Ceos # 1 Do lado de dentro

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CEOS REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM SUL – Nº 1 – DEZEMBRO DE 2015

DO LADO DE DENTRO 1


Reportagens também podem gerar empatia no público. O desafio desta turma foi se colocar no lugar do outro — no lugar literal, onde vive este outro, para tentar, então, se colocar no lugar subjetivo dele. Realizaram a tarefa sob a luz do ser que escolheram para batizar a primeira edição impressa da revista do curso de Jornalismo da ESPM-Sul: Ceos, o titã da inteligência e da curiosidade. Assim como ele enfrentou o todo-poderoso Zeus, nas palavras dos alunos, como repórteres, eles querem questionar as verdades absolutas e os preconceitos. Com olhar crítico, mas sem perder a sensibilidade que nos permite ser empáticos.

EXPEDIENTE REPORTAGEM, FOTOGRAFIA E DIAGRAMAÇÃO: ANA LÍVIA MONÇÃO, CAMILE FORNASIER, EDUARDA LEMOS, ERIC RAUPP, ISABELLA WESTPHALEN, LAUREN GRAEF, MARIANA AZEVEDO, MARINA KRAPF, NICOLLE MANDURÉ, VICTORIA CAMPOS, VINÍCIOS SPARREMBERGER. PROJETO GRÁFICO E ILUSTRAÇÕES: CAROLINA FILLMANN EDIÇÃO: MARCELA DONINI

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Sem casa e sem visão: um lar para vovôs especiais Casa e templo para homens em reabilitação: uma clínica só para eles No meio do lixo: por dentro de uma Unidade de Triagem modelo De olhos bem fechados: quatro horas em uma casa espírita Dois dias e duas noites na rua: relatos de um não lugar Lugar de mulher: no volante do táxi e onde mais ela quiser Pornô em looping no Cine Atlas: o show de sexo ao vivo que não vingou

04 08 12 16 20 24 35 40 44 28 32 HISTÓRIAS SOB AS LONAS DO CIRCO

Palavra da moda, empatia virou item raro. Tanto que, em 2015, surgiu o Museu da Empatia, em Londres. Lá, os visitantes têm a experiência de ouvir histórias de vida enquanto caminham com os sapatos de estranhos, brincando com o significado literal da expressão “in your shoes”.

De prostituta a camareira: a história da funcionária mais antiga do motel

UMA TARDE NA SALA COM O CASAL ERÓTICO

POR MARCELA DONINI

SUMÁRIO

DO OUTRO LADO DO MURO, UM HOSPITAL

NO LUGAR DO OUTRO

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DE PROSTITUTA A CAMAREIRA

Com dois tipos de sauna destinadas ao público masculino – seca e a vapor (banho turco) –, a casa oferece ainda uma piscina térmica. Além das massoterapeutas, ou melhor, prostitutas, que circulam pelos bares.

TEXTO E FOTOS POR NICOLLE MANDURÉ

Há 44 anos no mercado, a casa funciona de segunda a sábado. Abre as portas às 14 horas e fecha às 21 horas. “Muitos clientes vêm para fazer sauna e ir embora, alguns vêm para curtir com os seus amigos e outros para se encontrar com as massoterapeutas”, conta o dono da casa. Toda quinta-feira tem festa, com bandas ao vivo. É o dia de maior movimento.

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UM MOTEL, UMA MULHER E DOIS EMPREGOS. SOLANGE MANTEM-SE NO PRIMEIRO LOCAL DE TRABALHO HÁ 44 ANOS

ma casa em uma esquina de uma rua pouco movimentada. Carros entram e saem. Discrição é o que os clientes procuram, mas, ao olhar de fora, a cor cinza e o muro de pedras antigas remetem a um castelo.

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É uma casa que nasceu da inspiração do proprietário, um poeta. Na entrada principal, o formato da porta é de fechadura, como se quem atravessasse ali passasse despercebido, como quem espia alguém. Chegando à recepção, o cliente depara com uma sala branca, toda de pedra, onde taças enormes expelem fumaças imitando borbulhas de espumante. Uma grande basculante de vidro azul em formato de um olho transforma as pessoas em miniaturas. Por outro lado, ao caminhar pela casa, os lustres quase encostados no chão as fazem sentirem-se gigantes. Ao adentrar por outra porta, em formato de um sarcófago, chega-se a um túnel de rochas que leva a um dos salões. A casa possui dois salões de festa, sendo que o principal apresenta 12 árvores, dando a impressão de uma floresta. Logo à frente, uma cascata de pedras brilhantes chama atenção. O barulho da água dá tranquilidade. O teto pintado, que durante o dia exibe um céu azul com nuvens brancas, ao anoitecer, fica cravejado de estrelas.

Solange é umas das funcionárias. Uma mulher de 62 anos que se mantém até hoje no seu primeiro emprego, na casa de sauna. Atualmente, como camareira. “Eu comecei me prostituindo, aos 40 anos virei camareira”, conta.

EU JÁ ESTOU APOSENTADA, ESSE VAI SER O MEU ÚLTIMO EMPREGO. SE EU SAIR DAQUI, VAI SER BEM VELHA E PARA NÃO TRABALHAR MAIS.” SOLANGE

Solange trabalha no local há 30 anos. Quando entrou, com 18 anos, era uma das massoterapeutas. Alexandre, seu chefe, conta que “ninguém dava nada por ela na rua”. A funcionária chegava para trabalhar vestindo um abrigo, uma camiseta larga, calçando um chinelo de dedo e com sacolas de supermercado na mão. Ao entrar na casa, se transformava: colocava um vestido decotado, salto alto e um batom vermelho. “Todos os

clientes a queriam”, conta o dono da sauna. Com o tempo, já não tinha mais idade para competir com as mais novas. Aos 40 anos, Solange se aposentou da vida de garota de programa. Como reconhecimento de anos de trabalho e um bom relacionamento, seu chefe ofereceu outro cargo para ela: camareira das suítes e recepcionista. Rapidamente ela aceitou, pois não queria deixar o local. “Eu consegui muito dinheiro aqui dentro e sou muito grata a esta casa”, diz ela, que ganhava em torno de R$ 800 por dia quando fazia programa. Hoje, conta que tenta passar todo o seu conhecimento para as jovens que trabalham no local. “Eu dou dicas para elas, mas elas não me escutam muito, elas acabam perdendo dinheiro e clientes por isso. Também... Foram 22 anos de puta, já vivi muita coisa”, diz Solange, aos risos. 5


bém de quando um cliente a levou para transar em cima de um túmulo, no cemitério. “Foi horrível, morri de medo”. Quinta-feira é o dia em que ela mais ganha gorjeta, e quando mais trabalha. “Às vezes, eu ganho R$ 40 de gorjeta, varia muito”, afirma. Nesse dia da semana, ela passa de camareira a serviços gerais. “Eu acabo ajudando no bar, fazendo a faxina nas suítes, levando bebidas para os clientes e ajudo em outros setores da casa também”. Sol, como é chamada dentro da casa, diz manter uma boa relação com os clientes. “Sei o nome de todos eles. Quando o cliente chega, já sei o que ele quer”. Muitos chegam, escolhem a massoterapeuta e vão direto para a suíte. “O casal utiliza a suíte, depois tenho que limpar rapidinho para o próximo cliente”, afirma. Além da limpeza, às vezes Solange é chamada para levar alguma bebida, camisinhas e acessórios. A sua relação com o cliente é confidencial. Por trabalhar muitos anos na casa e ser reconhecida por todos, acaba passando uma sensação de segurança e tranquilidade à clientela. Dentro da sua intimidade, Solange conhece a vida secreta de cada frequentador da casa. A camareira já vivenciou muitas situações exóticas, mas que, com o tempo, acabaram se tornando normais na sua rotina. Cada cliente tem a sua mania. “Uma vez um casal me pediu 10 camisinhas, e eu tive que levar as 10

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para eles, por mais que não fossem usar. Entrei na suíte e estavam fazendo uma massagem erótica, mal se importaram com a minha presença”, conta. Em outra noite, um cliente pediu o seu vestido e seus sapatos emprestados porque ele queria se sentir como uma mulher. “Ele ficava desfilando para a massoterapeuta”, relata. No final, Solange ganhou uma boa gorjeta por emprestar suas roupas. Outro caso que ela não esquece: a vez em que um cliente solicitou um prato fundo. “Depois a massoterapeuta me contou que o cliente levou uma coleira, pois queria se sentir como um cachorro bebendo água no prato”. Da sua época de garota de programa, Sol também lembra de diversas experiências, como a vez em que um cliente pediu para ela bater nele com socos e chutes. Em seguida, ele pegou um pegador de massa e pediu para ela fincar os dentes do acessório nas costas dele. Ela cumpriu a ordem. “Isso são fantasias que eles, os clientes, sentem prazer. Claro que, algumas coisas, não são normais, como essa vez que bati no homem até sangrar”, diz Solange, lembrando tam-

Ao falar da sua família, a camareira se emociona, pois conta que batalhou muito para criar seus filhos. Solange tem dois filhos que moram com ela, sua origem é do interior do Rio Grande do Sul, de Ijuí. “Os dois filhos trabalham, um tem 25 e o outro 30 anos, mas as contas da casa são tudo comigo”, afirma. Sol conta, também, que seus filhos sabem do seu trabalho de camareira, mas não sabem do seu passado. “O caçula até já me acompanhou em um dia de trabalho”.

Por meio da sua profissão, Solange conheceu muitas pessoas que a ajudaram. Desde seus 18 anos, Sol frequenta o mesmo local. “Desde então eu estou aqui, foi daqui que criei meus filhos, paguei faculdade para eles e comprei uma casa. Aqui eu construí a minha vida”, conta a camareira. Hoje ganha menos do que ganhava quando fazia programa, mesmo assim, consegue levar uma “vida boa”. Solange relata que não trocaria o seu trabalho por nada. “Eu já estou aposentada, esse vai ser o meu último emprego. Se eu for sair daqui vai ser bem velha e para não trabalhar mais”.

ISSO SÃO FANTASIAS QUE OS CLIENTES SENTEM PRAZER. CLARO QUE ALGUMAS COISAS NÃO SÃO NORMAIS, COMO ESSA VEZ QUE BATI NO HOMEM ATÉ SANGRAR. SOLANGE

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em hesitar, Marlene saiu de casa. Precisava de um lugar onde pudesse dormir sem a sensação de culpa, sem as reclamações da irmã sobre como sua rotina era influenciada pela presença dela. No antigo casebre de madeira, dois quartos e um banheiro, em Viamão, colecionava episódios de discriminação por não ter um dos olhos e apenas 20 por cento da visão no outro. Queria encontrar um espaço no qual pudesse viver sem julgamentos. “Me retirei da família. Pedi para um amigo arrumar um cantinho e, graças a Deus, ele conseguiu”, comenta, com um sorriso encabulado. Ela entrou no prédio terracota pela primeira vez há 12 anos. Era seu novo refúgio: a Casa Lar do Cego Idoso. Marlene Aguiar da Silva, ou simplesmente Teteia, como foi rebatizada pelos 21 funcionários da instituição por causa da personalidade vaidosa, tem 72 anos e nasceu em um clã sem muito dinheiro. Tinha seis irmãos, incluindo uma gêmea; nasceram prematuras. Aos quatro meses, Teteia perdeu a visão, episódio recontado a ela pela mãe. “Por causa de uma corrente de ar frio, meu olho direito sofreu um espasmo e deu uma inflamação no nervo óptico. Tentaram salvar, mas não foi possível. No mesmo dia, a gêmea morreu porque tinha um coraçãozinho fraco”. Na Casa Lar, Teteia é vizinha de outras 51 pessoas. O espaço oferece moradia para a população cega — no Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e 6 milhões com baixa visão, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “É um local especial porque é dirigido por pessoas que compartilham as mesmas dificuldades e sentimentos”, explica Odilon Fernandes de Souza, presidente da Associação de Cegos Louis Braille, mantenedora do local. A residência surgiu há 15 anos, com o objetivo de se tornar referência entre os 3.548 asilos públicos e privados do país, dos quais nenhum oferecia auxílio capacitado a idosos que não enxergam.

