Enfoque Vila Kédi 1

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Apesar de tudo, há espaço para esperança. Página 3

CAMINHOS DIFERENTES Ligados pelo golfe, irmãos têm destinos opostos. Páginas 4 e 5

LAÍSE FEIJÓ

SUSI TESCH

REBECA SOUZA

O QUE SER QUANDO CRESCER

SOB RISCO CONSTANTE Prática de “gatos” é comum. Páginas 6 e 7

ENFOQUE VILA KÉDI

EDIÇÃO

ALESSANDRO SASSO

PORTO ALEGRE / RS SETEMBRO DE 2015

ENTRE SONHOS E REALIDADE

COMUNIDADE VIVE ENTRE O PRESENTE PREOCUPANTE E A EXPECTATIVA POR UM FUTURO MELHOR PÁGINAS 3 A 8

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2. CRÔNICA

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A bolita não morreu

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ncontrei na Vila Kédi, uma comunidade cravada no meio do bairro Bela Vista, Kaique Kainã Muniz. Um menino magrelo e com o cabelo enroladinho, de nove anos, que sonha ser jogador do Barcelona, mas que tem como sua segunda paixão o jogo de bolita – também conhecido como bola de gude. Em meio à viela, uma raia riscada no chão e algumas bolitas, sendo incessantemente abalroadas por ele e seus amigos Rafael, Yago, João Vitor e Thallys. Bela surpresa para quem, como eu, pensava que os tempos já haviam mudado tanto e que muitas dessas brincadeiras tinham sido extintas. Minha infância foi literalmente a infância do barro. Da lama. Dos tampões do dedo esfolados. Do futebol com goleirinhas de chinelo. Esconde-esconde e pega-pega eram as brincadeiras mais corriqueiras e que podiam ser feitas por ambos os sexos. A bolita, o futebol, o pião e o botão eram brincadeiras do “clube do Bolinha”. Já as meninas, brincavam com suas Barbies, Polly’s, de casinha, de comidinha e não se importavam com a segregação dos meninos, pois elas também montavam seu clube das meninas. Voltando às bolinhas de gude, é um jogo tão interessante que,

Jogo ainda vive na rotina de Kaique, Yago, Rafael, João Vitor e Thallys

indo pesquisar, se descobre que há relatos de jogos semelhantes na Roma Antiga, no Egito e na Idade Média, trocando-se as bolas de barro seco para pedras somente no século XV. As bolitas de vidro que conhecemos hoje teriam sido feitas na Roma Antiga. No Brasil, a bolita chegou trazida pelos portugueses e foram apelidadas como “de gude”, em referência ao nome das pedras redondas e

RECADO DA REDAÇÃO

Um suspiro de humildade Em meio a um dos bairros de classe alta de Porto Alegre, o Bela Vista, há um suspiro de humildade: a Vila Kédi. A turma de Jornalismo Cidadão da Unisinos Porto Alegre foi conhecer esse lugar, que surgiu há mais de 100 anos, na Rua Frei Caneca, e que foi ocupada aos poucos pelos antepassados de alguns dos atuais moradores. Lugar que passa despercebido por muitos dos milhares de porto-alegrenses que cruzam a Avenida Nilo Peçanha diariamente, que sequer enxergam aquela pequena entrada da comunidade tão rica em história e personagens. O local leva o nome de Kédi, a partir de um abrasileiramento da palavra caddie (como são chamadas as pessoas encarregadas de recolherem os tacos), profissão muito comum por lá, devido à vila ser fronteira ao Country Club, que possui um campo de golfe. Esta edição do Enfoque Vila Kédi mostra diferentes histórias, desde crianças com

o boco, arranhar as unhas com a bolita, riscar a raia com gravetinho de madeira, foi levado aos carpetes aconchegantes da sala de estar. Mas os guris da Vila Kédi preferem o barro, como eu preferia. Joguei alguns minutos com meus novos amigos e lembrei que não tinha muitas bolitas, porque era ruim demais. Gostava muito de jogar mas perdia minhas poucas bolas de gude para meus colegas. Já esses meninos da Kédi têm a perícia de campeões mundiais de gude. Fiquei sabendo, seguindo minha pesquisa que sim, existe um campeonato mundial. Ocorre de vez em quando, em estacionamentos de bares na Europa, juntamente com eventos de cervejas artesanais. Como é um esporte amador, não atrai nenhuma atenção da mídia, por isso ninguém sabe. Será que essa paixão pela bolita seguirá pelas gerações seguintes? Kaique, Yago, Rafael, João Vitor e Thallys irão continuar jogando e ensinando a seus filhos a arte de acertar as outras bolinhas e tirá-las da raia? Tomara que sim, e tomara que cada vez mais as crianças troquem a sala de estar pelo jogo de bolita na rua.

