Enfoque Vila Kédi 5

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JOAQUIM ORESKO

NATHALIA AMARAL

JOAQUIM ORESKO

Sem postes, com rede Sem fiação, mas conectados Página 6

Uma vila de fé

Diferentes religiões vivem em harmonia Página 7

Promessas esquecidas

Políticos só aparecem em época de eleição Página 3

ENFOQUE VILA KÉDI

EDIÇÃO

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LAIS ALBUQUERQUE

PORTO ALEGRE / rs ABRIL/maio DE 2016

saneamento

longe de ser básico

Esgoto a céu aberto é problema cotidiano na comunidade página 7


2. CRÔNICA

| ENFOQUE VILA KÉDI | PORTO ALEGRE (RS) | ABRIL/MAIO DE 2016

Choveu na Vila Kédi

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les estão lá parados. Sentados. Leem o jornal, conversam, compartilham a leitura, gargalham. Estão felizes. “Ontem não dava nem vontade de sair de casa”, comenta um dos amigos, que já não se intimida mais com a presença do repórter. O time dele sem vitória, ele sem as dezenas na loteria. Só está feliz porque não chove. “Ainda bem que não choveu mais. Chega de chuva”, exclama o homem que sai e entra em casa em movimentos repetitivos, como se não sabe onde ficar. Um dia atípico: no dia anterior choveu na Vila Kédi. O morador está coberto de razão. É triste mesmo. Na Vila Kédi não dá vontade de sair de casa quando chove. Barro, chão molhado e escorregadio, tem gente que até caiu. Eu sei, eu sei, a culpa não é dos morado-

res, mas, por acaso, já ligaram para o 156? Liguem para o 156! Reclamem, não deixem essa situação se agravar. Vocês já cansaram de ter de limpar os sapatos toda a vez que saem de casa, não é verdade? Toda vez é assim. Toda vez que chove. E

vila com outros olhos. De certa forma, vejo semelhanças com “A Rua Mais Bonita do Mundo”. Exagero meu? Claro! Só a área mais arborizada da vila, que deixa aquela “sensação de túnel”, que pode nos fazer traçar uma semelhança com

a – a Gonçalo de Carvalho, no bairro Independência, em Porto Alegre. A outra semelhança é que, quando chove, as duas ruas são atingidas. Nenhuma novidade. Mas o efeito pós-chuva na vila é muito mais impactante. Já visitei duas vezes a Vila Kédi. Nas duas, fui quando tinha chovido. Quando a terceira vez chegar, quero sol, sem água, sem chuva, sem barro. Quero a Vila como ela é na maior parte do tempo. Quero conhecer essa beleza que enche os olhos de Dona Marli. Quero conhecer essa beleza que a faz não querer sair dali. Quero ver Dona Marli e poder dizer: que bom que você mora aqui. Mas não pode chover. Sem chuva. Só a Vila. A Vila e eu. Sim, ainda estamos nos conhecendo melhor. William Szulczewski

RECADO DA REDAÇÃO

Passos treinados, vozes ansiosas Foi a segunda vez que choveu no dia anterior a nossa ida à Vila Kédi. Logo, sabíamos que pisaríamos em barro enquanto procurássemos histórias para contar. Ambas as previsões foram certeiras. Evitamos, portanto, pisar nas zonas mais críticas do solo, as mesmas que os moradores saltam com passos já treinados. Entre uma conversa e outra, é inegável o potencial que há em juntar estudantes de jornalismo com pessoas que habitam um lugar abandonado pelo poder público. Afinal, o costume com as intempéries não deixou as vozes dos moradores da Vila Kédi habituadas. Assim como nossa formação em curso não nos impede de alimentar a vontade de dar voz àqueles que não são ouvidos. Com

ontem,choveunaVilaKédi. O lugar só tem uma rua. Ela não é bonita. “É bonita sim”, discorda a moradora. Contraponto aceito. Dependendo do ponto de vista, a rua é realmente bonita. Depois do “puxão de orelha” da Dona Marli, passo a observar a