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SEM CASA E SEM VISÃO, UM LAR PARA VOVÔS ESPECIAIS TEXTO E FOTOS POR ERIC RAUPP

O portão preto, já enferrujado do número 480 da Rua Louis Braille, na zona norte de Porto Alegre, guarda os 2.500 metros quadrados divididos em duas construções, uma em frente à outra. A mais próxima à entrada tem a fachada verde e as paredes pintadas de branco; abriga uma recepção, um brechó e um fábrica de fraldas. Esta funciona em parceria com o Ministério da Justiça, o qual determina que condenados a trabalho comunitário cumpram o serviço na instituição. Três homens, em silêncio e cabisbaixos, produzem diariamente cerca de 140 fraldas. Um pátio com chão cimentado separa a outra peça. Aos fundos, no segundo prédio, de três andares, estão os dormitórios e as áreas de convivência. No primeiro nível, a cozinha e o refeitório, as salas de administração, serviço social e visitas. Há também uma biblioteca com um acervo em braile e um estúdio de pintura.

No segundo andar, além de quartos e banheiros, existe uma sala para atendimento médico e fisioterapia e um espaço de convivência entre os moradores. O terceiro é composto somente por dormitórios — ao todo são 75, entre individuais, duplos ou triplos. Uma moradia especial para cegos é equipada com corrimãos para que eles possam se orientar. Além disso, não existem escadas, mas rampas e um elevador. Antes do primeiro dia de serviço, os funcionários recebem orientações básicas de como interagir com pessoas cegas. “Não pode pegar pelas duas mãos como se fosse um deficiente mental e ir puxando. Uma vez eu tava no aeroporto e uma moça fez isso. Olhei para ela e disse: ‘como tu és linda, querida’”, relembra Odilon. “Eu não presto”, brinca.

3.549: ESSE É O NÚMERO DE ASILOS PÚBLICOS E PRIVADOS NO BRASIL. APENAS UM POSSUI ATENDIMENTO ESPECIALIZADO PARA A POPULAÇÃO QUE NÃO ENXERGA. FUNDADA EM 2000, EM PORTO ALEGRE, A CASA LAR DO IDOSO CEGO É REFERÊNCIA NO SEGMENTO Histórias cruzadas O brechó é o lugar preferido de Teteia (foto). Lá, ela passa a maior parte do dia ao lado de Terezinha Martins, 52 anos, que trabalha há 14 anos no local. Começou na cozinha e depois tornou-se “cuidadora”, como ela chama, tendo um contato direto com “os vôs e as vós”. “Tu aprende muita coisa com eles e cria uma relação de família. Eles te trazem paz”, diz, com a voz suave. As roupas empilhadas em estantes são doações da comunidade para serem vendidas no brechó — o dinheiro é revertido para a instituição e gasto principalmente em alimentos. Enquanto dobra uma calça jeans, Terezinha recebe auxílio da “dama da cabeça branca”, outro apelido de Teteia, uma das poucas vovós da casa que não pinta o cabelo. Teteia procura por furos e rasgos nas peças, tateando os tecidos.

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A FORÇA DE UM OLHAR DE NOJO É TÃO GRANDE QUE NÃO TEM COMO NÃO SENTIR. UM DOS MEUS IRMÃOS, QUE JÁ PERDI, TINHA VERGONHA DE MIM PORQUE EU SOU CEGA, E ISSO ME DEIXA MUITO CHATEADA. TETEIA

Dar adeus faz parte da rotina da instituição. Quando não são as visitas atravessando o portão rumo ao “mundo de fora”, a morte força uma despedida permanente e muito mais dolorosa. As cadeiras do refeitório, com lugar marcado, não têm tempo de esfriar porque rapidamente recebem novos donos. O corpo é efêmero, mas as lembranças daqueles que já partiram permanecem vivas na memória dos que ficam. “O seu Oswaldo... Não tem como esquecer. Ele sabia como eu me sentia só pela minha voz, mesmo que eu tentasse disfarçar”, recorda Terezinha. Oswaldo era colega de quarto de Natanael, que também já faleceu. Durante dois anos, ele e Teteia tiveram um romance. Os homens sempre foram minoria na Casa Lar — hoje são 10 ante 42 mulheres —, mas nem por isso Natanael foi o único amor de Teteia. Antes dele, ela trocara sussurros apaixonados com

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Lugar para se reinventar

“Eu não gosto de ficar parada, então venho aqui papear e ajudar”, diz. Juntas, elas cantam e riem. “Eu sinto falta de estar diariamente com meus velhinhos. Mas é difícil estar lá todos os dias e ver as pessoas partindo”, afirma Terezinha, arregalando os olhos para esconder as lágrimas. João, outro que já “subiu pro céu”. “Os dois eram muito ciumentos, não dava pra conversar com ninguém, então eu não quis mais. Já dava pra casar, mas não aguentei os repuxos e mandei passear”. Quem adora caminhar pelos corredores é a nova colega de quarto de Teteia, Catarina Alencar, 61 anos. Com a cuia na mão, ela, que é uma das 11 moradoras com visão perfeita, procura por um lugar na sala. Havia se mudado poucos dias antes, mas já estava integrada. “Eu amei aqui, todos me tratam super bem e eu tô feliz porque foi uma escolha minha, não queria incomodar minha família”, comenta, enquanto passa o mate para Severino Camargo, de 79 anos. Nascido sem visão — “provavelmente porque a mãe fumava” —, ele vive na residência há um ano e meio. Foi largado em frente ao prédio pelo irmão, contra a própria vontade, carregando uma pequena mala com algumas roupas e um rádio de pilha. Nos primeiros dias, encurralou-se no quarto e não queria sair. Contou com a ajuda da coordenadora da área médica, Adriana Enzveiler, para superar o princípio de depressão. “Me senti traído pela família”, diz. Aos poucos, aprendeu a gostar do lugar. “Hoje me sinto bem, as pessoas não me julgam. Aqui, posso ser eu mesmo, velho e com meus problemas”. Sem filhos, ele recebe a visita do sobrinho apenas uma vez ao mês, quando a médica da instituição assina as prescrições dos remédios.

Viver fora da Casa Lar é difícil para os cegos. Em Porto Alegre, pegar um ônibus, depende da boa vontade de quem enxerga, e a lei que obriga restaurantes a disporem de cardápio em Braille, de 2010, ainda é ignorada. Mas a maior mágoa do deficiente visual costuma ser a negação da família e dos amigos. “Eu me sentia desprezada. A força de um olhar de nojo é tão grande que não tem como não sentir. Um dos meus irmãos, que já perdi, tinha vergonha de mim porque eu era assim, e isso me deixa muito chateada”, comenta Teteia. Ela morou a vida inteira com a irmã caçula, Stella Maris, com quem mantém uma relação controversa. “Depois que eu vim pra cá as coisas mudaram. Acho que ela sente falta de mim”. Agora, Teteia é a moradora mais antiga da Casa Lar e conseguiu adicionar um novo capítulo à sua história. A chefe de cozinha Cristina Prates, 49 anos, também reescreveu as páginas de sua biografia. Em 17 de fevereiro de 2014, “Controle”, como é chamada por Teteia por ser rigorosa nos cuidados com a alimentação, começou na fábrica de fraldas, prestando serviço comunitário. “Emprestei meu nome para uma pessoa, e ela comprou

carro, casa e me arranjou muitos problemas”, conta. Quando terminou de cumprir a pena, estipulada em seis meses, recebeu o convite para trabalhar no prédio principal. Hoje, ela e mais três cozinheiras ditam o tempo do local. Às 7h30min, servem o café da manhã, com chá ou café com leite e pão ou biscoito. Às 21h, a ceia, geralmente sopa, anuncia que as atividades estão encerradas. Nos pratos de cerâmica, a comida segue uma dieta que busca evitar problemas de saúde. No almoço, há salada, arroz, massa ou purê, feijão e carne — de frango ou gado, nada de porco. No jantar, o cardápio se repete. Os moradores só fogem de “Controle” aos domingos, quando comem maionese e carne assada, e nas festas mensais de aniversário, nas quais são liberados para desfrutar de bolo e refrigerante. Após a ceia, Teteia vai para o quarto. Deitada na cama, segue sua rotina, da qual faz parte relembrar as dificuldades que sofria antes de ingressar no prédio cor terracota. O pensamento se esvai e ela adormece no silêncio daquele que é o seu lar com a certeza de que tomou a decisão correta. 11


CASA E TEMPLO PARA HOMENS EM REABILITAÇÃO

A Instituição Manassés surgiu há 15 anos, na Bahia, com o objetivo de recuperar homens maiores de idade com qualquer tipo de dependência química. Hoje, o projeto conta com 36 unidades espalhadas pelo Brasil e atende milhares de homens gratuitamente.

TEXTO E FOTOS POR MARIANA AZEVEDO

INSTITUIÇÃO MANASSÉS ABRIGA HOMENS QUE QUEREM SE LIVRAR DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA. NA SUA ROTINA, REZA, HORÁRIOS E TRABALHO PELAS RUAS DA CIDADE

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despertador toca e o relógio aponta 5h da manhã. José*, Renato*, Luciano, Sandro, Rejanio e outros 10 homens levantam dos seus beliches e se encontram em uma sala cheia de cadeiras e grandes janelas, chamada por eles de “templo”. É lá que os moradores da casa conversam com Deus. “Deus deve estar em primeiro lugar nas nossas vidas. Com Jesus, eu sou melhor, sem ele eu sou ninguém”, declara o diretor da casa, Luciano Francisco Santana (foto), 40 anos. Depois da oração, os moradores tomam o café da manhã e se preparam para andar nos ônibus de Porto Alegre e divulgar o trabalho realizado na casa onde eles moram, a Instituição Manassés. Na parada de ônibus, os homens aguardam o primeiro coletivo da manhã. Cada um carrega consigo uma bolsa repleta de kits produzidos pelos próprios moradores. Composto por um adesivo, uma caneta e um panfleto, o material é o que eles têm para apresentar o projeto. Os sacos transparentes são vendidos a pelo menos R$ 2 dentro dos ônibus. É com esse dinheiro que a instituição se mantém, explica o “obreiro” da casa, como é conhecido Sandro Rogério Moreira; sua função é pregar a obra de Deus.

O PROJETO É PARA GUERREIRO. NÃO É QUALQUER UM QUE CONSEGUE. SANDRO MOREIRA

A casa de Porto Alegre fica na Avenida Pinheiro Borba, próxima do Estádio BeiraRio, em frente ao Guaíba. O amarelo quase fluorescente não deixa o sobrado de quatro andares passar despercebido por quem trafega pela região. Quem entra na residência precisa subir um lance de aproximadamente 10 degraus. O segundo andar abriga o templo, os quartos e a sala da direção. No último andar, encontram-se a cozinha e o terraço. É lá que o colaborador Rejânio cozi-

nha para os demais moradores e embala, ao som de uma música alta, os kits que serão oferecidos na manhã seguinte. Um ambiente claro e arejado. Essa é a primeira impressão de quem entra na sala da direção. Uma pequena sacada com vista para o rio deixa o barulho do encontro dos ventos com a água e dos carros com o asfalto ecoarem no local. É lá que ocorrem as entrevistas com os potenciais moradores. “Eu não sou formado em psicologia nem em medicina, mas, com as perguntas que eu faço, é possível perceber aqueles que querem ser ajudados”, afirma Luciano. A instituição não conta com o apoio de nenhum profissional da saúde. Segundo o diretor da casa, seguir os passos da bíblia é o suficiente para quem quer largar o vício.