sonhos e ambições comoventes, como a menina que quer ser cantora e já compõe suas próprias canções, até os problemas de infraestrutura (gatos de eletricidade, devido ao descaso do poder público; árvores nos telhados, que atormentam os moradores; e também a falta de saneamento básico), bem como os hábitos dos moradores, dos nostálgicos, como o jogo de bolita que mesmo no ápice da era digital ainda diverte as crianças como nos velhos tempos, aos tradicionais, como a ida à igreja. Aborda também os caddies da vila homônima e os jogadores de golfe, tanto os que conseguiram progredir, quanto os que ficaram pelo caminho. Depois de ler essa pequena prévia, venha conhecer mais dessa comunidade gaúcha pelos olhares desses aspirantes a jornalistas. LUCAS PROENÇA Editor-chefe

lisas retiradas dos leitos dos rios. Kaique me conta: “Jogo futebol e bolita, mas gosto muito de jogar no computador”. Tudo bem, estamos em 2015, sua preferência se explica pela facilidade que as crianças de hoje têm acesso à rede. Então por que ele não estava no computador na manhã de sábado, 15 de agosto? “Não tenho internet em casa”. Minha tese foi por água abaixo. Costumamos enxergar só

o lado ruim de não se ter internet que nem vemos os resgates que isso pode proporcionar. Por exemplo, crianças entre 6 e 15 anos que ainda jogam gude nos dias de hoje. Acreditem, descobri, pesquisando, mais sobre o surgimento da bolita, ou bola de gude: que já existe jogo para vídeo game. Sim, existe! Um jogo em que a graça está em sujar as mãos cavando

ENTRE EM CONTATO

MATHEUS MARTINS PAULO EGIDIO

DATAS DE CIRCULAÇÃO

(51) 3590 1122, ramal 3727

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12 / 9 / 2015

enfoquevilacaddie@gmail.com

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3 / 10 / 2015

Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS Cep: 90470 280 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

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6 / 11 / 2015

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vila Kédi é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Kédi, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre. EDIÇÃO E REPORTAGEM Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte Edição geral (chefia) Lucas Proença Edição de fotografia Gabriela Gonçalves

Edição de textos Débora Waszelewski Guilherme Engelke Leonardo Stürmer Lucas Proença Luciano Del Sent Rodrigo Ávalos Stéphany Franco Reportagem Débora Waszelewski Gabriela Gonçalves Guilherme Engelke Leonardo Stürmer Lucas Proença Luciano Del Sent Matheus Martins Rebecca Rosa Rodrigo Ávalos Stéphany Franco FOTOGRAFIA Disciplina Fotojornalismo Orientação Flávio Dutra

Fotos Alessandro Sasso Cora Zordan Laíse Feijó Paulo Egidio Rebeca Souza Susi Tesch ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) / Unisinos São Leopoldo Projeto gráfico e arte-finalização Marcelo Garcia Diagramação Gabriele Menezes IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS. Cep: 90470 280. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Thaís Furtado.


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FUTURO .3

“Podemos ser o que quisermos” A inspiração vem de qualquer lugar, mas os valores estão nas raízes dessas crianças