um pouco de dedicação, podemos descobrir desde narrativas inteiras de famílias que habitam o local há três gerações até as rotineiras reclamações jamais solucionadas, como asfalto, iluminação e saneamento. Sonhos, vozes e anseios não têm idade na Kédi. De Claudina Martins, 66 anos, à Adrian, de sete, este jornal apresenta algumas histórias em que tentamos, antes de qualquer coisa, usar nosso domínio de ferramentas jornalísticas para fazer jus ao discurso que ouvimos de pessoas que ultrapassam as intempéries diárias e continuam firmes, com vozes ansiosas para contar histórias. Boa leitura! Sergio Trentini Editor-chefe

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DATAS DE CIRCULAÇÃO

(51) 3590 1122, ramal 3727

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09 / 04 / 2016

enfoquevilakedi@gmail.com

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30 / 04 / 2016

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Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS Cep: 90470 280 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vila Kédi é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Kédi, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia) Sergio Trentini Edição de fotografia Henrique Kanitz Edição de texto Maurício Trilha, Nathalia Amaral e Pedro Nunes Reportagem e fotografia Amanda Bicca, Érika Ferraz, Kalleb França, Henrique Kanitz, Joaquim Oresko, Laís Albuquerque, Lua Kliar, Maurício Trilha, Nathalia Amaral, Pedro Nunes, Sergio Trentini e William Szulczewski ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização Marcelo Garcia

IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS. Cep: 90470 280. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Thaís Furtado.


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POLÍTICA .3

#NÃOVAITERNADA Promessas de candidatos se perdem no tempo

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descrédito da sociedade brasileira nos políticos e nos partidos se reproduz entre os moradores da Vila Kédi. Em tempos de eleições municipais, como este ano, candidatos à vereança e assessores costumam visitar os moradores, com promessas que acabam logo esquecidas. “Eles vêm aqui, prometem, mas depois somem. Na hora que precisam de voto eles aparecem, depois nunca mais. Eu não acredito mais em política, principalmente como tá tudo agora”, desabafa Adelaide Garcia, doméstica, de 57 anos. Asfalto, iluminação e saneamento são as principais promessas feitas por candidatos, segundo os moradores. Alguns comentam que candidatos já se reuniram com a comunidade e montaram planos de melhorias mas nada saiu do papel. O descaso é perceptível ao se entrar na vila: não existe iluminação pública, o cheiro de esgoto é constante e o asfalto parece ter virado lenda. “Já foram tantos que a gente nem lembra os nomes. Agora vai ter eleição, começam a vir dar santinho, aqui em casa vão todos pro lixo”, conta uma moradora, que prefere não se identificar, mas vive na Kédi desde 1965.

Depois de tanto descaso, Adelaide deixou de acreditar em mudanças

Outra estratégia adotada por candidatos para conquistar votos no local é oferecer reuniões com almoço ou janta.“Alguns oferecem galeto, churrasco, salsichão com pão, cervejada. Dão discurso e pedem voto”, explica Andreia Silva, que tem um negócio próprio de lanches na comunidade. Se, por um lado os candidatos

Paulo César lamenta a injustiça: “Enquanto poucos enriquecem, brasileiros morrem na fila do SUS”

tentam conquistar a comunidade pelo estômago, por outro, os moradores demonstram senso crítico. “O pessoal aproveita, vai, come, mas ninguém vota nesses daí”, revela Andreia. Em alguns espaços da Kédi é possível ver propaganda política em lonas que protegem os telhados ou bloqueiam as goteiras.

Nas portas, nas janelas e nos poucos carros que existem na vila, não se vê adesivos, cartazes, bandeiras. “Tenho pavor de política, eles fazem uma ladainha, roubam do povo, é horrível. Político tinha que pegar pelo menos 100 anos de cadeia por cada pessoa que morre na fila de um hospital. Enquanto eles

Complemento à renda Dentre as 200 famílias, em média, que moram na Vila Kédi, várias delas têm algo em comum. Para ajudar nos gastos da casa e na criação dos filhos, Lisandra Beatriz Rosa Medeiros, de 38 anos e Evanir Mendes dos Santos, de 63 anos, usufruem do Bolsa Família, programa governamental criado para auxiliar famílias em situação de vulnerabilidade e pobreza. O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda. O beneficiário recebe um cartão magnético da Caixa Econômica Federal, com direito a saque mensal de um valor variável conforme o tipo de benefício que requisitou. Criado no governo Lula da Silva, em 2003, o programa unificou vários outros já existentes no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso.