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O tratamento A forma como os moradores da residência são tratados se distingue dos demais procedimentos de reabilitação das clínicas tradicionais. O tratamento é sempre feito em uma unidade fora do Estado de origem do usuário. “Hoje temos pessoas do Mato Grosso e do Rio Grande do Norte, por exemplo”, conta o diretor. “Dessa forma, é possível fazer todo o desligamento do ciclo social”. Isto porque o tratamento é feito, também, nas ruas, com a divulgação do projeto nos coletivos. “Ficar nove meses em uma casa de reabilitação, qualquer um fica. Aqui dentro não tem

O TRATAMENTO É SEMPRE REALIZADO FORA DO ESTADO DE ORIGEM DO DEPENDENTE PARA QUE ELE SE DESLIGUE DE SEU ANTIGO CICLO SOCIAL 14

droga nem prostituição. A realidade está lá fora”, diz Luciano. “Eu sempre falo que a Manassés não é uma casa de recuperação, e sim uma casa de preparação. O usuário vai ser preparado na rua para que ele possa entrar na sociedade de novo lidando com o ser humano e dialogando com as pessoas”, explica o diretor. Na primeira fase, os moradores ficam dentro de casa por um período de até 30 dias passando por um processo de desintoxicação. “Eles passam por uma reeducação alimentar. Tem hora para acordar, para dormir, para fazer a limpeza da casa”, conta o diretor. “Depois desses processos, dependendo do comportamento do usuário, ele vai para a segunda fase”, explica. A psiquiatra especialista em dependência química e psicoterapia Marianne de Aguiar acredita que tratamentos como este podem ser recomendáveis. “Neste tipo de instituição, alguns internos são como membros da equipe ou ‘monitores’. Eles trabalham para eles mesmos, promovendo um senso de comunidade e ajuda mútua. Os que estão mais avançados no tratamento ajudam os recém chegados e podem ajudar a equipe a captar aqueles que estão relutantes a buscar tratamento, eliminando barreiras”, afirma.

NÃO SERVE PARA TODOS. A FÉ PODE PROMOVER EFEITO INVERSO, INDUZINDO CULPA, JULGAMENTO MORAL EXCESSIVO E AUMENTO DE ANSIEDADE. MARIANNE DE AGUIAR

Além disso, de acordo com a psiquiatra, a espiritualidade promove bem-estar e auxilia no alívio da ansiedade. “Isto favorece as relações e a ajuda mútua”, afirma. “Mas não serve para todos, pois, em algumas situações, a fé pode promover efeito inverso, induzindo culpa, julgamento moral excessivo e aumento de ansiedade”, opina a profissional.

Dois exemplos de perseverança A paixão que o diretor tem pela Instituição Manassés sugere que a história dele com a casa não é recente. Aos 34 anos, o diretor da unidade de Porto Alegre foi apresentado à cocaína por uma excompanheira. “Quando eu era adolescente, eu sempre fui trabalhador e dedicado à minha família, mas, depois de 30 anos, me envolvi com uma pessoa errada, foi quando eu conheci a droga”, diz. Naquela época, ele achava que “dominava a droga”, mas a cocaína “o dominou”. “Perdi minha casa, meu carro, minha moto, minha profissão e o meu casamento”. Foi graças à atual esposa que Luciano conheceu a Manassés. “A minha vida foi alcançada através da minha mulher, que estava dentro de um coletivo e viu um rapaz divulgando o projeto”, diz. O tratamento de Luciano durou 10 meses e foi realizado em

Campo Grande, Mato Grosso do Sul. “Naquela época, a minha situação era tão grave que eu comia cocaína de colher, literalmente”, lembra. Os olhos atentos e emocionados do obreiro Sandro enquanto ouvia o relato de Luciano deixava escapar que, por trás de sua estatura mediana, da pele morena e do sorriso no canto da boca, existia uma história parecida. “Eu não gosto muito de contar do meu passado, eu já fiz muita coisa errada”, conta Sandro. “Já fiz muita mãe chorar. Mas hoje eu acho que Deus me perdoou, ele renovou as minhas forças e me deu muita sabedoria”. Sandro acredita que a instituição pode mudar a vida de muitos pais de família como ele. “Hoje os meus filhos têm orgulho de mim porque eu venci, né? Ah, a vitória...” E com um sorriso no rosto, ele descrever a sua sensação de vencer. “Você sabia que a vitória tem sabor de mel?”

*Nomes fictícios para proteger a identidade dos entrevistados

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m uma rua entre a Voluntários da Pátria e a Farrapos — no dia da reportagem, com árvores e galhos caídos devido ao temporal do dia anterior —, está localizada a Cooperativa Mãos Unidas Santa Teresinha.

COMO FUNCIONA UMA UNIDADE DE TRIAGEM? CONHEÇA A COOPERATIVA MÃOS UNIDAS SANTA TERESINHA, COMPOSTA POR 27 TRABALHADORES

Ao entrar na Unidade de Triagem (UT), há uma imagem de Santa Teresinha na parede, perto de uma cruz, e um bebedouro, ao lado de uma mesa com um buquê de flores. Logo à esquerda, um banco de madeira e algumas cadeiras.

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Vários materiais chegam por meio de combis e caminhões, e descarregam lixo de unidades dos Correios, Carrefour e Atacadão, parceiros da cooperativa. Além do convênio com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), que doa recursos para, entre outros fins, a manutenção da estrutura. A UT é um dos 18 estabele-

cimentos do programa “Todos Somos Porto Alegre”, que busca retirar carrinheiros e carroceiros das ruas de Porto Alegre, oferecendo oportunidades de trabalho. A iniciativa conta com os projetos Inclusão Produtiva de Condutores de Veículos de Tração Animal e Veículos de Tração Humana, Reestruturação do Sistema de Triagem de Porto Alegre e Educação Ambiental. O programa é coordenado pela Cooperativa Mãos Verdes, que oferece os serviços de assessoria a iniciativas de sustentabilidade, elaboração e execução de projetos em gerenciamento e reciclagem de resíduos, formação de pessoas e elaboração de estudos técnicos. Depois de passarem por um

NO MEIO DO LIXO

TEXTO E FOTOS POR CAMILE FORNASIER 17


curso sobre como trabalhar dentro de unidades de triagem, os catadores de lixo criaram a Santa Teresinha, instalada em um galpão cedido pela prefeitura.

NO COMEÇO, NINGUÉM DAVA BOLA, TU ERA DISCRIMINADA PORQUE TU CATAVA LIXO. HOJE, GENTE BURGUESA FAZ TRABALHO COM AS COISAS DO LIXO.” ELOÁ DA SILVA

Na UT, homens de idades variadas, muitos com camisetas de time de futebol, entram e saem carregando sacos de lixo. Um deles é argentino e trabalha como bomboneiro — responsável por levar o material separado nas bombonas de lixo para as prensas. As mulheres parecem ter bastante afinidade entre si, trabalham escutando música e cantando. De longe, escutam-se os catadores falando sobre trabalho, enquanto separam o material depositado pelos caminhões da coleta seletiva. Eles puxam o lixo por um dos buracos, triam — a parte que não pode ser aproveitada é separada e vai para um aterro sanitário — e o colocam em bombonas. Há uma espécie de triagem secundária de plástico, na qual são separados itens como garrafas pet de várias cores e potes de margarina. “Essa unidade de triagem, de todas as unidades de triagem de Porto Alegre, é a que, vamos dizer, é famosa por ter a melhor triagem”, orgulha-se o educador Alex Viana, que trabalha na Santa Teresinha desde julho de 2015 e implantou iniciativas para melhorar o desempe-

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nho da cooperativa, como reuniões periódicas com metas a serem atingidas. Em seguida, o bomboneiro leva o conteúdo para uma das três prensas, onde são feitos os fardos que serão vendidos. O quilo da garrafa pet branca é vendido por R$ 1,10, o de latinhas sai por R$ 3,20, e o do papel colorido misturado (várias embalagens, de várias cores) custa R$ 0,18. Como é um sistema de cooperativa, o valor total das vendas é dividido em partes iguais entre os trabalhadores. O “Todos Somos Porto Alegre” é custeado pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), que estabelece metas. Uma delas é que, até dezembro, cada catador cadastrado esteja ganhando R$ 900 por mês, número que deve ser atingido considerando os R$ 700 e poucos que estavam recebendo em outubro. O cumprimento das metas garante a continuidade da concessão dos equipamentos, por exemplo. “Tinha que ver o que a gente ganhava aqui no começo. Agora que a gente tá melhorando o salário, mas tinha quinzena que nós tirava o quê?! 100 pila, 80, e tinha que lutar de novo pra outra semana tu conseguir mais, sabe?”, conta Eloá da Silva, que trabalha com reciclagem há 21 anos e é a tesoureira da cooperativa. Em breve, a

trabalhadora vai virar vicepresidente, além de já ser coordenadora adjunta, já que é quem mais entende dos materiais. “Esse aqui dá mais, esse aqui dá menos, como é que nós temos que fazer, como é que vai fechar o caminhão, quanto que nós temos que ter cada quinzena...”, assim ela explica sua função na Unidade de Triagem. O local é bem organizado, o lixo é separado em várias categorias, como por tipo de material, cor e preço. A Unidade de Triagem busca reciclar e vender todo tipo de material para o qual haja comprador; recentemente, incluiu o isopor, já que apareceu um fornecer e o preço era bom. Para eles, quanto mais material se pode aproveitar, melhor. Há uma pessoa encarregada de cozinhar a comida, feita com alimentos doados. No intervalo da manhã, os homens e as mulheres saíram para lanchar e comentaram sobre os estragos da chuva nas suas casas. No galpão, o estrago não foi grande, voaram algumas telhas, mas a estrutura não foi comprometida. Eloá, ao apontar para os buracos no teto, diz que ainda estão no lucro, porque antes não tinham sequer um lugar coberto para trabalhar. “Nós temo com tudo! A gente tá, como se diz... tá brilhando”.

Eloá salienta que hoje o material reciclado é utilizado até como decoração. “No começo, ninguém te dava bola, tu era discriminada porque tu catava lixo. Hoje, gente burguesa faz trabalho com as coisas do lixo”.

Destaque O programa “Todos Somos Porto Alegre” tem regras como a proibição de fumar, trabalhar alcoolizado ou sob efeito de drogas, acesso de menores e trabalho sem os equipamentos de segurança (luva, bota e óculos). A UT funciona em dois turnos e tem 27 associados. A Cooperativa Santa Teresinha tem apenas um ano, mas se destaca; por exemplo, é a que tem mais quantidade de prensas e está se desenvolvendo positivamente segundo critérios mensurados em todas as Unidades de Triagem da capital gaúcha.

