um personagem importante da política, tanto que, no final dos anos 1990, falar de política era falar de uma juventude que participava dela”, diz Dornelles.

Anos 2000: seus problemas (não) acabaram “Hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo”, foi o que disse Lula em seu discurso de posse no Congresso Nacional, no dia 1 de janeiro de 2003. Já no mandato, sua popularidade cresceu com os investimentos na área social e os bons números da economia. Diversos fatores deram uma “mãozinha” para Lula: a descoberta do pré-sal, em 2006, o início da exploração, em 2008, e os investimentos em infraestrutura visando os megaeventos, como Copa do Mundo e Olimpíadas. Com mais carteiras 14

assinadas, o índice de desemprego foi de 6,7% em 2010, contra os 8,1% do ano anterior, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foi a menor taxa desde 2002. “O Brasil parecia estar no rumo certo e na sua maioridade econômica e social”, aponta Pinto. Foram oito anos e Lula se despediu da presidência com mais de 80% de aprovação popular. Pelo menos em grande parte da população, a sensação de conquista nacional permanece no governo de Dilma Rousseff – até o início de 2013. Com a crise econômica, iniciam-se também os escândalos de corrupção. A insatisfação chega às ruas e as manifestações populares de 2013 começam a dividir o país. Estas iniciam contra o aumento das passagens em São Paulo, mas se espalham para outras cidades do país e assumem diferentes pautas: “não vai ter Copa”, violência policial, corrupção, dentre outras. As manifestações desgastam o governo Dilma e deflagram o tema da luta contra a corrupção. “As outras pautas se perderam. As passagens aumentaram, aconteceu a Copa e a polícia continuou violenta. Falava-se ‘o gigante acordou’. Mas onde está o ‘gigante’ agora? Onde estão os jovens que estiveram nas manifestações de 2013?”, questiona Pinto. A partir dali, a ‘bandeira’ contra a corrupção torna-se o elemento mais importante da política brasileira. Para piorar, a reeleição em 2014 deixa evidente um setor da população descontente com os efeitos da crise econômica e com a insatisfação política.


A primeira eleição… ...justo em 2018 As eleições presidenciais de 2018 deixarão o Brasil sob os “olhos do mundo”. Após a última ida às urnas, a população viu a então presidente Dilma Rousseff ser afastada do cargo por um processo de impeachment em 2016. Foi substituída por Michel Temer – que se tornou o primeiro presidente da história do Brasil a ser denunciado ao Supremo Tribunal Federal no exercício do mandato, por suspeita de corrupção passiva. Além disso, uma das maiores apostas para as eleições deste ano, o ex-presidente Lula, foi condenado a 12 anos e um mês de prisão, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Assim, as eleições são um enigma até para especialistas. “É prematuro fazer qualquer cenário, porque a cada semana há uma nova tendência”, diz Valmir Pereira, professor de Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba (UFPB). De acordo com os resultados das urnas, para Pereira, a possibilidade de um golpe militar para impedir a posse não pode ser descartada. “Eu não acredito que juntaram tantas pessoas para dar o ´golpe´ [refere-se ao impeachment de Dilma], para agora voltar a entregar o Brasil a qualquer partido de esquerda”, esclarece o professor.

Para quem viveu a redemocratização brasileira do final dos anos 80, se o país mantiver as instituições democráticas e o estado democrático de direito, já vai ser um grande ganho. “Existe uma tendência a acreditar que a corrupção hoje em dia pode ser resolvida com medidas antidemocráticas e autoritárias”, diz Dornelles. A empresária Lucelaine Oliveira votou pela primeira vez em 1998, quando tinha 16 anos. Na época, por não ter muita relação com a política, suas expectativas se baseavam na opinião da sua família, principalmente do pai. Mas, por causa da profissão, a empresária se aproximou da política e acabou se filiando, em 2017, ao partido NOVO. Devido aos últimos escândalos, a empresária acredita que a população que tem acesso às informações está mais consciente em relação aos candidatos e valoriza o voto. Mas entre os jovens eleitores a descrença impera. “A forma que a política é praticada no Brasil faz com que um desinteresse enorme cresça dentro de mim”, diz Ane Moura, estudante de Engenharia Florestal da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Assim como outros novos eleitores, só votará porque é obrigada. “Existe uma grande falta de esperança”, comenta a estudante de Design de Moda do Centro Universitário Estácio, de Santa Catarina, Sarah Assunção. Para ela, por mais que os brasileiros estejam mais conscientes do próprio voto, a crença de que ele possa resultar em mudanças é pouca. Mesmo quem entende o voto como meio de mudança, não deixa de se questionar, como é o caso da estudante Rafaela Dare. “Às vezes, eu penso ‘será mesmo que pode ter mudança? Será que alguém vai chegar lá e mudar sem ser levado por dinheiro ou poder’?”.

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JORNALISMO AMBIENTAL EM RISCO DE EXTINÇÃO

ÁREA TEM SOFRIDO COM A PERDA DE ESPAÇO DENTRO DO SEU PRÓPRIO HABITAT, AS REDAÇÕES

TEXTO E FOTOS POR GIAN CARLOS PANISSON

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a virada do milênio, um fantasma rondava a humanidade: o fim do mundo estava previsto para acontecer no novo século, mais precisamente dali 12 anos. Os maias haviam previsto que o fim do mundo aconteceria em 2012. O mistério nenhum historiador ou cientista era capaz de desvendar. As catástrofes naturais começaram a assustar cada vez mais a população mundial. Será que os maias tinham razão? Os jornalistas ambientais eram os nossos fiéis e únicos vigilantes. Hoje a profecia foi esquecida. E o jornalismo ambiental?

O jornalismo como um todo passou por transformações nos últimos anos, na produção, no seu modelo de negócio, mas também, a forma

como consumimos matérias jornalística mudou. A internet surgiu e mudou tudo, tirou a exclusividade dos grandes veículos de comunicação e deu voz aos espectadores, modificando a forma como nos comunicamos hoje. Para o jornalismo, uma mudança quase fatal. Enxugamento das redações, novas plataformas, novas ferramentas, além do fato de a publicidade não depender mais, exclusivamente, das notícias para atingir seu público, tudo isso gerou uma crise. No século XX, o jornalismo ambiental começou a ganhar espaço a partir do jornalismo científico que debatia as questões de desenvolvimento industrial da época. Em 1960, já se via alguns jornalistas que se dedicavam a esta área. Contudo, foi logo antes da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecido como Rio 92, que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro e que reuniu representantes de 179 países, que o ambiente tornou-se pauta fundamental para a cobertura da imprensa brasileira. Foi assim que ele virou uma especialização, pois os jornalistas tiveram que se preparar para fazer a cobertura do evento e seus desdobramentos, explica o professor de Jornalismo da faculdade UniRitter, de Porto Alegre, e pesquisador em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS), Roberto Villar Belmonte. Por apresentar os problemas sobre o processo de industrialização, os jornalistas


ambientais sofreram para ganhar espaço nas redações, pois muitas vezes eram vistos como contrários à modernização. O desafio dos profissionais era tratar do tema de uma perspectiva modernizante. Recentemente, com o enxugamento das redações, poucos veículos ainda mantêm algum profissional que se dedique exclusivamente a questões ambientais. “Até recentemente era possível identificar profissionais e editorias sobre meio ambiente e espaço em veículos para isso. Atualmente, é notória a migração destes temas para startups de jornalismo ou blogs especializados. Antes, eles tinham mais espaço nos jornais, hoje eles ocupam espaços mais alternativos”, explica a pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da Fundação Getúlio Vargas Cintya Feitosa. Uma especialização, não uma editoria.

Laura Ely, jornalista e fundadora do projeto Ecohistórias, explica que o jornalismo ambiental é uma pauta transversal que está presente em todas as outras editorias, como economia, tecnologia, saúde. A professora de Comunicação da ESPM-Sul Adriana Kurtz explica o risco que essa transversalidade apresenta. “O fato de o jornalismo ambiental não ser uma editoria faz com que ele não tenha um espaço demarcado nos veículos. Desta forma, ele está presente, mas ao mesmo tempo não está. Esta área do jornalismo acaba perdendo a sua autonomia nos grandes veículos e as pautas ambientais acabam sendo tratadas com menos importância dentro das grandes redações”. A jornalista e pesquisadora da área Eloisa Beling Loose confirma o discurso contando que a transversalidade está pouco visível nos diários. “Na internet há

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mais espaços específicos, mas o alcance de público também é mais restrito”, conclui Loose. Uma parte do empresariado brasileiro financia a desinformação ambiental, isso representa um perigo para a qualidade do jornalismo nacional, que depende de investidores para bancar a produção jornalística, por isso, o jornalista e fundador do projeto Ambiental Media, Thiago Medaglia explica que precisamos pensar em alternativas para um novo modelo de negócio. Kurtz utiliza como exemplo para ilustrar a fala de Medaglia, o maior desastre ambiental que aconteceu no Brasil nos últimos anos: o rompimento de uma barragem na cidade de Mariana, em Minas Gerais. Os jornais

demoraram para apontar a empresa responsável pelo acidente, pois é uma grande anunciante dos veículos de comunicação. Coincidentemente, um atentado em Paris que aconteceu no mesmo dia fez com que os veículos tirassem o foco do desastre pois não sabiam da gravidade do acidente. “Denúncias (ambientais) não atraem os cliques, as pessoas só querem saber de espécies fofas, lugares exóticos. O jornalismo ambiental brasileiro tem medo de incomodar”, explica Kurtz. Seu maior ponto fraco — a transversalidade — pode ser também a sua salvação. Feitosa conta que o jornalismo ambiental, além de trazer para uma linguagem acessível informações científicas, dando insumos para debates de qualidade sobre rumos de desenvolvimento, tem a missão de lembrar que o meio ambiente não é algo isolado e está presente, ou deveria estar, presente em todas as pautas. “Fazer com que outras editorias e que o público entenda que meio ambiente não é um tema separado dos demais temas da sociedade. Isso conferiria mais respeito à atuação de jornalistas ambientais, que, no futuro, poderiam até estar associados a ou-

O FATO DE O JORNALISMO AMBIENTAL NÃO SER UMA EDITORIA FAZ COM QUE ELE NÃO TENHA UM ESPAÇO DEMARCADO NOS VEÍCULOS. ELE ESTÁ PRESENTE, MAS AO MESMO TEMPO NÃO ESTÁ. ADRIANA KURTZ

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tras editorias, mais completas e multidisciplinares.” Loose ainda acrescenta sobre a visibilidade proporcionada com este debate. “O jornalismo é um dos principais mediadores sociais hoje. Acredito que ele contribui para que mais pessoas conheçam as conexões existentes, mas nem sempre explícitas, entre as causas e efeitos das problemáticas ambientais.” A profecia de Hawking Stephen Hawking, um dos mais consagrados cientistas contemporâneos, declarou no ano passado, pouco antes de morrer em março deste ano, que o ser humano deve buscar abrigo no espaço, pois, segundo ele, a humanidade pode ser extinta em até 30 anos. Uma matéria da revista Exame o citou: “É apenas uma questão de tempo antes da Terra, do modo como a conhecemos, ser destruída por uma série de asteroides, temperaturas elevadas ou excesso de população.” Em contrapartida, na mesma época em que a citação de Hawking repercutiu, outra manchete baseada em estudos divulgados pela ONU chamava atenção. A revista Exame, novamente, publicou: “Em 2100, o mundo terá 21 milhões de pessoas com 100 anos ou mais e o Brasil aumentará sua população de centenários em 110 vezes.” Os dois exemplos acima representam a presença do

jornalismo ambiental nas mais diferentes pautas e, também, a importância de se fazer um jornalismo científico de qualidade e que traduza todos estes termos à população. Como 21 milhões de pessoas (o triplo da população atual) serão capazes de viver num planeta de recursos finitos, e que, segundo Hawking, poderá se extinguir em 30 anos? Essa pergunta somente o jornalismo ambiental e o futuro podem nos responder. Medaglia acredita que algo precisa mudar por parte da população. “As pessoas precisam entender o papel do jornalismo e valorizar o trabalho do jornalista. Já este deve trabalhar com uma base densa de dados, comparar, informar, ajudar as pessoas a entender a ciência e mostrar como ela pode ser usada, tudo isso, sem esquecer da sensibilidade.” O estudante de jornalismo e pesquisador da UFSM, Mathias Lengert contou que as pautas sobre natureza aumentaram muito neste novo século e os acervos dos jornais de referência do país provam isso. “Os indivíduos, em geral, sabem da existência de problemas ambientais, o problema agora é buscar modos de fazer com que o leitor/ouvinte/ telespectador consiga entender que tem papel importante nisso tudo.” Os jornalistas ambientais são responsáveis por vigiar o nosso habitat, o planeta Terra. O nosso dever como cidadãos é mostrar valor ao trabalho dos jornalistas, para que eles também não percam o seu habitat. “Debater sobre os conflitos entre sociedade e natureza, assim abriremos espaço para construir um novo tipo de sociedade”, acredita Roberto Belmonte. Juntos podemos reverter a situação do nosso planeta e fazer com que a teoria de Stephen Hawking, assim como a profecia do povo Maia, não se concretize.