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uturas professoras, modelos e cantoras. Dentro da Vila Kédi, zona norte de Porto Alegre, estão os sonhos de meninas que já passaram por ali e de outras que nem pensam em sair. Em um lugar onde, segundo os moradores, o perigo não entra, existe tecnologia, celulares, smartphones e televisão por assinatura. Na mesma vizinhança, bolas de gude e de futebol ainda são as brincadeiras preferidas – e acessíveis. Esta desigualdade dentro da própria vila é a pouca semelhança em relação ao bairro Boa Vista, um dos bairros mais nobres da cidade, onde está localizada. A ex-moradora da Vila Kédi, Raíssa, já tem a sua primeira música escrita aos 11 anos, utilizando a influência da funkeira Ludmilla para compor suas letras. O menino de quem Raíssa gostava no colégio foi a inspiração para o novo funk, seu ritmo preferido, e ela garante que a paixão já terminou. Permanece a vontade de cantar em frente de muitas pessoas. “Eu queria fazer um show pra um monte de gente um dia. Eu ia ficar com vergonha, mas depois passa, né?”, assume ao mesmo tempo em que procura uma confirmação. Quase vencida pela timidez, Raíssa canta o refrão de sua música: “E você pode não me dar bola, mas eu sei que senta no sofá e chora, mas você me ignora. Você já deve ter notado, eu sei, que estou apaixonada por você, meu bem. E não sei o que fazer, não, não sei.” Devido à separação dos pais, a cantora mirim se mudou para o bairro Humaitá com a mãe, mas visita a vila para rever os amigos, participar das festas nos finais de semana e matar a saudade da avó, Angela Maria. Entre as atividades preferidas, nada de boneca, casinha ou panelinhas. A bola de futebol está sempre rolando, principalmente nas embaixadinhas da melhor amiga de Raíssa, Louine. Com a esperança de aparecer na televisão e fazer um desfile de moda, a menina de 10 anos, Louine, faz do talento para o futebol uma simples brincadeira. Mesmo com a casa dos pais dentro da própria vila, ela prefere morar com os avós, também na Vila Kédi, que a criam desde os três meses de idade. Com roupas que são tendências nos desfiles de moda, Louine intercala os treinos de futebol com o projeto de ser modelo

O sonho de Raíssa é subir aos palcos e ser uma cantora famosa. Enquanto isso, ensaia a canção que ela compôs Já aposentada, a avó de Louine, Maria de Jesus da Silva, se orgulha da saúde da garota. Há 22 anos na Vila Kédi, Maria de Jesus tem mais medo da rua e da violência externa.“Aqui dentro é tudo muito tranquilo, todo mundo se conhece, uns cuidam dos outros. As meninas passeiam por aqui tarde da noite e eu não tenho com o que me preocupar”, conta Maria. A avó de 76 anos se entristece por não realizar todos os sonhos de Louine. Ela desabafa: “O primeiro passo seria inscrevê-la em desfiles de moda, mas não tenho como levá-la. Se ela passasse, teríamos que ir para São Paulo ou Rio de Janeiro, é muito longe.”O objetivo mais próximo a ser alcançado é a construção de um quarto para a Louine. Maria de Jesus garante que esse seria o único motivo para a família deixar a vila: falta de espaço. Uma das integrantes do time de futebol das meninas, Natielle, de 12 anos, tem suas maiores notas no colégio na disciplina de matemática. Tendo a professora do quarto ano da Escola Estadual de 1º Grau O Bahia como referência, ela pretende dar aula para crianças e ensinar à próxima geração tudo o que aprende hoje. Se pudesse pedir um presente, seria um tablet para estudar. Enquanto isso, Natielle ocupa o horário livre com esconde-esconde e pega-pega, suas brincadeiras preferidas. Não pretende casar, ter filhos e nenhuma das características do modelo familiar comum, e completa dizendo: “Quero morar aqui para sempre”. Raíssa, a futura cantora, tem vontade de fazer aulas de música e aprender a tocar violão.“Eu até sei um pouco, mas só o que aprendi no colégio, quero fazer um curso”, relata. A dificuldade está na falta de informação – e condição. Ela quer, mas não sabe onde procurar. O programa Mais Educação, criado pelo Governo Federal, desde 2008, é uma alternativa para manter os alunos nos colégios também no turno inverso, com atividades educativas, oficinas e refeições. Raíssa diz que o colégio onde estuda, a Escola Estadual de Ensino Fundamental José Garibaldi, não recebe esse benefício. Já sua amiga Louine afirma que, em pleno mês de agosto, as aulas do Mais Educação ainda não começaram na sua escola. GABRIELA GONÇALVES REBECA SOUZA


4. ESPORTE

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ALESSANDRO SASSO

Fabiano Oliveira da Silva luta até hoje com o clube pelos seus direitos trabalhistas. Abaixo, parte dos troféus que conquistou como jogador de golfe

Um dos últimos caddies Problemas na Justiça e novas tecnologias diminuem número de carregadores no Porto Alegre Country Club

Com a adoção de carrinhos de transporte por parte do Golfe Club, o número de caddies diminuiu drasticamente ao longo dos anos. Além disso, muitos trabalhadores travam disputas judiciais com o Country Club, por trabalharem tantos anos sem carteira assinada. Há um entendimento por parte dos

trabalhadores de que o caddie possui um vínculo com o Clube e alguns já ganharam ações. Porém, existem também decisões contrárias como a da Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, de São Bernardo do Campo, que entendeu que o caddie presta serviço direto ao jogador e não SUSI TESCH