Andrea Oliveira, mãe de quatro filhos com 20, 19, 17 e 14 anos e que já se valeu dos programas, afirma hoje não precisar mais dos benefícios. Um dos motivos que esgotam o direito ao programa é a idade adulta dos filhos. Já no caso da Ângela Maria, ela passou a trabalhar com carteira assinada em uma empresa, como passadeira de roupas. “Eu recebia cerca de R$ 70,00 na época, pra ajudar meu filho Evanir dos Bruno Rogério, mas Santos é como assinei a cartei- beneficiária do ra, parei de receber”. programa há Evanir dos Santos, mais de 10 anos qualquer Centro de que ainda recebe o Referência de Assisbolsa família por ter baixa renda, tência Social (CRAS). Depois, aconselhou sua neta Bárbara você é chamado no posto pra Narjara, de 27 anos, a cadas- pesagem das crianças”. O peso trar-se também, para ajudar na das crianças é registrado e tamcriação do Adrian Samuel, seu bém precisa-se ter a carteira bisneto. “A inscrição é feita em de vacinação em dia – mesmo

Andreia critica os churrascos que são oferecidos em troca de votos

desviam milhões pro próprio bolso, tem gente precisando de remédio, de ajuda, morrendo na fila do SUS. Isso é muito triste”, desabafa Paulo César da Costa, trabalhador da construção civil, de 44 anos. Maurício Trilha Joaquim Oresko

Sobre o programa Quem tem direito? Famílias com renda mensal até R$ 77,00 por pessoa. Famílias com renda mensal de R$ 77,01 a R$ 154,00 por pessoa, que possuam em sua composição gestantes, mães que amamentam, crianças e adolescentes com idade entre zero e 16 anos incompletos. Famílias com renda mensal de zero a R$ 154,00 por pessoa, que possuam em sua composição adolescentes entre 16 e 17 anos. n

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Como adquirir? Procure o setor responsável pelo Bolsa Família no seu município. A família precisa estar inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, com seus dados atualizados há menos de 2 anos. A seleção é mensal. Para saber se sua família foi incluída no programa, consulte a prefeitura de sua cidade. n

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procedimento solicitado para Lisandra Beatriz, além do atestado de frequência escolar. “Se a criança passar a ter muitas faltas na escola, somos notificados e a Bolsa é cancelada”. Érika Ferraz

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Fonte: Caixa Econômica Federal.


4. GENTE

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Plantar uvas e morangas faz parte da rotina que Claudina herdou do falecido marido

A cuidadora do terreno baldio Há mais de três décadas, ela toma conta de uma área próxima à sua

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mfrentedoestreitoportãode madeira que dá entrada para sua casa, Claudina Martins se apresenta enquanto junta do chão uma batata crua jogada entre um cachorro e uma vala. “É que eu planto tudo lá atrás, no terreno”, explica sorrindo. Abre o portão, caminha com a batata em punho em direção aos fundos, passa por um corredor cercado por três pequenas casas, todas de sua propriedade. O que antes era uma residência só, foi dividido de maneira improvisada com inacabadas paredes de tijolos e tábuas para que os filhos tivessem onde morar. “Além dessas três, as duas casas do lado também eram minhas”, ela aponta, “mas eu dei pra minha guria mais nova e ela cresceu o olhou e vendeu”.