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VERSÁTIL, MALEÁVEL, DESCARTÁVEL. NEM MESMO AS MELHORES QUALIDADES DO PLÁSTICO SUPERAM SEU MAIOR DEFEITO: DURABILIDADE

plástico entrou na vida dos brasileiros em 1945, com a proposta de oferecer um produto de baixo custo e grande durabilidade. Setenta e três anos depois, fabricá-lo continua barato, mas o preço dessa produção se tornou caro para o meio ambiente, para a sociedade, para cada município, suas respectivas prefeituras e moradores. No final dos anos 1990, Porto Alegre foi o primeiro município do Brasil a implantar a coleta seletiva. Entramos na maturidade do milênio e, um projeto que funciona havia mais de 28 anos, aparentemente parou no tempo. “Gastamos 80 mil reais por dia para levar resíduos até o aterro Minas do Leão, que recebe só rejeito, ou seja, aquilo que não dá para reaproveitar - fraldas, absorventes e papel higiênico”, relata a bióloga e fundadora da plataforma Ecollect, Jéssica Alvarenga.

A cidade produz, por dia, 2 mil toneladas de lixo. “Desse total, menos de 3,5% é reciclado, uma perda de 39 mil reais por mês para o município. Podíamos estar reaproveitando pelo menos 25% dessas 2 mil, mas isso não acontece porque as pessoas não descartam corretamente. Assim, plástico, baterias, quilos de resíduos orgânicos que poderiam ser compostados vão parar no aterro, junto com os rejeitos”, diz Jéssica. No caso do plástico, a decomposição pode levar 450 anos. Se daqui cinco anos eu tiver meu primeiro filho e, com a mesma idade, ele me der meu primeiro neto, que, por sua vez, também aos 26, ganhará seu primogênito, o plástico do pacote de lencinho umedecido que, hipoteticamente, eu utilizei para higienizar meu filho em 2023 ainda existirá, provavelmente em algum oceano, onde talvez meu neto ensine meu bisneto a nadar, em 2080. Mesmo passando por 4 gerações, esse plástico tem mais 398 anos no planeta Terra. Nesse meio tempo em solo terrestre, independentemente de sua forma física ou utilidade, ainda que utilizado por meses ou

LIXO OU LUXO? TEXTO E FOTOS POR GABRIELLA M. ROCHA

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TORNAR NOSSA SOCIEDADE MAIS SUSTENTÁVEL É UM TRABALHO DE GERAÇÕES. JÉSSICA ALVARENGA

apenas um dia, o plástico não sai de nossas vidas ao jogarmos no lixo. “Tudo o que descartamos vai para algum lugar. Quando descartados de forma incorreta os resíduos sofrem influência de elementos climáticos como o vento. Com isso, muitos alcançam rios e por consequência o mar”, explica Lucas Morates, da equipe do Ceclimar, órgão de pesquisa sobre a fauna marinha gaúcha.

Diferentemente dos humanos, animais marinhos são incapazes de diferenciar seu alimento de pedaços de plástico. Isso significa que podemos ingeri-lo indiretamente ao comer um peixe contaminado. Logo, algo que deveria ser de domínio humano, domina o humano. Era do plástico Três décadas atrás fomos denominados como a “Era do Plástico”, a geração que solidificou a sua permanência. Hoje, o meio ambiente e a sociedade pagam o preço dessa escolha. O plástico se tornou, no fiel sentido da palavra, um gasto. Não gera retorno econômico para as prefeituras, apenas aumenta os custos da coleta de lixo. Para os varejistas, ainda que tenha um preço inferior ao dos sacos de papel usados até o final dos anos 80, é mais uma despesa e menos dinheiro

no saldo do final do mês. Países de primeiro mundo, como a Irlanda, encontraram uma solução para o problema: cobrar o consumidor por cada sacola plástica utilizada. Isso reduziu em até 94% o consumo do produto no país. Mesmo depois de tanta matemática, ainda há espaço para um pouco de português: com o prefixo des, gasto vira desgaste — que é o que o plástico faz com a natureza: “alteração ou redução da forma, por fricção ou atrito”. Entre os seus sinônimos, está o termo ruína, substituição que faz sentido quando retornamos aos numerais e lembramos da estimativa de que, em 20 anos, haverá mais plásticos do que peixes nos oceanos.

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A população se dá ao luxo de manter o plástico no seu dia a dia e, para amenizar os danos ambientais, novos negócios “limpam a sujeira” no lugar do restante da sociedade. “A comunicação da gestão de resíduo de municípios e entidades privadas de maneira geral é ineficaz e deficitária, mas não se pode dizer que é apenas falta de informação, e sim falta de sensibilização para compreensão do seu impacto individual na coletividade”, afirma Pecce.

Com todas essas informações, tento imaginar como seria viver no final dos anos 1960, quando minha mãe respirava e aproveitava a natureza pré era do plástico, sem medo de mergulhar em um mar repleto de lixo. A comunicação sobre os malefícios do produto começou a partir dos anos 2000, depois dos meus pais descobrirem que, ao comprar fraldas, brinquedos ou até mesmo pratos e copos de plástico para as festas de aniversário, estavam contribuindo para que, talvez, seus bisnetos só conheçam o verde das águas salgadas em fotos antigas. Mudar esse cenário não está nas mãos só do consumidor. “Existe uma coisa chamada responsabilidade compartilhada. O papel do consumidor é claro: mais consumo, mais resíduo, e, junto com a indústria que acha barato usar o plástico como solução de descartáveis e embalagens, ambos têm a responsabilidade na perpetuação (ou não) do plástico como bem de consumo”, aponta Fabíola Pecce, consultora ambiental da Pasárgada, oficina de consultoria ambiental, que realiza projetos para capacitar pessoas e empresas a se tornarem mais sustentáveis.

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“Fica difícil deixar de comprar quando tudo o que é oferecido é feito de plástico. Se agirmos de forma consciente ambiental e socialmente, teremos força para estimular empresas a mudar seus atos, além de respeitarmos a legislação e contribuirmos para criar sociedades mais sustentáveis”, aponta Morates. “Tornar nossa sociedade mais sustentável é um trabalho de gerações. É um problema cultural, exige mais tempo pra mudar. Precisamos criar uma nova cultura, a cultura da sustentabilidade”, sugere Alvarenga. O dilema da nossa era não é o plástico, mas o fato de sermos escravos dele. Quando aprendermos a utilizá-lo corretamente, em produtos que podem ser reutilizados, não em embalagens e sacolas descartáveis, teremos um ecossistema equilibrado. “Em 1975, quando nasci, não existia sacola plástica. Quando eu morrer, elas não vão mais existir, pois passarão a ter um custo tão pesado para o meio ambiente que serão extintas novamente”, acredita Pecce.

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ENQUANTO A MEDICINA EVOLUI, OS INDÍGENAS SE ESFORÇAM PARA MANTER INTACTOS OS RITUAIS BASEADOS NO DEUS GUARANI 24

A CURA GUIADA POR NHANDERU TEXTO POR JENNIFER CASAGRANDE

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o início do século XXI, surgiu a nova era da medicina com a conclusão do projeto Genoma Humano. Nos últimos anos a ciência tem se aprofundado no estudo do DNA, impulsionada pela evolução da tecnologia de equipamentos para pesquisa, exames e diagnósticos. A farmacologia acompanha estes progressos com medicamentos mais eficazes e de menores efeitos colaterais. Mesmo com estes avanços, ainda existem culturas que preservam seus rituais de cura intocados por milênios e que são passados de geração

em geração. A cultura indígena é exemplo dessa realidade. A admiração e o respeito por esta preservação da tradição milenar de cura indígena fez com que a terapeuta holística Lúcia da Silveira se aproximasse da aldeia Nhundy em Viamão, região metropolitana de Porto Alegre, para tratar de um nódulo no braço. Apesar dos médicos indicarem uma cirurgia para retirá-lo, Lúcia preferiu não fazer, pois sonhou que uma índia passava uma semente em seu braço. Como a terapeuta já conhecia a cacique Talcira que, com 65 anos, nunca procurou medicamentos e hospitais para se tratar, resolveu pedir ajuda. Na aldeia, a cacique preparou um remédio com folhas para ser colocado sobre o braço de Lúcia, e acendeu o seu cachimbo para se conectar com Nhanderu (que significa ‘Deus’, em guarani). O intuito foi atrair energias boas para o tratamento. “Diminuiu bastante o caroço, eu confio que não foi só a erva, mas a reza, a energia toda que ela utilizou. E a minha fé nela como curadora”. Lúcia ainda precisa de mais algumas aplicações e, apesar de ela


de resolver muitos problemas, pois a fumaça nos conecta com os espíritos e com Deus”, revela Talcira. Ela esfumou todo o quarto e começou a rezar, então, obteve a conexão com Nhanderu. “Deus me contou que a avó dela havia falecido quando a mãe estava grávida da menina, e que ela queria ter levado a menina junto dela. Eu senti isso, então, falei severamente com o espírito dizendo-lhe para não vir mais atrás de sua netinha”, lembra a cacique.

conseguir fazer o seu próprio remédio, já que viu a planta utilizada e a forma como é feito o preparo, prefere não fazê-lo, pois honra e respeita as mãos de quem a curou. Além de receber na aldeia quem busca tratamento, como Lúcia, alguns índios já estão dispostos a sair do território para tratar o não-indígena que acredita na cura guarani. A cacique lembra que recebeu uma ligação de uma amiga que mora em Pelotas para ajudar uma menina de quatro anos que tinha dificuldade para dormir. “Me pediram para ajudar e eu disse: só o cachimbo pode curar. Como ela acredita e tem fé em Deus, eu fui e não cobrei nada, pois quis curá-la”, relata. Chegando em Pelotas, Talcira foi no quarto da menina e acendeu seu cachimbo, sempre presente nos rituais de cura. “Ele tem o poder

Talcira também explica que os tratamentos podem ser feitos de formas distintas, porque tem coisas que se curam com a reza, como o lado espiritual, e outras com remédios feitos na aldeia com plantas e chás. Alguns rituais de curas são realizados dentro da casa de reza, um lugar espiritualizado, como se fosse uma igreja. O professor da escola da aldeia Nhundy, Agostinho Verá Moreira, 65 anos, ressalta que esses rituais não podem ser contados para os não-indígenas. “O espírito não vai ajudar na cura se falarmos. Não é somente fazer o remédio, há um processo por trás. Nós conversamos com as plantas, temos respeito, pois somos guiados pela natureza”, explica ele.