D

ezoito tacos, doze buracos, R$ 12,50 por partida. Dessa forma, com apenas 11 anos de idade, Fabiano Oliveira da Silva tornou-se caddie, o ajudante do golfista. Além de ser o responsável por carregar a sacola com bolas e tacos, quem exerce essa função também é um profundo conhecedor do jogo de golfe, ajudando o desportista com a escolha do taco a ser utilizado, velocidade, direção do vento e até mesmo com conselhos sobre força das tacadas. O gosto pelo esporte foi herdado de seu pai, já falecido, que ensinou a ele e mais três irmãos os fundamentos do golfe. Silva nasceu e mora até hoje na Vila Kédi, local que tem esse nome porque no passado muitos dos seus moradores trabalharam como caddies. O termo vem do francês, “le cadet”, que significa o mais novo, o menor da família. Além de ajudar os golfistas, Silva também participou de vários torneios disputados entre os

caddies. “Diabinho”, como é conhecido no meio do golfe, guarda em sua casa diversos troféus de seus tempos de jogador. Dentre eles destacam-se o de campeão do torneio “0 a 18 hcp para caddies” de 2006 e o de campeão do Torneio Amizade de 2009. Silva chegou a disputar torneios fora do Rio Grande do Sul.

ao clube, inexistindo, portanto, o vínculo empregatício. Tudo isso contribuiu para que a Vila Kédi tenha hoje, entre cinco ou seis pessoas que ainda trabalham nesta função. Antigamente, chegaram a ser 40. Hoje, a maioria dos trabalhadores da vila trabalha em outras funções, não relacionadas ao golfe. Alguns possuem comércios dentro da própria vila, inclusive. Apesar dos problemas enfrentados pela comunidade, como a falta de saneamento básico, iluminação pública e coleta de lixo, Silva não tem vontade de sair do local. A proximidade com o campo de golfe, a presença de familiares e amigos, além da tranquilidade do local são os elementos que o fazem ter o desejo de continuar onde nasceu. Silva, com 30 anos, trabalha com construção civil, enquanto aguarda a resposta da Justiça para seu processo contra o Porto Alegre Country Club. Um de seus irmãos, Maicon, seguiu no esporte e atualmente está indo para São Paulo (página ao lado). RODRIGO ÁVALOS ALESSANDRO SASSO SUSI TESCH


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De ajudante a professor Força de vontade fez com que Maicon deixasse de ser caddie para ensinar golfe

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a já centenária Vila Kédi, um rapaz iniciou a vida profissional como caddie e seguiu levando o ofício como principal forma de sustento. Maicon Mendonça, cujo contato com o esporte esteve presente na sua vida desde os oito anos, já percorria os campos de golfe graças ao seu pai, que sempre trabalhou nesse ramo. Evoluiu na profissão e se tornou instrutor, fazendo questão de ensinar o esporte aos filhos. Não foram raras as vezes em que a direção do Country Club buscou, na Avenida Frei Caneca, homens para contratar. Muitos rapazes que levam jeito para esse trabalho específico, automaticamente aprendem as estratégias para realizar uma boa tacada. Ao analisar o vento, a posição da bolinha, a distância da meta a ser atingida, o caddie sabe indicar o melhor taco para o golfista efetuar a jogada. – No início era muito complicado, pois eu tinha que disputar as bolsas de tacos com os caddies mais experientes. Eu acho que levei quase um mês pra sair com minha primeira bolsa no campo – explica Maicon. Intercalando entre ir para a escola e trabalhar no clube, ele seguiu assim até os 17 anos. Teve que parar, pois foi prestar serviço militar durante um ano. Quando a relação com o golfe parecia chegar ao fim, Maicon descobriu que seria pai pela primeira vez. Precisou buscar outros empregos para cuidar de sua família. Foi parar em uma fábrica calçadista na cidade de São Leopoldo. Em seguida, em Porto Alegre, foi exercer a função de agente de limpeza, e foi nesse lugar que se viu voltando ao golfe, quando a empresa recebeu proposta do Club para realizar a limpeza de suas dependências. Depois que o contrato entre a empresa de higienização e o Club encerrou, Maicon voltou a ser caddie. As coisas começaram a evoluir em 2005, quando uma amiga o indicou para o cargo de starter (aquele que autoriza e organiza a saída do jogador ao campo). O supervisor, ou Profissional Mestre como é chamado, simpatizou com o seu desempenho na nova função. Ofereceu-lhe a oportunidade de ser auxiliar das aulas de golfe das crianças. – Com o passar do tempo, eu decidi que queria muito continuar a ensinar o esporte para as pessoas a jogarem golfe. Sendo assim, juntei um dinheiro e pedi que me permitissem fazer um