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ão cinco e meia da tarde de uma sextafeira. O movimento da cidade é intenso. Carros passando por todos os lados, pedestres caminham, correm pelas calçadas e até mesmo pelo meio da rua. As buzinas e o barulho dos motores tornam o ambiente ensurdecedor. De frente para uma grande avenida de Porto Alegre seria difícil imaginar um local tão calmo e acolhedor por perto. A poucos metros da loucura, em uma sala de espera de uma conhecida sociedade espírita, duas pessoas aguardam a chegada de Márcia Rodrigues para a realizarem uma orientação espiritual. O local é silencioso, as paredes claras são decoradas com diversos quadros e orações. As cadeiras ficam viradas uma para a outra, como se fosse uma grande roda. Mesmo assim, o ambiente é de total silêncio. Uma menina e uma mulher, cada uma em um lado oposto da sala, mexem no celular sem trocar olhares. Sentada em uma cadeira ao lado da porta da sala da orientação, Eduarda Tormes balança os pés continuamente. Ainda falta meia hora para a chegada da orientadora. “A Márcia é ótima. Eu me sinto muito bem com ela”, diz, sorrindo. A menina tem 18 anos, mas já tem forte aproximação com o espiritismo. “Acredito que aqui dentro é mais fácil de lidar com as coisas. Tu começa a entender como funciona cada momento da tua vida”, explica. No tablado do local, é possível ouvir passos apressados pelo corredor. A esperada Márcia cumprimenta ligeiro os presentes e logo entra em sua sala. O local também pode ser uma espécie de escritório. Márcia senta-se atrás de uma mesa, guarda seus pertences e se prepara para o trabalho. Ela está há cerca de 17 anos na casa e, além de orientação espiritual, também é auxiliar da gerente de seu grupo de apometria*. Segundo ela, seu trabalho ali é mudar a energia de uma pessoa. “Na maioria das vezes, nós atraímos as coisas ruins, almas perdidas por aí, porque

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UMA EXPERIÊNCIA DE QUATRO HORAS EM UM TRATAMENTO ALTERNATIVO PARA RESGATAR ENERGIAS NEGATIVAS

DE OLHOS BEM FECHADOS EM UMA CASA ESPÍRITA TEXTO POR MARINA KRAPF

estamos mais tristes e desamparados e, assim, atraímos aquilo que não presta. Por isso eu tento avaliar essas pessoas e encaminhálas para o tratamento certo”, explica. Não demora muito tempo para notar que Márcia tem um perfil diferente dos demais voluntários da casa. Ela é agitada, conversa constantemente com o auxílio de gestos para completar suas frases. “As pessoas geralmente saem daqui melhor do que entraram. Com esse meu jeito meio doidinha, eu faço a pessoa rir e ela já troca a frequência”. Quando pergunto se o seu trabalho era uma espécie de “psicóloga espiritual”, Márcia ri cruzando os braços. “Mais ou menos”, brinca. A orientadora revela que o estilo de trabalho de seu grupo é diferente dos outros existentes da casa. “Nós

não somos um grupo reconhecido pelos princípios espíritas. Trabalhamos com as sete linhas da umbanda esotérica, ou seja, fazemos uma espécie de limpeza da casa das pessoas, do local de trabalho e todos os ambientes em que ela está, usando as energia dos orixás”. Esse trabalho é o que conceitua o grupo de Márcia como Espiritualista. Ela confessa que, no início, tinha preconceito com essa prática, principalmente quando se trata de sacrifício de animais, ao que é contrária, mas que aprendeu a respeitar essas culturas. “Aqui a casa é segmentada. Existem vários grupos. Tem colegas meus que nem tocam no assunto. Parece proibido, coisa do diabo”. Depois das orientações individuais, Márcia e seu grupo fazem um trabalho coletivo com os presentes. Ele é dividido em três partes: a

conversa, o resgate e, por último, a limpeza. Após finalizar a orientação, Márcia levanta-se apressada e vai em direção ao fundo da casa, desce dois lances de escada em um corredor estreito e encontra dezenas de pessoas a esperando. “Chegamos atrasadas. Perdemos a primeira parte do trabalho”, lamenta. Essa parte seria a conversa, momento em que se reúnem todos os presentes para passar algumas palavras de preparação do ambiente. Rapidamente ela coloca um jaleco verde claro e caminha para uma sala ao fundo. Ao passar pela porta, encontro dezenas de pessoas sentadas em círculo em volta de uma mesa ao centro do ambiente. Eles são chamados de Segunda Corrente. Pouco se fala ali dentro, as pessoas parecem concentradas na movimentação daqueles que ainda se encontram em pé. Diversos papéis com nomes de familiares e amigos estão espalhados pela mesa central. Márcia chama todos os médiuns em volta da mesa. Eram

*Apometria é um conjunto de princípios e técnicas que tem como objetivo o tratamento, a harmonização e a conscientização dos aspectos que movem as energias humanas.

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Hora da limpeza

seis. Eles preparam água e trocam algumas palavras. “Bom, pessoal, agora vamos começar. Peço que todos fechem os olhos”, fala Márcia em um tom não muito alto, mas audível em todos os cantos da sala. Todos obedecem a ela. Eu fecho meus olhos.

De olhos fechados

O QUE ME FAZ SAIR DE CASA TODA TERÇA, QUINTA E SEXTA É SIM O MEU BEM-ESTAR. ISSO ME FAZ BEM, E, GRAÇAS A DEUS, O ME FAZER BEM É FAZER BEM AO PRÓXIMO. MÁRCIA RODRIGUES

A segunda parte do trabalho se inicia. O resgate é feito para socorrer os espíritos sofredores, ou que andam perdidos, e são responsáveis pelas energias negativas. Pelos sons que escuto, identifico que os médiuns começam a transitar pela sala. Eles falam alto e suas vozes se cruzam. Márcia conta até 10 bem alto. Ela resmunga baixinho, como se houvesse resistência por parte da energia negativa presente no grupo. Ela tenta novamente resgatá-la, agora mais alto. As contagens são abafadas pelas diversas orações feitas paralelamente. Sinto estalos de dedos em meus ouvidos. A vontade de abrir os olhos toma conta de mim, mas, ao espiar rapidamente o meu lado direito, não encontro nada. Escuto uma forte risada no outro canto do cômodo. Não era um riso qualquer, ele tinha um tom diferente, como se um outro ser tives-

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se tomado o corpo de algum médium ou algo parecido. Ele ria e gemia, caminhando em volta dos que estavam sentados. Suas risadas iam ficando mais intensas, mais perto. Estava chegando à minha esquerda. Foi o momento em que me senti mais acuada e com vontade de abrir os olhos outra vez. Minhas mãos, tensas, estavam grudadas uma na outra. Quando alguém chegou em minha frente, perto o suficiente para que pudesse escutar sua respiração, apenas passou suas mãos pelas minhas, abriu-as e colocou-as com as palmas viradas para cima. Mesmo sem entender, senti um alívio. Não consegui mais escutálo, as contagens de Márcia espantando os espíritos da sala começavam a ficar mais baixas, na medida em que era possível sentir que, por algum motivo, todos que estavam na Segunda Corrente sabiam que os espíritos estavam encontrando o seu caminho.

A terceira parte do trabalho chega. Esse é o momento de limpeza realizada a partir das sete linhas da umbanda esotérica. A orientadora pede para que todos imaginem suas casas, trabalhos e diversos ambientes do cotidiano. Enquanto a Segunda Corrente canta, os médiuns pedem alto pela limpeza desses lugares. Abro lentamente meus olhos e observo todos cantando. Alguns tinham lágrimas nos olhos, outros cantavam com um sorriso no rosto, todos estavam compenetrados. Uma mulher sentada em minha frente me olha e, com um gesto das mãos, me pede para fechar novamente os olhos. Obedeço e junto-me à corrente de energias do local. Tudo começa a ficar mais calmo. A sensação é confortante e de leveza. Aos poucos, me entrego e deixo de tentar observar o que acontece. O grupo inteiro canta junto. É possível escutar a voz de Márcia puxando a oração do Pai Nosso, seguida em coro por todos. Lentamente, voltamos a abrir os olhos. Os médiuns estão sentados novamente em suas cadeiras, hidratando-se. Alguns dos

presentes têm os olhos inchados, outros pareciam ter acordado de uma sessão de massagem de tão à vontade. Pequenos copos de plástico com água e balinhas de açúcar são distribuídos. Já eram quase 21 horas. O grupo presente vai se movimentando em direção à saída. Márcia parece contente e já retoma a conversa com os demais. Não foi preciso muito tempo para que ela voltasse para sua agitação natural. Ela abraça sua filha de 18 anos, que também participou do trabalho na Segunda Corrente, e vai andando para a saída com o sentimento de mais um dever cumprido. “Eu saio daqui melhor do que eu cheguei. Eu estou trabalhando para mim, sinto que é um egoísmo saudável. O que me faz sair de casa toda terça, quinta e sexta é sim o meu bem-estar. Isso me faz bem, e, graças a Deus, o me fazer bem é fazer bem ao próximo”, diz balançando a cabeça positivamente com um sorriso de orgulho no rosto.

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DOIS DIAS E DUAS NOITES NA RUA: HISTÓRIAS SOBRE GÊNERO, FAMÍLIA E CRIMINALIDADE

ada a pauta sobre passar alguns dias inserido em um ambiente para nós desconhecido, opto pelo não ambiente. Decido ir à rua e conversar com quem não mora, ocupa; com quem não existe, resiste. O objetivo era o de vivência. Por mais fundo que eu tenha ido nessa experiência, vale lembrar que ela nunca poderá se tornar uma vivência; passar meu tempo com pessoas que moram na rua, e durante esses dias me privar dos privilégios que tenho (dinheiro, cama, celular...), foi uma escolha e a volta para casa era iminente. Optei por passar esse tempo com eles na busca de legitimidade, profundidade — e não protagonismo. E se os olhos veem de onde os pés pisam, passo esses dias tentando pisar junto com as pessoas aqui retratadas. Em 1995, existiam 222 moradores de rua cadastrados em Porto Alegre. Esses cadastros contabilizam pessoas que, de alguma forma,

Meninos perdidos Durante o tempo em que passei na rua, conheci algumas crianças.

usaram de algum recurso do Estado ou Município — como serviços de saúde. Em 2011, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) realizou nova contagem desse número, revelando 1.347 indivíduos. Baseado nesse critério de considerar apenas serviços do governo, pode-se supor que o número de pessoas em situação de rua é maior do que o apresentado. No primeiro semestre de 2015, o Projeto Universidade na Rua, da UFRGS, apresentou estimativas de que a população em situação de rua somava entre 3 mil e 5 mil pessoas — contabilizando também as pessoas não cadastradas.

RELATOS DE UM NÃO LUGAR TEXTO E FOTO POR LAUREN GRAEF 24

Daivid tem 16 anos. Conheci o garoto embaixo de um viaduto com mais quatro meninos menores de idade. Quando cheguei, eles estavam sentados sobre um colchão, conversando e rindo bastante. Apresento-me e eles, diferentemente dos adultos com quem falei, começam a me perguntar diversas coisas sobre o porquê de eu estar ali, onde eu moro, se fumo maconha, como fiz pra deixar o cabelo azul, se sou lésbica... Respondida a última pergunta, abre-se um interrogatório a respeito da minha sexualidade. Tento cortar o assunto, perguntando sobre eles. “Ih! A tia ficou com vergonha!”, dizem, às gargalhadas. Ainda sem saber nada sobre eles, sou convidada para ir até a Praça da Alfândega. Durante o caminho, Daivid me conta que conheceu os meninos que andam com ele na vila, todos moravam perto. O irmão mais velho de Daivid é muito amigo do irmão mais velho de Pablo, que tem 11 anos e é o menor do grupo. Os irmãos mais velhos também moram na rua e foi assim que Daivid acabou saindo de casa, para ir junto com o irmão. “Ah, sabe como é, né? Irmão não

é que nem pai, ele me deixa fumá cigarro, entrar nas briga. Mas também me chama na responsa, se eu quero brigar tenho que segurar o BO, né?” Eles sentam em um banco e começam a discutir sobre quem vai entrar no mercado pra pegar chocolate. “Entra com a tia, ela tem cara de playboy!” Vou junto com o Pablo no mercado e ele me conta que carrega um caderno para que as pessoas pensem que ele estuda. “Daí não ficam azucrinando, falando que tenho que estudar pra ser gente. Ninguém nunca pergunta se o cara quer ser esse tipo de gente”. Voltamos com os chocolates e um deles se despede falando que tem que voltar para o abrigo. Daivid pega os chocolates, divide entre nós e manda um dos outros meninos correr atrás do que foi embora para levar um pedaço pra ele. Continuamos conversando, eles me contam sobre suas vidas. Nenhum deles mora permanentemente na rua, alguns voltam para casa dos pais, dos tios, e um dorme na casa da avó quando o avô passa a noite trabalhando.