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Agostinho conta que, certo dia, um índio de outra tribo foi até a aldeia para pedir ajuda. Ele estava com um tumor no osso de uma das pernas e o médico que estava fazendo o tratamento tinha sugerido uma amputação. Agostinho e seus companheiros ajudaram no atendimento. “A gente fez o remédio e curou ele”, relembra. Após o tratamento, o médico queria saber qual remédio que havia sido utilizado pelo índio, mas em respeito a Nhanderu, ele não contou. Outra forma de cura que é utilizada e preservada por muitos anos é o benzimento. O cacique Gildo Gomes da Silva, filho da cacique Talcira

e também professor da escola da aldeia Nhundy, contou que as crianças, por serem inocentes, têm mais força e conexão com os espíritos para curar os outros. Dessa forma, elas têm que aprender com as avós a benzer para manter a tradição e passar para as futuras gerações. Há também um instrumento musical, chamado maracá, similar a um chocalho, que é muito utilizado nos rituais. O índio produz o instrumento já pensando na cura e no bem -estar. “Quando tocado tem como função fazer com que as pessoas sintam paz e felicidade dentro do coração”, explica Gildo. FOTO: JENNIFER CASAGRANDE

SE EU QUERO FALAR COM DEUS, EU FUMO O CACHIMBO E ACONTECE. A FUMAÇA CURA E ESPANTA OS MAUS ESPÍRITOS QUE TE RODEIAM. TALCIRA GOMES

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Por utilizarem vários tipos de plantas e folhas para a fabricação de seus medicamentos, é necessário que os índios tenham um grande espaço para cultivá-las. Porém, infelizmente, as invasões que ocorreram e ainda ocorrem nas terras indígenas limitam a continuidade desta tradição, o que faz com que a preservação destes costumes exija cada vez mais esforço e persistência. Araci da Silva, filha da cacique Talcira e que vive também na Aldeia guarani Nhundy, começou a estudar enfermagem na UFRGS após seu filho ter uma infecção respiratória, doença que está entre as maiores causas de morte em crianças indígenas guaranis no Sul e Sudeste do Brasil, de acordo com a tese de doutorado do pesquisador Andrey Moreira Cardoso. Pela falta de plantas na aldeia, Araci precisou comprar a medicação na farmácia. Seu objetivo com a faculdade é erradicar essa doença mas, apesar de todo seu aprendizado, ainda considera a tradição indígena mais eficaz. Alguns remé-

dios são viciantes, acredita Araci, como os descongestionantes, em que o tratamento apenas remedia e não cura. “Aqui na aldeia só com um chá já conseguimos curar”, afirma. De acordo com a antropóloga e pesquisadora associada do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS Ana Letícia Meira Schweig, os indígenas convivem com uma certa desconfiança em relação aos não-indígenas, e esse medo se dá em função da própria história vivida, como a escravidão e as inúmeras terras tomadas. Outro receio que os indígenas têm são as histórias de “roubo” de conhecimentos, os quais são utilizados de maneira errônea. Por isso, não revelam as plantas que utilizam para o tratamento de certas doenças. Segundo Talcira, eles têm medo de que a indústria farmacêutica deturpe a sua tradição, e modifique seus conhecimentos e rituais. Mas, apesar disso, algumas aldeias estão dispostas a ajudar outros povos no tratamento de doenças e também mostrar algumas tradições para os mesmos, pois eles prezam viver em harmonia. “Se tu tá doente, vai lá que eu faço o chá e te curo, a gente não conta, a gente preserva. As pessoas que têm que nos procurar, e não a gente oferecer. Nunca vamos negar ajuda para quem precisa”, garante Talcira. 27


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rajada com roupas de sacerdotisa, Iyalorixá Gildásia, a Mãe Gilda, foi estampada na capa do jornal de grande repercussão para evangélicos Folha Universal. Importante representante do Candomblé no Brasil, Mãe Gilda sofreu difamação e agressões após ficar exposta indevidamente no jornal com o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Passados 18 anos após o acontecimento com Mãe Gilda, casos de intolerância religiosa são pautas frequentes nos noticiários. De janeiro a março de 2018, esse tipo de caso cresceu mais de 56% no estado do Rio de Janeiro em comparação ao primeiro trimestre de 2017. Em valores absolutos, o número subiu de 16 para 25 denúncias no período, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos. Mesmo assegurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Constituição Federal (1988), a liberdade religiosa não é respeitada no país. Os primeiros esforços para mudar essa realidade a partir do diálogo inter-religioso começaram no ano de 1999, em Resende (RJ). Proposta por religiões e organizações nacionais, foi fundada a United Religions Initiative (URI), conhecida como ONU das religiões. Em 2002, organizada pela URI, aconteceu a primeira Caminhada pela Diversidade Religiosa no Brasil, que reuniu mais de 300 representações de diferentes religiões na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Como importante representante do diálogo inter-religioso no país, o advogado Elianildo Nascimento fez parte do longo processo de implantação da diversidade religiosa no Ministério de Direitos Humanos no Brasil. “A partir de fins de 2003, após inúmeras denúncias de casos de intolerância religiosa, iniciaram-se ações que atendessem as demandas de violência no cenário religioso do país”, afirma Elianildo. Essas denúncias só puderam ser analisadas após a criação do Disque

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100, em 2003. A iniciativa é um serviço de utilidade pública do Ministério de Direitos Humanos que auxilia no combate à intolerância religiosa. Para o pernambucano mestre em Ciência da Religião Alexandre L’Omi L’Odó, o tema sobre diversidade religiosa só começou a ganhar força pois “os governos de esquerda inauguraram essa discussão no Brasil, que até então não era feita desta forma sistematizada pelos governo antecessores”. No ano de 2004, foi lançada uma cartilha com as principais ideias discutidas por diversos segmentos religiosos a respeito dos textos da


REPRESENTANTES RELIGIOSOS BUSCAM NO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO A MUDANÇA DESSE CENÁRIO NO BRASIL

A INTOLERÂNCIA NÃO TEM FIM? TEXTO POR PAULO NEMITZ JUNIOR

Constituição Federal relativos à liberdade de crença e o então Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Como forma de reconhecimento à Mãe Gilda, o Governo Federal instituiu, no ano de 2007, o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. E, durante essse tempo, o Governo Federal começou a realizar campanhas de conscientização no Brasil. Mas, apenas em 2009 o tema Diversidade Religiosa ganhou espaço dentro do Ministério de Direitos Humanos. Em 2011, foi instituído nos estados do Rio Grande do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Distrito Federal e Amazonas, pela então

ministra Maria do Rosário, o primeiro Comitê Nacional da Diversidade Religiosa (CNDR) — instância de atuação para aproximar o Estado e a sociedade.

Passos para a mudança Enquanto a passos curtos novas políticas surgem contra a intolerância religiosa, jovens do Rio Grande do Sul buscam mudanças pelas próprias mãos. Com o projeto “Juventudes, Direito e Fé: Mobilização Inter-religiosa no RS”, jovens de diversas crenças se reúnem para dialogar sobre assuntos de perspectivas sociais a partir do diálogo inter-religioso. A estudante porto-alegrense Esther Fagundes afirma que “os encontros despertam um novo olhar para as semelhanças e não para as diferenças. Assim, aprimoramos as nossas relações na sociedade”. A presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Estado do Rio Grande do Sul (CONIC-RS), Edoarda Scherer, faz parte da articulação deste encontro. Ela reforça a necessidade da revitalização das lideranças para que se mantenha um caminho com mudanças. “Para dar continuidade a uma história que conquistou espaço em seu tempo é indispensável que se busque novos rostos, uma vez que os discursos de ódio e de violência, contrários à convivência, tem ganhado um apoio preocupante”, ressalta Scherer.

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É impossível se referir a este tema sem voltar ao passado e entender que a formação do país, desde a sua colonização, teve a influência de pensamentos dominadores de determinadas religiões. Integrante do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Flávia Pinto enfatiza a importância de construir políticas públicas como ferramentas pedagógicas. “Precisamos enfrentar a hipocrisia social dessa dominação de um comportamento que se diz religioso, mas que discrimina, não reconhece a existência do outro com alteridade, ou seja, com o direito do outro ser o que ele é”, reitera Pinto. A Secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), Romi Márcia Bencke, participou de inúmeras campanhas e movimentos ecumêmicos no Brasil. Para ela, a intolerância religiosa apresenta variáveis, entre elas o racismo, a classe social e o sexismo, além das cul-

A PLURALIDADE RELIGIOSA É O QUE NOS CARACTERIZA COMO PAÍS. ROMI BENCKE

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turas autoritárias de alguns países. “Apesar da resistência de alguns setores das igrejas e da sociedade, não há mais como voltar atrás. A pluralidade religiosa é o que nos caracteriza como país e precisamos compreendê-la como riqueza”, afirma Bencke, que é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). A partir dos casos que aconteceram no início dos anos 2000, percebe-se que o Brasil precisa evoluir muito no combate à intolerância religiosa. São inúmeros os esforços de pessoas e entidades religiosas que se unem para tentar modificar realidades locais, mas que não se mantêm por muito tempo.


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DO CÁRCERE PARA A RUA DESCASO COM PENITENCIÁRIAS E LEIS FALHAS TORNARAM PORTO ALEGRE UMA DAS CIDADES MAIS PERIGOSAS DO MUNDO

TEXTO POR LEONARDO KALLER

E

m 1994 vimos a mais marcante fuga do Presídio Central aterrorizar a capital gaúcha. Por um grupo de dez presos, 27 funcionários são feitos reféns e uma série de exigências feitas. O desfecho foi notícia nacional: quatro amotinados e um policial civil morreram em uma perseguição que terminou no saguão do Hotel Plaza São Rafael no centro da capital gaúcha. Esse caso foi uma manifestação precoce do poder que as facções criminosas teriam no Estado. Hoje, Porto Alegre é a 39º cidade mais violenta do mundo. De acordo com a ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz, a taxa de homicídios da capital é de 40,96 para cada 100 mil habitantes. A cidade do Rio

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de Janeiro, por exemplo, registra 32 assassinatos para cada 100 mil habitantes e não consta na lista das 50 cidades mais violentas do mundo da organização mexicana. De 2002 (dados mais antigos disponíveis no site da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul) para 2017, a quantidade de homicídios no Estado cresceu 169,6%, de 1689 homicídios foi para 2865. A primeira, e já extinta, facção foi a Falange Gaúcha, criada em 1987 com inspiração no Comando Vermelho do Rio de Janeiro. Após um motim realizado dentro do Presídio Central, um grupo de presos firma um pacto para financiar futuras fugas da capital e criar um caixa comum para a compra de vantagens para melhorar a vida dos apenados, além de financiar eventuais ações criminosas. Após vários episódios de fugas e rebeliões entre 1994 e 1995, o então governador do Estado do Rio Grande do Sul, Antônio Britto, anuncia uma medida drástica e marcante para a consolidação do espaço das facções no estado, a manutenção da cadeia pela Brigada Militar. O coronel da Brigada Militar Paulo Ricardo Quadros Remião, na época Major Quadros, foi designado como Chefe de Segurança do Presídio Central logo após a sanção do governador. “Era um horror, os presos estavam em situação desumana cobertos de sujeira e andavam livremente até o portão que separava o setor administrativo das celas”, conta o coronel ao relembrar o seu primei-


ro dia dentro da CPPA. “A Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários) havia perdido controle do Central e até hoje não recuperou”. A primeira medida tomada pela nova administração foi a realocação dos presos de acordo com suas afinidades, o coronel admite que foi um fator contribuinte para a organização e consolidação das facções pelo Estado. A partir da nova disposição das galerias do presídio, as gangues de bairros e cidades passam a se articular em facções e os líderes cuidam de seu setor dentro da penitenciária ao mesmo tempo que cuidam do tráfico em sua comunidade.