Mendonça pratica o esporte desde que tinha oito anos e acompanhava o pai no atendimento aos jogadores. Hoje, se prepara para dar aulas de golfe em São Paulo

curso para me tornar um profissional – salienta. Maicon seguiu para São Paulo, estado que já esteve quando participou de campeonatos brasileiros de caddies. Foram duas semanas de aprendizado. Além dessa especialização, participou de outros cursos, buscando constantemente se aperfeiçoar para crescer nesse meio profissional. – Foi um ótimo curso e uma experiência incrível. Quando

retornei a Porto Alegre, tinha que mostrar aos meus superiores os resultados dos cursos, e assim fiz muito bem. Hoje sou membro de profissionais da Confederação Brasileira de Golfe (CBG) – acrescenta. Desde 2007, Maicon tem seus próprios alunos para ensinar golfe. Alguns estão com ele até hoje. A família não esconde a satisfação em ver que o esporte mudou o destino de Maicon. Julgado

pela mãe, Angela Maria Oliveira da Silva como um “guri com a cabeça boa”, ela conta que outros rapazes tiveram oportunidade parecida, mas desperdiçaram. – Meus filhos nunca me deram problema. Me alegra muito que ele seguiu esse caminho. Houve outros que receberam essa chance, mas decidiram gastar o que ganhavam em bebidas e festas. O Maicon soube lidar com isso e fez diferente – exalta

Angela Maria. Um dos irmãos, Fabiano Oliveira da Silva, deixou de ser caddie há dois anos. Também começou bem cedo na função, com 11 anos e, atualmente com 30, está no ramo da construção civil. – É um orgulho ele ter tido a oportunidade e ter conseguido chegar aonde chegou. Ele sempre era o que mais estudava entre nós, merece ter o esforço reconhecido – conta o irmão. A profissão de caddie já sentiu as consequências da evolução. O trabalho, antes manual de carregar a bolsa com os tacos, foi substituído por carrinhos que os próprios golfistas conduzem. Alguns não abrem mão de um “companheiro de partida”, como o caddie acaba se tornando. – A relação caddie e jogador é muito importante no decorrer de uma partida. Além de auxiliar o atleta com o direcionamento das tacadas, ele é também uma espécie de psicólogo nos momentos difíceis do jogo, de confidente do jogador nas horas em que necessita de um certo desabafo. É algo que não é muito simples de descrever, só quem teve a oportunidade de ser ou ainda é, pode tentar fazer tal descrição – conclui. Maicon Mendonça nunca parou de estudar e de se superar para permanecer fazendo, com qualidade, o que gosta no lugar que sempre fez parte da sua vida. Ver os campos de golfe, com sua grama baixinha e bem cuidada, pássaros de diversas espécies e árvores enormes encantavam Maicon quando era escolhido para ser o caddie de um jogador. Hoje, esse encantamento é diário e ocorre toda vez que sai para trabalhar. DÉBORA VASZELEWSKI ACERVO PESSOAL


6. INFRAESTRUTURA

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Falta de saneamento é problema Perigos iminentes

O esgoto a céu aberto e a poluição são dificuldades enfrentadas pelos habitantes da Vila

A

s dificuldades de saneamento acompanham a Vila Kédi desde o seu surgimento, há mais de 100 anos. O esgoto não tratado, o acúmulo de lixo e a falta de assistência do Poder Público fazem com que moradores como Claudina Martins, que vive no local há 35 anos, sofram todos os dias com as consequências desse problema. O esgoto da comunidade passa nos fundos da casa da Claudina, atraindo animais transmissores de doenças, como ratos, cobras e escorpiões. “Um rato já subiu na minha cama enquanto eu dormia. Minha casa é cheia de veneno por todos os cantos, mas não adianta”, relata. Para tratar possíveis problemas de saúde, o Centro de Saúde do IAPI disponibiliza carteirinha para os moradores da Vila Kédi e oferece assistência, inclusive indo até a vila em algumas ocasiões. Há oito anos, houve um surto de meningite que causou a morte de três pessoas. A chuva é outro agravante, entope o esgoto e invade casas. Claudina já perdeu seus bens em uma dessas ocasiões. Outra situação, ocorrida por conta da chuva, foi quando um raio atingiu uma árvore que fica no

A falta de tratamento do esgoto pode trazer inúmeros riscos para quem tem contato com a água contaminada. Veja algumas doenças que podem ser contraídas:

Hepatite A A hepatite A é uma infecção viral transmitida pelas fezes contaminadas dos humanos. Os principais sintomas são diarreia, náusea, vômito, fraqueza, dor muscular, dor de cabeça e febre.