Claudina faz as contas com base na idade de Janaina, uma de suas oito filhas, para estimar que mora na Vila Kédi – a qual ela carinhosamente apelidou de “beco” – há 33 anos. Metade de sua vida. É aposentada há algum tempo, mas herdou de seu falecido marido a tarefa de cuidar do terreno do Zaffari, que pagava a ele R$ 250,00 por mês.“Senão fosse por respeito ao trabalho que ele teve por tanto tempo”, garante Claudina, “os moradores já teriam expandido a Kédi aqui para dentro”, conta, abrindo a porta dos fundos que dá acesso ao terreno. A moradora afirma que o local já não é mais do Zaffari, mas não sabe de quem é. Para Claudina isso não importa, ela continua cuidando do terreno desnivelado e tomado por mato, lixo e água parada. O que a incomoda é o descaso da empresa com o cuidado que ela mantém. “Antes

eles vinham limpar de tempos em tempos, agora nem isso”. Em 2006, um ano antes de seu marido morrer, Claudina e outros 81 moradores ajuizaram um processo de usucapião na 17ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre. Além do Zaffari, também constavam como réus no processo, a loja de carros Savarauto e o Porto Alegre Country Club. Foi julgado extinto, segundo o juiz Sandro Silva Sanchotene, por falta de pressuposto processual. Nem todo o trabalho é feito sozinho. Ela diz que tem boas companhias para dividir a tarefa de cuidar do terreno. Então, grita pelos guardiões do local durante a noite: Preta, Princesa e Xoinho, duas cadelas e um cachorro. Desanda, então, a falar dos seis netos e começa a sorrir pela segunda vez desde o momento que encontrou a batata. A mais nova das crianças tem um ano. “Agora, tá aprendendo

a caminhar e quer andar ali por aquele mato alto, mas eu não deixo, morro de medo dos bichos. Esses dias tinha uma cobra ali, eu joguei um tijolo, mas acho que não acertei”, conta a avó. Claudina costuma ficar sentada nos fundos do terreno, onde recebe as vizinhas, que sabem que ali é muito mais fácil de encontrar a amiga. “Eu quase nunca estou lá no beco, mas aqui nos fundos tu sempre vai me achar”, diz. Transmite algo de conformada em sua voz, ao falar do tempo em que o terreno era bem cuidado. “Tínhamos até um lago aqui, um dos meus filhos trouxe os peixes e o pessoal até pescava, mas um belo dia os homens da manutenção do Zaffari aterraram o laguinho”. De repente, ao citar o nome da empresa que era proprietária, seu rosto se ilumina. Lembra que o vizinho deve saber o nome do novo dono. Grita por “Véio”,

que aparece em uma das tantas janelas das casas que dão para o local. O homem pensa por alguns segundos e diz que não, não sabe o nome. A face volta a se crispar, enquanto agradece e se vira para me contar que agora está processando o Zaffari. “Por conta dos anos que eu e meu marido cuidamos o terreno. Ficamos trabalhando para eles ganhando a miséria de R$ 250, sem direito trabalhista algum”, diz. “Alémdolagoqueaterraram,até meu pé de moranga eles mataram uma vez, mas nasceu de novo”. Apresenta os maracujás, uvas e morangas que fazem parte de sua rotina de cuidados com o terreno. Então, com o terceiro sorriso do dia, a senhora de 66 anos lembra da batata que havia encontrado e vislumbra a possibilidade de brotar um novo alimento naquela terra de dono desconhecido. Sergio Trentini


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GENTE .5

Um“direitaço” de esperança Nascido com má formação congênita na estrutura óssea, Leonardo não desistiu do sonho

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abelo cortado como de jogador de futebol. Camiseta de marca, tecido e cores de time de futebol. Leonardo Pacheco de Oliveira, de 13 anos, expõe, assim, todos os indicativos de que tem um sonho: ser jogador de futebol, como o senso comum estimula a pensar. Mas há algo diferente em Leonardo. O olhar penetrante, as mãos ásperas e grandes. Olhando firme para frente, o garoto de aparência tímida, que quase sussurra o seu nome, começa a falar: “Leonardo Pacheco de Oliveira” – diz, como que concentrado para uma grande final. Conta que, quando ele nasceu, os médicos perceberam que havia uma espécie de má formação congênita na sua estrutura óssea. Ele não tinha os ossos que ligavam as pernas à bacia. Ele não podia andar. “Todos os dias foram difíceis”, lembra. Ainda sem falar muito, para e pensa antes de cada resposta. Com um pequeno pedaço de papel nas mãos, que fica menor ainda a cada pergunta, ele suspira e começa a se expressar sobre esse período: - Eu passei bastante dificuldade na vida. Não caminhava. A minha mãe lutou, lutou e conseguiu comprar