Poder paralelo? De acordo com o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional, há uma taxa de ocupação de 156,5% nas penitenciárias gaúchas, ou seja, estão superlotadas. O cenário é propício para o fortalecimento das facções organizadas pelos próprios detentos de acordo com a mestranda em Ciências Sociais Marcelli Cipriani. “Mesmo que o Central esteja superlotado, com 20 presos em uma cela, os líderes dos pavilhões pedem mais, mais, mais. Quanto mais gente lá dentro, maior o recurso humano destas facções e mais forte fica o tráfico”. O sucateamento do sistema penitenciário é o grande problema de todos os governos brasileiros desde a década de 1980 para Ubiratan Antunes Sanderson, presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Rio Grande do Sul e policial federal há 22 anos. “Hoje colhemos o fruto de 30 anos de descaso do sistema prisional do país. Temos em Porto Alegre o Central, que é a pior casa prisional do país. Se não dá as condições mínimas, eles se articulam para se defender. Investir no sistema prisional é um dever.” Cipriani afirma que o sistema penitenciário gaúcho é dependente das facções para a manutenção

QUANTO MAIS GENTE LÁ DENTRO, MAIOR O RECURSO HUMANO DESTAS FACÇÕES E MAIS FORTE FICA O TRÁFICO. MARCELLI CIPRIANI

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dos presídios. “Sem os líderes das galerias e as famílias de detentos provendo o básico para os presos voltaríamos aos motins e rebeliões da década de 1990”. Marcelli Cipriani afirma que o diálogo constante entre o Estado e os líderes de facções as tornam em um braço do Estado. “Não tem nada de paralelo no crime aqui no Rio Grande do Sul. O Estado sabe de sua existência e depende disso para que a situação carcerária mantenha-se sustentável. As facções mandam nos presídios com aval do estado”. Em seu artigo Um estudo comparativo entre facções: o cenário de Porto Alegre e o de São Paulo, Cipriani traça um paralelo entre as facções locais e o Primeiro Comando da Capital de São Paulo; A facção que controla o crime paulista surgiu com a premissa de guerra contra o Estado em defesa de condições humanas nos presídios e mantém o mesmo discurso, enquanto no RS o posicionamento mudou e hoje há uma relação interdependente para não ser instaurado o caos novamente.

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Legislação “Art. 1º — Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas — Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes”. Desde 2006 está em vigor a lei que reestruturou a política de combate ao tráfico no Brasil. Surgiu com a premissa de reinserir o usuário na sociedade ao invés de puni-lo e de pena mais severa a quem praticar o tráfico de entorpecentes. No entanto, é considerada falha por não ter distinção entre o que seria porte para uso pessoal e para tráfico. Para a Plataforma Brasileira de Política de Drogas — uma rede de 46 organizações não governamentais que visam a debater as políticas de drogas vigentes —, em sua publicação Guia Sobre Drogas para Jornalistas, a lei é responsável pelo encarceramento em massa. “A Lei é uma das principais responsáveis pela explosão da população carcerária brasileira verificada na década seguinte a sua criação porque usuários são condenados como traficantes, o que dificulta medidas alternativas à prisão”. Em 2006, ano de criação da lei, a população carcerária brasileira era de 401,2 mil prisioneiros com uma taxa de aprisionamento de 214,8 pessoas para


cada 100 mil habitantes. Em uma década, os índices cresceram, respectivamente, 181,1% e 164,2%. Ou seja, hoje a população carcerária é de 726,7 mil apenados e a taxa de aprisionamento é de 352,6 pessoas para cada 100 mil habitantes. Contudo, o policial federal Ubiratan Sanderson em outro entendimento sobre a lei. “Em 2006 foi aprovada a lei 11.343/06 que despenalizou o usuário de entorpecente. Criou-se um falso sentimento de liberação de drogas”. Marcelli Cipriani discorda do policial federal, e acredita que, ao mesmo tempo que os presídios mantiveram-se estagnados, a população carcerária só aumenta devido aos que são presos com drogas para uso pessoal. “Temos uma lei que permite que a Brigada possa prender qualquer um que porte quantidades irrisórias de drogas”. Nenhum artigo da lei ressalta a diferença entre a posse de drogas para tráfico ou para uso pessoal. A questão também foi colocada em debate no STF pelo ministro Gilmar Mendes em 2015 por considerar o artigo 28, que trata

sobre as medidas aplicáveis aos que forem autuados por posse de drogas para consumo pessoal, inconstitucional por entrar em conflito com o artigo 5º, inciso X da Constituição Federal “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Em seu voto, o ministro afirmou que por não ser prejudicial a ninguém senão o usuário, a penalização da posse para uso pessoal seria inconstitucional. O placar estava 3x0 até o pedido de vista do ministro Teori Zavascki, que faleceu no início de 2017, com prazo indeterminado de suspensão da questão. Após 24 anos da tentativa de fuga do central, facções surgiram e desapareceram. E o (des)caso em torno da situação das casas prisionais e as facções criminosas está como a pauta do STF, sem solução por prazo indeterminado.

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O ESTÁDIO É DELAS

MULHERES LUTAM CONTRA O PRECONCEITO NOS ESTÁDIOS E GANHAM ESPAÇO COM PROFISSIONALISMO E PAIXÃO

TEXTO POR ALEX TORREALBA

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preconceito contra as mulheres é um problema que, para o sociólogo Maurício Murad, tem grande manifestação no futebol. “Uma expressão do preconceito e da exclusão social de gênero, que está disseminada nas instituições brasileiras”, disse. No entanto, vem sendo conquistado um espaço em meio a uma sociedade machista e preconceituosa. Os estádios de futebol, que no século passado eram espaços praticamente exclusivos para homens, hoje recebem torcedoras e profissionais apaixonadas pelo que fazem. Os clubes têm cada vez mais mulheres em seu quadro de torcedores. No caso do Sport Clube Internacional, o número de sócias, no início dos anos 2000, correspondia a 2% do total. Em 2018, esse número aumentou e hoje elas representam cerca de 25% do quadro de sócios da equipe gaúcha, com 23.390 sócias

entre os mais de 100 mil membros. Dentro dos gramados, a situação também é positiva, pois, enquanto não se viam jornalistas mulheres trabalhando em transmissões de futebol no início do milênio, hoje temos profissionais de grandes veículos como repórteres, comentaristas e até mesmo narradora. A Copa do Mundo de 2018 da Rússia proporcionou um fato histórico para as transmissões de futebol no Brasil. Pela primeira vez, uma mulher narrou uma partida da competição. A jornalista mineira Isabelly Moraes, 20 anos, foi escolhida pelo canal Fox Sports, por meio do concurso Narra Quem Sabe, para transmitir a partida de abertura entre Rússia e Arábia Saudita. Murad atribui o crescimento da consciência da igualdade entre os gêneros ao ativismo feminino segundo o qual as mulheres devem participar de forma ampla, geral e irrestrita de todos os setores da vida social, do futebol inclusive. Vida de torcedora A cada passo dado em direção às arquibancadas do estádio Beira-Rio, o barulho da torcida ia aumentando, e o coração, acelerando. Ao ver o mar vermelho alucinado antes da partida começar, a paixão foi imediata para Michelle Schnell, hoje com 35 anos. A lembrança que ficou de sua primeira experiência em um estádio de futebol, quando tinha 12 anos de ida-


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

de, foi a certeza de que tinha encontrado uma forma de se divertir. A primeira vez em um estádio ocorreu após certo tempo assistindo do sofá ao lado do pai. “Era uma época bastante complicada (1994), porque o Beira-Rio era um ambiente muito hostil para uma menina. Isso eu me lembro muito bem”. Schnell revelou que, na época, tinha que vestir calça de moletom larga, camiseta grande, moletom amarrado na cintura — para tapar a bunda —, cabelo para dentro do boné, além da escolta de pai, irmão e amigos. De acordo com ela, as formas de assédio vão das mais inofensivas como ficar ouvindo gracinha ou que mulher não entende de futebol, até mais graves como passar a mão no corpo. A proximidade maior com o pai, apaixonado por futebol, fez com que ela criasse gosto pelo esporte. Aos nove anos, mesmo sem ter ganho bola ou uniforme de

algum time, ela decidiu se interessar pelo esporte e, principalmente, pelo Sport Club Internacional. Ver o pai nervoso durante os jogos começou a intrigar a criança. “Ele não dormia, e todas as sensações de alegria, tristeza, raiva, enfim, um mundo de emoções, me fizeram perceber o que ele sentia”, afirma. Mesmo com as dificuldades enfrentadas, ela cresceu indo ao estádio localizado na beira do Guaíba. Atualmente, Schnell, que é médica veterinária, vai a todas as partidas e decide a data de seus plantões na clínica particular na qual trabalha com o site do Internacional aberto. Para a torcedora, ir ao estádio não é apenas um hobby. “Caso eu fosse proibida de frequentar o Beira-Rio, não pudesse acompanhar o Inter, eu compararia com a dor de terminar um relacionamento”, afirma. O preconceito e o machismo seguem existindo e ela já vivenciou diversos casos.

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“Assédio sempre acontece, todas as vezes”, disse. “A gente vai para o estádio e não quer ficar ouvindo isso, vamos com o mesmo objetivo do homem, que é curtir o jogo. Queremos conversar com os amigos sobre futebol, curtir o momento e não ficar ouvindo palhaçada”. Hoje a luta de Schnell é para que sua filha Alice, 5 anos, possa ir ao estádio com segurança sem ter que passar por casos de assédio. Para a torcedora, levar a filha junto em um jogo é seguro, ainda mais por estar sempre com grupo de amigos durante as partidas. Antigamente, mesmo com a presença do pai e do irmão, ela acabava ouvindo palavras desagradáveis e xingamentos por ser mulher. Atualmente, Schnell enxerga o fato de estar na companhia de amigos como uma inibição ao comportamento mais agressivo de outros homens. Porém, no momento em que se distancia das companhias para ir ao banheiro, ou no caminho do estádio até o esta-

COMPETÊNCIA NÃO É ALGO QUE A GENTE POSSA MEDIR POR SER HOMEM OU MULHER. KELLY COSTA

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cionamento, sempre passa por algum tipo de constrangimento. A torcedora lamenta nunca ter visto providências serem tomadas por parte de policiais, seguranças ou funcionários do estádio nesses casos. “A dificuldade do estádio está na maioria ser homem. É complicado ter voz contra eles quando se juntam em um grupo grande”, afirma Michelle. “Você não pode deixar de fazer o que gosta, o que é interessante para você, por causa da intimidação de outros”. Vida de repórter Três, dois, um, gravando. Com o microfone em punho, a repórter Kelly Costa inicia a passagem durante o intervalo da partida entre São José e Brasil de Pelotas, no estádio Passo D’Areia, em Porto Alegre. Era 25 de março de 2018. Ao fundo, na arquibancada, um torcedor começa a gritar e xingar a profissional. “Foi bem constrangedor. É um momento no qual tu fica paralisada, sua frio e pensa: ‘Meu Deus, é sério que alguém tá gritando tudo isso e me ofendendo dessa maneira? Está diminuindo meu trabalho ou impedindo o meu direito de trabalhar?”, indaga Costa. A jovem jornalista de 27 anos, natural de Porto Alegre, entrou para o jornalismo com o objetivo de trabalhar com política e economia, mas encontrou na área esportiva o futuro da carreira. “Costumo dizer que fui conduzida ao esporte”, diz Costa, que começou a atuar na área para substituir uma apresentadora que estava de férias na TV Pampa e acabou permanecendo no cargo por dois anos como apresentadora e repórter. Ao mudar para a RBS TV, foi contratada como garota do tempo. Porém, a experiência na área esportiva resultou em um convite para a equipe de esportes da emissora.