SE TU FICAR MAIS TEMPO AQUI COM NÓIS, NÃO VAI MAIS QUERER VOLTAR PRA CASA.”

“Por mim, eu não saia daqui né? Mas, às vezes, a mãe passa aqui, me manda ir pra casa, fala que comprou até bolacha recheada... Ela não sabe que aqui nóis ganha muita comida, ainda mais os de menor, né? Sempre ganhamo doce, refri. Se tu ficar mais tempo aqui com nóis, não vai mais querer voltar pra casa.”

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Gênero na rua De acordo com a FASC, 17% da população em situação de rua é composta por mulheres — contabilizando cerca de 230 mulheres nas ruas. Esses dados são de 2011 e também só dão conta de pessoas cadastradas no sistema. De fato, o número de mulheres nas ruas é reduzido — durante os dias em que passei na rua, tive bem mais contato com homens. Carla*, a primeira mulher com quem conversei, comenta a questão de gênero comigo nos primeiros minutos de conversa. “Sempre vejo jornalista homem, uma vez até dei entrevista pra um...

Legal tu aqui.” Aproveito e pergunto sobre ser mulher na rua. Ela conta que é tudo mais complicado, perigoso: “É que nem nos outros lugares, sempre fica mais ruim quando tu é mulher”. Além de Carla, conversei com mais duas mulheres, uma delas, a Nega Lu, que já conhecia há mais tempo e, por isso, acabei dormindo no mesmo lugar que ela — um colchão na frente do Colégio Júlio de Castilhos. Durante essa noite conversamos muito, ela me contou sobre sua família, seus motivos, suas decisões e principalmente sobre as deci-

sões que deveriam ser dela, mas não foram. Ela me conta sobre quando levaram o filho embora, sobre quando foi internada sem pedir e sobre quando, mesmo pedindo, não pode entrar no hospital. Fala sobre todas as vezes em que foi estuprada (mesmo sem usar essa palavra). “Eu moro na rua, os homem nunca vão te perguntar se tu quer transar com eles. Tu tá fumando uma pedra com o mano e, quando vê ele, já te arrastou pro barraco dele.”

“Bonde da Ladaia” Durante os dias em que passei na rua, conheci ainda nove homens que, naqueles dias, estavam dormindo sob um viaduto. Pedi para conversar, um deles responde “não”, os outros começaram a rir. “Liga pra ele não, esse aí é Cara Cortada, é brabo só nas palavra, nunca vi dá soco”. Mais risadas. Eles se apresentam, todos com apelidos — me explicam que não podem ficar dando nome para qualquer um, ainda mais se eu quiser saber das histórias deles. A história deles é que, durante a madrugada, saem pra “assaltar playboy, levar celular, rádio do carro e o que

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NÓIS NÃO SOMOS RUIM. CLARO, ÀS VEZES, BRIGAMO. E JÁ TE CONTARAM, NÉ? A GENTE ROUBA... MAS NÃO É MALDADE QUERER TER COISA BOA.” BAIANO

mais tiver dentro”. Eles têm entre 17 e 26 anos, são todos amigos e, aparentemente, fazem tudo juntos. Contam que, quando conseguem carona no ônibus, vão para a Restinga, na periferia da capital, porque três deles têm namorada lá. “Os outros vão procurar. Eu já tenho minha nega”, conta um dos homens. Teteu, 21 anos, foi expulso de casa há mais de dois anos porque vendia coisas das pessoas que moravam com ele para trocar por droga. “Que nem hoje, tá frio né? Se tu vai dormir na rua, é bom tomar uma cachaça ou até fumar pedra que daí é só festa, nada dói”. Durante a tarde, Baiano se aproxima várias vezes de mim, troca poucas palavras, me oferece água depois cachaça. Até que, quando começa a escurecer, me fala: “o que eu queria te dizer é que nóis não somos ruim. Claro, às vezes, brigamo e já te contaram né? A gente rouba... Mas não é maldade querer ter coisa boa.”

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EM UMA PROFISSÃO MARCADA PELA PRESENÇA MASCULINA, O GRUPO GAIOLA DAS LOUCAS LEVOU ÀS RUAS DE PORTO ALEGRE O EMPODERAMENTO FEMININO

LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER TEXTO E FOTO POR ISABELLA WESTPHALEN

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ra um sábado nublado de outubro quando encontrei Rosinara Vieira, a Rosi, 52 anos, taxista há uma década em Porto Alegre. Íamos almoçar na casa de uma de suas amigas, a colega Andreia Terres. “Vem pela Cristovão que tá tranquilo, a confusão é lá no meio”, avisa Andreia por mensagem de voz, sobre o protesto que acontecia na Vila Cruzeiro, bairro onde mora. “Eu amo dirigir, sempre amei. Posso dizer com certeza que sou apaixonada pela minha profissão”, diz Rosi. Ao chegar, as amigas se abraçam e já começam contando piadas. “Finalmente chegou, não aguentei te esperar. E essa contigo quem é?”, questiona Celi Oliveira, taxista há um ano, sobre a minha presença. O clima é alegre. São inúmeras as histórias para contar e suas conversas começam a tomar conta da cozinha, revelando um pouco do universo ao qual pertencem. Segundo a Empresa Pública Transporte e Circulação (EPTC), existem 400 taxistas

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mulheres cadastradas em Porto Alegre. Esse é um número que vem crescendo rapidamente, mas, por enquanto, não o suficiente para chegar perto da quantidade de homens, cerca de 10 mil. “É uma profissão supermachista. É muito bom, para nós mulheres, estarmos tomando conta desse meio”, opina Marisa Zacca, 61. “Tenho colegas que são muito machistas, mas não sei se é minha postura que não deixa eles chegarem”, diz Andreia, que trabalha no ponto da rodoviária de Porto Alegre há oito anos. Todas começam a falar juntas, dando palpites no assunto, mas Andreia segue seu raciocínio, contando sobre quando teve que conviver com o machismo de um dos colegas de profissão, que lhe mandava “pilotar o fogão e o tanque” em vez de dirigir o táxi. “Teve um dia que ele me pegou de ovo virado e eu revidei. Disse ‘eu concordo contigo. Hoje eu já pilotei o tanque, fogão e mandei meus filhos pra escola. E mais um detalhe, o táxi que eu trabalho é meu, diferente de ti que é empregado de alguém e não deve saber nem fritar um ovo!’”, conta, interpretando a si mesma e completando dizendo que, a partir daquele dia, ele passou a chamá-la de “Dona Andreia”. Arrancando aplausos das amigas, que elogiam sua postura, Andreia sorri orgulhosa de sua atitude.

Preconceito em casa Não foi somente nas ruas da cidade que Andreia sofreu com a reprovação dos homens, mas também dentro de sua casa, quando o então marido comprou um táxi e não a deixava usá-lo. “Ele dizia que isso era coisa de quem queria vadiar, principalmente se fosse mulher”. Diante da negativa do ex-companheiro, Andreia precisava pensar em uma solução, mas teria que agir em segredo. Com a demissão da faxineira que cuidava de sua casa, Andreia viu uma oportunidade e fez uma proposta ao marido. “Eu perguntei pra ele se, caso eu conseguisse dar conta do mercadinho que a gente tinha, dos filhos e da casa, ele me pagaria o valor que antes pagava para a faxineira”, explica. Deu certo. E com o dinheiro que recebia do então marido, Andreia pagou as aulas da autoescola e concluiu o curso, tudo às escondidas. Mesmo depois da separação, os incômodos continuaram. “Por motivos que prefiro não comentar, eu quis que ele ficasse com os dois táxis que a gente tinha. Mas a juíza que cuidava do nosso caso não deixou, exigiu que um ficasse para mim. Fiquei com um dos táxis, e ele continuou não aceitando”, explica. Andreia e o ex-marido trabalhavam no mesmo ponto de táxi, logo que ela começou

seus serviços. “Nos primeiros meses, ele se retirava do ponto quando eu chegava. Hoje, depois de 10 anos, ele aceita um pouco melhor”, conta, sorrindo. Em meio a risadas, uma delas pergunta se ele já havia visto o carro novo de Andreia. “O sorriso dela diz tudo”, grita Celi, enquanto todas caem na gargalhada, comemorando a felicidade da amiga.

Com a inovação dos aplicativos de celular para chamar táxi, as coisas ficaram mais simples e seguras para as taxistas. “Eu me sinto mais segura trabalhando com aplicativo. Raramente pego passageiros na rua, só aqueles que eu tenho fixo e já conheço”, explica Rosi, que prefere trabalhar de dia. Isabel Machado, a Bel, também acha que os aplicativos facilitam a vida dos taxistas e a tornam mais segura, principalmente para quem trabalha à noite, como ela, Marisa e Andreia.

ELE DIZIA QUE ISSO ERA COISA DE QUEM QUERIA VADIAR, PRINCIPALMENTE SE FOSSE MULHER. ANDREIA TERRES

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“Mulher minha não dirige táxi” Colegas e vizinhas, Andreia e Bel são amigas de infância. “A gente se criou juntas, muitas vezes eu fui até mãe da Deia”, conta Bel, enquanto busca o abraço da amiga. Bel tirou a carteira de motorista aos 25 anos, mas ainda não tinha acesso a nenhum carro. Foi quando o marido comprou um táxi que ela “reconheceu”, como ela mesma gosta de dizer, a profissão que a acompanharia por 16 anos de sua vida. “Ele não queria que eu trabalhasse no táxi. Eu disse que se ele não me deixasse, me separava dele e exigia meus 50% no negócio. Ele pensou que eu fosse dar umas voltas e desistir, mas não”, conta, sorrindo, orgulhosa de sua decisão de confrontar o parceiro, que hoje aceita e apoia sua escolha. A história de Rosi também começou com implicância e olhares tortos do namorado na época, que também era taxista. “Tinha uma mulher que era colega de trabalho

dele, e eu achava o máximo vê-la dirigindo, achava poderoso”, comenta. Mesmo com insistência, o namorado não lhe deixava dirigir; segundo Rosi, ele se justificava dizendo que “mulher dele não dirigia táxi”. Com o passar dos anos, Rosi vendeu o carro que tinha na época e investiu na carreira para se tornar taxista até que passou a fazer parte de uma frota de táxis da capital, da qual o dono foi seu marido por 10 anos. Para Marisa, que havia trabalhado a vida toda em áreas de administração e educação, a oportunidade de se tornar motorista de táxi a salvou da depressão, após perder muitas oportunidades de emprego. “Achei que nunca mais fosse trabalhar na vida. Comecei a ficar triste e não queria sair mais da cama, até que meu irmão, que é taxista, me mandou levantar, porque ele iria pagar um curso de taxista pra mim. Fiquei apavorada, mas aceitei”, diz sobre o começo de sua trajetória que já dura cinco anos.