um aparelho pra mim. Eu não tenho estes ossos aqui do lado - e aponta para a parte de cima das pernas. Eu ficava só no colo. Depois que minha mãe comprou o aparelho, eu consegui começar a andar. Eu tinha cinco anos quando comecei a andar. Quando tinha sete anos, um professor de tênis começou um projeto no Parque Germânia, e ele se interessou. Logo nas primeiras raquetadas viu que tinha jeito para o esporte. Não titubeou e começou a se esforçar. Observado por um olheiro durante um de seus jogos, recebeu o convite para treinar na Sociedade Libanesa. Em pouco tempo, o sonho se Antes ele não podia tornou realidade, andar, hoje, é o atual de uma forma que campeão de tênis na ninguém espera- categoria mirim do torneio va. Antes, ele não da Sociedade Libanesa podia andar, hoje, é o atual campeão gaúcho de tênis na categoria mirim, em torneio vencido no ano passado. Seus olhos brilham quando diz com foi: - Dei um direitaço na paralela. Deixei ele sem chance, mas o ponto veio quando ele jogou a bola na rede, porque não conseguiu alcançar. Leonardo se espelha no número um do ranking da Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), o sérvio Novak Djokovic, e pretende tornar seu “direitaço” conhecido e temido no mundo do tênis. Kalleb França

O que Ariana quer é comemorar o seu dia “A festa começa às 19h, mas só Deus sabe quando termina”, anuncia a aniversariante do dia. Para muitos, a data de aniversário é um dos dias mais importantes do ano, e comemorá-la com os amigos e a família é uma espécie de tradição. Ariana Pacheco de Oliveira ainda não sabia o que iria vestir na festa, talvez fizesse uma chapinha no cabelo, mas para a comemoração dos seus 20 anos todos os vizinhos estavam convidados. Na verdade, as celebrações começaram ainda no dia anterior. “O parabéns já veio de madrugada, todo mundo foi no outro bar, lá no fundo da vila, mas hoje de noite que é a festa

mesmo”, conta a aniversariante. O endereço da festa oficial é o bar que leva seu nome. “A minha mãe que colocou, está

bida, cervejas, refrigerantes e kits, vodka com energético. E para deixar a noite completa, a música. “Tem um jukebox no bar, vai tocar de tudo, menos funk que o tio não gosta”, fala, animada. Mas o que Ariana diz que não Festa oficial de pode faltar de jeito Ariana foi no bar que leva seu nome nenhum é a música sertaneja: “eu amo Pablo”, declara-se. Sentada no banco em frente ao bar enquanto espera pelo locatário João Carlos Dutra para começar os preparativos da festa, recebe os comprimenaté escrito ali na parede, mas tos dos vizinhos que passam. agora ele está alugado para o Uns gritam de longe, “parabéns tio Negrinho”, diz. Para a janta, Ariana”, outros vêm ao seu eno tradicional churrasco. De be- contro cumprimentá-la, como

o amigo Miguelito Gonçalves, que destaca o quanto gosta da menina: “O que ela tem de melhor é a humildade. Tem que ser assim sempre”, aconselha. A jovem, que parou os estudos ainda na quinta série, não sabe como vai ser seu futuro. Quem sabe volte a estudar. Como já trabalhou no antigo bar da sua mãe, pensa em ser atendente ou cuidadora de crianças, já que acabou se acostumando a tomar conta dos seus irmãos menores. A família é grande: com ela, são 15 irmãos. Mas não quer pensar muito nisso agora. “Hoje todos vão estar aqui e o bar vai ficar cheio”, conclui. Amanda Bocchese Bicca