O gosto pelos estádios sempre existiu, mesmo antes de ser jornalista. Geralmente ia aos jogos do seu time do coração com o pai e o irmão, e descreve a sensação de estar lá como “incrível”. Segundo Costa, o preconceito era algo frequente nessa época, apesar de não lembrar de nenhum caso específico por ser muito jovem. Já durante a carreira, é mais fácil recordar-se de situações desagradáveis. A repórter conta o episódio com o ex-treinador do Internacional Guto Ferreira. Em um duelo contra a Luverdense pela segunda divisão do Campeonato Brasileiro de 2017, o então técnico colorado teve uma atitude infeliz, apesar de ter ganho a partida por 1 a 0. Questionado por Kelly Costa sobre a qualidade técnica do time comandado por ele, e que não vinha fazendo gols até então, Guto devolveu a pergunta desqualificando a

repórter ao comentar que “talvez ela nunca tenha jogado futebol por ser mulher”. A resposta machista do técnico repercutiu imediatamente nas redes sociais e causou muitas críticas a ele. A jornalista relata sensação semelhante àquela quando foi ofendida pelo torcedor no jogo do Zequinha. “Nesse momento tu te sente meio paralisada e chocada em saber como que publicamente (em coletiva de imprensa) uma pessoa consegue ter um ato machista e questionar minha capacidade por, talvez, eu não ter jogado futebol. Quantos colegas homens talvez não tenham jogado também, e ele estava respondendo normalmente? E quantos talvez joguem e não entendam o que ele está respondendo? Competência não é algo que a gente possa medir por ser homem ou mulher”, afirma a jornalista. Costa vê o machismo diariamente em estádios, na rua fazendo reportagens e até mesmo nas redações. “No meio do futebol isso é comum e recorrente”, disse. Como forma de trazer à tona ainda mais esses casos de preconceito e discutir sobre o assunto, jornalistas mulheres de todo o Brasil aderiram à campanha #DeixaElaTrabalhar. As profissionais pedem respeito pela sua capacidade profissional, competência, formação, e ao direito de ser jornalista e trabalhar com esporte. “Foi um grande passo. É bem importante quando a gente pensa em jornalistas mulheres e na categoria”, diz Costa. Para ela, muitos homens começaram a refletir sobre suas atitudes com a campanha. “Não é porque você está em maioria em um estádio de futebol que você pode fazer o que quer”.

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20 ANOS, 5 COPAS DO MUNDO E UMA REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA NO FUTEBOL

m 12 de julho de 1998, os olhos do mundo estavam voltados à final da Copa do Mundo da França, onde, pontualmente às 21h no horário local, o camisa 9 francês Guivarc’h rolou a Tricolore iniciando a partida. Embora não seja possível afirmar que Brasil e França estarão na final da Copa do Mundo da Rússia, as cenas que antecederam a partida devem ser muito parecidas com as que veremos em 15 de julho de 2018, na final. Mas isso não significa que o futebol não tenha mudado.

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Nesses 20 anos que separam as duas Copas em questão o futebol passou por uma revolução tecnológica, e há quem defenda que foram as maiores mudanças pelas quais o esporte já passou. Um exemplo dessa transformação causada pela tecnologia

está justamente na maior coadjuvante do torneio. Em 1998, a bola oficial da Copa foi a Tricolore, assim chamada porque carregava em sua superfície desenhos com as três cores do país-sede, e tornou-se a primeira bola multicolorida utilizada em Copas, algo que se repetiria pelas cinco seguintes. As inovações da Tricolore foram o uso de uma espuma sintética com micro balões de gás, e a impressão under glass, que deixavam a bola e seu desenho mais duráveis. À parte disso, ela apenas trazia aperfeiçoamentos de bolas utilizadas anteriormente; seguia o padrão de 32 painéis, implementado na Copa de 1970; era produzida em

DA FRANÇA À RÚSSIA TEXTO POR EDSON HAETINGER


material 100% sintético, implementado na Copa de 1986; e era à prova d’água, algo que já se verificava desde a Copa de 1990. Se em 1998 a bola não trouxe inovações significativas, em 2018 ela chega causando uma revolução. A bola da Copa da Rússia é a Telstar 18, e para se ter ideia da ruptura de padrão que ela apresenta é preciso retornar até sua irmã homônima da década de 1970. A Copa do Mundo de 70, no México, foi a primeira Copa a ser transmitida ao vivo pela televisão, o que fez com que detalhes ganhassem importância diferenciada em relação ao rádio. A bola foi uma delas. Batizada naquele mundial de Telstar (de Television Star), ou seja, a “estrela de televisão” em tradução literal, a bola foi a primeira a adotar o padrão de 32 painéis em couro, sendo 20 hexágonos brancos e 12 pentágonos pretos, costurados a mão – o que a transformava na mais perfeitamente esférica já utilizada em Copas. Outro aspecto foi a escolha das cores, pois a bola branca e preta seria vista com maior facilidade por quem acompanhava o torneio pela telinha. Em 2018, a Telstar renasce como Telstar 18, e quer ser mais do que uma “estrela de televisão” repaginada. A bola utiliza pela primeira vez o chip NFC (Near Field Communication, comunicação por proximidade de campo, em tradução livre). O NFC é uma tecnologia sem fio que estabelece automaticamente comunicação entre dois dispositivos que estejam suficientemente próximos, e embora não seja tão nova, visto que foi desenvolvida em 2004, somente agora começou a se popularizar. A partir desse chip, a FIFA, entidade organizadora do torneio, irá dispor de diversos dados reais da bola, como variações de trajetória, pressão e velocidade. Importante deixar claro que esses dados serão de acesso exclusivo da FIFA, que não explicou como irá coletá-los. Assim como a Telstar da déca-

O VAR NÃO VAI ACABAR COM OS ERROS DE ARBITRAGEM; ELE SÓ VAI EQUILIBRAR A COMPETIÇÃO DO ARBITRO COM A TELEVISÃO. RENATO MARSIGLIA ELOÁ DA SILVA

da de 1970, a Telstar 18 inova no padrão de painéis, sendo construída com base em seis painéis plásticos encaixados sem costura, para que, segundo a fabricante, a bola tenha uma trajetória mais constante. Além disso, ela retorna às origens com as cores preto e branco, privilegiando a transmissão dos jogos, que avançou significativamente nesses 20 anos. Num exercício de memória — carregado de nostalgia — tente lembrar-se das tecnologias disponíveis na época da Copa de 1998. Na música, o Discman já tinha desbancado o Walkman, e começava a ter seu reinado ameaçado pelo

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MP3Player. No cinema, os DVDs já existiam, mas quem dominava o mercado eram os VHS — quem não se lembra de ver O Rei Leão na fita verde? A internet ainda era discada, e o Google nem existia, pois só foi criado em setembro daquele ano. O grande lançamento na telefonia móvel, que ainda era artigo de luxo, foi o Nokia 5120 com sua tela “grande” de 84 x 48 pixels de resolução. E para assistir a uma partida de futebol era preciso estar diante de uma televisão. Vinte anos depois, o MP3Player, o DVD e seus antecessores se tornaram artigos de museu por conta dos serviços de streaming. Hoje, quase todos smartphones com acesso a internet reúnem em si todos esses aparelhos, o Google, a televisão e milhares de outros aplicativos. Partindo disso, não é difícil imaginar a distância entre a transmissão da Copa de 1998 e de 2018.

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Na Copa de 2014, os jogos das semifinais, terceiro lugar e final tiveram transmissão com suporte 4k (ultra hd). Entretanto, na Copa da Rússia, as transmissões das 64 partidas usarão essa tecnologia, e a revolução nas transmissões fica novamente para a fase semifinal, terceiro lugar e final do torneio. Pela primeira vez na história essas partidas serão filmadas em câmeras 360º. Para a transmissão ao vivo não haverá diferença, contudo, a FIFA disponibilizará posteriormente a íntegra dessas partidas em serviços online de realidade virtual, o que levará a experiência de acompanhar uma partida de futebol a outro nível. Além do uso de realidade virtual, uma revolução vivida na Copa deste ano e impensável em 1998 é a possibilidade de assistir às partidas em qualquer lugar pelo smartphone.


O fim do juiz ladrão — ou não Se você já frequentou um estádio de futebol em pelo menos uma oportunidade, pôde ter noção da pressão que o árbitro sofre em partidas “normais”. Agora tente imaginar a pressão que sofre o árbitro de uma partida de Copa do Mundo! Pensando em minimizar essa pressão que sofrem os árbitros, a FIFA vem pouco a pouco inserindo a tecnologia no esporte. Desde a Copa de 1998, diversos elementos tecnológicos foram incorporados ao jogo, como o sistema de comunicação entre árbitros, amplamente utilizado desde a Copa de 2006, e a tecnologia da linha o gol, implementada pela primeira vez na Copa do Mundo de 2014, por exemplo. Enquanto a primeira é um sistema simples de comunicação entre o árbitro e seus auxiliares, estilo walkie-talkie, a segunda é a implementação de um conjunto de câmeras focadas na goleira com integração a um software que é capaz de transformar as imagens em vetores, indicar em tempo real se a bola cruzou ou não a goleira e avisar o árbitro por meio de mensagem no seu relógio. Ainda assim, nenhuma alteração tecnológica foi tão drástica quanto será a inserção do Árbitro Auxiliar de Vídeo (VAR, na sigla em inglês), utilizado pela primeira vez em uma Copa do Mundo neste ano, na Rússia. O VAR é um sistema composto por 33 câmeras que auxiliam o árbitro na tomada de decisão em algumas situações. As imagens do VAR são analisadas por uma equipe formada por um

árbitro de vídeo e três auxiliares, todos com as mesmas credenciais dos árbitros de campo. Sempre que houver dúvida em situações em que é permitida a revisão, o árbitro de campo se comunica com os auxiliares de vídeo, e se julgar necessário, interrompe a partida e revê o lance em um monitor para tomar sua decisão. A escolha por inserir o VAR no futebol levantou dúvidas por parte dos torcedores quanto ao fim dos erros de arbitragem, mas para Renato Marsiglia, ex-árbitro de futebol e atualmente comentarista de arbitragem na Rede Globo, o VAR não chega para substituir o árbitro de campo, tampouco para acabar com os erros, pois embora os VARs possam indicar irregularidades para o juiz principal, cabe a este a decisão final; para Marsiglia o VAR chega apenas para equilibrar a “competição” com a televisão. Como visto em algumas partidas desta Copa, a polêmica em torno da arbitragem parece longe do fim, com ou sem VAR. Entretanto, o sistema se mostrou eficiente, sendo decisivo no resultado de jogos importantes, e, embora não acabe com a polêmica, ao menos acrescenta justiça ao jogo.

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MODA CONSCIENTE PARA QUEM? TEXTO POR FABIANA MARSIGLIA

O QUE É O SLOW FASHION E COMO ELE TEM GANHADO ESPAÇO NO MUNDO DA MODA A PARTIR DA VIRADA DO MILÊNIO

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etenta milhões de árvores derrubadas por ano. Vinte por cento da contaminação das águas. Duzentos anos para se decompor. Aproximadamente 30 toneladas diárias de resíduos em aterros sanitários em São Paulo. Mais de 2 bilhões de toneladas de resíduos produzidas por ano no mundo todo. Cerca de três por cento da produção global de emissões de CO2. A indústria da moda é uma das que mais polui o ambiente. Além disso, causa problemas sociais, como expor milhares de pessoas, inclusive crianças, as condições precárias de trabalho e jornadas excessivas que se aproximam a regimes de escravidão. As 1.138 pessoas mortas, além das 2.500 feridas, no desabamento de um complexo fabril foi o que fez com que designers e ativistas da moda sustentável dissessem “chega!”.