Leptospirose

Moradores convivem com esgoto a céu aberto. Situação precária atrai insetos e impõe riscos à população

terreno ao lado, causando um incêndio que teve de ser contido pelos próprios residentes, pois o caminhão de bombeiros não consegue entrar na Vila. Angela Maria Oliveira da Silva relata que todo ano os moradores reivindicam benfeitorias ao Poder Público, mas as respostas não vêm, apenas promessas. Segundo ela, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) recolhe o lixo uma vez por semana, no máximo. Setembrino Ribeiro Borges, nascido na Vila Kédi, saiu e voltou há cerca de 10 anos.

Ele conta que ao longo do tempo houve melhorias de saneamento e infraestrutura, mas que todas as ações foram iniciativa dos moradores, sem nenhuma ajuda ou financiamento do Poder Público. Na próxima edição, o Enfoque dará continuidade a este tema e vai ouvir os representantes da prefeitura responsáveis pelo saneamento básico de Porto Alegre, para explicar a situação da Vila Kédi. GUILHERME ENGELKE LAÍSE FEIJÓ

Causada pelos ratos de esgoto, a leptospirose pode ser contraída apenas com o contato direto da pele com a água contaminada pela urina dos roedores. Os sintomas variam entre febre alta, calafrios, dor de cabeça e muscular, além de náusea, vômito, diarreia e olhos avermelhados.

Esquistossomose A esquistossomose, conhecida como doença do caramujo ou barriga d’água, é uma doença que afeta o intestino e o fígado, causada por uma parasita que vive em águas contaminadas por fezes e caramujos. A contaminação também pode ser adquirida pelo contato com a pele.

A natureza cobra seu espaço Moradores com residências próximas às árvores de grande porte que separam a Vila Kédi do Country Club vivem sob a ameaça constante de queda de galhos sobre seus telhados. Esse medo se acentua a cada temporal, quando todos ficam em estado de alerta. Angela Maria Oliveira da Silva conta que durante uma tempestade ocorrida em junho de 2014, um cômodo da sua casa foi completamente destruído por um galho de seringueira. Segundo Fabiano Oliveira da Silva, de 30 anos, filho de Angela, esse fato acentuou a preocupação da comunidade com a vida dos vizinhos. “Estamos sempre podando as árvores para diminuirmos a possibilidade de perdermos nossas coisas e trocando os telhados de brasilit, os quais são mais frágeis, por telhas de seis milímetros”, diz

Silva. Com o intuito de cortar os galhos em segurança, ele afirma que já conversou com os bombeiros, mas os pedidos de

ajuda não foram atendidos. “Os bombeiros sempre nos dizem que não podem auxiliar, pois devido ao precário terreno,

existe a dificulta da entrada do caminhão da corporação”. Os moradores da Vila Kédi também têm seus sonhos de

Galhos ameaçam cair a qualquer momento, principalmente sob temporal

consumo atrapalhados por esse problema. A construção de novos cômodos às famílias tornou-se uma situação de risco devido à possibilidade de perder móveis e eletrodomésticos pela queda de galhos das árvores. Conforme Maria de Jesus da Silva, de 76 anos, a árvore centenária que está ao lado de sua residência a impede de ampliá-la. “Queria construir um quarto na entrada para ter mais conforto, porém tive que desistir desse sonho devido ao medo de talvez me ferir”, revela Maria. Hoje, o sonhado cômodo é ocupado pelos cachorros da dona de casa e pelas raízes das falsasseringueiras que preenchem grande parcela do terreno da comunidade. LUCIANO DEL SENT CORA ZORDAN


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Comunidade denuncia descaso Vila centenária parece não existir diante dos olhos do Poder Público

bairro há 35 anos. Ela diz que o descaso da prefeitura é grande e que as pessoas só aparecem em época de eleição para prometer e não cumprir. “Sempre ligamos