6. BAIRRO

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Internet e TV por assinatura fazem parte do cotidiano Falta de postes não impede a utilização dos serviços

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ntenas de televisão por assinatura são facilmente avistadas na Vila Kédi, assim como jovens com celular na mão. Apesar da impossibilidade de contratação de planos de internet a cabo, devido à falta de postes no local, a utilização via 3G – e até mesmo Wi-Fi de pontos comerciais próximos – possibilita a conectividade às redes sociais pela gurizada. O auxiliar de limpeza Fabiano Oliveira da Silva revela: “Wi-fi eu pego do clube, na janela do quarto”. Ele conta que tentou contratar o serviço da NET, mas não foi atendido. A explicação da empresa é que o local tem grande número de árvores, e elas atrapalhariam a instalação. “Daí liguei pra SKY, o cara veio e instalou numa boa”, resume. Apesar da falta de postes, a vendedora de cosméticos Bruna de Jesus Dutra afirma que está verificando a disponibilidade de contratação do serviço de alguma operadora. “Esse mês a gente vai tentar botar GVT.

Falaram uma vez que não dava, mas a gente vai tentar”, relata. Bruna diz ser pequeno o número de casas com TV por assinatura, mas a impressão que se tem ao olhar para os topos das residências é outra. Lan House ao ar livre O cozinheiro Diego de Jesus Dutra conta os moradores se reúnem na entrada da Vila, pela Avenida Nilo Peçanha, para aproveitar o sinal Wi-Fi de estabelecimentos do entorno da região. “Ficamos aqui ou ali no posto”, conta. Entretanto, o rapaz afirma utilizar plano próprio de conta telefônica. Ariana Pacheco de Oliveira, atualmente desempregada, também usa pacote de dados do próprio aparelho ou de amigas para se conectar nas redes sociais. “Quando não tem internet, eu pego das minhas amigas”, relata. Ela conta que chegou a contratar um plano pago para utilizar no seu notebook, porém logo cancelou, mantendo-se conectada apenas pelo celular.

Jovens da comunidade se conectam às redes sociais através de seus smartphones

Joaquim Oresko

A liberdade da infância

A beleza dos Jardins

A Vila Kédi evidencia contrastes que ras com as amigas. “Eu vou pra escola, vão além de sua localização em área gosto muito de desenhar e brincar nobre de Porto Alegre. Os sonhos de lá”, diz. Extrovertida ela apresenta as suasalegrescrianças crianças e suas caestão entre eles. sas, andando de um Elas tomam conta ladoaoutro. do lugar. Futebol, Thallys, de 10 carrinhos, pega-peanos, é calma, muito ga e risadas. Nesse educada e tem um espaço tão distante sonhopoucocomum douniversoquelhes para os guris da sua cerca, elas são livres idade: quer ser copara brincar e viver zinheiro, como um a infância.“Aqui não tio. “Eu já sei fazer tem problema, as bife, ovo, massa. crianças brincam Gosto de cozinhar”, à vontade. É tudo conta. Já Renan, muito tranquilo”, de 10 anos, sonha ressalta Juliana, de com os campos de Renan, 10 anos, sonha em 25 anos, que semfutebol profissional. ser jogador do Barcelona pre morou na vila. “Quero jogar bola. Para Adrian, de sete anos, a brin- No Grêmio e depois no Barcelona” e cadeira preferida é com os carrinhos. garante “Claro que sou bom de bola!”. Ao levá-los para a rua, outras crianças Segundo os moradores, a vila não sochegam para a brincadeira. “A gente faz fre com a atual onda de violência da corrida”, conta. Os pequenos correm Capital, o que permite que as crianças mostrando onde vivem e contando brinquem livres na vizinhança. histórias de brincadeiras. Isabeli, de seis Nathalia Amaral anos, gosta da escola e das brincadei-