No dia 24 de abril de 2013, o Rana Plaza desabou em Dhaka, Bangladesh. O prédio abrigava confecções de roupas de importantes marcas mundiais, como a Benetton e a Walmart, e colocava em risco a vida de seus funcionários, com péssimas condições de trabalho. A tragédia foi o ponto de partida para o Fashion Revolution, criado pelas britânicas Carry Somers e Orsola de Castro. Segundo Madeleine Muller, stylist formada em Direito e pós-graduada em Moda, Consumo e Comunicação, o movimento luta por mais transparência na cadeia de moda e milita em prol da responsabilidade das empresas em relação aos trabalhadores dessa indústria. A “Revolução da Moda” surgiu em Londres e se espalhou para o mundo. Atualmente, o Fashion Revolution é um manifesto global, presente em mais de 92 países. De acordo com a representante local do movimento, Cacá Camargo, o primeiro evento presencial oficial em Porto Alegre aconteceu em 2016 e contou com o apoio de ativistas, além de instituições e organizações do mundo da moda. Madeleine Muller acredita que o movimento estimulou as pessoas a prestar mais atenção a questões envolvendo a sustentabilidade e o consumo consciente.


Fast vs. slow Fast fashion é a moda rápida, que prioriza a produção em massa e, com isso, a massificação dos estilos. Natália Guasso, criadora do Brechó de Desapegos, explica que, por essa lógica, os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente. “Uma moda que perdemos a noção de como é fabricada, quem faz, de onde vem”, complementa. O fast fashion não se preocupa com os impactos ambientais, nem os considera no custo dos produtos. Com a grande escala a preços baixos, muitas vezes, não remunera de modo justo os trabalhadores envolvidos na cadeia. Já o slow fashion é um movimento que surgiu em contraponto ao modelo imediatista da era pós-moderna. Elisa Ashton, graduada em Design, Mestre em Qualidade Ambiental e Doutora em Design e Tecnologia, conta que ele foi inspirado

pelo movimento slow food, criado na Itália por volta dos anos 1980 e começou a tomar força a partir dos anos 2000. Segundo Cacá Camargo, essa mentalidade lenta busca a diversidade, a autoconsciência e a valorização local. Comprar menos e melhor. Também está atenta aos impactos, incorporando os custos sociais e ecológicos ao preço final do produto. Elisa complementa que a moda slow defende uma maior aproximação entre produtor e consumidor e a desmitificação da moda como uma imposição. “Cada um é livre para se vestir como se sente bem”, ela diz.

O sustentável inacessível Atualmente, muitas marcas estão se preocupando com a origem e o processo de produção de suas roupas. Contudo, essa moda ética e sustentável tem um lado negativo: o preço. Um exemplo é a Osklen, que pratica e incentiva a moda consciente, mas cujas roupas têm um preço inacessível para a maior parte da população. Uma blusa básica de algodão chega a custar 300 reais. Anerose Perini, designer pós graduada em Moda, Criatividade e Inovação, explica que o fast fashion, utilizado por marcas mais baratas, tem custo menor porque usa tecidos de menor qualidade, produtos químicos para o

NÓS PRECISAMOS VESTIR AS CAUSAS NAS QUAIS ACREDITAMOS, LITERALMENTE. MADELEINE MULLER

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desenvolvimento das cores e estampas e peças importadas de locais sem leis trabalhistas adequadas. O slow fashion, por utilizar matéria-prima certificada e uma produção local em escala menor, acaba sendo mais caro para o consumidor. Mas, de acordo com Elisa Ashton, o custo deve ser avaliado em relação a todo ciclo de vida do produto. “Se a blusa mais barata do fast fashion for descartada e substituída a cada estação, seja por falta de durabilidade ou pela obsolescência do modelo, e a blusa mais cara e durável do slow fashion puder ser reutilizada ao longo desse período, o valor mais alto pago pela blusa do modelo slow fashion compensa”, ela acredita. Cacá Camargo diz que comprar em brechós é a maneira mais acessível de praticar o slow fashion. Segundo ela, o aumento do ciclo de vida dos produtos também é um modo de ser sustentável. Natália Guasso concorda. “Hoje em dia as pessoas acham que peças novas têm mais relevância, sem se dar conta que estas peças devem ser usadas até o seu fim”. Natália defende que o brechó é importante para entender que uma peça de roupa sempre será nova para outra pessoa. Segundo ela, a moda é muito mais profunda que o seu uso em si. A moda é história, é identidade. O brechó resgata isso e pode ser atual sempre. Segundo Madeleine Muller, muitas pessoas consomem produtos de moda a preços baixos sem se dar conta de que eles escondem um alto custo social e que alguém está “pagando a conta” por elas. Natália Guasso complementa que o “bombardeio” que recebemos diariamente nos faz consumir coisas que nem precisamos. “Se fomentarmos comunidades para criar suas próprias roupas, usarmos materiais que descartamos, ou ainda, produzirmos em cima

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de peças já prontas, podemos incluir e democratizar a moda slow”, acredita. De acordo com ela, se a moda slow se dissemina, o preço também se altera, pois teremos mais fornecedores, consumidores e lojas interessadas em vender esses produtos e, consequentemente, os preços irão diminuir. Uma dica para verificar a responsabilidade trabalhista de grandes lojas é o aplicativo Moda Livre, que tem como objetivo denunciar o trabalho escravo no mundo da moda. Além disso, podemos verificar o CNPJ da empresa, que aparece na etiqueta da roupa, para saber a procedência da mercadoria. Madeleine Muller conta que existem certificações variadas que informam sobre impactos ambientais e sociais e demonstram se a marca está atendendo aos requisitos técnicos ou éticos dentro da sua gestão. Um exemplo de selo é o Fair Trade Brasil, que certifica a remuneração dos trabalhadores rurais no plantio e na colheita. Outros exemplo é a GOTS, que certifica, internacio-

nalmente, o uso do algodão orgânico. Em relação à responsabilidade socioambiental, existe o Sistema B, que reconhece as empresas engajadas em solucionar problemas dessa natureza, valorizando o desenvolvimento sustentável, enquanto geram lucros financeiros e sociais. “A princípio, as empresas que recebem esses selos costumam comunicá-los nos rótulos e etiquetas sempre que possível. Se não houver, o consumidor deve questionar sobre as certificações, para checar quais marcas são sustentáveis mesmo, sem que isso seja mero discurso”. “Quando existe a educação e comunicação adequada para o consumo consciente, fica mais fácil passar essas informações para outras classes sociais”, diz Anerose Perini. Segundo ela, com o auxílio da mídia o slow fashion tem mais possibilidade de crescimento. Elisa Ashton aponta que grande parte das novas tendências, tanto as de produto quanto as comportamentais, atingem primeiro as classes com maior acesso à informação e maior poder aquisitivo. Mas, segundo ela, é perceptível, ao longo da história da moda, o avanço dessas tendências – muitas vezes com adaptações à realidade cultural de outras classes – em camadas sociais menos privilegiadas. Madeleine Muller defende que é importante fazer com que as pessoas entendam o poder da compra como um ato político. “Nós precisamos vestir as causas nas quais acreditamos, literalmente”.

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TEXTO POR FREDERICO ENGEL

A NONA ARTE GAÚCHA

rte antiga, popularizada pelo superheróis no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, as histórias em quadrinhos (HQs) continuam como manifestação cultural pop e geek até hoje. Atualmente, a produção passa por uma adaptação: são mais produtores na cena regional e municipal, escrevendo histórias que buscam inovar no formato da narrativa e com temáticas distintas.

Houve uma mudança de cenário nos últimos 18 anos. As HQs cresceram no cenário nacional, regional e municipal, especialmente no Rio Grande do Sul. O que não faltam são eventos para que o público tenha um contato próximo com os quadrinistas que apreciam, entre eles: Anime Beach em Imbé; Brique Nerd, que já ocorreu em Novo Hamburgo, Igrejinha e outras cidades do Vale do Rio dos Sinos e Paranhana; Pampa Comics em Alegrete; Anime Frontier em Uruguaiana; Capão Geek Fest em Capão da Canoa; Anime Conect em Cachoeirinha; Noia Geek em Novo Hamburgo. O organizador de uma dessas reuniões é Christian Astigarraga Ordoque, 45 anos, responsável pela realização do Feirão das HQs, que, bimestralmente, promove o encontro entre quadrinistas e ilustradores com os consumidores. O Feirão nasceu na Cidade Baixa, no Café Cartum, em março de 2016, apenas com uma mesa que reunia antiguidades e raridades da nona arte. Para a segunda edição, que continuou em Porto Alegre e no mesmo local, o evento ganha mais uma mesa para autores e artistas independentes e, no terceiro encontro, já muda de local, com seis mesas no Disco Bar. Após 28 edições e mais quatro mesas, o Feirão se muda novamente, agora para o Shopping Lindóia, desde março deste ano. “Colecionadores podem trocar ou vender raridades, antiguidades de seu acervo. Nosso objetivo é criar uma proximidade entre os 48

O RIO GRANDE DO SUL TEM UMA DAS PRINCIPAIS CENAS DO ESTADO EM HQS, MAS O MERCADO NÃO ACOMPANHA A PRODUÇÃO


produtores e público e servir como porta de entrada para artistas que ainda não haviam expostos seus produtos”, conta Ordoque. Participante do Feirão das HQs como artista expositora, Camila de Andrade Rosa, que atende pelo nome artístico de Camila Raposa, busca criar uma relação com o público sempre que possível. Professora no Raposa Ateliê Criativo, a também ilustradora e desenhista de 30 anos prioriza e defende que o produtor deve saber se vender quando comparece aos eventos. “Muitos acabam não interagindo, não percebendo a importância de que o consumidor tem para o seu trabalho. O contato é fundamental, é uma forma de fortalecer tanto a cena quanto o mercado das histórias em quadrinhos”, afirma. Ordoque compartilha da visão de Raposa sobre o comportamento de quadrinistas em eventos. Ambos citam que a timidez atrapalha que o público tenha contato com o produtor. Ordoque acrescenta que alguns ignoram os potenciais consumidores, ficando apenas mexendo em seus celulares. “Parece que alguns tem um certo grau de desdém ou até mesmo misantropia, como se a arte fosse ser vendida

sozinha. Também percebo um pudor, ranço com relação ao dinheiro”, reforça. Diversidade de estilos A variedade de eventos possibilita a variedade de formatos e temas. Um exemplo é a própria Camila Raposa: ela opta pelo estilo de desenho mangá — olhos grandes e corpos esguios —, com a temática das histórias baseada no Horror Cute — um terror que mistura elementos sensíveis e delicados. Já Nathalia Rodrigues trabalha com um estilo diferente de quadrinhos, focado no manhwa: corpos mais realistas, mas rostos e olhos cartunizados e sem regra entre desenhos coloridos ou em preto e branco, além de orientação de leitura da esquerda para a direita. Os quadrinhos ainda são apenas um hobby para ela, que busca expandir seu portfólio e dedicar mais tempo à produção das histórias. Estudante de produção multimídia no Senac, a jovem de 21 anos é uma entusiasta de histórias. Na infância, passava horas assistindo a desenhos animados e filmes na televisão, sendo que, no final do ensino fundamental, passou a acompanhar animes, mas foi nos mangás que descobriu a amplitude do gênero de HQs. “Passei a ter contato com webcomics, graphic novels, histórias em quadrinhos clássicas e comecei a devorar tudo”, conta a estudante.