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Um mundo de histórias Quando pergunto sobre os casos que ouvem dentro do táxi, as cinco concordam que todo taxista tem milhares de histórias para contar, boas e ruins. “Ah, minha filha, tem tantas histórias”, diz Marisa, entre um suspiro e outro. Para Rosi, é muito difícil não se prender aos problemas das pessoas. No embalo da conversa, Andreia compartilha a história de uma passageira. “Estávamos conversando e a guria me contou que estava indo até o hospital para confirmar se estava com câncer ou não. Depois que ela saiu, eu tive um ataque de choro absurdo, tive que parar o carro”, conta, com os olhos já marejados. Situações desconfortáveis com outros colegas de profissão também fazem parte do trabalho. “Eu já bati boca com muito taxista”, afirma Marisa. Às vezes, situações perigosas surgem, como quando Andreia teve que tirar uma menina de dentro de um táxi. “Ela estava bêbada e o taxista que a levaria disse que ‘iria faturar’ a guria. Falei que, se ele arrancasse, eu ia atrás dele chamando a polícia”, lembra Andreia, complementando que a passageira demorou semanas para lhe pagar a corrida e ainda lhe acusou de ter roubado seu celular. As histórias das cinco amigas têm traços em comum. Revelam a dificuldade que existe para que mulheres possam se inserir no neste mercado. São trajetórias de superação, nas quais

Da esq. pra dir.: Andreia, Marisa e Rosi; à frente: Bel e Celi

tiveram de traçar e planejar bem seus objetivos. Hoje, o grupo das “Luluzinhas”, rede de conversas pela qual Rosi, Marisa, Bel, Andreia e Celi se conheceram, tem 45 integrantes. “Essa é a parceria que a gente tem, de se apoiar sempre”, salienta Andreia. “Nós formamos uma família mesmo. Eu me sinto mais à vontade aqui na casa da Deia do que na casa de alguns parentes meus”, desabafa Rosi. Sobre a inserção das mulheres nesse universo, as amigas concordam que o preconceito ainda é grande. Mas Marisa tem uma resposta na ponta da língua: “O machismo existe, e ainda vai existir por muito tempo. Só que a gente não pode ficar parada diante disso, tem que ir em frente”. 31


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m uma sala de cinema de 70 lugares, oito pessoas estão sentadas e silenciosas como se não estivessem ali, o que não seria surpreendente caso esta fosse uma sala comum, mas não é. No telão, um filme de sexo explícito. O lugar é o Cine Atlas, localizado no centro de Porto Alegre.

“SHOW DE SEXO AO VIVO”: POR DENTRO DA ROTINA DE UMA SALA DE CINEMA NO CENTRO DE PORTO ALEGRE

Avenida Júlio de Castilhos, número 450, 16 horas, terça-feira. Para Carlos Fernando, um dia comum de trabalho. Por trás de uma roleta, parecida com catraca de ônibus, ele se apresenta já se recusando a falar. “Olha, guria, já veio aqui o pessoal da PUC, da Unisinos, da UFRGS e não adianta. Não posso falar nada. Quando conversei contigo no telefone, eu já sabia que não ia dar para falar, mas fiquei chateado em dizer”. O medo de se comprometer faz com que o dono do cinema, Marcelo, empurre para o funcionário a tarefa de dispensar qualquer curioso que tente se intrometer para saber mais do seu negócio. A bilheteira da manhã pediu para ligar para Marcelo; Marcelo pediu para ligar para Carlos Fernando; Carlos Fernando diz, enfim, que vai me receber. Quando chego no local, Carlos Fernando diz que Marcelo não o deixou falar. “Ele tem medo que as coisas caiam na internet, Facebook... Sabe como é, não podemos comprometer os clientes”. O bilheteiro comenta que até achou que eu não ia mais aparecer e pergunta onde estava a amiga que eu ia trazer junto. Conversa vem e vai, seu Carlos já está mais solto. “Simpatizei contigo, tu és parecida com uma sobrinha minha, a Jordana. Me diz aí o que tu queres saber, vou falar. Só não me pergunta sobre os clientes”. O Cine Atlas tem 33 anos, foi inaugurado em junho de 1982. Na época, os filmes reproduzidos no telão eram dos gêneros ação, aventura e romance, como nos cinemas tradicionais. Em 1988, o estilo mudou para os filmes eróticos.

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PORNÔ EM LOOPING NO CINE ATLAS TEXTO E FOTO POR ANA LÍVIA MONÇÃO

Carlos trabalha lá desde 2001. Segundo ele, com o acesso facilitado que as pessoas têm para encontrar esse tipo de entretenimento dentro de casa, o público caiu “uns 50%” desde que ele começou a trabalhar lá.

Pornô na internet De acordo com dados divulgados em 2014 pela revista americana The Week, 70% dos homens com idades entre 18 e 24 anos visitam sites pornôs ao menos uma vez por mês, e 266 novos sites pornôs surgem na internet todos os dias. Uma pesquisa realizada em 2012 pelo site Extreme Tech concluiu que o acesso a conteúdos pornográficos

gera cerca de 30% do tráfego de dados na internet. Além do Atlas, Marcelo tinha outros dois cinemas privê, o Apolo e o Vitória, que já fecharam, e uma locadora de filmes pornô, ainda em funcionamento. Para tentar alavancar os negócios, Marcelo colocou uma stripper para fazer shows no Atlas. A dançarina trabalhou lá por um tempo, ganhava mais gorjetas dançando do que recebia como remuneração das apresentações. “Ela vinha trabalhar com umas botas acima do joelho e saía daqui com o cano cheio de notas. Somando tudo, ganhava bem. Acabou desis-

tindo porque engravidou e foi cuidar da criança”. Foi com a saída da stripper que surgiu a ideia de contratar um casal para fazer sexo ao vivo no palco. O combinado era um show de meia hora. Mas o projeto não durou muito tempo. Seu Carlos diz que faltava comprometimento dos dois. “Começaram a diminuir o tempo da apresentação para 20 depois para 15 minutos. O público não gostava disso, queriam assistir pelo tempo que tinham pago, saíam frustrados. Isso quando eles apareciam. Às vezes, a gente vendia os ingressos, o pessoal entrava, ficava esperando, e eles não vinham”.

Das 10h às 20h Enquanto eu conversava com seu Carlos, apareceram três pessoas, duas ficaram paradas olhando para os cartazes colados na janela de vidro ao lado da catraca de entrada que indicavam qual o filme da semana. Um deles, um rapaz negro de estatura mediana, gorducho e que não devia ter mais que 25 anos, pergunta sobre a sessão de sexo ao vivo e sai decepcionado com a resposta negativa. “A maioria sempre vem perguntar sobre isso. O Marcelo tem que trocar logo o letreiro...”, diz seu Carlos, referindo-se à fachada antiga onde ainda se lê “Show de sexo ao vivo”.

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AQUI É MAIS CALMO QUE UMA IGREJA. UM SILÊNCIO, NÃO TEM BRIGA. SÓ GENTE DO BEM VEM AQUI. VALDIR

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O público atual é de 80 a 100 pessoas por dia, com pico do meio-dia às 13h. Se chove, aumenta o movimento. A maioria são homossexuais sozinhos, mas também entram casais hétero. “Tem uns casais que entram e saem acompanhados, o que eles vão fazer a gente imagina, né? Mas não é da nossa conta. Tem umas gurias, da tua idade assim, uns 20 anos, que entram e dizem: ‘quero só dar uma olhadinha’. Elas entram e saem em cinco minutos”, conta, às gargalhadas. Para entrar, basta pagar R$ 10, com direito a ficar o tempo que quiser. Segundo o bilheteiro, tem gente que entra às 10h e só sai às 20h. O horário de funcionamento durante a semana e aos sábados é das 10 às 21h, e, aos domingos e feriados, das 10h às 18h. Os filmes são comprados em São Paulo, em grandes quantidades, e o mesmo DVD é exibido repetidamente ao longo do dia, durante toda a semana. Seu Carlos trabalha das 15h30min até fechar o cinema.

Além dele, trabalham lá uma bilheteira, que fica das 10h às 15h30min, uma senhora que faz a limpeza todos os dias das 9h às 10h da manhã, e um segurança, seu Valdir. Quando escuta seu nome, Valdir se aproxima e participa da conversa. Ele trabalha lá há um ano e meio. Fala pouco, meio envergonhado, mas diz que gosta de trabalhar no Atlas. “Aqui é mais calmo que uma igreja, um silêncio, não tem briga. Só gente do bem vem aqui”.


O HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ FOI CONSTRUÍDO POR GETÚLIO VARGAS DURANTE O ESTADO NOVO E INAUGURADO EM 11 DE MAIO DE 1940 PARA ISOLAR OS PACIENTES DIAGNOSTICADOS COM LEPRA

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viagem começa tranquila, asfalto bom, recém reformado e poucos carros. O ar poluído e os barulhos da capital vão ficando, aos poucos, para trás e dando lugar para a calmaria e o cheiro de fazenda. A estrada é rodeada de árvores e grandes terrenos ocupados com gado ou plantações. Durante 60 quilômetros este é o cenário até a chegada a uma precária estrada de barro que leva ao Hospital Colônia de Itapuã na região metropolitana de Porto Alegre. Na entrada que remete à porteira de um sítio comum, encontra-se um vigilante que prontamente vem reconhecer os visitantes. Após a identifi-

DO OUTRO LADO DO MURO TEXTO E FOTOS POR EDUARDA LEMOS

cação, começa o passeio no tempo. Dois quilômetros adentro é possível avistar as construções que geraram grandes mudanças no Rio Grande do Sul na década de 1940. A Colônia, com 1.527 hectares, oferecia aos moradores uma estrutura completa, com moeda própria, prefeitura, escola, delegacia, hospital, mercado, igrejas, salão de diversão, cemitério, campo de futebol e cancha de bocha. O espaço era composto por 20 pavilhões Carville, modelo mundial de leprosários. Homens à esquerda, nas casas amarelas, e mulheres à direita, nas brancas. Cada pavilhão acomodava 12 quartos, cada um com capacidade para três camas. Ao todo, 2.474 pacientes passaram por aqueles quartos e toda estrutura do local.

Rita Camello, enfermeira chefe do hospital há nove anos, é a responsável por contar a história da instituição e dos moradores aos visitantes. Logo na chegada, um grande arco onde se lê: “Nós não estamos sós”. Antigamente, havia ali um grande portão de ferro que separava os doentes das pessoas saudáveis. Pessoas de todo Rio Grande do Sul eram levadas para o Hospital Colônia de Itapuã por meio de um carro preto chamado de “carro de profilaxia da lepra”. “Os que estavam dentro deste carro tinham uma autoridade policial. Depois que o paciente

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era examinado, e a doença, constatada, ele seria trazido pra cá, quisesse ou não, independentemente se a família fosse rica ou pobre. Ele seria trazido para cá para proteger as pessoas saudáveis”, conta a enfermeira.