Além de animais, plantas e folhagens vezes. Porém, procura evitar o cultivo de podem ser facilmente encontradas na temperos por causa da constante presença maioria das casas da Kédi. Petúnias, hortên- de gatos e ratos no local. sias, violetas e outras As plantas e espéciesdecoramas folhagens acabam fachadasdasresidênrevelandoumpouco cias, dando-lhes um dapersonalidadede toque natural. cadamorador.Rafael A líder comunijá prefere as folhatária Ângela Maria gens artificiais, pelo mantémumagrande benefício das planquantidadedevasos tas não murcharem, notopodomuroem como as naturais. E frente à entrada de existetambémaquesuacasa.‘’Tenhovárias lesquesimplesmenespécies: Comigo tenãocultivamnada, ninguémpode,jiboia como outra morae Espada de São Jordora,quepreferiunão ge. Planto para ficar Angela possui várias espécies ser identificada. Ela mais bonito’’, conta afirma que, apesar de folhagens em sua casa a moradora, de 61 deduasgeraçõesde anos. ‘’Quando vou ao supermercado, sua família gostarem de cultivar folhagens, logo trago algumas pra casa’’. ela não tem tempo para a atividade. Na moradia de Amanda*, de 77 anos, a paixãopelasfolhagensvemdeberço:‘Aminha * O nome foi trocado para preservar mãe vivia no meio das flores. Enquanto eu a identidade da entrevistada tiver um cantinho, estou colocando alguma Pedro Nunes folhagem’’. Ela conta também que possui nATHALIA AMARAL um pé de couve, cujas folhas colheu cinco


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BAIRRO .7

A fé está presente Os moradores se dividem entre os ritos do Evangelismo e do Catolicismo

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ogo na entrada da Kédi, à altura do número 2200, se vê a pequena igreja de Santa Edwiges, filiada à paróquia Mont’ Serrat. É uma construção simples, paredes brancas e aberturas azuis, com uma bela cruz, também azul, na fachada. Lá são ministradas aulas de catequese para as crianças da vila. Mas a fé não se limita à religião católica, os evangélicos também estão presentes. Bruna, 22 anos, moradora do local há cerca de um ano, cede um espaço em sua casa para encontros todos os sábados, às 17 horas. “A gente se encontra para promover a fé, conversamos sobre os problemas da vida, nos unimos na comunhão para trazer a fé para a Kédi. Eu acredito em Jesus, no que ele foi, não é a religião, é a fé em Jesus”, conta. Segundo ela, são cerca de vinte pessoas que participam dos encontros regularmente. “Onde eu morava

eu participava de encontros assim, resolvi fazer isso aqui também”, completa. Algumas crianças frequentam a Igreja Santa Edwiges e têm aulas de catequese aos sábados. Giovana, de 10 anos, é uma das alunas. Ela pediu aos pais para frequentar as aulas, e os pais, que não são religiosos, permitiram. “Eu gosto das aulas, faço desde os 9 anos. A gente faz leituras, atividades e lê sobre Deus”, relata. Entre os adultos católicos, a maioria não é praticante. Como Leni, de 27 anos. “Eu sou católica, mas não vou, não sou praticante. Fui batizada, mas não tenho proximidade com a religião”, diz. A paróquia Mont’ Serrat é responEncontros sável pela Igreja evangélicos Santa Edwiges, acontecem todos as aulas aconte- os sábados cem aos sábados para cerca de 10 crianças da Kédi. A paróquia foi procurada pela reportagem, mas não retornou o contato. Nathalia Amaral