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Assim como Raposa e Ordoque, a estudante percebe o aumento na cena regional e municipal. “O problema é que o consumo ocorre apenas no nicho dos nerds e olha lá”, afirma. A mesma percepção é compartilhada pelo professor e quadrinista autônomo José Roberto Weingartner Junior, 38 anos. Ele observa que não são apenas as histórias em quadrinhos que sofrem com o baixo consumo. “A literatura em geral também enfrenta as consequências. No Brasil, é difícil convencer o público a gastar dinheiro para se ler uma boa história”. 50

A cena independente, em especial no ambiente digital, possibilita uma liberdade maior. Recentemente, Weingartner tem focado suas HQs na temática LGBT, com alguma aventura sendo o pano de fundo da narrativa. “Narrativas de cunho erótico, por exemplo. É muito mais simples e livre trabalhar com este tipo de histórias online”, conta o quadrinista. Rodrigues também observa vantagens e desvantagens em trabalhar com o digital. “(No digital) Há menos regras, não precisa se preocupar com a qualidade de impressão e pode usar vários formatos de quadrinhos e até digo que pode usar giffs também, se quiser. Mas o grande revés é que se perde a diversão de montar o livro”, afirma. Espaço na literatura Desde 2017, as HQs fazem parte do Prêmio Jabuti no eixo de literatura da premiação, que contempla narrativas a partir da palavra escrita em verso ou em prosa, em diversos gêneros. O Jabuti descreve as HQs como “livros com-


postos por histórias em quadrinhos, originais ou adaptadas, contadas por meio de desenhos sequenciais, definidas pela união de cor, mensagem e imagem”, em que os critérios a serem apreciados pelo júri avaliador são: interação entre imagens e texto; originalidade, inventividade e perícia técnica; edição e produção gráfica. Raposa e Ordoque são defensores das produções e argumentam que o brasileiro precisa valorizar o conteúdo nacional. “Somos reconhecidos na Europa pela nossa produção. Falta o brasileiro enxergar também”, diz a quadrinista, enquanto que o organizador do Feirão aponta para falta de espaço em editoras. “Quase todas editoras têm um selo voltado para publicações de HQs. Vai ver o que elas lançam. A maioria são autores estrangeiros. Nada contra, mas há qualidade nacional de sobra para ser impressa e isso precisa ser valorizado”, finaliza.

SOMOS RECONHECIDOS NA EUROPA PELA NOSSA PRODUÇÃO. FALTA O BRASILEIRO ENXERGAR TAMBÉM. CAMILA RAPOSA

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m amigo difícil de esquecer. Uma companhia inigualável. Em vários momentos é ele quem proporciona a melhor festa. Estiloso e experiente, ele nasceu no fim dos anos 1940 (ele não gosta de precisar sua idade). Sua voz range pelo contato da agulha com a superfície. Essa particularidade é o que chama atenção dos que mais gostam dele. Sem contar as roupas que só ele consegue vestir: coloridas, inteligentes, chamativas e exclusivas. Possui apelidos, dados por amigos e amantes, como: bolachão, disco, LP. Infelizmente, não conseguiu se adaptar às tecnologias que colocaram seu inimigo, o CD, no auge do rolê. Então, no fim dos anos 1990, vinil ficou recluso. Só se relacionava com os amigos mais fiéis – que não o trocaram pelo seu rival. Além do CD, o “bolachão” sofreu com outros que chegavam na área, como o MP3 e o ameaçador streaming. A internet também assustou o inspirador LP, porque ela tornou comum a troca de arquivos online. Desse modo, surgiu a pirataria e a circulação das músicas em formato digital, antes mesmo das produtoras lançarem os álbuns em mídia física. Dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica – IFPI, em abril de 2016, divulgou que as vendas de mídia física (CDs, vinis) teve queda de 4,5% em 2015 enquanto que as receitas de consumo digital de música cresceram 10,2%, e já representam mais da metade do faturamento com música gravada em 19 países, incluindo o Brasil. O formato que mais cresce no mundo todo é o streaming, que representa 19% do total das receitas fonográficas. O número de assinaturas nos formatos e aplicativos de streaming cresceu 65,8% em 2015, somando mais de 68 milhões de assinantes pelo mundo. Porém, mesmo nesse cenário desfavorável, o vinil foi resgatado da solidão por seus parceiros: grandes nomes da música mundial voltaram a utilizá-lo como formato de distribuição.

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De acordo com os índices da Nielsen Music, entidade referência no mercado musical norte-americano, divulgada pela Billboard dos EUA, o CD está morrendo, enquanto o vinil revive. Conforme o levantamento, as vendas de CD no país norte-americano caíram 19,9% durante os primeiros três quartos de 2017 em comparação com o mesmo período de 2016. Por outro lado, as de discos de vinil subiram 3,1%, somando 9,35 milhões de unidades vendidas no ano. O clássico eterno dos Beatles, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que completou 51 anos em 2018, foi o álbum mais comprado (40 mil uni-


A PAIXÃO DE AFICIONADOS NÃO DEIXA O AMIGO VINIL MORRER

JAMAIS ABANDONADO TEXTO POR MATHEUS GOMES

dades). Ou seja, a venda de discos de vinil já representa 16% de todo mercado fonográfico de álbuns em formatos físicos nos Estados Unidos. O maior índice registrado desde a popularização do CD. No Brasil, o vinil também é popular, mais especificamente em Porto Alegre. Aqui, ele é bem visto em feiras e festas temáticas. Lucio Brancato conhece bem essa relação. Desde pequeno conviveu com as coleções de discos de seus pais e avô. Quando criança, os LPs sempre foram muito presentes em sua casa. Ele relembra que seus pais usavam vinis até mesmo para

as canções de ninar. Com 9 anos de idade, ele adquiriu seu primeiro disco, em 1987. Atraído pelas capas, ele comprou a coletânea de discos Message in a Box (1993), da banda inglesa The Police, e o disco Maiden Japan (1981) da também inglesa Iron Maiden, encontrados no supermercado. Como colecionador de discos e de CD, ele vê mais vantagens em consumir os vinis, pelo fato de ser uma mídia física e de existir maior qualidade sonora. “Em algum momento tu vai ter que virar o lado do disco para ouvir as outras músicas do álbum. Ouvindo as músicas na ordem que o artista propôs ali no álbum, no formato que ele está te contando. Eu sou fã justamente desse conceito de ‘álbum’ que o disco constrói, porque hoje em dia as pessoas não consomem mais discografia, elas consomem unicamente algumas músicas”.

Outro admirador é o DJ Damon Meyer, que começou a colecionar discos influenciado pelo seu pai. Meyer chegou a colecionar mais de 500 LPs. A partir de 2010, Meyer passou a usar suas coleções nas discotecagens. Por este fato, o DJ atraiu convites de produtores em Porto Alegre para festas de rua, feiras de vinis e eventos em lugares menores, onde o público tem ligação com essa cultura.

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“O que noto nas feiras que frequento é que as pessoas jovens são interessadas em ter contato com esse formato antigo de ouvir música”. “Na primeira década do século, eu notava que minha loja era visitada por 4 pessoas por dia. Porém, de 2012 até hoje, cresceu muito o movimento. Durante a semana, me visitam mais de 50 pessoas”, analisa ele. Em Porto Alegre, também existem pessoas que trabalham com vinil de forma inovadora, como a NOIZE Comunicação. Criada em 2007, a empresa é responsável pelo desenvolvimento de projetos voltados à produção de conteúdo. Porém, em 2014, sua consolidada curadoria musical deu origem ao NOIZE Record Club, considerado como o primeiro clube de assinatura de discos de vinil da América Latina. A revista bimestral é exclusiva para assinantes e vem acompanhada por álbuns inéditos em vinil da música independente brasileira. Ao todo somam-se 12 edições, contando com bandas como Paralamas do Sucesso, Boogarins, Banda do Mar, Vinicius de Moraes, entre outros. Se alguém ainda acredita que é uma moda passageira, está na hora de repensar: o vinil voltou para ficar!

PESSOAS JOVENS SÃO INTERESSADAS EM TER CONTATO COM ESSE FORMATO ANTIGO DE OUVIR MÚSICA. DAMON MEYER

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SEM BEIJO E SEM SEXO TEXTO POR NAESHA CARVALHO

EM ÉPOCA DE TINDER E OUTROS APPS DE ENCONTROS, JOVENS RELIGIOSOS QUEREM RELACIONAMENTOS SANTOS

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ivemos momentos de intensas transformações políticas, econômicas, tecnológicas, culturais e, até mesmo, sexuais. Prezamos cada vez mais pela liberdade. A era dos aplicativos de relacionamento, do sexo sem compromisso e amizades coloridas. As relações humanas foram moldadas, assim como os padrões de relacionamentos e os vínculos amorosos. No contraponto, existem jovens religiosos que acreditam que mantendo um relacionamento sem qualquer relação sexual com a pessoa escolhida por Deus, eles são preparados para relacionamentos santos com as outras pessoas que convivem, e, consequentemente com todas as pessoas com que se relacionam. Eles escolheram esperar.

Foi em um domingo chuvoso de julho de 2008 que Vitória Nascimento e sua mãe, Meri, decidiram mudar de vida. Os conflitos entre os pais eram diários e o próximo passo seria a separação. Elas saíram a pé de casa à procura de uma igreja. No meio do caminho, encontraram um vizinho que, sem entender a situação, questionou o que elas estavam fazendo. Nascimento explicou que passavam por uma fase de muitas brigas diárias entre os pais, que acreditavam

que a anulação do casamento seria a única solução. Com o tempo, esses problemas começaram a atingir Vitória e o irmão, gerando ainda mais conflitos que acabaram por afetar a vida escolar e social das crianças. Por isso, mãe e filha decidiram buscar, em uma igreja, acolhimento e coragem para enfrentar o período ruim. Por coincidência, o vizinho era membro da Comunidade Evangélica de Alvorada (CEDA) e apresentou a religião para as duas. Depois daquele domingo, a vida da família Nascimento mudou. Hoje, 10 anos depois, eles ainda frequentam a CEDA. “A religião mudou toda a estrutura da nossa família. É um amor imenso e um estilo de vida”, conta Vitória.


Cuidadora de crianças, estudante do curso técnico em Enfermagem, 20 anos, solteira e evangélica. Vitória Nascimento nasceu e reside em Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre, com os pais e o irmão mais novo. Ela acredita que conheceu o amor de Deus e, por isso, já aos 12 anos, disse ter tomado uma grande decisão: “esperar o relacionamento e o momento certo de acordo com o plano de Jesus.” Preconceito Apesar do orgulho e convicção de sua própria escolha, Nascimento sabe que não é uma opção fácil ou bem vista por parte da sociedade e atribui isso à banalização dos relacionamentos. Desde que se tornou evangélica e optou por evitar qualquer tipo de relação sexual até o casamento — seja beijo, masturbação ou sexo — disse ser rotulada de “quadrada” e alvo de piadas até mesmo por amigos de infância. Em todos os momentos da nossa conversa, a estudante reforça que sua decisão não foi uma imposição da religião ou de sua igreja, porém, é a entidade que promove eventos com o propósito de educar os jovens religiosos sobre o relacionamento santo. Por meio da CEDA, ela conhe-

ceu o projeto Hall da Corte. “Aprendi que somos príncipes e princesas e devemos confiar na escolha de Deus, evitando machucados na alma e decepções em relacionamentos não duradouros, aguardando pelo plano de Jesus”. “O Hall da Corte é um lugar de espera onde os adolescentes podem aguardar amadurecer para se relacionar. Corte é um relacionamento radical no qual os desejos de Deus se tornam mais importantes do que os próprios desejos a tal ponto que duas pessoas se relacionam para cumprir um propósito de Deus para suas vidas”, disse Murilo Fagundes, 18 anos, seminarista, discipulador e treinado para ser pastor na Igreja Videira de Aparecida em Goiânia. Hoje, ele é um dos representantes do Hall da Corte e contribui para que outros jovens entendam o significado de um relacionamento em santidade. Frequentador da igreja desde pequeno por influência dos pais cristãos, Fagundes disse que teve uma experiência pessoal com Deus em novembro de 2012, depois da qual entendeu que esperar seria a melhor opção e que esse é o padrão de relacionamento