ELES SENTIAM SAUDADE DE CASA, QUERIAM VER OS SEUS. ELES NÃO AGUENTAVAM O ISOLAMENTO COMPULSÓRIO, NÃO AGUENTAVAM O MUNDO QUE LHES ERA OFERECIDO AQUI DENTRO. RITA CAMELLO

Uma vez dentro dos portões de Itapuã era praticamente impossível sair. Além dos portões de ferro, existia uma grande cerca de arame farpado e seguranças da guarda municipal fazendo a vigilância 24 horas por dia. Do lado de dentro dos portões, também havia seguranças, papel desempenhado por pacientes. “Além de ser um doente igual aos outros, era imposto a este paciente que cobrasse dos companheiros atitudes que ele com certeza não gostaria pra ele”, relembra Rita. Por ser considerada uma cidade independente, também existia um prefeito, escolhido dentre os moradores. Este acatava as ordens que vinham do prédio administrativo, onde representantes do Governo Estadual e irmãs franciscanas seguiam, por sua vez, instruções de Brasília. O prefeito nomeava um delegado que era responsável pela segurança e ordem do local. Se um paciente fugisse ou desacatasse alguma lei, iria para prisão; no primeiro delito, ficaria sete dias na solitária, no segundo, 14 dias e

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assim por diante, numa progressão geométrica. Muitas pessoas fugiam ou cometiam suicídio nos primeiros anos por sentirem saudade de suas famílias, de onde, muitas vezes, eram retirados à força. “Eles sentiam saudade de casa, queriam ver os seus, não aguentavam o isolamento compulsório, não aguentavam o mundo que lhes era oferecido aqui dentro”. Do outro lado, muitas famílias que tinham um parente levado pelo carro preto falavam para os vizinhos que o doente tinha ido trabalhar no exterior e, na calada da noite, mudavam-se para outro Estado para não serem alvo de preconceito. No período da inauguração, duas igrejas foram construídas no local, a evangélica luterana e a católica. Enquanto o pastor costumava celebrar o culto, a religião evangélica era respeitada; a partir do momento em que os cultos pararam, todos os evangélicos foram obrigados a frequentar a missa católica diariamente e comungarem — aquele que não comungasse não receberia o almoço. 37


A religião católica se tornou obrigatória para a sobrevivência no local. “Eu escutei de uma paciente uma vez: ‘sabe, dona Rita, eu nunca entendi o que foi que dizem da tal hóstia que eu tinha que todos os dias engolir, mas eu precisava engolir porque eu precisava de comida”, relembra Rita.

Nunca uma mãe tocou no seu filho

ATUALMENTE 27 EX-HANSENIANOS RESIDEM NO HOSPITAL COLÔNIA DE ITAPUÃ E RECEBEM UM SALÁRIO MÍNIMO DO GOVERNO. TODOS CONTAM COM O AFETO E ATENÇÃO DA ENFERMEIRA RITA

O casamento entre homens e mulheres era uma prática permitida na colônia e dava, aos recém casados, o direito de viverem juntos em uma das 28 casas geminadas do local. Assim que uma mãe engravidasse e fosse ter o seu bebê, o parto era feito por uma freira em uma cadeira ginecológica especial. De outra sala e por meio de um vidro colocado na altura do joelho da mãe, o parto era feito pela irmã franciscana. Nascido o bebê, a freira mostrava a criança para a mãe pelo vidro e dizia para ela escolher um nome para batizar a criança. Logo após os primeiros cuidados, o bebê era encaminhado para o Amparo Santa Cruz, local criado para abrigar os filhos dos moradores do Hospital Colônia. Nunca uma mãe tocou o seu filho. As visitas eram feitas mensalmente, quando um ônibus levava as freiras e as crianças até a frente do portão do hospital. De dentro do coletivo, as freiras mostravam os filhos a seus pais, que não saíam de trás dos muros. Ao todo, 153 crianças nasceram no hospital. Rita conta que, em um determinado momento, a administração quis fazer uma reforma nos muros e foi impedida pelos pacientes. “Uma vez que a vida me pôs aqui dentro e que isto limitou-me de ter uma vida normal, ninguém agora vai quebrá-lo. Nós queremos este muro de volta, exatamente como ele estava porque, para vocês, ele tem um significado de um muro comum, para nós é o muro onde nós nos apoiávamos para olhar para os nossos filhos, ou para olhar pela possibilidade

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de um dia sairmos. Ele não foi construído como um muro comum, ele foi construído com cimento e lágrimas. Foram nossas lágrimas que consolidaram o cimento, não foi uma mera construção”, relembra a enfermeira. Em 1949, uma luz foi acesa para os pacientes de Itapuã. A Sulfona chegou ao Brasil e começou a ser distribuída aos hansenianos. O remédio deixa a doença estagnada, cortando o contágio e os danos causados ao doente. A partir daí, os moradores da Colônia retomaram a possibilidade de vida além dos muros. Muitos tentaram construir uma vida “normal” na sociedade “limpa”, alguns até conseguiam, mas, a partir do momento que algum cidadão percebia traços de um ex-hanseniano, ele imediatamente se distanciava do antigo doente e afastava a todos que podia. O preconceito com os pacientes era, e é, algo muito presente no dia a dia. “Doutora, esses dias eu estava no ônibus e um homem sentou do meu lado. Quando ele

É O MURO ONDE NÓS NOS APOIÁVAMOS PARA OLHAR PARA OS NOSSOS FILHOS. ELE FOI CONSTRUÍDO COM CIMENTO E LÁGRIMAS. RITA

olhou as minhas mãos, saiu rapidinho de perto de mim. Eu fui e voltei de Porto Alegre sentado sozinho”, conta Osvaldo (foto), um dos 27 pacientes ex-hansenianos que ainda vivem na Colônia Itapuã e tem nas mãos com manchas escuras e feridas as marcas da doença. Em meados de 1970, o hospital colônia começou a esvaziar devido à cura da doença e a opção dos pacientes terem a oportunidade de retomarem suas vidas fora dali. O Hospital São Pedro, neste período, passava por um momento de superlotação, por isso, alguns pacientes homens com esquizofrenia crônica, foram enviados para a colônia para lá viver e trabalhar. No meio de uma história tão marcada pelo sofrimento, é possível encontrar pessoas como a enfermeira Rita que dedica sua vida aos pacien-

tes do Hospital Colônia de Itapuã. O amor com que exerce sua profissão, muitas vezes, é questionado por seus colegas que a chamam de “louca” por expressar, sempre que pode, o seu afeto por todos os pacientes. Nas palavras de Rita, é possível encontrar carinho, afeto e alívio ao contar histórias com a certeza de que os tempos escuros ficaram para trás e que hoje o que precisa ser feito é amenizar a dor que restou. Atualmente todos os 69 moradores do Hospital Colônia são livres para ir e vir. Todos os que moram lá tem o direito de receber visitas, mas infelizmente não é uma realidade muito comum. Os pacientes que já morreram no hospital foram enterrados no cemitério do local e até hoje nenhuma família foi em busca do corpo de seu parente.

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NA SALA COM O CASAL ERÓTICO

Luciano se referia aos filhos: Igor* e Rafaela*, 8 e 12 anos, respectivamente, que não têm ideia do que os pais fazem para sustentar a família. E são eles a motivação, segundo a mãe, para ela ter começado a trabalhar junto ao marido. “Eu faço só pensando que é mais um na minha carteira. Aí saio e já compro coisas para as crianças. É sempre pensando nelas”.

TEXTO E FOTOS POR VICTORIA CAMPOS

Na televisão, o programa da Eliana era alto o suficiente para atrapalhar a gravação da voz dos entrevistados. Percebo que os filhos realmente não sabem qual o trabalho dos pais quando sou apresentada ao mais novo, pela mãe, como “a chefe dos panfletos”.

N

A HISTÓRIA DO CASAL QUE SUSTENTA A FAMÍLIA COM O DINHEIRO DO SEXO. OS DOIS FILHOS, DE 8 E 12 ANOS, ACREDITAM QUE O DINHEIRO VEM DE PANFLETAGEM

os classificados, o “Casal Erótico” é o “moreno de corpo atlético” e a “morena clara de quadril grande”. Da porta pra dentro da casa, no bairro Glória, são Luciano e Luciana, pais de Igor* e Rafaela*.

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Cento e sessenta reais é o preço que se paga por uma hora de sexo com eles. Se preferir, por R$ 100, o cliente tem a relação apenas com Luciano. A mulher não atende sozinha. Diz que não se sente à vontade longe do parceiro cujo relacionamento já marca 14 anos — o marido também prefere que seja assim. Mas isso não quer dizer que as propostas não surjam. “Ele (o cliente) queria que eu ficasse olhando, batendo punheta e nem tocasse na minha mulher”, conta Luciano sobre um dos pedidos já recusados. Luciano, 37 anos, e Luciana, 33, tiram a renda principal da família na cama. Em hotéis, motéis ou na casa de clientes, eles encontraram uma maneira de, segundo o marido, “conseguir dinheiro fácil e rápido”. Quando começaram o relacionamento, ela, que frequentava a igreja evangélica, acreditava que o namorado trabalhava com entregas para uma empresa. Mesmo assim, disse que não se importou ao saber das reais atividades do marido, que já fazia sexo por dinheiro quando se conheceram, fato que veio à tona apenas alguns meses depois do início do relacionamento. “Eu falei: é teu, faz o que tu quiser. Frente ou verso, é tudo teu”, complementa, enquanto o marido diz “Shhh. Cuida as crianças”.

A família de ambos também acredita que o casal vive do dinheiro da distribuição de panfletos em semáforos. Luciano até tem outro trabalho — é vendedor no ramo alimentício —, mas diz que a “crise do país dificultou os negócios ultimamente”. O casal conta não ter restrições quanto aos clientes. “Tá na rede é peixe”, diz Luciano. A esposa complementa dizendo que só não aceitam “nojeiras”, relembrando um caso quando um cliente telefonou e perguntou se o casal fazia “chuva dourada”, nome popular dado ao ato de urinar sobre o parceiro, chegando-se, em alguns casos, a beber a urina. Recusaram a proposta.

O ônus do trabalho é nunca saber quem entrará pela porta. “Tem gente que fede. Aí, depois que tu tá lá, tem que disfarçar”, afirma Luciano. E, mesmo ele, que assume “fazer pelo prazer”, confessa que, às vezes, “não vê a hora daqueles minutos acabarem”. Desde que ingressou no ramo, Luciana só parou nas gestações e quando fica de “resguardo”, como o marido chama o período da menstrução. Mesmo tendo camisinha e anticoncepcional como “itens indispensáveis”, Luciana “tem alguns sustos quando a menstruação atrasa”. Em relação aos exames médicos, Luciano afirma que fazem “de vez em quando”. Ambos acreditam que o seu diferencial é o fato de serem “casados mesmo”, caso raro segundo Luciano. “Maioria é namorico. Não rola a química. O casal que é casado mesmo, que tem a rotina, se tiver a mente aberta e conversar sobre isso, não tem por que ter problema”.