A

população da Vila Kédi sofre com a falta de fornecimento de energia elétrica, por não estar regularizada como bairro. A comunidade tem uma de suas entradas pela, movimentada, Avenida Nilo Peçanha e outra, pela Rua 14 de Julho, vizinha ao Country Club de Porto Alegre e não possui postes de luz por toda a sua extensão. Morador da vila há mais de 50 anos, Luiz Osmar da Cruz, diz que foi através de uma“vaquinha”que a população comprou os poucos suportes improvisados e a fiação elétrica existentes no local.Também afirma que a comunidade sofre com a falta de luz a cada temporal.“Não tem ninguém que faça algo por nós, nem mesmo as lideranças”, é o que declara o comerciante Éder Vanderlei Bueno, proprietário de um mercadinho na entrada da vila pela Rua 14 de Julho. “Líder que não faz nada não adianta”, reclama a dona de casa Claudina Martins, moradora do

foram os moradores que “puxaram a luz” do poste localizado na Avenida Nilo Peçanha, clandestinamente, até suas casas, por toda a extensão da vila, e são eles que

consertam os danos da fiação em casos de curto-circuito ou queda de luz. “Esses fios são um perigo, são baixos e têm emendas mal feitas. Já pegou fogo na cortina de uma casa”, relata a moradora. Embora essa prática seja crime com pena de reclusão prevista de até oito anos, os moradores não conseguem encontrar outra alternativa para solucionar o problema, pelo menos não até que o processo de regularização do bairro seja concluído. STÉPHANY FRANCO PAULO EGIDIO

Ligações elétricas precárias entre casas de madeira podem ocasionar incêndio

Terra de ninguém? Futebol é a paixão da maioria de crianças e adolescentes que residem na Vila Kédi, mas o único espaço que eles têm para praticar esportes, brincar e se divertir é o terreno localizado ao lado. Segundo os moradores da Vila, o espaço teria sido comprado de moradores do bairro há mais de 30 anos pela Companhia Zaffari de Supermercados. Informação essa que a Companhia contradiz. Angela Maria Oliveira da Silva vive na vila há mais de 48 anos e é liderança na Associação de Moradores. Angela conta que os membros da associação já tentaram contato com a Companhia Zaffari, a quem consideravam proprietária do imóvel, muitas vezes. “Nossos contatos foram todos por telefone, e eles nunca autorizaram que usássemos o terreno. Acho que têm medo de ocupação”, relata. A expectativa era fazer do terreno um espaço de lazer, local para as festividades da comunidade, já que a mais próxima fica cerca de 150 metros distante. Os riscos do espaço são eminentes. Angela diz que há

para a Prefeitura de Porto Alegre pedindo a instalação dos postes, mas isso nunca acontece. Parece que a comunidade não existe”. A moradora complementa que

muitos bichos, em razão do lixo e do esgoto e que, quando a situação está insustentável, os moradores fazem contato com a companhia para que limpassem.“Eles vêm, dão uma tapeada e vão embora”, conta.

Espaço inativo, ao lado da Vila, é alternativa mais próxima de entretenimento para os residentes da Kédi

Thales, de nove anos, primo de Guilherme, caiu no valão quando tinha cinco. A sorte é que não estava sozinho. Algumas crianças maiores que estavam brincando com ele avisaram os adultos e Thales foi retirado do valão pelo padrinho. É no espaço mais plano do terreno cheio de irregularidades que acontecem os jogos de futebol. Sonho de tantos dos meninos que habitam a Vila Kédi, o futebol é jogado da maneira mais humilde possível, num espaço irregular e com muito mato, esgoto exposto e algumas armadilhas. Nos cartórios de imóveis de Porto Alegre, a informação é que não há registros no endereço do terreno desde 1960. REBECCA ROSA SUSI TESCH

As boas-vindas de Santa Edwiges Ao sair do Shopping Iguatemi e ir em direção ao Centro, a primeira coisa que é visível na entrada da Vila Kédi é uma pequena igreja. Em meio ao barulho dos carros, uma pequena construção branca com janelas e portas azuis além de uma pequena cruz azul, dão as boas-vindas aos que entram na Vila Kédi pela luxuosa avenida Nilo Peçanha, na altura do número 2200. A “Igreja Santa Edwiges” se destaca no meio dos prédios, lojas de móveis e demais comércios. Mas não são todos que a notam, pois não é uma igreja grande, com vitrais, arrumada. Ela é simples, sem luxos, mas nada que incomode os moradores. Por dentro, ela não tem bancos de madeira e nem muitas imagens de santos, e sim cadeiras brancas e algumas imagens cristãs. A igrejinha simples, foi construída por pessoas de fora da vila, e é filiada à Paróquia Nossa Senhora de Mont’Serrat, com padres de lá que vão rezar missas todos os sábados. Durante a semana, um grupo de mulheres se reúnem para