Saneamento: um direito a reivindicar A falta de esgoto canalizado é um dos grandes problemas na Kédi. Não há uma casa sequer no local em que o esgoto seja totalmente regular. Diante disso, alguns moradores improvisam como podem os encanamentos. Outros, despejam o esgoto a céu aberto, tanto em seus pátios como na rua única em que se localiza a vila. Faltam tanto ligações cloacais quanto pluviais. A moradora Maria de Jesus Martins, de 76 anos, conta que precisa se deslocar até a casa do filho para tomar banho e fazer suas necessidades fisiológicas, porque por falta de encanamento em boas condições, em sua casa não há como ter um banheiro. Apesar de ser a poucos metros de distância, se deslocar até lá causa incômodo. Ela solicita uma solução ao problema: “Não nos importamos de pagar as tarifas, nós apenas queremos uma vila mais limpa”, reclama. Maria de Jesus mora no lado esquerdo da vila; seu filho, no lado direito. A vizinhança do lado direito é relativamente beneficiada no quesito saneamento, pois várias das casas conectaram seu esgoto ao do clube Country Club, vizinho da vila. Com isso, o saneamento melhorou, mas ainda há proble-

mas. Maria de Jesus afirma que uma coisa horrível”, lamenta. Há quando chove, a coisa se agrava: ainda essa situação na comuni“A água da chuva se mistura com o dade, mas a proporção é bem esgoto que é despejado na rua... as menor, porque muitos moradores pessoas ficam pisando no esgoto”. mudaram o encanamento para Para Evanir da Glória Mendes dos que escoe no terreno baldio loSantos, de 63 anos, a situação já calizado ao lado da vila. foi pior.“Comparando com antes, O morador Galvi Silva Fontoura, estamos no 1º mundo”, brinca. 67 anos, conta que há cerca de 8 Ela conta que a maioria das casas anos atrás ele e outros moradodespejavam o esgoto na própria res entraram em contato com a rua, que se mistuprefeitura, mas até rava à lama. “Era hoje aguardam o Dejetos se misturam à lama na frente das casas

atendimento da solicitação. Alguns políticos que passaram pela Vila Kédi prometeram auxílio, mas nada foi feito até o momento. “Sabe aquela promessa? Pois é... e nunca mais apareceram”, diz Galvi. Evanir se preocupa com os pequenos moradores da vila. “O esgoto a céu aberto prejudica as crianças, pois elas vão para rua e não escolhem onde brincar”. Laís Albuquerque

Tipos de esgoto Cloacal: é ligado às casas, formado pela água escoada de tanques e pias, banheiros e descargas sanitárias. Pluvial: é ligado à rua, formado pela água da chuva e também pelas águas de lavagem de pátios, carros e regas de jardim.

O que diz a prefeitura Tanto o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) quanto o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) confirmam que a Vila Kédi não possui esgoto canalizado. Essa situação ocorre porque o local é uma ocupação irregular.“A regularização deve ser encaminhada via Secretaria Municipal de Urbanismo (SMURB). Após a regularização da área, a comunidade poderá solicitar a infraestrutura básica de pavimentação e de esgoto pluvial”, esclarece a assessora de imprensa do DEP, Adriana Machado. A gerente de planejamento do Dmae, Airana do Canto, explica que ainda não há projetos para o esgotamento cloacal porque isso depende de decisão da prefeitura sobre o futuro da comunidade: “Não foi decidido se as pessoas serão removidas do local, se ficarão ou se haverá obras do alargamento da via. Os investimentos em esgoto virão quando essa decisão for tomada”, diz.


ENFOQUE VILA KÉDI ENSAIO FOTOGRÁFICO

Poema para poder ver Primeiro, houve luz. Mas não aqui. Não à noite. Lâmpadas pela Vila guiam quando o sol se despede. A esperança pode vir de quem pouco olha para ali. Talvez porque sem luz fique difícil enxergar a falta de canos e asfalto e fiosluz. O perigo mora ao lado, adverte uma moradora sobre o infame vizinho. Crianças e adultos na chuva, na casinha com a rede precária ali, esperando por um - apenas um descuido. E, acaso pense que preferem assim por conta do dinheiro da conta de luz - que não existe, engana-se. Eles mesmos já se mobilizaram por um poste que lhes ilumine. A dificuldade e o perigo residente impedem. Enquanto isso Maria carrega a luz apenas no nome: de Jesus. Agradecimento a Maria de Jesus, 76 anos, pelo tempo dedicado ao repórter. Henrique Kanitz

PORTO ALEGRE (RS) ABRIL/MAIO DE 2016

EDIÇÃO

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