EU FAÇO SÓ PENSANDO QUE É MAIS UM NA MINHA CARTEIRA. AÍ SAIO E JÁ COMPRO COISAS PARA AS CRIANÇAS. É SEMPRE PENSANDO NELAS. LUCIANA

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PRA MIM, É SÓ PELO DINHEIRO. EU SÓ ME ESTIMULO COM O MEU MARIDO, ENTÃO ELE FAZ ALGUMA COISA EM MIM PRIMEIRO. EU SÓ PENSO QUE, JÁ QUE ESTÃO PAGANDO, EU VOU FINGIR O QUE FOR PRECISO. LUCIANA

Eles garantem que não há ciúmes ou discussões. “Na hora H, a gente aceita qualquer negócio”. E a esposa reforça: “Até porque, pra mim, é só pelo dinheiro. Eu só me estimulo com o meu marido, então ele faz alguma coisa em mim primeiro. Às vezes, eu chego até a colocar algum creme, principalmente para o anal. Eu só penso que, já que estão pagando, eu vou fingir o que for preciso”. O marido emenda a conversa dizendo que a mulher engana muito bem. “Às vezes, ela dá um gemido no meu ouvido e eu chego no meu máximo. Se ela engana até a mim, que sou o marido, imagina os outros”. O tom da entrevista era moderado por Luciano, que se preocupava constantemente se as crianças estariam escutando. Quando perguntei como eles fazem para que os filhos não descubram, ele mais uma vez toma a frente na resposta: “A minha guria a gente tenta preservar. Agora o guri... Ah, meu guri é safado!”. Então, eles me explicam que, com Igor*, apesar de ser mais novo que a irmã, o diálogo sobre sexualidade é mais aberto e não veem problema nenhum se ele desejar seguir os passos dos pais. A maioria dos clientes são homens que procuram, sozinhos, pelos serviços do

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casal ou apenas de Luciano que, embora faça sexo com os dois gêneros, diz que prefere a relação com mulheres. Luciana não parece incomodar-se com o assunto nem com a situação. Inclusive, conta que, às vezes, ela acompanha o marido apenas para poder estimulá-lo sexualmente, pois ele não se excita sozinho com um homem. O casal concorda que é por curiosidade que as pessoas pagam por sexo. “Já teve um casal que, da primeira vez, só fazia o que a gente começava. Aí, na segunda, já fazia tudo que tinha direito e pediam coisas que, antes, tinham vergonha”, exemplifica Luciana. Embora não saibam ainda os próximos passos profissionais, a ideia é conseguir um sócio que entre com o capital financeiro para que eles possam ter um lugar próprio para as atuações do Casal Erótico. “Eu queria fazer uma casa de massagem. Porque nosso grande

problema é não ter como colocar isso dentro da minha casa com meus filhos”, comenta Luciano. Para divulgar os serviços, a dupla conta com anúncios semanais em dois jornais locais. Luciana reclama: “Pra mim, ‘quadril grande’ é uma pessoa gorda, mas o jornal não deixa a gente colocar ‘bunda gostosa’”. Além disso, mantêm um site com informações de contato e uma galeria de fotos, onde o casal aparece em registros pornográficos. O desafio futuro é a mudança de residência. Junto aos dois filhos, o casal vai se mudar para uma casa no terreno da mãe de Luciana, em Esteio, região metropolitana de Porto Alegre. Pergunto como vai ser morar no mesmo lugar que a sogra, e, mesmo com receio, Luciano responde que não pretende deixar de atender seus clientes. “Nem se eu fosse rico eu parava. Por mim, eu faria sexo todo dia, toda hora”. Quando questiono se os filhos seriam um motivo para eles pararem, novamente quem responde é Luciano, dizendo que realmente não sabe como serão as coisas quando eles crescerem. A conversa é encerrada pelo toque do telefone de Luciano. “Ah, só falta ser cliente, né! Mas hoje não. Até porque ela tá naquela semana de resguardo”, disse o homem, pegando o aparelho e vendo que se tratava da mensagem de um cliente interessado. Tento prosseguir com a conversa e pergunto como é a vida sexual dos dois fora dos

quartos de hotéis ou motéis, e Luciano responde que o sexo entre eles só melhorou depois que começaram a fazer o serviço juntos. Quando encaro Luciana para saber o que ela acha disso, ela olha para mim, respira fundo e insiste. “Pra mim, sexo é dinheiro. Só isso”. E pela primeira vez, duas horas e meia depois que começamos a entrevista, a esposa discordou do marido, e o silêncio invade o espaço.

*Nomes fictícios para proteger a identidade dos menores

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SOB AS LONAS DO CIRCO

TEXTO E FOTOS POR VINÍCIOS SPARREMBERGER

É

por trás das cortinas do Tihany que, em meio à escuridão dos bastidores, entre risos contidos e conversas cochichadas, acrobatas, dançarinos, equilibristas, o palhaço, o mágico e assistentes aguardam o início de cada espetáculo. Entre um ato e outro, as histórias se revelam. Do iniciante Thiago ao experiente Javier. Da espontaneidade de Henry à seriedade e concentração de Ambra e Enkhbat. Um universo onde 60 artistas de 25 nacionalidades se encontram e fascinam pela técnica e precisão a cada movimento.

Há quem chegou há apenas um ano e quem já está prestes a completar a maioridade sob as lonas. Com 35 anos, o cubano Javier Morales acumula mais de 20 dedicados à vida circense, 16 deles só no Tihany. Para o artista, a profissão surgiu como um percurso natural. Filho de acrobata, trilhou o mesmo caminho do pai e manteve a tradição familiar que está na terceira geração. “Nasci e cresci nesse ambiente, vivendo e respirando a magia do circo”, conta. O brasileiro Thiago Camargo, por outro lado, é o primeiro da família a embarcar nesse mundo que encanta crianças e adultos. Aos 24 anos, ainda é um iniciante no ramo, mas não esconde que a escolha foi um acerto. “Não me vejo fazendo outra coisa tão cedo”. Amante da ginástica olímpica, Thiago iniciou aos oito anos, por diversão. “Pra falar bem a verdade, eu comecei por causa da cama elástica. Eu gostava de ir só para brincar”, confessa, rindo. Dos saltos na infância até as acrobacias foram 15 anos. O suficiente para garantir uma vaga no maior circo da América Latina. Em 2014, durante a passagem do espetáculo pelo município paulista de Americana, sua cidade natal, Thiago decidiu trocar os treinos e competições pelas apresentações circenses.

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Trajetórias O ritmo no circo é acelerado. Em média são 40 apresentações mensais, além dos treinos técnicos durante a semana. “O nosso maior desafio é a idade. Os anos passam, as dores começam, a recuperação se torna mais lenta”, destaca Javier (foto ao lado), que ainda não pensa em parar. Ele, Thiago e outros 13 acrobatas desafiam os limites do corpo em números que exigem rigoroso preparo físico, como a maca russa. Impulsionados por uma espécie de pêndulo, os artistas saltam cerca de nove metros e deslizam sobre tecidos sustentados por colegas. “É preciso muita concentração. Um erro pode ser fatal”, explica o brasileiro.

Javier e Thiago são reflexos da pluralidade que envolve o caminho até o circo. O primeiro é graduado pela Escola Nacional de Circo de Cuba, onde estudou durante quatro anos antes de encarar os palcos profissionalmente. Thiago (foto ao lado), em contrapartida, encontrou no picadeiro uma forma de conciliar a paixão e as responsabilidades financeiras. “A ginástica olímpica é tudo para mim, mas não dá dinheiro e eu precisava trabalhar”, diz. O circo também foi a melhor escolha para a dupla de ex-ginastas Ambra Yadamtsoo, 38 anos, e Enkhbat Jamyandorj, 39. Naturais da Mongólia, país localizado no continente asiático, eram ainda adolescentes quando o país entrou em crise com a queda da União Soviética, no início da década de 1990. De lá, foram para a França e, desde que conheceram o Tihany, o mundo é o seu lar.

O ESPÍRITO DESCONTRAÍDO É A TÔNICA DO LOCAL. SEGUNDO JAVIER, APESAR DO ESPETÁCULO SÓ CONTAR COM UM PALHAÇO, TODOS ALI ADORAM FAZER UMA GRACINHA

SEJA BEM-VINDO AOS BASTIDORES DO MUNDO MÁGICO DO CIRCO. FORA DO PALCO, AS HISTÓRIAS, OS SENTIMENTOS E A DEDICAÇÃO DE QUEM FAZ O SHOW ACONTECER

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É DIFÍCIL FAZER O TRABALHO. NÃO É ALGO ENGRAÇADO, É MUITO SÉRIO. VOCÊ ESTÁ SOZINHO NO PALCO E TEM QUE ENFRENTAR UM PÚBLICO DIFERENTE A CADA DIA.

A dupla (foto abaixo) é vencedora do primeiro prêmio do Festival do Circo de Barcelona, na Espanha. Com a visibilidade, foram convidados a integrar a equipe do espetáculo, onde há 14 anos apresentam um número altamente técnico. Trata-se de uma demonstração de força, equilíbrio, resistência e concentração. No ápice da apresentação, seus corpos alcançam a elevação de 180 graus na vertical. “É preciso 100% de confiança no seu parceiro para fazer um número como esse. Se um não está bem, não dá simplesmente para substituir”, diz Enkhbat.

HENRY AYALA

Os shows apresentam, ainda, um personagem que sobreviveu às mudanças impostas pelo tempo. Com 35 anos, o venezuelano Henry Ayala Junior é o único palhaço do circo e tem o desafio de arrancar gargalhadas do público sem verbalizar sequer uma palavra. “É difícil fazer o trabalho. Não é algo engraçado, é muito sério. Você está sozinho no palco e tem que enfrentar um público di-

Príncipe dos palhaços

ferente a cada dia, tem que buscar um estilo que faça todos se sentirem bem”, desabafa Henry, que está há seis anos na companhia. Conhecido como o “príncipe dos palhaços”, título conquistado em festivais da Inglaterra e de Moscou, Henry nasceu na Venezuela, mas é verdadeiramente um cidadão do mundo. No Tihany, tem a companhia do pai e do irmão Ângelo. “Meus filhos são a sexta geração de uma família tradicional de circo. A mãe deles também é artista, mas escolheram viver comigo”, conta o patriarca da família Ayala, hoje com 62 anos. Poucos percebem, mas o palhaço inspirado em Charles Chaplin, interpretado por Henry (foto acima), é também uma das principais atrações em outra função, a de equilibrista. Com a luz baixa e trilha sonora de tensão, Ayala, junto com o pai e o irmão, atravessa de um lado ao outro em cima de cabo de aço, a nove metros de altura e sem rede de proteção. Ora com os olhos vendados,

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ora de marcha a ré, ora com uma barra de ferro nos braços, o número deixa o público paralisado, sem desgrudar os olhos do palco. “É complicado. Tem que confiar na pessoa com quem você está trabalhando. E quem melhor em que se confiar que o seu pai? Ele me dá segurança. Ele me pede algo e me faz acreditar que eu posso fazer”, explica Henry. A vida no circo é peculiar. Enquanto o público está de folga, os artistas trabalham. Enquanto o público trabalha, eles estão de folga. Com raras exceções, suas casas dividem-se entre os palcos e um quarto de hotel. Para os artistas, as férias significam deixar de viajar. “É difícil, há a saudade da família que ficou em nossa terra, mas com internet, hoje a comunicação fica fácil e dá para aguentar”, conta o ex-ginasta Ambra, casado com uma das bailarinas do circo, com quem tem duas crianças. Ele confessa que, daqui um tempo, pretende parar de viajar para que as filhas de oito e cinco anos estudem regularmente. A ideia, porém, já foi adiada algumas vezes. “Tomar essa decisão significa encerrar um ciclo. É romper com tudo aquilo que você está acostumado”, diz o atleta. O sentimento de Ambra é compartilhado por todos. O picadeiro é mais do que apenas o local de trabalho. O príncipe dos palhaços não tem dúvidas: o palco é a medicina para os seus problemas. “As pessoas vêm até o circo para se divertir, rir, esquecer dos problemas. Quando estou no palco, é isso que acontece comigo, eu me divirto, esqueço de tudo o que me preocupa”.

É COMO UMA FAMÍLIA! E TEM QUE SER, NÉ? NOSSO TRABALHO DEPENDE UM DO OUTRO. THIAGO CAMARGO

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