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GUARDAR-SE PARA UM RELACIONAMENTO EM SANTIDADE É UM CAMINHO PARA AS PESSOAS QUE QUEREM MAIS DE DEUS. NEY MATOS

estabelecido pela Bíblia. Mas o que é uma experiência com Deus? No entendimento religioso, é quando, em momentos de oração, sente-se a presença de Deus e a oportunidade de dialogar com Ele. O seminarista disse compreender o preconceito acerca dos jovens que se privam de relações sexuais, e atribui o fato ao resultado de “uma sociedade sem seriedade nem compromisso nos relacionamentos, descontrolada sexualmente e sem paz para viver”. Para ele, sexo é criação de Deus para ter sua plenitude dentro de um casamento. “Ao invés de conhecerem um ao outro para se relacionar, perdem o tempo de seu conhecimento fazendo sexo e, ao conhecerem a pessoa, não assumem compromisso, deixando apenas marcas profundas na alma das pessoas”, disse Fagundes. Em 2017, Nascimento conheceu a Instituição Relacionamento em Santidade, fundada em 2015 pelo Pastor Ney Matos, que há um ano vive em Maryland, nos Estados Unidos, desenvolvendo uma base do instituto no país com a esposa, Júlia, e os filhos. O casal iniciou o relacionamen-

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to santo em 2003, quando se conheceu na igreja. Virgens e compartilhando experiências com Deus, Ney e Júlia decidiram esperar juntos. “Guardar-se para um relacionamento em santidade é um caminho para as pessoas que querem mais de Deus, pessoas famintas e sedentas por mais d’Ele. Este caminho é para os filhos desesperados desejando fazer qualquer coisa, abrir mão de tudo, simplesmente para agradar o Pai”, diz um trecho do livro Agora sim o noivo pode beijar a noiva, escrito por Ney e Júlia. Por dois anos e seis meses, o casal conviveu com essa escolha sem conversar a respeito com seus pastores ou outros integrantes da igreja, que não impunha ou educava os jovens sobre o assunto, segundo eles. Foi quando decidiram ministrar palestras e seminários pelo Brasil. Para Matos, o beijo é o ponto inicial do sexo, “a primeira penetração”. Ele acredita que, quando beijamos, o corpo entende que vai começar uma prática sexual, seja a masturbação ou o sexo, e se prepara para isso. O Pastor disse que beijo não é pecado, não é proibido, mas escolher manter-se puro até o casamento é o caminho mais fácil para as pessoas que querem mais de Deus. “Relacionamento em santidade é você viver experiências com Deus


ao lado da pessoa que Ele te deu”, disse Matos. Dedicando sua vida a auxiliar outras pessoas, Ney e Júlia escreveram outros dois livros: Entendi & decidi, mas e agora? e Vale a pena viver em santidade. Além de uma coleção de oito pocket books que abordam virgindade, pureza, pornografia, masturbação e pecados. Para Nascimento, Fagundes e Matos, o relacionamento santo é a base do estilo de vida que adotaram. Compartilhar um relacionamento puro, dizem, é o caminho para a integridade, visando à máxima da Igreja: o dia em que Jesus voltará. De um lado, os jovens que colecionam “matchs” nos aplicativos de relacionamento e vivem a fluidez de aventuras amorosas. De outro, os religiosos que acreditam que o namoro santo é a verdadeira prova de amor a Deus. Para eles, evitar a relação sexual antes do casamento é demonstrar que o beijo ou o sexo não são tão importantes quanto a vontade de estar com a pessoa amada. 59


A BELEZA NÃO TEM RÓTULO O BLUSH NAS TÊMPORAS, OS OLHOS CARREGADOS, O CABELO LISO E O ROSTO JOVEM TALVEZ NÃO SEJAM MAIS UMA TENDÊNCIA

TEXTO POR LAURA LIMA

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la rola os dedos por entre as fotos de blogueiras nas redes sociais. O cabelo sempre impecável, as roupas sob medida, a “maquiagem natural” e o lugar incrível ao fundo. Então, ela se dirige para frente do espelho, e o que viu, instantes atrás, não é o que reflete em seu cabelo desgrenhado, nas roupas folgadas – ou muito justas, nas olheiras e no quarto bagunçado. Na cabeça dela há espaço para o medo de não estar dentro dos padrões de beleza, os quais exigiram tempo, dinheiro e dor.

tos, pelo ângulo do selfie, pelos pedaços de ambiente com que constroem essa imagem”, salienta Letícia González, jornalista e criadora do Calma.vc. Para ela o padrão de beleza é midiático.

A personagem acima se reflete nas mulheres contemporâneas. O nome dela não importa, mas ela busca sua identidade em outras pessoas. Nessa era da estrada digital, as redes sociais contribuem ainda mais para esse caminho. Ao mesmo tempo em que a internet mostra tendências — que não se impõem só na novela das 21h — como um jeito de se vestir diferente, um cabelo penteado de modo incomum, as redes repetem fórmulas que não são locais, mas mundiais e, desse modo, as blogueiras acabam se tornando idênticas.

Bárbara dos Anjos Lima, editora-chefe da Cosmopolitan, conta – em entrevista por telefone – que existe uma média de pessoas que ainda buscam uma pele lisinha, um nariz perfeito e um cabelo bonito. “Até na quebra dos padrões existe um padrão. Então, o que é belo ainda é valorizado. A Alicia Keys quando decide que não quer mais usar maquiagem, ela vai investir uma baita grana em tratamento de pele pra ter uma pele bonita, pra não usar maquiagem. Ou seja, o belo ainda é valorizado, mas o padrão caiu”.

“Você procura um ponto turístico no Instagram e não consegue adivinhar se a blogueira é brasileira, chilena, americana ou russa. Elas estão ficando todas iguais não só pelo ombrée do cabelo, a maquiagem demorada, mas também pela luz das fo-

Vivemos sob a hegemonia dos valores de magreza, branquitude e juventude. É só ver comerciais na televisão para comprovar. Nesse sentido, quando falamos


“O padrão é reproduzido pelo cinema, pela pornografia e pela publicidade e vendido como a nova condição para participar da sociedade. Para garantir todas aquelas outras conquistas, você precisa ser bonita. Do jeito que esse ideal diz”. Quando Letícia González se refere às outras conquistas, ela fala sobre o direito de votar e trabalhar. Naomi Wolf escreveu sobre isso em 1990, no livro O Mito da Beleza. “O ideal de beleza é vendido como a nova condição para participar da sociedade”, atenta González. Por outro lado, durante os anos 2000, a magreza e as curvas acentuadas passaram por diversos debates. Gisele Bündchen é um ícone de beleza não só pelo nariz afinado e o rosto cheio de sardas. Foram

ILUSTRAÇÃO: SOFIA DE LIMA

sobre pele, os cremes crescem em termos de tecnologia e ficam, por sua vez, cada vez mais caros. A cirurgia plástica é corriqueira para as famosas, mas significa meses economizados no aluguel de outras mulheres. Ao falar de corpo, a aceitação das curvas de Kim Kardashian ainda é um nicho.

a sua magreza e seu corpo esbelto que a alçaram como umas das modelos mais bem pagas do mundo. Beyoncé e Jennifer Lopez fizeram com que o bumbum avantajado se tornasse desejo. As Kardashians são valorizadas pelas suas curvas. As modelos da Victoria’s Secret, Angels, desfilam de lingeries vestidas em corpos magros. Para Lima, nós buscamos beleza em tudo na vida. Ela afirma que isso é questão de o que é confortável aos nossos olhos. “A gente quer uma casa bonita, a gente quer decorar a sala da nossa casa, a gente quer sair do jeito mais feliz numa foto, a gente quer passar as férias num lugar com uma paisagem encantadora. Então, esse belo se manifesta de várias maneiras. Eu acho errado determinar que o que é bonito pra mim tem que ser bonito pra ti, tem que ser bonito pra todo mundo”. Por falar em belo, o Miss Brasil é o mais tradicional concurso de beleza feminina.

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NÓS COMEÇAMOS A NOS ACEITAR COMO SOMOS E A NOS AMAR MAIS. CLÁUDIA CAMPOS

Ele é realizado anualmente e busca eleger, entre as representantes de cada Estado do país, uma mulher que simbolize a beleza brasileira. Assim, a vencedora de cada edição vai para o Miss Universo, caracterizando o país de origem. Mas antes de ir para o concurso nacional e mundial, a candidata passa pela etapa estadual. Letícia Kuhn foi Miss Rio Grande do Sul em 2016, representando a cidade de Tapera. “Hoje em dia temos misses com todos os biótipos: negras, brancas, cabelo curto, cabelo longo, morena, ruiva e por aí vai. Temos uma miss mais ativa quando se trata da sua própria opinião e que reacendeu a vontade de todo mundo acompanhar o concurso de novo”. Por dois anos consecutivos, o Brasil teve duas misses negras. Em 2016, a baiana Raissa Santana levou o título de rainha da beleza brasileira, represen-

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tando o Paraná. A piauiense Monalysa Alcântara tornou-se a terceira mulher negra a conquistar a faixa e a coroa, em 2017. Foi Deise Nunes quem inaugurou a conquista das mulheres negras, na década de 1980. Mas foi só 30 anos depois que misses negras voltaram a conquistar espaço. Cláudia Campos, mestre em História, designer de moda e proprietária da marca Clau Stampas, que cria estampas que valorizam a cultura afro-brasileira e utiliza tecidos ecológicos em suas peças, afirma que as mulheres, por meio das redes sociais, lutam para quebrar com o padrão imposto pela mídia: o fenótipo europeu. “Nós começamos a nos aceitar como somos e a nos amar mais. Sentimos apoio uma das outras”. Para ela devemos romper com essa definição de padrão de beleza. “Temos que começar a pensar em diferentes tipos de beleza e que todos nós somos belos, independentemente da cor da pele, do tamanho do corpo e gênero”. Durante muito tempo, mulheres negras na capa de revista não vendiam. “No fim das contas, aqui na Cosmo, a Taís Araújo é uma das nossas capas mais vendidas. O momento é das pessoas se aceitarem e se identificarem com o quem elas são e valorizarem isso. Então, é importante quebrar os padrões para mais pessoas verem que elas são bonitas também. A beleza não tem uma caixinha. Acho que o atual pa-


drão de beleza é quebrar padrões”, analisa Lima. Então, será que o novo padrão de beleza é a mulher ser feliz? “Acho que isso hoje é um discurso publicitário que está longe de comandar nosso jogo social. Uma mulher ser feliz do jeito que ela quer ser é uma meta bem suada pela qual ainda temos que trabalhar bastante – estivesse ela ganha, não precisaria ser mencionada”, discorda Letícia González. Lima, que na época da entrevista estava grávida de 9 meses, afirma que é difícil se aceitar, mas necessário uma vez que encoraja as mulheres, se tornando, assim uma força que a ajuda a não ser reprimida socialmente. “O mais importante é empoderar as mulheres a se aceitarem como elas são. Apesar de trabalhar nes-

se meio em que eu poderia me oprimir, eu sempre me senti muito bem. Eu uso as roupas que quero e nunca me senti oprimida e obrigada a me encaixar em um padrão.” Ela ainda afirma em meio a sorrisos. “Neste momento de grávida, eu estou me sentindo linda, estou fazendo foto de barriga de fora e tudo mais.” Podemos concluir que a beleza está caminhando para não ter rótulo. O blush nas têmporas, os olhos carregados, o cabelo liso e o rosto jovem talvez não sejam mais uma tendência.

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