rezar e tomar chá, apesar de não ser a única coisa que elas fazem por lá. Segundo a frequentadora Tânia Rosângela de Jesus Dutra, também ajudam com remédios e dinheiro para pequenas coisas, como deslocamento em táxis. Na sede principal da paróquia, na rua Anita Garibaldi, os moradores da vila “fazem o rancho”, ou seja, vão buscar comida. “Lá é a igreja dos ricos, a nossa é a dos pobres”, brinca Teresa Dutra Gonçalves. Alguns dos moradores são bem fiéis a sua religião, têm imagens de santos e Bíblias dentro de suas casas. Teresa conta que não dorme sem rezar. O pequeno local tem um grupo de catequese para 15 crianças, segundo Ariana Pacheco, que frequenta as missas e também é catequista. Nas datas festivas, as crianças são as que mais ficam felizes com a igreja, pois além da tradicional missa, eles também arrecadam brinquedos e levam para distribuir e fazer a alegria dos pequenos. LEONARDO STÜRMER


ENFOQUE VILA KÉDI

PORTO ALEGRE (RS) SETEMBRO DE 2015

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ALESSANDRO SASSO

A “tia-mãe” com Ester e algumas de suas filhas e netas

Avó, mãe e tia aos 43 anos PAULO EGIDIO

Tânia cuida de netos, filhos, sobrinha pequena e irmã doente

E

m muitas comunidades carentes do Rio Grande do Sul inteiro é comum se observar famílias com vários filhos. Na Vila Kédi, na zona norte da Capital, não é diferente, e ainda conta com uma mãe que chama atenção. Além de seus sete filhos e de cuidar de alguns netos, Tânia Rosangela Dutra, de 43 anos, cuida de sua irmã e de sua sobrinha. A irmã sofre de problemas mentais e precisa ser medicada duas vezes ao dia, e ela ainda luta pela guarda de sua sobrinha. Em sua casa, também reside o marido, Cesar Augusto Dutra, que é, como outros tantos moradores da Vila, caddie (a pessoa encarregada de recolher os tacos de golfe) do Country Club, fronteiro à Vila. O sustento da família vem fundamentalmente do trabalho dele, já que Tânia é dona de casa. Há três anos, no dia 28 de março de 2012, no centro de Porto Alegre, Saionara de Jesus Dutra, na época catadora de lixo, começou a se queixar de dores no corpo para o

Em frente ao número 354, Saionara e a filha Ester

então marido, Geracildo Carvalho. Ao tocar na esposa, ele notou algo diferente, achando que ela estava dura e desconfiou de uma possível gravidez, então decidiu chamar a SAMU. A moça se deitou em cima de um carrinho de coleta, próximo ao terminal de ônibus Parobé, onde deu à luz. Os dois não sabiam que

ela esperava um filho, e foi uma surpresa o nascimento da criança. Eles ficaram acompanhados de alguns policiais até a chegada do serviço de emergência, que chegou depois do nascimento da criança. A menina, nascida inesperada e inusitadamente no centro da

capital, é extremante saudável e atende pelo nome de Ester. Correndo de um lado ao outro como qualquer criança da Vila Kédi, está sempre sob o olhar atento da “tia-mãe” Tânia, irmã mais velha de Saionara. Após anos cuidando de Ester com o mesmo esmero, dedicação

e quantidade de tempo que oferece às suas filhas, ela ainda está com a guarda provisória da menina. “Estou há três anos tentando, na Justiça, conseguir a guarda dela, mas as coisas não andam”, lamenta a dona de casa. “Fui buscar a Ester no hospital quando ela tinha apenas dez dias e a trouxe para minha casa” conta Tânia. “A minha irmã não tinha condições de cuidar dela. Ela nem sabia que estava grávida”, reforça. Com a inocência peculiar de quase todas as crianças da “vila dos recolhedores de tacos de Golfe”, Ester não liga para os problemas judiciais que está envolvida e rouba a cena brincando, correndo e fazendo novas amizades com quem quer que seja. “A Ester sempre foi assim, fala com todo mundo, brinca bastante, é uma criança que até parece meio hiperativa” conta, sorrindo e com um visível orgulho, a até agora apenas “guardiã” da criança. LUCAS PROENÇA ALESSANDRO SASSO PAULO EGIDIO


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